Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-7110-464-8
Tradução: Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 272
“Atualmente,
os indivíduos são “socialmente empenhados”, em primeiro lugar, através de seu
papel como consumidores, não produtores: o estímulo de novos desejos toma o
lugar da regulamentação normativa, a publicidade toma o lugar da coerção, e a
sedução torna redundantes ou invisíveis as pressões da necessidade.”
“O
sexo está sendo completamente purificado de todas as “poluições” e “corpos
estranhos” tais como obrigações assumidas, laços protegidos, direitos
adquiridos. Por outro lado, porém, todas as outras coisas das relações humanas
são — afiadamente, vigilantemente, obsessivamente, às vezes de uma maneira
atacada de pânico — purificadas mesmo das mais pálidas sugestões sexuais que
permitam a mais leve possibilidade de condensar essas relações em permanência.
As sugestões sexuais são pressentidas e farejadas em toda emoção que chegue
além da escassa relação de sentimentos permitidos no arcabouço do desencontro
(ou quase encontro, encontro fugaz, encontro inconsequente) em todo
oferecimento de amizade e toda manifestação de um interesse mais profundo do
que a média, por uma outra pessoa. (Muito antes de Oleanna ser escrita e
apresentada, um amigo meu, sociólogo eminente, contou-me que havia resolvido
manter a porta de seu escritório inteiramente aberta sempre que garotas
estudantes viessem consultá-lo — para evitar acusações de assédio sexual. Como
ele descobriu muito depressa, a porta tinha também de ser mantida aberta
durante as visitas dos rapazes estudantes.) Saudar a beleza ou o encanto de
um/a colega de trabalho é provavelmente censurado como provocação sexual, e o
oferecimento de uma xícara de café como importunação sexual. O espectro do
sexo, agora, assombra os escritórios das empresas e as salas dos grupos de
estudo dos colégios: há uma ameaça encerrada em todo sorriso, olhar atento ou
maneira de tratar. O resultado total é o rápido definhamento das relações
humanas, despindo-as de intimidade e emotividade, e o esmorecimento do desejo
de entrar nelas, conservá-las vivas.
O
desvio do sexo, de cimentar a parceria para seu enfraquecimento, para garantir
a transitoriedade de um relacionamento e sua disposição de se anular com uma
pequena notícia ou sem notícia, está provavelmente no que tem de mais conspícuo
e mais consequente: no reino da vida familiar. Afinal, era precisamente nesse
reino que o sexo costumava proporcionar o tijolo e a argamassa essenciais para
a construção da estrutura: quer em sua versão positiva, articulando os laços
conjugais, quer negativamente (como a força elementar que precisa ser domada e
controlada), ao articular a intimidade entre pais e filhos. Hoje, o sexo está
se convertendo num poderoso instrumento de desagregação da estrutura da
família, em todas as suas dimensões.”
“Se
em tempos passados a separação do negócio da casa permitiu ser aquele submetido
às exigências severas e serenas da competição, enquanto se conservava surdo a
todas as outras normas e valores, sobretudo morais, a separação atual do sexo
das outras relações inter-humanas permite-lhe ser submetido, sem restrição, aos
critérios estéticos da experiência forte e da satisfação sensual. Primeiro,
mediante a “purificação” da parceria, o amor erótico foi reduzido a sexo;
depois, em nome da purificação das intenções sexuais impuras, a parceria é
“purificada” do amor...”
“A nossa sociedade
“moderna tardia” (Giddens), “moderna reflexiva” (Beck),
“surmoderne” (Balandier), ou — como prefiro denominá-la — pós-moderna é marcada pelo descrédito, escárnio ou justa
desistência de muitas ambições (atualmente denegridas como utópicas ou
condenadas como totalitárias) características da era moderna. Dentre tais
sonhos modernos abandonados e desesperançados, está a perspectiva de suprimir
as desigualdades socialmente geradas, de garantir a todo indivíduo humano uma
possibilidade igual de acesso a tudo de bom e desejável que a sociedade possa
oferecer. Mais uma vez, tal como nas etapas iniciais da revolução moderna,
vivemos numa sociedade cada vez mais polarizada.
Ao longo
do período moderno, tendeu-se a definir a exclusão social como um soluço
temporário no progresso uniforme e implacável, sob outros aspectos, em direção
à igualdade. Ela era minimizada pelo mau funcionamento ainda não corrigido, mas
em princípio corrigível, do sistema social não suficientemente racionalizado.
Os desempregados e sem vencimentos eram encarados como o “exército de reserva da
mão-de-obra” — o que significava que amanhã, ou no dia seguinte, seriam sem
dúvida convocados ao serviço ativo e se juntariam às fileiras de produtores
que, em princípio, compreenderiam toda a sociedade. Esse não é mais o caso.
Falamos hoje em desemprego “estrutural” (um termo que ainda, contrariamente aos
fatos, alude ao emprego como sendo a norma e dá a entender que a atual falta
maciça de emprego é uma anomalia). Aqueles sem trabalho não são mais um
“exército de reserva da mão-de-obra”: o progresso econômico não significa mais
procura de mão-de-obra; o novo investimento significa menos, não mais emprego;
a “racionalização” significa reduzir postos de trabalho e colocações. Pode-se
dizer que, na extremidade oposta do espetacular avanço científico e tecnológico,
o “crescimento” do PNB passa a medir a produção maciça de redundância e pessoas
redundantes. Essas pessoas são mantidas vivas mediante o que a estrutura da
nossa economia define, com mais do que uma insinuação da condenação que toda
anormalidade merece, como “transferências secundárias” — a dependência que as
estigmatiza como um fardo para os assalariados, para os ativamente envolvidos
na vida econômica, para os “contribuintes”. Não requeridas como produtoras,
inúteis como consumidoras — elas são pessoas que a “economia”, com sua lógica
de suscitar necessidades e satisfazer necessidades, poderia muito bem
dispensar. O fato de estarem por perto e reivindicarem o direito à
sobrevivência é um aborrecimento para o restante de nós. Sua presença não poderia
mais ser justificada em função da competitividade, eficiência ou quaisquer
outros critérios legitimados pela razão econômica dominante. Não há emprego
suficientemente significativo para todas essas pessoas vivas e não há muita
perspectiva de, algum dia, equiparar o volume de trabalho com a multidão
daqueles que o querem e o necessitam para escapar à rede de “transferências
secundárias” e ao estigma a ela associado.”
“Os
mais meditativos e filosoficamente perspicazes artistas pós-modernos, ao se
esforçarem para representar o espírito e a tendência de sua era em sua obra e
nas técnicas com que as obras são executadas, mais do que qualquer outra coisa
retratam e expressam a ausência do “original”. Compositores de discos populares
gravam o que já foi gravado; Andy Warhol pinta o que já foi pintado; Sherrie
Levine fotografa o que já foi fotografado; eles e muitos outros citam, cotejam,
rearranjam, recompõem e, acima de tudo, copiam e multiplicam as imagens já
criadas, fazendo circular a questão da autoria e originalidade, e
providenciando para que a questão não possa ser formulada novamente de nenhum
modo significativo. Andy Warhol deu-se ao trabalho de eliminar o “original” de
seu processo artístico. Desenvolveu técnicas que permitiam a criação de
qualquer número de cópias, mas impossibilitavam que se selecionasse qualquer
uma delas como a original ou a primeira.
Todos
nós que confiamos nossos pensamentos a computadores, em vez de a folhas
manuscritas ou datilografadas, e interagimos com a tela, incessantemente
reescrevendo e reordenando o que escrevemos; sabemos muitíssimo bem que cada
versão seguinte torna as versões anteriores não-existentes, apagando todos os
traços do caminho que nos conduziu até onde então estamos. A escrita em
computador extinguiu a outrora sagrada ideia da “versão original”. Os
estudantes formados do próximo século sentirão muita falta dos temas prediletos
das dissertações deste século: reconstituir as sucessivas etapas da luta do
autor com os próprios pensamentos até o “início”, até o ato original da
inspiração, e assim recontar o drama da criação individual. Assim, os
computadores lançam uma sombra gigantesca sobre a nossa imagem herdada do
escritor como autor: o próprio nome do programa que usamos para escrever não
sugere um processador de palavras em vez de um compositor de ideias, pensador e
criador?”
“A imortal espécie dos
computadores revelou-se uma grande igualadora: não porque elevou todos às
fileiras outrora reservadas exclusivamente aos “grandes homens”, mas porque
extinguiu a noção dos “grandes homens” como uma categoria que tinha
probabilidade de um tipo de imortalidade diferente dos mortais comuns, aqueles
a que era sempre oferecida a imortalidade por procuração, mediante o sacrifício
de suas vidas no altar da espécie, ou de uma parte selecionada da espécie.
Com a
capacidade infinita e o apetite insaciável da memória artificial, ser
registrado não é mais a recompensa dos poucos eleitos, nem necessariamente o
resultado do próprio empreendimento de alguém. Agora todos têm a possibilidade
e a probabilidade de ter o nome e registro de vida conservados para sempre na
memória artificial dos computadores. Pela mesma razão, ninguém tem a
possibilidade de obter um acesso privilegiado à comemoração perpétua. A fama,
essa premonição da imortalidade, foi suplantada pela notoriedade, essa imagem
da contingência, infidelidade e inconstância do destino. Quando todos podem ter
um quinhão dos refletores, ninguém permanece sob os refletores para sempre, mas
tampouco ninguém submerge para sempre na escuridão. A morte, a irrevogável e
irreversível ocorrência, foi suplantada pelo ato do desaparecimento: os
refletores movem-se para outro local, mas sempre podem voltar-se, e de fato se
voltam, para o outro lado. Os desaparecidos estão
temporariamente ausentes; não totalmente ausentes,
porém — eles estão tecnicamente presentes,
armazenados em segurança no depósito da memória artificial, sempre prontos a
serem ressuscitados sem muita dificuldade, e a qualquer momento.”
“O
conhecimento da morte é a tragédia especificamente humana. Costumava ser também
a fonte imperecível da grandeza especificamente humana, o móvel das melhores
realizações humanas. Não sabemos se a grandeza sobreviverá à tragédia; ainda
não a experimentamos, não estivemos aqui antes. O mundo que temos habitado até
aqui está salpicado pelas marcas e traços deixados pelos nossos esforços em
escapar para a imortalidade. Depois que obtivemos um equivalente eletrônico do
retrato de Dorian Gray, podemos ter conquistado para nós um mundo sem rugas,
mas também sem paisagem, história e objetivo.”
“A
religiosidade não é, afinal, nada mais do que a intuição dos limites até os
quais os seres humanos, sendo humanos, podem agir e compreender.”
“A religião, na verdade, é a
consciência da insuficiência humana, é vivida na admissão da fraqueza... A
mensagem invariável do culto religioso é: “do finito ao infinito, a distância é
sempre infinita...” (Leszek Kolakowski)
“A
organização da vida diária é, de um modo geral, independente da tristeza e
alegria filosóficas, evoluindo em torno de preocupações que raramente, se
tanto, incluem a inquietação a respeito dos limites das coisas com que os seres
humanos, como tais, podiam razoavelmente (e efetivamente!) estar preocupados. A
revolução moderna consistiu precisamente na rejeição desse último tipo de
inquietação, ou retirando-o completamente da agenda, ou elaborando a agenda da
vida de tal modo que pouco ou nenhum tempo foi deixado para cuidar de tais
inquietações. Também se pode dizer que ela consistiu em tapar os ouvidos às
homílias de redenção e salvação, e fechar os olhos às pinturas do regozijo ou
julgamento póstumos. As preocupações que têm enchido a vida humana desde o
começo da modernidade se relacionam com problemas
— e “problemas” são, por definição, tarefas que são cortadas conforme a medida
das genuínas ou supostas habilidades humanas, tarefas “sobre as quais se pode
fazer algo” ou “sobre as quais se pode e deve descobrir o que fazer”. Foi essa
moderna estratégia que Marx extrapolou na “lei da história”, quando sugeriu que
“nenhuma era histórica se apresentou tarefas que não pudesse desempenhar.” Se
essa proposição é verdadeira como um princípio intemporal, é discutível. Mas
certamente ela se aplica à era moderna.”
“São as incertezas
concentradas na identidade individual, em sua
construção nunca completa e em seu sempre tentado desmantelamento com o fim de
reconstruir-se, que assombram os homens e mulheres modernas, deixando pouco
espaço e tempo para as inquietações que procedem da insegurança ontológica. É nesta vida, neste lado do ser (se é que
absolutamente há outro lado), que a insegurança existencial está
entrincheirada, fere mais e precisa ser tratada. Ao contrário da insegurança
ontológica, a incerteza concentrada na identidade não precisa nem das benesses
do paraíso, nem da vara do inferno para causar insônia. Está tudo ao redor,
saliente e tangível, tudo sobressaindo demais nas habilidades rapidamente envelhecedoras
e abruptamente desvalorizadas, em laços humanos assumidos até segunda ordem, em
empregos que podem ser subtraídos sem qualquer aviso,
e nos sempre novos atrativos da festa do consumidor, cada um prometendo tipos
de felicidade não experimentados, enquanto apagam o brilho dos já
experimentados.
Os
homens e mulheres pós-modernos realmente precisam do alquimista que possa, ou
sustente que possa, transformar a incerteza de base em preciosa auto-segurança,
e a autoridade da aprovação (em nome do conhecimento superior ou do acesso à
sabedoria fechado aos outros) é a pedra filosofal que os alquimistas se gabam
de possuir. A pós-modernidade é a era dos especialistas em “identificar
problemas”, dos restauradores da personalidade, dos guias de casamento, dos autores
dos livros de “autoafirmação”: é a era do “surto de aconselhamento”. Os homens
e mulheres pós-modernos, quer por preferência, quer por necessidade, são selecionadores. E a arte de selecionar é principalmente em
torno de evitar um perigo: o de perder uma oportunidade
— por não vê-la bastante claramente, ou por não persegui-la bastante
incisivamente, ou por ser um agente de demasiada inexperiência para capturá-la.
Para evitar esse perigo, os homens e mulheres pós-modernos precisam de
aconselhamento. A incerteza de estilo pós-moderno não gera a procura da
religião: ela concebe, em vez disso, a procura sempre crescente de
especialistas na identidade. Homens e mulheres assombrados pela incerteza de
estilo pós-moderno não carecem de pregadores para lhes dizer da fraqueza do
homem e da insuficiência dos recursos humanos. Eles precisam da reafirmação de
que podem fazê-lo — e de um resumo a respeito de como fazê-lo.”
“O
fundamentalismo religioso pertence a uma família mais ampla de soluções
totalitárias ou protototalitárias, oferecidas a todos os que deparam a carga da
liberdade individual excessiva e insuportável (...) Num mundo em que todos os meios de vida
são permitidos, mas nenhum é seguro, (estas soluções) mostram coragem
suficiente para dizer, aos que estão ávidos de escutar, o que decidir de
maneira que a decisão continue segura e se justifique em todos os julgamentos a
que interesse. (...)
Longe de ser uma explosão de irracionalidade
pré-moderna, o fundamentalismo religioso, muito parecido com os autoproclamados
reavivamentos étnicos, é uma oferta de racionalidade
alternativa, feita sob medida para os genuínos problemas que assediam os
membros da sociedade pós-moderna. Como todas as racionalidades, ele seleciona e
divide; e o que seleciona difere da seleção efetuada pelas forças
desregulamentadas do mercado — o que não o torna menos racional (ou mais
irracional) do que a lógica da ação orientada pelo mercado. Se a racionalidade
típica do mercado se subordina à promoção da liberdade de escolha e prospera
sobre a incerteza das situações de execução da escolha, a racionalidade
fundamentalista coloca a segurança e a certeza em primeiro lugar e condena tudo
o que solapa essa certeza — antes e acima de tudo, as extravagâncias da
liberdade individual. Em sua interpretação fundamentalista, a religião não é
uma “questão pessoal”, privatizada como todas as outras escolhas individuais e
praticada em particular, mas a coisa mais próxima de uma
completa mappa vitae: ela legisla em termos nada incertos sobre cada
aspecto da vida, desembaraçando desse modo a carga de responsabilidade que se
acha pesadamente sobre os ombros do indivíduo — esses ombros que a cultura
pós-moderna proclama onipotentes, e o mercado promove como tais, mas que muitas
pessoas acham frágeis demais para essa carga.
O fundamentalismo religioso, sugeriu Kepel, tem
“uma singular capacidade de revelar os males da sociedade”. Até que ponto? Com
a agonia de solidão e abandono induzida pelo mercado como sua única
alternativa, o fundamentalismo, religioso ou de outra maneira, pode contar com
uma clientela sempre crescente. Seja qual for a qualidade das respostas que ele
fornece, as perguntas a que responde são genuínas. O problema não é como
desprezar a gravidade das perguntas, mas como encontrar respostas livres dos
genes totalitários.”
“Com
excessiva frequência, a realidade, quando contemplada de muito perto e
sobretudo de dentro, parece muito pouco sedutora. Na maioria das vezes, o
postulado da “sobrevivência” converte-se em uma aterradora arma de sujeição e
tirania, empregada pelos guardiães às vezes aclamados, e mais frequentemente
autoproclamados, dos valores tradicionais (étnicos, raciais, religiosos) da “comunidade”,
a fim de exigir reverência de seus infelizes tutelados e reprimir toda
insinuação de uma escolha autônoma.”
“O
comunitarismo não é um remédio para as falhas inerentes do liberalismo. A
contradição entre eles é genuína e não há ginástica filosófica que possa
saná-la. Tanto o comunitarismo quanto o liberalismo são projeções de sonhos
nascidos da contradição real inerente à difícil situação dos indivíduos
autônomos. Cada um é apenas uma projeção unilateral que, a bem da própria
coerência, tende a atenuar o fato de que nenhuma das virtudes da difícil
situação do indivíduo pode sobreviver à eliminação de seus infortúnios. Em
todas as circunstâncias, a vida do indivíduo autônomo não pode deixar de ser
atravessada entre os dois extremos igualmente sem atrativos, e essa travessia
requer que a liberdade seja aceita juntamente com os riscos que acarreta.
Passar ao largo da tentação de sacrificar a liberdade em nome da condição livre
de riscos é toda a possibilidade de vida significativa e dignificada que os indivíduos
humanos podem sensatamente esperar, por mais que os filósofos façam para impedi-los
de encarar essa verdade.”
“Por numerosos motivos, a
restauração da certeza moderna não aparece nas cartas. É melhor, ou pior? É
possível que a discussão seja interminável e, com toda a probabilidade,
inconclusiva, não obstante todos os indubitáveis atrativos da certeza; e não
porque não esteja claro se as vantagens do ato de desaparecimento da certeza
contrabalançam ou não as perdas, mas porque gente demais aprendeu os custos da
guerra contra a ambivalência e o preço a ser pago pelos confortos da certeza, e
porque gente demais saiu chamuscada (pelo menos!) do processo e toma cuidado
para não assumir de novo esses custos. Se a história prova alguma coisa, provou
— e abundantemente — uma coisa que qualquer futuro balanço de contas deve ter
em mente: como Odo Marquard, autor de Apologie des Zufãlligen
(1987) e de Abschied votn Prinzipiellen (1991), o
exprimiu na sua própria maneira inimitável, “Se — relativamente a um texto
sagrado — dois intérpretes, contradizendo-se um ao outro, afirmam: eu estou
certo, minha compreensão do texto é a verdade, e a verdade imperativa para a
salvação, isso pode custar um pugilato.” Mas, se eles concordam, em vez disso,
que “o texto pode ser compreendido de um modo diferente e, se isso não é
bastante, de outro modo, e ainda outro”, pode-se dizer que eles podem
principiar a negociar, “e quem negocia não mata”. A “hermenêutica
pluralizadora”, ao contrário da “hermenêutica singularizadora”, prenuncia um
“ser voltado para o texto”, no lugar do “ser voltado para o assassínio”.
A
história está cheia de assassínios de massa cometidos em nome de uma e única
verdade. (A última expressão é um pleonasmo, sem dúvida: a verdade só pode ser
“uma e única” ou inverídica; a ideia da verdade precisa ser empregada quando a
falsidade de todas as outras crenças está implícita; “verdade” no plural é uma
contradição em termos.) É difícil ressaltar, porém, um único caso de um ato
cruel em nome da pluralidade e da tolerância. Os intrépidos conquistadores dos
infiéis, os cardeais da Santa Inquisição, os comandantes de guerras religiosas
não foram mais notórios por seu relativismo e amor à pluralidade do que Hitler
ou Stalin. E no entanto se ouve repetidamente que “Se não há nenhum Deus, tudo
é permitido”, embora se aprenda com a história que acontece o oposto: se há
Deus, então não há nenhuma crueldade, ainda que atroz, que não se permita ser
cometida em Seu nome. E, mais decisivamente, não são então os humanos perpetradores
de crueldade que assumem a responsabilidade, temendo assim serem censurados por
sua consciência pela crueldade cometida.
Não
estamos empenhados, aqui, numa disputa teológica sobre a existência ou
não-existência de Deus. No que foi dito acima (e, mais significativamente, no
uso e abuso tanto político quanto filosófico de seu nome), “Deus” representa a
ideia do “um e único”, a ideia do “não terás outros deuses diante de mim” em
todas as suas inumeráveis versões e indumentárias: do Ein
Volk, ein Reich, ein Führer, do partido único, de um veredicto da
história, uma linha de progresso, um modo de ser humano, uma ideologia
(científica), um significado verdadeiro, uma filosofia própria. Em todos esses
casos, o “um e único” transmite a una e única mensagem: o direito ao monopólio
do poder para alguns, o dever da total obediência para os outros.”
“Ser
livre não significa não acreditar em nada: significa é acreditar em muitas
coisas — demasiadas para a comodidade espiritual de obediência cega; significa
estar consciente de que há demasiadas crenças igualmente importantes e
convincentes para a adoção de uma atitude descuidada ou niilista ante a tarefa
da escolha responsável entre elas; e saber que nenhuma escolha deixaria o
escolhedor livre da responsabilidade pelas suas consequências — e que, assim,
ter escolhido não significa ter determinado a matéria de escolha de uma vez por
todas, nem o direito de botar sua consciência para descansar.
A
voz da consciência — a voz da responsabilidade — é audível, por assim dizer, só
no tumulto de melodias não-coordenadas. O consenso e a unanimidade prenunciam a
tranquilidade do cemitério (a “perfeita comunicação”, de Habermas, que mede a
sua própria perfeição pelo consenso e exclusão do desacordo, é outro sonho de
morte que cura radicalmente os males da vida de liberdade); é no cemitério do
consenso universal que a responsabilidade, a liberdade e o indivíduo exalam seu
último suspiro.
A voz da
responsabilidade é o grito de recém-nascido do indivíduo humano. Não
necessariamente, porém, é sinal de uma vida feliz — se a felicidade significa
ausência de inquietações (por certo, uma definição altamente discutível, embora
largamente difundida, de felicidade). A aceitação da responsabilidade não
aparece facilmente — não exatamente porque ela leva aos suplícios da escolha
(que sempre impõe a privação de alguma coisa, assim como o ganho de outra), mas
também porque ela anuncia a permanente ansiedade de estar — quem sabe? —
errando.
E, desse
modo, a liberdade do livre, a individualidade do indivíduo são ameaçadas não
apenas pelos detentores do poder. Estes últimos sustentam a liberdade
individual como o laço sustenta o homem enforcado — o homem ou mulher que
assume a responsabilidade com suas próprias mãos vive o pesadelo de todo poder.
Os detentores do poder, contemporâneos e em perspectiva, não reconhecem senão
uma forma da responsabilidade dos seus súditos: ser responsável, na linguagem
do poder, é seguir o comando, enquanto “ter poder” significa, essencialmente,
tirar o direito de alguém mais a qualquer outra responsabilidade, que é a sua
liberdade. A dificuldade, contudo, não acaba aqui. As forças ávidas de tirar
liberdade nem sempre precisam da coerção para alcançar seu fim. Como demonstrou
a experiência do nosso tempo de totalitarismo para além da dúvida razoável, com
uma demasiada frequência o desejo de tirar a liberdade se encontra com o desejo
de concedê-la. Com uma demasiada frequência, a liberdade é usada para fugir da
liberdade: para fugir de ter consciência na
consciência do ser, e da necessidade de defender a
posição de alguém, na crença de que todas as posições dignas de consideração já
foram consideradas.”
“No
todo, não é certo de modo algum o que a maior parte de nós teria preferido (se
lhe fosse a escolha concedida): a ansiedade da liberdade ou o conforto da tal
certeza que só a falta de liberdade pode oferecer? A questão, porém, é que a
escolha não nos foi concedida, e é improvável que no-lo seja. A liberdade é o
nosso destino: uma sorte de que não se pode desejar o afastamento e que não se
vai embora por mais intensamente que possamos desviar dela os nossos olhos.
Vivemos num mundo diversificado e polifônico, onde toda tentativa de inserir o
consenso se mostra somente uma continuação do desacordo por outros meios. Este
mundo foi submetido, por muito tempo (e com toda probabilidade continuará a ser
submetido por longo tempo adiante) a um processo de completa e inexorável
“incertização”1 (o amplamente descrito “desaparecimento do emprego”
é apenas uma dimensão, altamente sintomática, do processo — e que exerce um
enorme impacto psicológico, enquanto tende a ser projetada sobre a percepção de
todos os outros aspectos da existência.”
1. O termo “Vinsécurisation”
foi cunhado por Jean-Luc Mathieu (ver seu L'insé-curité, Paris, Presses Universitaires
de France, 1995).
“A
sensação de insegurança, universalmente partilhada e esmagadora, parece ser a
única vencedora.”
“Sir William Beveridge7 proclamou seus grandes projetos de bem-estar garantido
pelo estado como sendo “coisas essencialmente liberais — um transporte para o
novo mundo das grandes tradições vivas do liberalismo”. Ele acrescentou que é
em nome da liberdade de cada um, e não exatamente dos
incapazes, por uma razão ou outra, de exercer sua liberdade, que se
precisa garantir que todo cidadão “tenha uma renda suficiente para a
subsistência honrada de si próprio e de todos os que dependam dele, uma renda
suficiente embora ele não tenha nada mais de si próprio, e não reduzida por
qualquer investigação financeira se ele tiver algo de seu”. Tal garantia —
estendida a cada um, inclusive àqueles que em tal
momento estejam andando firmemente com suas próprias pernas e aos quais a
necessidade de segurança coletiva pareça irrelevante ou mesmo remota — era, na
opinião de Beveridge, o único remédio preventivo contra o
medo da privação e da falta de emprego, o medo que começa a consumir as
almas muito antes de a própria privação e a falta de emprego principiarem a
morder, e que devora antes e acima de tudo aquela confiança, ousadia e
determinação que fornecem a “energia crítica” de Ruggiero e são necessárias
para manter a privação e a falta de emprego a uma distância segura.
Era
óbvio para Beveridge, o “liberal radical”, que a liberdade individual precisa
de proteção coletiva. Os atuais e autoproclamados porta-vozes
do liberalismo tentam fazer igualmente óbvio o oposto: que a liberdade
individual precisa do despedaçamento de todas as redes protetoras coletivamente
tecidas — parcialmente, porque as redes dificultam os atos autoprotetores, mas,
principalmente, porque elas são dispendiosas (isto é, seus custos de manutenção
reduzem o montante de dinheiro à mão disponível para os indivíduos voltados
para a autoproteção). Como se para provar o assunto, os autoproclamados políticos liberais tornam as redes cada vez mais rotas,
reles e sórdidas, de sorte que cada vez mais as pessoas se admiram com a
espécie de alegria ou benefício que se podia conseguir ao cair dentro delas. Se
“o dinheiro no seu bolso” cresce enquanto as redes protetoras se desintegram, é
uma questão discutível; o que é indubitável é que a privação e falta de emprego
voltam em grandes proporções, deixando os desafortunados sem teto e assombrando
as casas dos afortunados.”
7: Ver
Sir William Beveridge, “Liberal
radicalism and liberty”, Western
Liberalism: A History in Documents from Locke to Croce, orgs. E.K. Bransted
e K..J. Melhuish (Londres, Longman, 1978, p.712-7).
“Poucos participantes do debate,
se tanto, exigiriam hoje o sacrifício das liberdades individuais “em benefício
da sociedade”; é a sociedade que precisa legitimar-se em função do serviço
prestado à liberdade individual — não a liberdade individual em função de sua
utilidade social. Na política pós-moderna, a liberdade individual é o valor
supremo e o padrão pelo qual todos os méritos e vícios da sociedade como um
todo são medidos. Mas, graças a muitas e intensas experiências e mesmo a erros
mais onerosos, nós agora temos bastante probabilidade de compreender, aceitar e
admitir que a liberdade individual não pode efetivamente ser atingida por
esforços apenas individuais; que, para alguns poderem assegurar e desfrutar
disso, algo deve ser feito para assegurar a todos a possibilidade de seu
desfrute, e que fazer isso é a tarefa em que os indivíduos livres só devem
empenhar-se conjuntamente e mediante sua realização comum: mediante a comunidade política.
“É
fácil demais abusar do princípio da solidariedade. Não é fácil, e é talvez
impossível, declarar confiantemente onde a exigência da solidariedade com a
diferença acaba e onde a conivência com a opressão começa. Como em toda
política de princípios, também a política pós-moderna se arrisca bastante a
desafiar os seus próprios princípios. A esse respeito, sua única vantagem sobre
outras modalidades de política é que ela é toda consciente de tal perigo e,
desse modo, inclinada a acompanhar cuidadosamente suas realizações. Acima de
tudo, harmoniza-se com a ausência de soluções perfeitas e estratégias
garantidas, com o infinito das suas próprias tarefas e com a provável
inconclusividade dos seus esforços: é talvez esta a proteção mais acessível
contra a armadilha em que as tentativas da política moderna na construção da
comunidade se acostumaram a cair tão frequentemente — a de promover a opressão
sob o disfarce da emancipação.
“Há
a beleza e há os humilhados”, observou Albert Camus em 1953, no Retour à Tipasa. “Ainda que isso possa
ser difícil, eu não gostaria de ser desleal quer à primeira, quer aos outros.”
Só se podia acrescentar, a essa profissão de fé, que tentar a deslealdade
seletiva seria uma condenação, como dificilmente pode haver qualquer beleza sem
a solidariedade com os humilhados.”
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