Editora: Jorge Zahar
ISBN: 978-85-7110-464-8
Tradução: Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 272
“A
crescente magnitude do comportamento classificado como criminoso não é um
obstáculo no caminho para a sociedade consumista plenamente desenvolvida e
universal. Ao contrário, é seu natural acompanhamento e pré-requisito. É assim,
reconhecidamente, devido a várias razões, mas eu proponho que a principal
razão, dentre elas, é o fato de que os “excluídos do jogo” (os consumidores falhos — os consumidores
insatisfatórios, aqueles cujos meios não estão à altura dos desejos, e aqueles
que recusaram a oportunidade de vencer enquanto participavam do jogo de acordo
com as regras oficiais) são exatamente a encarnação dos “demônios interiores” peculiares
à vida do consumidor. Seu isolamento em guetos e sua incriminação, a severidade
dos padecimentos que lhes são aplicados, a crueldade do destino que lhes é
imposto, são — metaforicamente falando — todas as maneiras de exorcizar tais
demônios interiores e queimá-los em efígie. As margens incriminadas servem de
esgotos para onde os eflúvios inevitáveis, mas excessivos e venenosos, da
sedução consumista são canalizados, de modo que as pessoas que conseguem
permanecer no jogo do consumismo não se preocupem com o estado da própria
saúde. Se, contudo, esse for, como sugiro ser, o estímulo primordial da atual
exuberância do que o grande criminologista norueguês Nils Christie denominou “a
indústria da prisão”, então a esperança de que o processo possa ter a marcha
abrandada, para nem se falar em ser suspensa ou invertida, numa sociedade
inteiramente desregulamentada e privatizada, animada e dirigida pelo mercado
consumidor, é vaga — para se dizer o mínimo.”
“Todo
ano, um milhão e meio de americanos povoam as prisões americanas. Cerca de
quatro e meio milhões de americanos adultos estão sob alguma forma de controle
judicial. Como o exprime Richard Freeman, economista de Harvard: “Se aos
desempregados, na Europa, se paga compensação, nos Estados Unidos nós os
colocamos nas prisões.” Cada vez mais, ser
pobre é encarado como um crime; empobrecer,
como o produto de predisposições ou intenções criminosas — abuso de álcool,
jogos de azar, drogas, vadiagem e vagabundagem. Os pobres, longe de fazer jus a
cuidado e assistência, merecem ódio e condenação — como a própria encarnação do
pecado. (...) Como o expressou o New York
Herald Tribune, em 25 de dezembro de 1994, os americanos — conservadores,
moderados, republicanos — consideram direito seu culpar os pobres pelo seu
destino e, simultaneamente, condenar milhões de seus filhos à pobreza, fome e
desespero. (...)
Creio
que o sinal que envia é suficientemente claro: há provas esmagadoras da íntima
vinculação da tendência universal para uma radical liberdade do mercado ao
progressivo desmantelamento do estado de bem-estar, assim como entre a
desintegração do estado de bem-estar e a tendência a incriminar a pobreza.
Espero sinceramente que o testemunho americano nos sirva de advertência, não de
exemplo.”
“A
ética não é um derivado do Estado. A autoridade ética não deriva dos poderes do
Estado para legislar e fazer cumprir a Lei. Ela precede o Estado, é a exclusiva
fonte de legitimidade do Estado e o supremo juiz dessa legitimidade. O Estado,
poder-se-ia dizer, só é justificável como veículo ou instrumento ética.”
“A
justiça é um ponto notoriamente contencioso.
Raras vezes a engenhosidade e imaginação humanas estenderam-se tanto e tão
dolorosamente como ao idear os argumentos destinados a descrever como “justiça
sendo feita” a situação que algumas outras pessoas consideraram injusta e,
assim, um legítimo motivo de rebelião.”
“Não é preciso mencionar
que o problema da justiça não pode ser sequer postulado a menos que já haja um
regime democrático de tolerância que assegure, em sua constituição e prática
política, os “direitos humanos” — ou seja, o direito a conservar a própria
identidade e singularidade sem risco de perseguição. Essa tolerância é uma
condição necessária a toda justiça. O ponto principal, porém, é que não é a sua
condição suficiente. Por si mesmo, o regime
democrático não promove (e muito menos assegura) a transformação da tolerância
em solidariedade — ou seja, o reconhecimento da
penúria e sofrimentos de outras pessoas como responsabilidade própria de
alguém, e o alívio, assim como, subsequentemente, a eliminação da penúria como
a tarefa própria de alguém. Na maioria das vezes, dada a atual configuração do
mecanismo político, os regimes democráticos interpretam tolerância como
empedernimento e indiferença.”
“Para
invocar a famosa análise de Bakhtin da função do “carnaval”, de reafirmar as
normas mediante a visualização periódica, todavia estritamente controlada, de
sua inversão, podemos dizer que existe uma acentuada tendência na parte
afluente do mundo a relegar a caridade, a compaixão e os sentimentos fraternais
(que, segundo Levinas, estão subjacentes a nosso desejo de justiça) a eventos
de carnaval — reafirmando desse modo, legitimando e “normalizando” sua ausência
da cotidianidade. Impulsos morais despertados pela visão do infortúnio humano
são seguramente canalizados para esporádicos ímpetos de caridade sob a forma de
Live Aid, Comic Aid ou coletas de dinheiro para a mais recente maré de
refugiados. A justiça transforma-se em um festivo e alegre acontecimento: isso
ajuda a aplacar a consciência moral e a suportar o ausência de justiça durante
os dias úteis. A falta de justiça torna-se a norma e a rotina diária...”
“Permitam-me
repetir que a cena moral primordial, a reunião moral de dois, é o terreno em
que se cultiva toda responsabilidade para com o Outro e o terreno de
aprendizado para toda a ambivalência necessariamente contida na pressuposição
dessa responsabilidade. Sendo assim, parece plausível que a chave para um
problema tão vasto quanto a justiça social reside em um problema tão
(ostensivamente) diminuto quanto o ato moral primordial de assumir
responsabilidade para com o Outro próximo, a pequena distância — para com o
Outro enquanto Rosto. É aqui que a sensibilidade moral nasce e ganha força, até
se fortalecer o suficiente para suportar o fardo da responsabilidade por
qualquer caso de sofrimento e infortúnio humano, seja o que for que as regras
legais ou pesquisas empíricas possam revelar sobre os seus vínculos causais e a
partilha “objetiva” de culpa.”
“Socialmente,
a modernidade trata de padrões, esperança e culpa. Padrões — que acenam,
fascinam ou incitam, mas sempre se estendendo, sempre um ou dois passos à
frente dos perseguidores, sempre avançando adiante apenas um pouquinho mais rápido
do que os que lhes vão no encalço. E sempre prometendo que o dia seguinte será
melhor do que o momento atual. E sempre mantendo a promessa viva e imaculada,
já que o dia seguinte será eternamente um dia depois. E sempre mesclando a
esperança de alcançar a terra prometida com a culpa de não caminhar
suficientemente depressa. A culpa protege a esperança da frustração; a
esperança cuida para que a culpa nunca estanque. “O homem é culpado,” observou
Camus, esse inigualavelmente perspicaz correspondente da terra da modernidade,
“mas é culpado de não poder atirar em si mesmo.”1
Psiquicamente,
a modernidade trata da identidade: da verdade de a existência ainda não se dar
aqui, ser uma tarefa, uma missão, uma responsabilidade. Como o restante dos
padrões, a identidade permanece obstinadamente à frente: é preciso correr
esbaforidamente para alcançá-la. E, portanto, se corre, puxado pela esperança e
impelido pela culpa, embora a corrida, por mais rápida que seja, pareça
estranhamente arrastada. Precipitar-se para frente, em direção à identidade
perpetuamente tentadora e perpetuamente inconsumada, assemelha-se a recuar da
defeituosa e ilegítima realidade do presente.
Tanto social quanto psiquicamente, a modernidade é
irremediavelmente autocrítica: um exercício infindável e, no fim, sem
perspectivas, de autocancelamento e auto-invalidação. Verdadeiramente moderna
não é a presteza em retardar o contentamento, mas a impossibilidade de ficar contente. Toda realização é
meramente uma pálida cópia do seu modelo. “Hoje” é meramente uma incipiente
premonição de amanhã; ou, antes, seu reflexo inferior e desfigurado. O que é é cancelado de antemão por o que
virá. Mas extrai o seu alcance e o seu sentido — seu único sentido —
desse cancelamento.
Em
outras palavras, a modernidade é a impossibilidade de permanecer fixo. Ser
moderno significa estar em movimento. Não se resolve necessariamente estar em
movimento — como não se resolve ser moderno. É-se colocado em movimento ao se
ser lançado na espécie de mundo dilacerado entre a beleza da visão e a feiura
da realidade — realidade que se enfeiou pela beleza da visão. Nesse mundo,
todos os habitantes são nômades, mas nômades que perambulam a fim de se fixar.
Além da curva, existe, deve existir, tem de existir uma terra hospitaleira em
que se fixar, mas depois de cada curva surgem novas curvas, com novas
frustrações e novas esperanças ainda não destroçadas.”
1.
Albert Camus. Carnets, janvier 1942 -
mars 1951 (Paris, Gallimard, 1964, p.lll).
“O
fim da modernidade? Não necessariamente. Sob outro aspecto, afinal, a
modernidade está muito conosco. Está conosco na forma do mais definidor dos
seus traços definidores: o da esperança, a esperança de tornar as coisas
melhores do que são — já que elas, até então, não são suficientemente boas. De
igual maneira, pregadores vulgares de tribalismo desadornado e elegantes
filósofos das formas de vida comunalmente baseadas ensinam-nos o que fazem, em
nome de mudar as coisas para melhor. “Qualquer benefício que as ideias de ‘objetividade’
e ‘transcendência’ tenham feito à nossa cultura poderia ser obtido igualmente
bem pela ideia de comunidade”, afirma Rorty — e é precisamente isso que torna a
última ideia atraente para os que procuravam ontem os caminhos universais para
um mundo adequado à habitação humana. Projetos racionais de perfeição
artificial, e as revoluções destinadas a imprimi-los na configuração do mundo,
fracassaram abominavelmente em cumprir sua promessa. Talvez as comunidades,
cordiais e hospitaleiras, cumpram o que elas, as frias abstrações, não puderam
cumprir. Ainda queremos que o trabalho seja feito. Apenas deixamos cair as
ferramentas que se revelaram inúteis e procuramos obter outras — que, quem
sabe, ainda possam realizar a tarefa. Pode-se dizer que ainda concordamos em que
a felicidade conjugai é uma coisa boa; somente já não apoiamos a opinião de
Tolstoi de que todos os casamentos felizes são felizes da mesma forma.
Sabemos
perfeitamente bem por que não gostamos das ferramentas que abandonamos. Durante
mais ou menos dois séculos, pessoas que mereciam ou reclamavam ser ouvidas com
atenção e respeito contaram a história de um hábitat humano que curiosamente
coincidia com o do estado político e do domínio de seus poderes legislativos e
ambições. O mundo humano era, na memorável expressão de Parsons, o espaço “principalmente
coordenado” — o domínio sustentado, ou prestes a ser sustentado, por princípios
uniformes, mantidos pelos esforços conjuntos dos legisladores e dos
executantes, armados ou desarmados, da sua vontade. Era esse espaço artificial
que era descrito como um hábitat que “supre naturalmente” as necessidades
humanas e — de forma mais importante — supre a necessidade de satisfazer as
necessidades. A sociedade “principalmente coordenada”, talvez racionalmente
projetada e controlada, devia ser essa boa sociedade que a modernidade se pôs a
construir. Dois séculos é um longo tempo — suficiente para todos nós
aprendermos o que grandes mentes solitárias do tipo de Jeremy Bentham intuíram
desde o princípio: que a “principal coordenação” racionalmente projetada se
ajusta igualmente bem a uma escola e a um hospital, assim como se ajusta a uma
prisão e a um asilo de pobres; e descobrirmos que tal universalidade de
aplicação faz com que mesmo a escola e o hospital pareçam uma prisão ou um
asilo de pobres. Esse período mostrou também que a parede que separa a espécie “benigna”
de engenharia racional da sua variedade maligna e genocida é tão frágil,
instável e porosa que — para parafrasear Bertrand Russell — não se sabe quando
se deve começar a gritar...”
“A
ação humana não se torna menos frágil e errática: é o mundo em que ela tenta
inscrever-se e pelo qual procura orientar-se que parece ter-se tornado mais
assim. Como pode alguém viver a sua vida como peregrinação se os relicários e
santuários são mudados de um lado para o outro, são profanados, tornados
sacrossantos e depois novamente ímpios num período de tempo mais curto do que
levaria a jornada para alcançá-los? Como pode alguém investir numa realização
de vida inteira, se hoje os valores são obrigados a se desvalorizar e, amanhã,
a se dilatar? Como pode alguém se preparar para a vocação da vida, se
habilidades laboriosamente adquiridas se tornam dívidas um dia depois de se
tornarem bens? Quando profissões e empregos desaparecem sem deixar notícia e as
especialidades de ontem são os antolhos de hoje? E como se pode fixar e separar
um lugar no mundo se todos os direitos adquiridos não o são senão até segunda
ordem, quando a cláusula da retirada à vontade está escrita em todo contrato de
parceria, quando — como Anthony Giddens adequadamente o expressou — todo
relacionamento não é senão um “simples” relacionamento, isto é, um
relacionamento sem compromisso e com nenhuma obrigação contraída, e não é senão
amor “confluente”, para durar não mais do que a satisfação derivada?
O
significado da identidade, como o Christopher Lasch da última fase ressaltou,
se refere tanto a pessoas como coisas. O mundo construído de objetos duráveis
foi substituído pelo de produtos disponíveis projetados para imediata
obsolescência. Num mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e
descartadas como uma troca de roupa. O horror da nova situação é que todo
diligente trabalho de construção pode mostrar-se inútil; e o fascínio da nova
situação, por outro lado, se acha no fato de não estar comprometida por
experiências passadas, de nunca ser irrevogavelmente anulada, sempre “mantendo
as opções abertas”. Mas o horror e o fascínio, de igual modo, fazem a vida como
peregrinação dificilmente factível como uma estratégia e improvável de ser
escolhida como tal. Não por muitos, afinal de contas. E não com grande
probabilidade de sucesso.
No
jogo da vida dos homens e mulheres pós-modernos, as regras do jogo não param de
mudar no curso da disputa. A estratégia sensível, portanto, é manter curto cada
jogo — de modo que um jogo da vida sensatamente disputado requer a
desintegração de um jogo que tudo abarca, com prêmios enormes e dispendiosos,
numa série de jogos estreitos e breves, que só os tenha pequenos e não
demasiadamente preciosos. Para novamente citar Christopher Lasch, a
determinação de viver um dia de cada vez, e de retratar a vida diária como uma
sucessão de emergências menores, se tornaram os princípios normativos de toda
estratégia de vida racional.
Manter o jogo curto significa tomar cuidado com os
compromissos a longo prazo. Recusar-se a “se fixar” de uma forma ou de outra.
Não se prender a um lugar, por mais agradável que a escala presente possa
parecer. Não se ligar a vida a uma vocação apenas. Não jurar coerência e
lealdade a nada ou a ninguém. Não controlar o futuro,
mas se recusar a empenhá-lo: tomar cuidado para que as
consequências do jogo não sobrevivam ao próprio jogo e para renunciar à
responsabilidade pelo que produzam tais consequências. Proibir o passado de se
relacionar com o presente. Em suma, cortar o presente nas duas extremidades,
separar o presente da história. Abolir o tempo em qualquer outra forma que não
a de um ajuntamento solto, ou uma sequência arbitrária, de momentos presentes:
aplanar o fluxo do tempo num presente contínuo.
Uma vez disfarçado e não mais um vetor, não mais
uma seta com um indicador, ou um fluxo com uma direção, o tempo já não
estrutura o espaço. Consequentemente, já não há “para a frente” ou “para
atrás”; o que conta é exatamente a habilidade de se mover e não ficar parado. Adequação — a capacidade de se mover rapidamente onde a ação
se acha e estar pronto a assimilar experiências quando elas chegam — tem
precedência sobre saúde, essa ideia do padrão de
normalidade e de conservar tal padrão estável, incólume. Toda demora, também a
“demora da satisfação”, perde seu significado: não há nenhum tempo como seta
legado para medi-la.
E desse modo a dificuldade já não é descobrir,
inventar, construir, convocar (ou mesmo comprar) uma identidade, mas como
impedi-la de ser demasiadamente firme e de aderir depressa demais ao corpo. A
identidade durável e bem costurada já é uma vantagem; crescentemente, e de
maneira cada vez mais clara, ela se torna uma responsabilidade. O eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer a identidade
deter-se — mas evitar que se fixe.”
“O
significado da obra de arte reside no espaço entre o artista e o espectador” (Maaretta
Jaukkuri)
“Os
artistas pós-modernos são, como os seus predecessores, uma “vanguarda”, mas num
sentido inteiramente diverso de como os modernistas pensavam sobre seu papel e
de como desejavam que este fosse considerado. Em poucas palavras, pode-se dizer
que, se a vanguarda modernista se ocupava de marcar as trilhas que levavam a um
consenso “novo e aperfeiçoado”, o vanguardismo pós-moderno consiste não
exatamente em desafiar e debilitar a forma existente e reconhecidamente
transitória de consenso, mas em solapar a própria possibilidade de qualquer
acordo futuro, universal e, desse modo, sufocante.
Michel
Foucault distinguiu duas espécies de estratégia crítica e potencialmente
emancipadora: “Pode-se optar por uma filosofia crítica que se apresentará como
uma filosofia analítica da verdade em geral, ou pode-se optar por um pensamento
crítico que tomará a forma de uma ontologia de nós mesmos, uma ontologia do
presente.”8 Quero sugerir que os artistas pós-modernos, por força da
situação cultural, se não necessariamente por sua própria escolha deliberada,
se acham simultaneamente envolvidos nas duas estratégias críticas. Sua obra se
situa no ponto de convergência em que a discussão da verdade e a discussão do
presente subjetivamente vivido se encontram, se animam e se reforçam uma à
outra. (...)
A
arte pós-moderna é uma força crítica e emancipadora até compelir o artista,
então despojado de esquemas enceguecedores e métodos infalíveis, e o espectador
ou ouvinte, então deixado sem os cânones de ver e a consoladora uniformidade do
gosto, a se empenharem no processo de compreensão, interpretação e elaboração
de significado que inevitavelmente reúne as questões da verdade objetiva e os
planos subjetivos da realidade. Mas, assim fazendo, ela liberta as
possibilidades da vida, que são infinitas, da tirania do consenso, que é — deve
ser, não pode senão ser — excludente e incapacitante. O significado da arte
pós-moderna, sugiro eu, é abrir amplamente o portão às artes do significado.
Deixem-me
concluir essa reflexão citando Foucault de novo:
Uma crítica não é uma questão de
dizer que as coisas não estão certas como estão. É uma questão de ressaltar em
que espécies de suposição, em que espécies de modo de pensar familiares, não
discutidos, irrefletidos se baseiam as práticas que aceitamos. (...)
A crítica é uma questão de fazer
jorrar esse pensar e tentar mudá-lo: mostrar que as coisas não são evidentes
por si mesmas quanto se acreditava, perceber que o aceito como sendo por si
mesmo já não será aceito como tal. Praticar a crítica é uma questão de fazer gestos
difíceis se tomarem fáceis.9”
8.
Michel Foucault. “The art of telling the
truth”, citado conforme a tradução de Alan Sheridan in Politcs, Philosophy,
Culture, p.95.
9. Michel Foucault. “Practicing criticism”, citado conforme a tradução acima, de Alan Sheridan,
p. 154-5. A nova compreensão da atividade crítica lança uma nova luz sobre o
papel do “intelectual crítico” (um pleonasmo, por certo). Esse papel, na
opinião de Foucault, é o de “ver até onde a liberação do pensamento pode fazer
(...) transformações suficientemente urgentes para as pessoas quererem
colocá-las em execução e suficientemente difíceis de executar por estarem
profundamente enraizadas na realidade”.
“Na outra extremidade da era
moderna, não resta muito da animada autoconfiança de Kant. A jovem ambição da
filosofia moderna, de conquistar e seduzir mentes não-filosóficas com a própria
racionalidade e extinguir completamente o tosco e caprichoso senso comum, deu
lugar à triste e sensata reflexão acerca da surdez da mente comum, ou da consciência
corrente, à voz da razão filosófica universal e sua sólida resistência à
reforma. A filosofia pode ainda estar à procura da certeza, mas uma certeza que
evidente e inexoravelmente lhe falta é a de vencer o debate. As apostas talvez
até tenham sido invertidas. E, assim, Martin Heidegger pergunta:
Não é a questão da essência [da verdade] a mais não-essencial e
supérflua que pode ser indagada? (...) Ninguém pode esquivar-se à evidente
certeza dessas considerações. Ninguém pode levianamente negligenciar sua
imperiosa seriedade. Mas o que é que fala nessas considerações? Senso comum
“judicioso”. Ele repisa a exigência de utilidade tangível e invectiva contra o
conhecimento da essência de seres, cujo conhecimento essencial há muito tem
sido denominado “filosofia” (...)
(...) a filosofia não pode nunca refutar o senso comum, pois este é
surdo à linguagem da filosofia. Nem pode sequer desejar fazê-lo, uma vez que o
senso comum é cego ao que a filosofia expõe à sua visão essencial.6”
6. Martin Heidegger. “On the essence of truth”, Basic Writings, org. David
Farrell Krell (Londres, Routledge, 1978, p.117-8).
“O
aspecto novo, caracteristicamente pós-moderno e possivelmente inaudito, da
diversidade dos nossos dias é a fraca, lenta e ineficiente institucionalização
das diferenças e sua resultante intangibilidade, maleabilidade e curto período
de vida. Se desde a época do “desencaixe” e ao longo da era moderna, dos “projetos
de vida”, o “problema da identidade” era a questão de como construir a própria identidade, como construí-la coerentemente e
como dotá-la de uma forma universalmente reconhecível — atualmente, o problema
da identidade resulta principalmente da dificuldade de se manter fiel a
qualquer identidade por muito tempo, da virtual impossibilidade de achar uma
forma de expressão da identidade que tenha boa probabilidade de reconhecimento
vitalício, e a resultante necessidade de não adotar nenhuma identidade com
excessiva firmeza, a fim de poder abandoná-la de uma hora para outra, se for
preciso. Não é tanto a co-presença de muitas classes que é a fonte de confusão,
mas sua fluidez, a notória dificuldade em apontá-las com precisão e defini-las
— tudo isso revertendo à central e mais dolorosa das ansiedades: a que se
relaciona com a instabilidade da identidade da própria pessoa e a ausência de
pontos de referência duradouros, fidedignos e sólidos que contribuiriam para
tornar a identidade mais estável e segura.”
“A
vida é vivida por seus usuários (frase memorável de Georges Perec) como um
fluxo de acontecimentos nem inevitáveis, nem inteiramente acidentais. O
resultado depende exclusivamente do valor das cartas recebidas e da habilidade
ou astúcia revelada na jogada seguinte.”
“O
habitual, o cotidiano, o familiar, o “mundo próximo”, o “conhecimento
pré-reflexivo” — tudo o que não intriga e não requer indagação e exame
minucioso — são simultaneamente o ponto de partida e o porto seguro de todo
entendimento. “Entender” significa adaptar a percepção dos fenômenos
experimentados a esse mundo comum, que é entendido sem o esforço para
entendê-lo e sem o esforço para entender o que significa entender. Daí o papel
cognitivo da metáfora: ela justapõe o obscuro ao óbvio; sugere assim uma
afinidade (sempre eletiva!) entre os dois; salienta que, em certos aspectos, “lá”
não é distinto de “aqui” e, desse modo, permite-nos empregar linguagem
destinada ao transparente “aqui” (a que torna esse “aqui” transparente) para
referir o opaco, e anteriormente inexprimível, “lá”.”
“A
liberdade de escolha assenta na multiplicidade de possibilidades. No entanto,
seria uma liberdade vazia que negasse o direito de colocar uma possibilidade
acima das outras — de reduzir a multiplicidade de perspectivas, de bloquear e
rejeitar as possibilidades indesejadas —; em outras palavras, de podar ou
cancelar totalmente a escolha. Tal como no caso dos signos repletos de
possibilidade enquanto permanecem livres de significados, a essência da livre
escolha é o esforço para abolir a escolha.
Nisso,
na minha opinião, pode ser encontrado o segredo da perpétua não-satisfação do
desejo de mais ampla escolha dos consumidores (e, de modo mais geral, da eterna
não-satisfação do desejo de liberdade). O ímpeto de consumo, exatamente como o
impulso de liberdade, torna a própria satisfação impossível. Necessitamos
sempre de mais liberdade do que temos — mesmo que a liberdade de que achamos
que necessitamos seja liberdade para limitar e confinar a liberdade atual. A
liberdade é sempre um postulado e expressa-se numa constante reprodução e
reaguçamento de sua força postulativa. É nessa abertura em relação ao futuro,
na ultrapassagem de toda situação encontrada e preparada de antemão ou
recém-estabelecida, nesse entrelaçamento do sonho e do horror da satisfação,
que se acham as raízes mais profundas do turbulento, refratário e autopropulsor
dinamismo da cultura.”
“Atualmente,
os indivíduos são “socialmente empenhados”, em primeiro lugar, através de seu
papel como consumidores, não produtores: o estímulo de novos desejos toma o
lugar da regulamentação normativa, a publicidade toma o lugar da coerção, e a
sedução torna redundantes ou invisíveis as pressões da necessidade.”
“O
sexo está sendo completamente purificado de todas as “poluições” e “corpos
estranhos” tais como obrigações assumidas, laços protegidos, direitos
adquiridos. Por outro lado, porém, todas as outras coisas das relações humanas
são — afiadamente, vigilantemente, obsessivamente, às vezes de uma maneira
atacada de pânico — purificadas mesmo das mais pálidas sugestões sexuais que
permitam a mais leve possibilidade de condensar essas relações em permanência.
As sugestões sexuais são pressentidas e farejadas em toda emoção que chegue
além da escassa relação de sentimentos permitidos no arcabouço do desencontro
(ou quase encontro, encontro fugaz, encontro inconsequente) em todo
oferecimento de amizade e toda manifestação de um interesse mais profundo do
que a média, por uma outra pessoa. (Muito antes de Oleanna ser escrita e
apresentada, um amigo meu, sociólogo eminente, contou-me que havia resolvido
manter a porta de seu escritório inteiramente aberta sempre que garotas
estudantes viessem consultá-lo — para evitar acusações de assédio sexual. Como
ele descobriu muito depressa, a porta tinha também de ser mantida aberta
durante as visitas dos rapazes estudantes.) Saudar a beleza ou o encanto de
um/a colega de trabalho é provavelmente censurado como provocação sexual, e o
oferecimento de uma xícara de café como importunação sexual. O espectro do
sexo, agora, assombra os escritórios das empresas e as salas dos grupos de
estudo dos colégios: há uma ameaça encerrada em todo sorriso, olhar atento ou
maneira de tratar. O resultado total é o rápido definhamento das relações
humanas, despindo-as de intimidade e emotividade, e o esmorecimento do desejo
de entrar nelas, conservá-las vivas.
O
desvio do sexo, de cimentar a parceria para seu enfraquecimento, para garantir
a transitoriedade de um relacionamento e sua disposição de se anular com uma
pequena notícia ou sem notícia, está provavelmente no que tem de mais conspícuo
e mais consequente: no reino da vida familiar. Afinal, era precisamente nesse
reino que o sexo costumava proporcionar o tijolo e a argamassa essenciais para
a construção da estrutura: quer em sua versão positiva, articulando os laços
conjugais, quer negativamente (como a força elementar que precisa ser domada e
controlada), ao articular a intimidade entre pais e filhos. Hoje, o sexo está
se convertendo num poderoso instrumento de desagregação da estrutura da
família, em todas as suas dimensões.”
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