sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O Mal-Estar da Pós-Modernidade (Parte III) – Zygmunt Bauman

Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-7110-464-8
Tradução: Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 272

“Atualmente, os indivíduos são “socialmente empenhados”, em primeiro lugar, através de seu papel como consumidores, não produtores: o estímulo de novos desejos toma o lugar da regulamentação normativa, a publicidade toma o lugar da coerção, e a sedução torna redundantes ou invisíveis as pressões da necessidade.”


“O sexo está sendo completamente purificado de todas as “poluições” e “corpos estranhos” tais como obrigações assumidas, laços protegidos, direitos adquiridos. Por outro lado, porém, todas as outras coisas das relações humanas são — afiadamente, vigilantemente, obsessivamente, às vezes de uma maneira atacada de pânico — purificadas mesmo das mais pálidas sugestões sexuais que permitam a mais leve possibilidade de condensar essas relações em permanência. As sugestões sexuais são pressentidas e farejadas em toda emoção que chegue além da escassa relação de sentimentos permitidos no arcabouço do desencontro (ou quase encontro, encontro fugaz, encontro inconsequente) em todo oferecimento de amizade e toda manifestação de um interesse mais profundo do que a média, por uma outra pessoa. (Muito antes de Oleanna ser escrita e apresentada, um amigo meu, sociólogo eminente, contou-me que havia resolvido manter a porta de seu escritório inteiramente aberta sempre que garotas estudantes viessem consultá-lo — para evitar acusações de assédio sexual. Como ele descobriu muito depressa, a porta tinha também de ser mantida aberta durante as visitas dos rapazes estudantes.) Saudar a beleza ou o encanto de um/a colega de trabalho é provavelmente censurado como provocação sexual, e o oferecimento de uma xícara de café como importunação sexual. O espectro do sexo, agora, assombra os escritórios das empresas e as salas dos grupos de estudo dos colégios: há uma ameaça encerrada em todo sorriso, olhar atento ou maneira de tratar. O resultado total é o rápido definhamento das relações humanas, despindo-as de intimidade e emotividade, e o esmorecimento do desejo de entrar nelas, conservá-las vivas.
O desvio do sexo, de cimentar a parceria para seu enfraquecimento, para garantir a transitoriedade de um relacionamento e sua disposição de se anular com uma pequena notícia ou sem notícia, está provavelmente no que tem de mais conspícuo e mais consequente: no reino da vida familiar. Afinal, era precisamente nesse reino que o sexo costumava proporcionar o tijolo e a argamassa essenciais para a construção da estrutura: quer em sua versão positiva, articulando os laços conjugais, quer negativamente (como a força elementar que precisa ser domada e controlada), ao articular a intimidade entre pais e filhos. Hoje, o sexo está se convertendo num poderoso instrumento de desagregação da estrutura da família, em todas as suas dimensões.”


“Se em tempos passados a separação do negócio da casa permitiu ser aquele submetido às exigências severas e serenas da competição, enquanto se conservava surdo a todas as outras normas e valores, sobretudo morais, a separação atual do sexo das outras relações inter-humanas permite-lhe ser submetido, sem restrição, aos critérios estéticos da experiência forte e da satisfação sensual. Primeiro, mediante a “purificação” da parceria, o amor erótico foi reduzido a sexo; depois, em nome da purificação das intenções sexuais impuras, a parceria é “purificada” do amor...”


A nossa sociedade “moderna tardia” (Giddens), “moderna reflexiva” (Beck), “surmoderne” (Balandier), ou — como prefiro denominá-la — pós-moderna é marcada pelo descrédito, escárnio ou justa desistência de muitas ambições (atualmente denegridas como utópicas ou condenadas como totalitárias) características da era moderna. Dentre tais sonhos modernos abandonados e desesperançados, está a perspectiva de suprimir as desigualdades socialmente geradas, de garantir a todo indivíduo humano uma possibilidade igual de acesso a tudo de bom e desejável que a sociedade possa oferecer. Mais uma vez, tal como nas etapas iniciais da revolução moderna, vivemos numa sociedade cada vez mais polarizada.
Ao longo do período moderno, tendeu-se a definir a exclusão social como um soluço temporário no progresso uniforme e implacável, sob outros aspectos, em direção à igualdade. Ela era minimizada pelo mau funcionamento ainda não corrigido, mas em princípio corrigível, do sistema social não suficientemente racionalizado. Os desempregados e sem vencimentos eram encarados como o “exército de reserva da mão-de-obra” — o que significava que amanhã, ou no dia seguinte, seriam sem dúvida convocados ao serviço ativo e se juntariam às fileiras de produtores que, em princípio, compreenderiam toda a sociedade. Esse não é mais o caso. Falamos hoje em desemprego “estrutural” (um termo que ainda, contrariamente aos fatos, alude ao emprego como sendo a norma e dá a entender que a atual falta maciça de emprego é uma anomalia). Aqueles sem trabalho não são mais um “exército de reserva da mão-de-obra”: o progresso econômico não significa mais procura de mão-de-obra; o novo investimento significa menos, não mais emprego; a “racionalização” significa reduzir postos de trabalho e colocações. Pode-se dizer que, na extremidade oposta do espetacular avanço científico e tecnológico, o “crescimento” do PNB passa a medir a produção maciça de redundância e pessoas redundantes. Essas pessoas são mantidas vivas mediante o que a estrutura da nossa economia define, com mais do que uma insinuação da condenação que toda anormalidade merece, como “transferências secundárias” — a dependência que as estigmatiza como um fardo para os assalariados, para os ativamente envolvidos na vida econômica, para os “contribuintes”. Não requeridas como produtoras, inúteis como consumidoras — elas são pessoas que a “economia”, com sua lógica de suscitar necessidades e satisfazer necessidades, poderia muito bem dispensar. O fato de estarem por perto e reivindicarem o direito à sobrevivência é um aborrecimento para o restante de nós. Sua presença não poderia mais ser justificada em função da competitividade, eficiência ou quaisquer outros critérios legitimados pela razão econômica dominante. Não há emprego suficientemente significativo para todas essas pessoas vivas e não há muita perspectiva de, algum dia, equiparar o volume de trabalho com a multidão daqueles que o querem e o necessitam para escapar à rede de “transferências secundárias” e ao estigma a ela associado.”


“Os mais meditativos e filosoficamente perspicazes artistas pós-modernos, ao se esforçarem para representar o espírito e a tendência de sua era em sua obra e nas técnicas com que as obras são executadas, mais do que qualquer outra coisa retratam e expressam a ausência do “original”. Compositores de discos populares gravam o que já foi gravado; Andy Warhol pinta o que já foi pintado; Sherrie Levine fotografa o que já foi fotografado; eles e muitos outros citam, cotejam, rearranjam, recompõem e, acima de tudo, copiam e multiplicam as imagens já criadas, fazendo circular a questão da autoria e originalidade, e providenciando para que a questão não possa ser formulada novamente de nenhum modo significativo. Andy Warhol deu-se ao trabalho de eliminar o “original” de seu processo artístico. Desenvolveu técnicas que permitiam a criação de qualquer número de cópias, mas impossibilitavam que se selecionasse qualquer uma delas como a original ou a primeira.
Todos nós que confiamos nossos pensamentos a computadores, em vez de a folhas manuscritas ou datilografadas, e interagimos com a tela, incessantemente reescrevendo e reordenando o que escrevemos; sabemos muitíssimo bem que cada versão seguinte torna as versões anteriores não-existentes, apagando todos os traços do caminho que nos conduziu até onde então estamos. A escrita em computador extinguiu a outrora sagrada ideia da “versão original”. Os estudantes formados do próximo século sentirão muita falta dos temas prediletos das dissertações deste século: reconstituir as sucessivas etapas da luta do autor com os próprios pensamentos até o “início”, até o ato original da inspiração, e assim recontar o drama da criação individual. Assim, os computadores lançam uma sombra gigantesca sobre a nossa imagem herdada do escritor como autor: o próprio nome do programa que usamos para escrever não sugere um processador de palavras em vez de um compositor de ideias, pensador e criador?”


A imortal espécie dos computadores revelou-se uma grande igualadora: não porque elevou todos às fileiras outrora reservadas exclusivamente aos “grandes homens”, mas porque extinguiu a noção dos “grandes homens” como uma categoria que tinha probabilidade de um tipo de imortalidade diferente dos mortais comuns, aqueles a que era sempre oferecida a imortalidade por procuração, mediante o sacrifício de suas vidas no altar da espécie, ou de uma parte selecionada da espécie.
Com a capacidade infinita e o apetite insaciável da memória artificial, ser registrado não é mais a recompensa dos poucos eleitos, nem necessariamente o resultado do próprio empreendimento de alguém. Agora todos têm a possibilidade e a probabilidade de ter o nome e registro de vida conservados para sempre na memória artificial dos computadores. Pela mesma razão, ninguém tem a possibilidade de obter um acesso privilegiado à comemoração perpétua. A fama, essa premonição da imortalidade, foi suplantada pela notoriedade, essa imagem da contingência, infidelidade e inconstância do destino. Quando todos podem ter um quinhão dos refletores, ninguém permanece sob os refletores para sempre, mas tampouco ninguém submerge para sempre na escuridão. A morte, a irrevogável e irreversível ocorrência, foi suplantada pelo ato do desaparecimento: os refletores movem-se para outro local, mas sempre podem voltar-se, e de fato se voltam, para o outro lado. Os desaparecidos estão temporariamente ausentes; não totalmente ausentes, porém — eles estão tecnicamente presentes, armazenados em segurança no depósito da memória artificial, sempre prontos a serem ressuscitados sem muita dificuldade, e a qualquer momento.”


“O conhecimento da morte é a tragédia especificamente humana. Costumava ser também a fonte imperecível da grandeza especificamente humana, o móvel das melhores realizações humanas. Não sabemos se a grandeza sobreviverá à tragédia; ainda não a experimentamos, não estivemos aqui antes. O mundo que temos habitado até aqui está salpicado pelas marcas e traços deixados pelos nossos esforços em escapar para a imortalidade. Depois que obtivemos um equivalente eletrônico do retrato de Dorian Gray, podemos ter conquistado para nós um mundo sem rugas, mas também sem paisagem, história e objetivo.”


“A religiosidade não é, afinal, nada mais do que a intuição dos limites até os quais os seres humanos, sendo humanos, podem agir e compreender.”


“A religião, na verdade, é a consciência da insuficiência humana, é vivida na admissão da fraqueza... A mensagem invariável do culto religioso é: “do finito ao infinito, a distância é sempre infinita...” (Leszek Kolakowski)


“A organização da vida diária é, de um modo geral, independente da tristeza e alegria filosóficas, evoluindo em torno de preocupações que raramente, se tanto, incluem a inquietação a respeito dos limites das coisas com que os seres humanos, como tais, podiam razoavelmente (e efetivamente!) estar preocupados. A revolução moderna consistiu precisamente na rejeição desse último tipo de inquietação, ou retirando-o completamente da agenda, ou elaborando a agenda da vida de tal modo que pouco ou nenhum tempo foi deixado para cuidar de tais inquietações. Também se pode dizer que ela consistiu em tapar os ouvidos às homílias de redenção e salvação, e fechar os olhos às pinturas do regozijo ou julgamento póstumos. As preocupações que têm enchido a vida humana desde o começo da modernidade se relacionam com problemas — e “problemas” são, por definição, tarefas que são cortadas conforme a medida das genuínas ou supostas habilidades humanas, tarefas “sobre as quais se pode fazer algo” ou “sobre as quais se pode e deve descobrir o que fazer”. Foi essa moderna estratégia que Marx extrapolou na “lei da história”, quando sugeriu que “nenhuma era histórica se apresentou tarefas que não pudesse desempenhar.” Se essa proposição é verdadeira como um princípio intemporal, é discutível. Mas certamente ela se aplica à era moderna.”


São as incertezas concentradas na identidade individual, em sua construção nunca completa e em seu sempre tentado desmantelamento com o fim de reconstruir-se, que assombram os homens e mulheres modernas, deixando pouco espaço e tempo para as inquietações que procedem da insegurança ontológica. É nesta vida, neste lado do ser (se é que absolutamente há outro lado), que a insegurança existencial está entrincheirada, fere mais e precisa ser tratada. Ao contrário da insegurança ontológica, a incerteza concentrada na identidade não precisa nem das benesses do paraíso, nem da vara do inferno para causar insônia. Está tudo ao redor, saliente e tangível, tudo sobressaindo demais nas habilidades rapidamente envelhecedoras e abruptamente desvalorizadas, em laços humanos assumidos até segunda ordem, em empregos que podem ser subtraídos sem qualquer aviso, e nos sempre novos atrativos da festa do consumidor, cada um prometendo tipos de felicidade não experimentados, enquanto apagam o brilho dos já experimentados.
Os homens e mulheres pós-modernos realmente precisam do alquimista que possa, ou sustente que possa, transformar a incerteza de base em preciosa auto-segurança, e a autoridade da aprovação (em nome do conhecimento superior ou do acesso à sabedoria fechado aos outros) é a pedra filosofal que os alquimistas se gabam de possuir. A pós-modernidade é a era dos especialistas em “identificar problemas”, dos restauradores da personalidade, dos guias de casamento, dos autores dos livros de “autoafirmação”: é a era do “surto de aconselhamento”. Os homens e mulheres pós-modernos, quer por preferência, quer por necessidade, são selecionadores. E a arte de selecionar é principalmente em torno de evitar um perigo: o de perder uma oportunidade — por não vê-la bastante claramente, ou por não persegui-la bastante incisivamente, ou por ser um agente de demasiada inexperiência para capturá-la. Para evitar esse perigo, os homens e mulheres pós-modernos precisam de aconselhamento. A incerteza de estilo pós-moderno não gera a procura da religião: ela concebe, em vez disso, a procura sempre crescente de especialistas na identidade. Homens e mulheres assombrados pela incerteza de estilo pós-moderno não carecem de pregadores para lhes dizer da fraqueza do homem e da insuficiência dos recursos humanos. Eles precisam da reafirmação de que podem fazê-lo — e de um resumo a respeito de como fazê-lo.”


“O fundamentalismo religioso pertence a uma família mais ampla de soluções totalitárias ou protototalitárias, oferecidas a todos os que deparam a carga da liberdade individual excessiva e insuportável  (...) Num mundo em que todos os meios de vida são permitidos, mas nenhum é seguro, (estas soluções) mostram coragem suficiente para dizer, aos que estão ávidos de escutar, o que decidir de maneira que a decisão continue segura e se justifique em todos os julgamentos a que interesse. (...)
Longe de ser uma explosão de irracionalidade pré-moderna, o fundamentalismo religioso, muito parecido com os autoproclamados reavivamentos étnicos, é uma oferta de racionalidade alternativa, feita sob medida para os genuínos problemas que assediam os membros da sociedade pós-moderna. Como todas as racionalidades, ele seleciona e divide; e o que seleciona difere da seleção efetuada pelas forças desregulamentadas do mercado — o que não o torna menos racional (ou mais irracional) do que a lógica da ação orientada pelo mercado. Se a racionalidade típica do mercado se subordina à promoção da liberdade de escolha e prospera sobre a incerteza das situações de execução da escolha, a racionalidade fundamentalista coloca a segurança e a certeza em primeiro lugar e condena tudo o que solapa essa certeza — antes e acima de tudo, as extravagâncias da liberdade individual. Em sua interpretação fundamentalista, a religião não é uma “questão pessoal”, privatizada como todas as outras escolhas individuais e praticada em particular, mas a coisa mais próxima de uma completa mappa vitae: ela legisla em termos nada incertos sobre cada aspecto da vida, desembaraçando desse modo a carga de responsabilidade que se acha pesadamente sobre os ombros do indivíduo — esses ombros que a cultura pós-moderna proclama onipotentes, e o mercado promove como tais, mas que muitas pessoas acham frágeis demais para essa carga.
O fundamentalismo religioso, sugeriu Kepel, tem “uma singular capacidade de revelar os males da sociedade”. Até que ponto? Com a agonia de solidão e abandono induzida pelo mercado como sua única alternativa, o fundamentalismo, religioso ou de outra maneira, pode contar com uma clientela sempre crescente. Seja qual for a qualidade das respostas que ele fornece, as perguntas a que responde são genuínas. O problema não é como desprezar a gravidade das perguntas, mas como encontrar respostas livres dos genes totalitários.”


“Com excessiva frequência, a realidade, quando contemplada de muito perto e sobretudo de dentro, parece muito pouco sedutora. Na maioria das vezes, o postulado da “sobrevivência” converte-se em uma aterradora arma de sujeição e tirania, empregada pelos guardiães às vezes aclamados, e mais frequentemente autoproclamados, dos valores tradicionais (étnicos, raciais, religiosos) da “comunidade”, a fim de exigir reverência de seus infelizes tutelados e reprimir toda insinuação de uma escolha autônoma.”


“O comunitarismo não é um remédio para as falhas inerentes do liberalismo. A contradição entre eles é genuína e não há ginástica filosófica que possa saná-la. Tanto o comunitarismo quanto o liberalismo são projeções de sonhos nascidos da contradição real inerente à difícil situação dos indivíduos autônomos. Cada um é apenas uma projeção unilateral que, a bem da própria coerência, tende a atenuar o fato de que nenhuma das virtudes da difícil situação do indivíduo pode sobreviver à eliminação de seus infortúnios. Em todas as circunstâncias, a vida do indivíduo autônomo não pode deixar de ser atravessada entre os dois extremos igualmente sem atrativos, e essa travessia requer que a liberdade seja aceita juntamente com os riscos que acarreta. Passar ao largo da tentação de sacrificar a liberdade em nome da condição livre de riscos é toda a possibilidade de vida significativa e dignificada que os indivíduos humanos podem sensatamente esperar, por mais que os filósofos façam para impedi-los de encarar essa verdade.”


Por numerosos motivos, a restauração da certeza moderna não aparece nas cartas. É melhor, ou pior? É possível que a discussão seja interminável e, com toda a probabilidade, inconclusiva, não obstante todos os indubitáveis atrativos da certeza; e não porque não esteja claro se as vantagens do ato de desaparecimento da certeza contrabalançam ou não as perdas, mas porque gente demais aprendeu os custos da guerra contra a ambivalência e o preço a ser pago pelos confortos da certeza, e porque gente demais saiu chamuscada (pelo menos!) do processo e toma cuidado para não assumir de novo esses custos. Se a história prova alguma coisa, provou — e abundantemente — uma coisa que qualquer futuro balanço de contas deve ter em mente: como Odo Marquard, autor de Apologie des Zufãlligen (1987) e de Abschied votn Prinzipiellen (1991), o exprimiu na sua própria maneira inimitável, “Se — relativamente a um texto sagrado — dois intérpretes, contradizendo-se um ao outro, afirmam: eu estou certo, minha compreensão do texto é a verdade, e a verdade imperativa para a salvação, isso pode custar um pugilato.” Mas, se eles concordam, em vez disso, que “o texto pode ser compreendido de um modo diferente e, se isso não é bastante, de outro modo, e ainda outro”, pode-se dizer que eles podem principiar a negociar, “e quem negocia não mata”. A “hermenêutica pluralizadora”, ao contrário da “hermenêutica singularizadora”, prenuncia um “ser voltado para o texto”, no lugar do “ser voltado para o assassínio”.
A história está cheia de assassínios de massa cometidos em nome de uma e única verdade. (A última expressão é um pleonasmo, sem dúvida: a verdade só pode ser “uma e única” ou inverídica; a ideia da verdade precisa ser empregada quando a falsidade de todas as outras crenças está implícita; “verdade” no plural é uma contradição em termos.) É difícil ressaltar, porém, um único caso de um ato cruel em nome da pluralidade e da tolerância. Os intrépidos conquistadores dos infiéis, os cardeais da Santa Inquisição, os comandantes de guerras religiosas não foram mais notórios por seu relativismo e amor à pluralidade do que Hitler ou Stalin. E no entanto se ouve repetidamente que “Se não há nenhum Deus, tudo é permitido”, embora se aprenda com a história que acontece o oposto: se há Deus, então não há nenhuma crueldade, ainda que atroz, que não se permita ser cometida em Seu nome. E, mais decisivamente, não são então os humanos perpetradores de crueldade que assumem a responsabilidade, temendo assim serem censurados por sua consciência pela crueldade cometida.
Não estamos empenhados, aqui, numa disputa teológica sobre a existência ou não-existência de Deus. No que foi dito acima (e, mais significativamente, no uso e abuso tanto político quanto filosófico de seu nome), “Deus” representa a ideia do “um e único”, a ideia do “não terás outros deuses diante de mim” em todas as suas inumeráveis versões e indumentárias: do Ein Volk, ein Reich, ein Führer, do partido único, de um veredicto da história, uma linha de progresso, um modo de ser humano, uma ideologia (científica), um significado verdadeiro, uma filosofia própria. Em todos esses casos, o “um e único” transmite a una e única mensagem: o direito ao monopólio do poder para alguns, o dever da total obediência para os outros.”


“Ser livre não significa não acreditar em nada: significa é acreditar em muitas coisas — demasiadas para a comodidade espiritual de obediência cega; significa estar consciente de que há demasiadas crenças igualmente importantes e convincentes para a adoção de uma atitude descuidada ou niilista ante a tarefa da escolha responsável entre elas; e saber que nenhuma escolha deixaria o escolhedor livre da responsabilidade pelas suas consequências — e que, assim, ter escolhido não significa ter determinado a matéria de escolha de uma vez por todas, nem o direito de botar sua consciência para descansar.
A voz da consciência — a voz da responsabilidade — é audível, por assim dizer, só no tumulto de melodias não-coordenadas. O consenso e a unanimidade prenunciam a tranquilidade do cemitério (a “perfeita comunicação”, de Habermas, que mede a sua própria perfeição pelo consenso e exclusão do desacordo, é outro sonho de morte que cura radicalmente os males da vida de liberdade); é no cemitério do consenso universal que a responsabilidade, a liberdade e o indivíduo exalam seu último suspiro.
A voz da responsabilidade é o grito de recém-nascido do indivíduo humano. Não necessariamente, porém, é sinal de uma vida feliz — se a felicidade significa ausência de inquietações (por certo, uma definição altamente discutível, embora largamente difundida, de felicidade). A aceitação da responsabilidade não aparece facilmente — não exatamente porque ela leva aos suplícios da escolha (que sempre impõe a privação de alguma coisa, assim como o ganho de outra), mas também porque ela anuncia a permanente ansiedade de estar — quem sabe? — errando.
E, desse modo, a liberdade do livre, a individualidade do indivíduo são ameaçadas não apenas pelos detentores do poder. Estes últimos sustentam a liberdade individual como o laço sustenta o homem enforcado — o homem ou mulher que assume a responsabilidade com suas próprias mãos vive o pesadelo de todo poder. Os detentores do poder, contemporâneos e em perspectiva, não reconhecem senão uma forma da responsabilidade dos seus súditos: ser responsável, na linguagem do poder, é seguir o comando, enquanto “ter poder” significa, essencialmente, tirar o direito de alguém mais a qualquer outra responsabilidade, que é a sua liberdade. A dificuldade, contudo, não acaba aqui. As forças ávidas de tirar liberdade nem sempre precisam da coerção para alcançar seu fim. Como demonstrou a experiência do nosso tempo de totalitarismo para além da dúvida razoável, com uma demasiada frequência o desejo de tirar a liberdade se encontra com o desejo de concedê-la. Com uma demasiada frequência, a liberdade é usada para fugir da liberdade: para fugir de ter consciência na consciência do ser, e da necessidade de defender a posição de alguém, na crença de que todas as posições dignas de consideração já foram consideradas.”


“No todo, não é certo de modo algum o que a maior parte de nós teria preferido (se lhe fosse a escolha concedida): a ansiedade da liberdade ou o conforto da tal certeza que só a falta de liberdade pode oferecer? A questão, porém, é que a escolha não nos foi concedida, e é improvável que no-lo seja. A liberdade é o nosso destino: uma sorte de que não se pode desejar o afastamento e que não se vai embora por mais intensamente que possamos desviar dela os nossos olhos. Vivemos num mundo diversificado e polifônico, onde toda tentativa de inserir o consenso se mostra somente uma continuação do desacordo por outros meios. Este mundo foi submetido, por muito tempo (e com toda probabilidade continuará a ser submetido por longo tempo adiante) a um processo de completa e inexorável “incertização”1 (o amplamente descrito “desaparecimento do emprego” é apenas uma dimensão, altamente sintomática, do processo — e que exerce um enorme impacto psicológico, enquanto tende a ser projetada sobre a percepção de todos os outros aspectos da existência.”
1. O termo “Vinsécurisation” foi cunhado por Jean-Luc Mathieu (ver seu L'insé-curité, Paris, Presses Universitaires de France, 1995).


“A sensação de insegurança, universalmente partilhada e esmagadora, parece ser a única vencedora.”


Sir William Beveridge7 proclamou seus grandes projetos de bem-estar garantido pelo estado como sendo “coisas essencialmente liberais — um transporte para o novo mundo das grandes tradições vivas do liberalismo”. Ele acrescentou que é em nome da liberdade de cada um, e não exatamente dos incapazes, por uma razão ou outra, de exercer sua liberdade, que se precisa garantir que todo cidadão “tenha uma renda suficiente para a subsistência honrada de si próprio e de todos os que dependam dele, uma renda suficiente embora ele não tenha nada mais de si próprio, e não reduzida por qualquer investigação financeira se ele tiver algo de seu”. Tal garantia — estendida a cada um, inclusive àqueles que em tal momento estejam andando firmemente com suas próprias pernas e aos quais a necessidade de segurança coletiva pareça irrelevante ou mesmo remota — era, na opinião de Beveridge, o único remédio preventivo contra o medo da privação e da falta de emprego, o medo que começa a consumir as almas muito antes de a própria privação e a falta de emprego principiarem a morder, e que devora antes e acima de tudo aquela confiança, ousadia e determinação que fornecem a “energia crítica” de Ruggiero e são necessárias para manter a privação e a falta de emprego a uma distância segura.
Era óbvio para Beveridge, o “liberal radical”, que a liberdade individual precisa de proteção coletiva. Os atuais e autoproclamados porta-vozes do liberalismo tentam fazer igualmente óbvio o oposto: que a liberdade individual precisa do despedaçamento de todas as redes protetoras coletivamente tecidas — parcialmente, porque as redes dificultam os atos autoprotetores, mas, principalmente, porque elas são dispendiosas (isto é, seus custos de manutenção reduzem o montante de dinheiro à mão disponível para os indivíduos voltados para a autoproteção). Como se para provar o assunto, os autoproclamados políticos liberais tornam as redes cada vez mais rotas, reles e sórdidas, de sorte que cada vez mais as pessoas se admiram com a espécie de alegria ou benefício que se podia conseguir ao cair dentro delas. Se “o dinheiro no seu bolso” cresce enquanto as redes protetoras se desintegram, é uma questão discutível; o que é indubitável é que a privação e falta de emprego voltam em grandes proporções, deixando os desafortunados sem teto e assombrando as casas dos afortunados.”
7: Ver Sir William Beveridge, “Liberal radicalism and liberty”, Western Liberalism: A History in Documents from Locke to Croce, orgs. E.K. Bransted e K..J. Melhuish (Londres, Longman, 1978, p.712-7).


“Poucos participantes do debate, se tanto, exigiriam hoje o sacrifício das liberdades individuais “em benefício da sociedade”; é a sociedade que precisa legitimar-se em função do serviço prestado à liberdade individual — não a liberdade individual em função de sua utilidade social. Na política pós-moderna, a liberdade individual é o valor supremo e o padrão pelo qual todos os méritos e vícios da sociedade como um todo são medidos. Mas, graças a muitas e intensas experiências e mesmo a erros mais onerosos, nós agora temos bastante probabilidade de compreender, aceitar e admitir que a liberdade individual não pode efetivamente ser atingida por esforços apenas individuais; que, para alguns poderem assegurar e desfrutar disso, algo deve ser feito para assegurar a todos a possibilidade de seu desfrute, e que fazer isso é a tarefa em que os indivíduos livres só devem empenhar-se conjuntamente e mediante sua realização comum: mediante a comunidade política.
“É fácil demais abusar do princípio da solidariedade. Não é fácil, e é talvez impossível, declarar confiantemente onde a exigência da solidariedade com a diferença acaba e onde a conivência com a opressão começa. Como em toda política de princípios, também a política pós-moderna se arrisca bastante a desafiar os seus próprios princípios. A esse respeito, sua única vantagem sobre outras modalidades de política é que ela é toda consciente de tal perigo e, desse modo, inclinada a acompanhar cuidadosamente suas realizações. Acima de tudo, harmoniza-se com a ausência de soluções perfeitas e estratégias garantidas, com o infinito das suas próprias tarefas e com a provável inconclusividade dos seus esforços: é talvez esta a proteção mais acessível contra a armadilha em que as tentativas da política moderna na construção da comunidade se acostumaram a cair tão frequentemente — a de promover a opressão sob o disfarce da emancipação.
“Há a beleza e há os humilhados”, observou Albert Camus em 1953, no Retour à Tipasa. “Ainda que isso possa ser difícil, eu não gostaria de ser desleal quer à primeira, quer aos outros.” Só se podia acrescentar, a essa profissão de fé, que tentar a deslealdade seletiva seria uma condenação, como dificilmente pode haver qualquer beleza sem a solidariedade com os humilhados.”

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