Editora: Geração
ISBN: 978-85-8130-201-0
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 400
“Numa manhã tediosa em que
José Fogaça, em inglês macarrônico, falava algo ininteligível para americanos e
brasileiros, Fernando Henrique levantou-se conosco e foi para o fundo da sala.
Ali, de frente para mim e ao lado de Bolívar Lamounier, falou um pouco sobre o
governo Collor e as primeiras denúncias de corrupção. O nome de PC Farias
surgiu e, sem que ninguém o provocasse, Fernando Henrique defendeu que era
urgente uma nova lei eleitoral.
De forma clara e sem
censura, falou sobre o financiamento das campanhas eleitorais por empresas
privadas, com recursos não contabilizados – o caixa 2 – e admitiu que nenhum
partido e nenhum candidato podia naquela época prescindir desses recursos
ilegais. E observava:
- Assim é, mas a diferença entre
nós e “eles” é que nós gastamos o dinheiro nas campanhas, enquanto “eles”
enfiam uma boa parte em seus próprios bolsos.
Nada comentou sobre o
que poderia vir depois – as licitações viciadas para devolver aos financiadores
o que haviam investido.
Anos depois, já
presidente da República, Fernando Henrique Cardoso receberia no Palácio da
Alvorada os sindicalistas que haviam apoiado sua eleição e com os quais
negociava mudanças na economia que pudessem trazer, a estes sindicalistas,
prestígio em suas bases. Um jogo competentemente combinado, para alegria dos
dois lados – salvo quando o governo não podia ceder. Ainda assim, o presidente
era gentil e paciente. Até que surgia o “trator” Sérgio Motta. Numa dessas
noites, em que o presidente e seu ministro do Trabalho Paulo Paiva tomavam seu
uísque no Alvorada com o presidente da Força Sindical, Luiz Antônio de
Medeiros, o sindicalista histórico José Ibrahim e o ainda desconhecido Paulo
Pereira da Silva, o Paulinho, que Medeiros faria seu sucessor, de repente surgiu
– sem que tivesse sido convidado – o ministro das Comunicações Sérgio Motta.
- Mas como é possível, Fernando, que vocês estejam
aí sem minha presença? – rugiu Serjão.
- Mas é que não queríamos mesmo você aqui –
respondeu o presidente jocosamente.
- Mas é bom que você tenha chegado, Serjão –
interrompeu Paulinho. – Ouvi dizer que você está comprando deputados para votar
a favor da reforma da Previdência, mas vou colocar mil ônibus de trabalhadores
na Esplanada para pressionar o Congresso.
- Economize seu dinheiro, rapaz
– respondeu Motta – porque a votação está decidida. Já almocei com todo mundo.
Paulinho levou os
ônibus, mas os sindicalistas foram derrotados.
Isso não impediu a
força sindical, entretanto, de continuar apoiando o governo.
Quando da campanha
pela reeleição, eles apoiaram a emenda do deputado pernambucano Mendonça Filho
e todos os atos de apoio a ela. Quando Fernando Henrique se recandidatou, houve
um grande ato das centrais Força Sindical e CGT em Brasília. Por uma obra do
espírito santo, as centrais não tiveram que desembolsar muito dinheiro pelo
fretamento das centenas de ônibus que transportaram os milhares de
trabalhadores, nem pelas “quentinhas” que os alimentaram.” (Luiz Fernando
Emediato)
“Mas quando
Sérgio Motta, coordenador da campanha de José Serra prefeito, em 1996, precisou
de recursos urgentes para pagar outdoors, não foi em alguma empresa privada que
o “trator” foi buscar recursos. Acionou a direção da estatal Telefônica de São
Paulo, Telesp, quando o governador era outro tucano, Mário Covas, e esta se
prontificou a fazer imediatamente uma campanha publicitária de outdoors em todo
o Estado de São Paulo. Mas na cidade de São Paulo a maioria dos cartazes
efetivamente colocados não tinha nenhuma imagem de telefone – só a cara do
candidato Serra e sua mensagem eleitoral.
Convivi, portanto,
com os tucanos e seus dramas. Não são diferentes de qualquer outro drama,
quando se trata de chegar ao poder e mantê-lo.” (Luiz Fernando Emediato)
“De 1994 a
2002, o Brasil viveu tempos peculiares. Pagou para vender suas empresas e pagou
para reeleger seu presidente. Nunca dantes na história deste país houve coisa
igual. As páginas seguintes revelam como isso aconteceu, quem levou vantagem e
quem pagou a conta. E por que os brasileiros, ainda hoje, desconhecem os donos
das mãos que se enfiaram em seus bolsos naqueles oito anos. Para melhor
entendimento da tragédia, antes da história uma historinha:
Imagine que o seu
síndico, na reunião de condomínio, proponha a venda daquele galpão lá dos
fundos da área comum que, na argumentação dele, só serve para atulhar os
condôminos de dívidas, com chamadas extras para conservação e pintura e outras
despesas. A assembleia acha razoável. Ele observa, porém, que o negócio deve
ser atraente. Então, além do terreno e do prédio, o comprador levará todas as
máquinas, móveis, materiais e ferramentas que estiverem no galpão. Mesmo assim,
adverte, não há garantia de cativar os interessados. Será preciso tornar a
proposta ainda mais tentadora. “Há gente que quer comprar mas não tem o
dinheiro”, repara. E sugere: “Sabem o nosso fundo de reserva? E se
emprestássemos o valor para que, assim, o comprador possa nos livrar daquela
coisa inútil, que apenas consome os nossos recursos?” E a assembleia aprova o
negócio.
O terreno e o galpão
são passados adiante por R$ 50 mil. Financiados. Algum tempo depois, a
propriedade vale quase 60 vezes mais, ou seja, R$ 3 milhões. Valorização de
5.940%. A principal pergunta que ocorre aos condôminos é: terá levado o síndico
alguma vantagem na venda ou foi apenas estúpido? Essa é a dúvida. A certeza é
que ele jamais será síndico novamente.
O síndico, o
condomínio, os condôminos, o terreno e o galpão são fictícios. O que não é de
faz de conta é a história.
No dia 6 de maio de
1997, sob a gestão do síndico Fernando Henrique Cardoso, o Condomínio Brasil
vendeu o controle acionário da Companhia Vale do Rio Doce por US$ 3,3 bilhões.
Financiados. Em 2008, diz a consultoria Economática, o valor de mercado da
empresa subira quase 60 vezes, ou seja, para US$ 196 bilhões. Valorização de
5.940%.
Antes de levada ao
martelo, a Vale do Rio Doce já era a maior exportadora de minério de ferro do
planeta. E dona do mapa da mina: uma de suas subsidiárias, a Docegeo,
pesquisara, identificara e localizara as riquezas do subsolo brasileiro. Estão
nas mãos da Vale vastas reservas de ferro, níquel, manganês, cobre, cobalto
entre outros minerais. Senhora também da maior província mineral do mundo, Carajás,
seu faturamento, em 2011, bateria nos US$ 30 bilhões. Quer dizer, faturou
apenas num exercício mais de nove vezes o preço pela qual foi privatizada.
(...)
Natural que alguém
ria com o patético desses números e comparações. Nada mais justo até porque a
tolice anda de braços dados com o ridículo – ainda mais sendo, como essa, uma
tolice de primeira magnitude. Mas o que houve de violência bruta e impune nessa
e em outras decisões voltadas contra todas as possibilidades que poderiam ser
abertas para o Brasil e os brasileiros não é nem um pouco engraçado.
Por que nos anos
imediatamente anteriores à venda da Telebrás o governo federal despejou R$ 21
bilhões no sistema de que iria se desfazer? Por que, à custa da saúde e da
educação, abriu a torneira do dinheiro para a Telebrás que iria leiloar? Que
síndico administraria seu condomínio desse jeito? Por que entregou a Companhia
Siderúrgica Nacional (CSN) e o Banco Meridional com dinheiro – muito dinheiro –
em caixa? Por que pôs em prática um modelo de negócio em que a União vendeu, a
preço vil, patrimônio público à prestação? Ou, como contou Biondi, fornecendo
“metade” da “entrada” nos leilões, financiando até a “compra” de “moedas
podres” onde os felizes “compradores” ainda têm direito a empréstimos bilionários
do BNDES para que realizem os seus “investimentos”?
Quando a razia
privatista se estendeu aos Estados, governadores do PSDB perpetraram páginas
dignas do almanaque Guinness da patetice – ou da esperteza, se a sua leitura
for a da maioria. Em São Paulo, Mário Covas vendeu a Companhia Siderúrgica
Paulista (Cosipa) por R$ 300 milhões e ficou com uma dívida de R$ 1 bilhão e
meio. No Rio, Marcelo Alencar fez pior: contraiu um empréstimo de R$ 3 bilhões
e 300 milhões para entregar o Banerj sem dívidas e com metade dos funcionários.
E vendeu o banco por R$ 330 milhões, dez vezes menos do que gastou para
vendê-lo!”
“Nos oito anos
de reinado de Fernando II, com o respaldo maciço da mídia – até porque
diretamente interessada no butim – o Brasil foi a leilão. A privatização
gravou-se de tal maneira no imaginário nacional, que se transformou na primeira
e inesquecível marca da gestão FHC.”
“Sérgio Motta,
o trator, chamado carinhosamente pelo aumentativo Serjão, era naquele momento
secretário-geral do PSDB, “um partido elétrico” segundo Sebastião Nery, pois
nasceu na Eletropaulo, “filho de uma grande vontade política e uma imensa gula
financeira”, como o jornalista descreve em A Eleição da Reeleição.
Sua grande jogada
deu-se ainda em plena ditadura militar, sob o governo Figueiredo (1979-1985).
Com apoio do general Golbery do Couto e Silva, que o jornalista Hélio Fernandes
chamava de Golbery do “Colt” e Silva, Serjão cria a Coalbra, Companhia de Álcool
do Brasil, para montar usinas de álcool de madeira, sob protesto do
vice-presidente. O civil Aureliano Chaves, naquele governo, cuidava justamente
de energia. Engenheiro, mineirão, Aureliano achou aquilo um “atentado à
ecologia” e “um disparate econômico” – imagine, produzir álcool de madeira num
país com tanta terra, tanto canavial e tanta tradição na produção de álcool de
cana!
Contando com apoio do
ministro de Minas e Energia, Cesar Cals, e do próprio Figueiredo, Serjão
importou 30 usinas da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a
extinta URSS. Atropelou Aureliano, mas não sua lógica. Pois, das 30 usinas, uma
chegou a ser instalada, mas não funcionou – duas décadas depois, continuava em
Uberlândia que nem uma carcaça fantasma; as outras 29 nem sequer foram
deslocadas dos trapiches dos portos: lá deterioraram e acabaram vendidas como
ferro-velho.
O rombo montou a US$
250 milhões, dinheiro que daria para instalar rede de esgoto numa cidade com
mais de 60 mil domicílios, ou cerca de 250 mil habitantes – uma Juazeiro
do Norte.
“Nunca mais
Sérgio Motta foi pobre nem fraco”, escreveu Nery, “nem ele nem o Grupo Serjão;
tinham descoberto o caminho das pedras. Quando Montoro assumiu o governo, ele
foi dirigir a poderosa e riquíssima Eletropaulo. E passou a comandar o projeto
político, econômico e financeiro da turma”.”
“Assim que
Alberico Souza Cruz chega à chefia da Editoria Rio, convoca reunião geral, com
repórteres, câmeras, produtores, editores, para explanar a filosofia que
passaria a nortear a todos ali, sentados na redação. Depois de algumas
palavras, resumiu:
“Precisamos de
muitas notas ao vivo. Muitas notas ao vivo... e... muitas notas ao vivo.”
Nota ao vivo é aquela
em que o âncora do programa, ou a âncora, dá a notícia apenas de viva-voz, sem
imagem alguma. Luís Carlos Cabral, já veterano, subeditor, portanto logo abaixo
de Alberico, sussurrou a um colega ao lado:
“Pronto!
Desinventou a televisão e reinventou o rádio!”
Ele chegaria ao poder
no jornalismo da Globo ao fim daquela década, graças a episódio bastante
conhecido da categoria e de boa parte do público externo. Trata-se da altamente
polêmica edição do debate final da campanha que, em 1989, escolheria o primeiro
presidente depois da ditadura militar eleito pelo voto direto do povo. Collor versus Lula.
Na última edição do Jornal Nacional em que ainda se podia
falar da disputa pelo Palácio do Planalto, contando-se em horas o tempo que
faltava para o início da votação no segundo turno, foram ao ar os melhores
momentos de Collor e os piores de Lula – edição de Alberico e Ronald Carvalho.
Isto, acompanhado de repercussão popular favorável a Collor, “pesquisa” feita
por telefone com vitória ampla de Collor, mais um editorial francamente
elogioso a Collor lido por Alexandre Garcia, ex-assessor de imprensa do
“presidente” general Figueiredo.
O serviço valeu a
Alberico a ascensão ao topo do jornalismo da Globo, e queda da dupla Armando
Nogueira e Alice Maria.”
“Com tantos
militares na árvore genealógica (tio-avô general e ministro da Guerra, tio
capitão e o cargo honorífico de brigadeiro, pai e avô generais), Fernando
Henrique tentou na década de 1940, por duas vezes, entrar na Escola Militar.
Levou duas bombas. Também arriscou a segunda carreira do pai, que além de
militar, era advogado. Então, prestou vestibular para a Faculdade de Direito.
Nova bomba. O pai, general Leônidas Cardoso, ficou desgostoso.
“Ele nunca vai dar para nada”,
desabafou com o colega de farda Jocelyn Brasil, oficial da aeronáutica, amigo
da família do autor deste livro.”
“O sociólogo
Gilberto Felisberto Vasconcellos, com sua verve peculiar, no livro O
Príncipe da Moeda, de 1997, anota:
Esta notoriedade
intelectual merece ser objeto de uma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito],
porque seus livros não são mais lidos atualmente, o que causa sem dúvida
espanto, pois trata-se de notoriedade intelectual baseada menos nas qualidades
intrínsecas do texto (ou do pensamento) do que no marketing do
“intelectual-perseguido-pela ditadura”.”
“O exílio de
FHC no Chile, em que escreveu Dependência e Desenvolvimento na América
Latina, mais conhecido como Teoria da Dependência, não teve as
dificuldades, agruras e penúrias que nos vêm à mente quando ouvimos falar em
exílio. Para começar, FH já chega a Santiago empregado na Cepal, Comissão
Econômica para a América Latina, em seu Instituto Latinoamericano de
Planificación Económica y Social, Ilpes, ligado à ONU, Organização das Nações
Unidas. Além disso, viajou com passaporte e salário integral da Universidade de
São Paulo.
Em Livro de
Ruth, a cientista social Margarida Cintra Gordinho, ex-aluna de Ciências
Sociais de FHC e Ruth Cardoso, conta que a família morou numa “boa casa com
jardim e uma lareira aconchegante”, onde os anfitriões receberam “sem
cerimônia” muitos hóspedes – afinal, lembra a autora, no Chile antes do pinochetazo,
“a comunidade brasileira chegava a umas cinco mil pessoas”. Margarida pontua:
Os funcionários da
Cepal ganhavam bem e podiam importar artigos sem imposto. Paulo Henrique
lembra-se de um catálogo da Sears em que escolheu uma fantástica bicicleta
Raleigh; lembra-se também dos meninos com quem jogava futebol na rua. Pelas
ruas de Santiago, Fernando Henrique guiava uma Mercedes-Benz, muito diferente
do velho Singer em que rodava em São Paulo.
Era “a mais linda
Mercedes azul” que um futuro ministro dele já havia visto, o também sociólogo
Francisco Weffort. A autora conclui:
Visto através do
filtro do tempo, esse foi um exílio dourado!
E cravejado de
brilhantes. Depois de outro exílio dourado na França, volta a família ao Brasil
em 1968, ano do famigerado AI-5, o Ato Institucional 5. Em abril de 1969, Fernando
Henrique seria aposentado compulsoriamente da Universidade de São Paulo e teria
os direitos políticos cassados. Aos poucos, FHC irá se aproximando do campo da
política. No mesmo ano de sua expulsão da USP, funda com outros professores
universitários perseguidos o Cebrap, Centro Brasileiro de Análise e
Planejamento. Sobre o financiamento para tal empreendimento, como se estivesse
“vacinando-se” contra possíveis suspeitas quanto à origem do dinheiro, diz em
sua autobiografia:
“Tive que
buscar apoio em fundações internacionais e, naquela época, havia preconceito
contra isso.”
Preconceito? A FF,
Fundação Ford – financiadora do Cebrap em seu nascedouro –, entidade com sede
em Nova Iorque, foi criada, segundo seus fundadores, para patrocinar programas
de “promoção da democracia e redução da pobreza”. Há quem afirme, porém, que
esse bonito lema serve apenas como luminoso de uma fachada atrás da qual se
ocultam os não tão bonitos interesses da CIA, a Agência Central de Inteligência
dos Estados Unidos.
James Petras,
sociólogo que lecionou na Universidade de Binghamton, estado de Nova Iorque,
bem como outros intelectuais americanos, acusam a Fundação Ford de agir como
testa-de-ferro da CIA. Petras documentou doações da FF para organizações
criadas pela CIA a fim de intervir na política interna de outros países. Mostra
ainda que Richard Bissell, ex-presidente da FF, era ligado a Allen Dulles,
diretor da CIA e responsável pela criação do Projeto MK-Ultra, de controle do
comportamento humano com uso de drogas, como LSD, sem conhecimento das vítimas.
Bissell tinha vocação para o fracasso: foi o cérebro da espionagem da União
Soviética usando o avião U-2, que voava tão alto, que jamais seria alcançado
pela artilharia inimiga: foi derrubado; e cérebro criador da invasão da Baía
dos Porcos, que derrubaria Fidel Castro em poucas horas – um dos maiores
fiascos militares dos Estados Unidos.
Outra acadêmica
americana, Joan Roelofs, em Foundations and Public Policy: The Mask of
Pluralism (Fundações e Política Pública: A Máscara do Pluralismo),
de 2003, diz que entidades como a FF ajudam a isolar movimentos de oposição aos
interesses americanos. Lembra que o presidente do Conselho da FF de 1958 a
1965, John J. McCloy, descreveu a entidade como “uma quase extensão do governo
americano”. E repara que uma das funções da FF era visitar o Conselho de
Segurança em Washington para ver quais projetos deveria financiar no exterior.
Patrocinou ainda programas para desestabilizar a resistência às ditaduras na
Indonésia e outros países. Bem, quem sabe a CIA tenha aberto uma exceção ao
Brasil: enfraqueceu a resistência às ditaduras noutros continentes, em toda a
América Latina, mas aqui resolveu criar um organismo para nos libertar da
própria CIA.
O livro Quem
pagou a conta? – A CIA e a guerra fria da cultura, da
pesquisadora inglesa Frances Stonor Saunders, contém uma pista quente de que o
Cebrap de FHC foi financiado pela CIA por meio da Fundação Ford, pois prova com
documentos que a FF canalizava secretamente dinheiro da agência americana para
áreas culturais. Poderá alguém alegar que Frances só pesquisou até 1967 e o
Cebrap nasce em 1969. Ora, basta seguir um silogismo:
1. CIA dava dinheiro à Fundação Ford;
2. Fundação Ford dava dinheiro ao Cebrap; logo,
3. Cebrap recebeu dinheiro da CIA.
Já em meados da
década de 1970, o cineasta Glauber Rocha escrevia:
No Brasil, o
gancho do Pentágono é o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap),
que funciona em São Paulo.
E sobre o
administrador da entidade, Glauber não se enganava; foi o primeiro intelectual
a perceber, com 20 anos de antecedência, que o Cebrap era um aparelho
ideológico internacional que antecipava a política neoliberal das privatizações
e da entrega de nossas riquezas:
Fernando Henrique
Cardoso é apenas um neocapitalista, um kennedyano, um entreguista.
Noutro livro, de
1997, Fernando Henrique Cardoso, o Brasil do possível, a jornalista
francesa Brigitte Hersant Leoni pontua que os americanos não estavam investindo
dinheiro à toa. Fernando Henrique já havia prestado “serviço de qualidade”: com
o economista chileno Enzo Faletto, acabava de lançar Dependência e
Desenvolvimento na América Latina, defendendo a tese de que países em
desenvolvimento ou atrasados poderiam desenvolver-se
mantendo-se dependentes de países ricos – por exemplo os Estados Unidos. O
livro é magistralmente avacalhado por Millôr Fernandes e João Ubaldo.
Assim é que, menos de
dois meses depois do AI-5, o país vivendo o auge da fúria da ditadura, com
centenas de novas cassações, cárceres lotados, tortura comendo solta, Fernando
Henrique se prepara para tornar-se “personagem internacional”, a dar aulas e
conferências em universidades americanas e europeias, com respaldo da Fundação
Ford. E, coisa mais difícil de explicar, gozando de notoriedade entre as
esquerdas, citado em teses acadêmicas – “um prodígio”. Juntou a fama de
“exilado” à de perseguido pela Universidade, por fim à fama de empreendedor com
o Cebrap, fruto da internacionalização do mercado, mas visto – anota Gilberto
Vasconcellos – “equivocadamente como resistência de esquerda contra o
obscurantismo cultural da ditadura”.
E como dispunha de
dinheiro! Na página 123 do livro de Brigitte, lemos que FHC, administrador do
Cebrap, certa vez disse:
“Não
conseguíamos gastar tudo. Lembro-me de ter encontrado o tesoureiro. Santo Deus,
disse eu, como podemos gastar isso? Não havia limites, ninguém tinha que
prestar contas. Era impressionante.”
A primeira parcela,
de US$ 145 mil, lhe foi entregue em fevereiro de 1969 pelo tesoureiro da FF no
Brasil, Peter Bell. Nunca se divulgou o total, mas na USP dizia-se que pode ter
chegado a US$ 1 milhão.”
“Polichinelo é
um dos personagens da Commedia dell’Arte, teatro popular surgido na
Itália entre os séculos XV e XVI. Polichinelo gosta de Colombina, que faz dele
o que ele é: um tolo. Ele não se acha tolo, mas todos sabem que Polichinelo é,
daí a expressão “segredo de polichinelo”. Expressão que os jornalistas naquele
momento da história brasileira usam para referir-se ao “caso Miriam Dutra”.
Mas não é segredo de
polichinelo para Ruth Cardoso: ela ainda “não sabe” do filho de FHC fora do
casamento. A ilação que todos tirariam: o senador prestes a anunciar sua
candidatura resolveu contar “tudo”; a mulher – sabidamente independente e
voluntariosa – revoltou-se e, por acidente, machucou-se. O senador Fernando
Henrique escolheu o dia errado para abrir o jogo com a mulher? Ou não soube
conduzir a conversa? O que aconteceu? (...)
No Sarah Kubitschek,
FHC volta a si: seu futuro pode estar por um triz. Ruth sai com um braço na
tipoia. Aos jornalistas que se acercam, ela grita:
“Me deixem em
paz!”
E se manda para
Nova Iorque.”
“Jorge
Bornhausen serviu como um dos sustentáculos mais empedernidos da ditadura
militar, merece pinceladas biográficas para fins do “diz-me com quem andas e te
direi se vou contigo”. Pois será a companhia dele que FHC buscará em 1994, para
garantir a eleição e a tal da governabilidade.
Na ditadura,
depois de presidir o Besc, Banco do Estado de Santa Catarina, Jorge Bornhausen
ganha o posto de governador biônico – nomeado em 1978. No ano seguinte, a 30 de
novembro, traz ao Estado o novo general de plantão, João Figueiredo, com
assessores e mais o ministro de Minas e Energia, o cearense Cesar Cals. São
todos escorraçados da praça principal de Florianópolis, a Praça XV, no episódio
conhecido como Novembrada.
Jorge
Bornhausen foi governador duas vezes, nenhuma delas pelo voto popular: na
primeira, era vice de um governador que acabou cassado pelos golpistas; na
segunda, nomeado pelo general Ernesto Geisel. Elege-se em 1982 senador pelo
PDS, partido sucessor da velha Arena, responsável pela coreografia civil do
regime militar. Adversários acusaram a eleição de fraudulenta – teve 816.386
votos e o segundo colocado, 815.563, apenas 823 votos de diferença – menos de
0,05% do eleitorado.
Com a
redemocratização em 1985, Bornhausen transforma sobras do PDS em PFL, Partido
da Frente Liberal, e ajuda a forjar a imagem de Fernando Collor, que defenderá
até o impeachment, no cargo equivalente à chefia da Casa Civil,
noutro governo dos mais desastrosos de nossa história.
O rol de
notícias negativas na mídia ajuda a compor o perfil do parceiro que FHC iria
procurar no início de 1994 para garantir a vitória nas eleições de outubro. Em
julho de 2002, a semanal IstoÉ publica:
Na investigação sobre remessa ilegal de dinheiro,
PF acha boleto bancário em nome de Bornhausen
A matéria
descreve em detalhes um esquema gigantesco de envio irregular de bilhões de
dólares do Brasil para o exterior.
Na papelada
encontrada por investigadores na agência Banestado em Nova Iorque havia um
boleto bancário no valor de 185 mil reais em nome de Jorge Konder Bornhausen.
O dinheiro
tinha saído do Banco Araucária, em Foz do Iguaçu – banco da família Bornhausen,
e note onde fica a agência: na porta dos fundos do Brasil, menos vigiada que a
porta da frente.
“Era uma
agência daquelas que funcionam em um andar superior de um prédio, não é uma
agência, assim, de rua. Não era um banco importante para ter essa autorização
especial”, observou em 2005 em entrevista a Caros Amigos o
procurador da República Vladimir Aras.
De Foz, aqueles
R$ 185 mil passam por uma off shore, ou paraíso fiscal; e
desembarcam nos Estados Unidos.
A investigação
levantaria 137 movimentações suspeitas realizadas por meio de contas CC5, as
famosas. O BC, Banco Central, emitiu em 1969 a Carta Circular 5 (daí CC5),
criando conta voltada a brasileiros residentes fora do país e empresas
exportadoras ou financeiras com vínculos no exterior. Permite, sem necessidade
de autorização do BC, depositar reais lá fora, sem limites, e convertê-los em
dólares; ou resgatar, aqui e em reais, dólares depositados no exterior. Mas
apenas cinco bancos podiam realizar essas operações: Banco do Brasil, Bemge,
Banestado, Real e Araucária.
Logo a ditadura
militar passa a permitir que qualquer pessoa, desde que identificada, possa
usar a CC5. Surge o golpe conhecido como “barriga de aluguel”: políticos,
autoridades, assessores de segundo escalão e outros altos malandros passam a
usar a CC5. Eles não se expõem. Usam laranjas, pessoas em geral
humildes e desavisadas, em cujos nomes enviam fortunas para fora do país.
Sangria desatada: só entre 1992
e 1997, pessoas físicas e jurídicas remetem ilegalmente ao exterior R$ 124
bilhões. Daria para construir 3 milhões e 100 mil casas populares com sala, cozinha,
dois dormitórios e banheiro – já seria uma força para resolver o déficit
habitacional brasileiro, de 5 milhões e meio de casas.
A Polícia
Federal identificou quase R$ 12 bilhões em dinheiro sujo – boa parte
proveniente de corrupção, tráfico de drogas e de armas. Você há de perguntar se
o governo, diante da denúncia contra Bornhausen, mandou investigar, não? O que
fez? Arquivou o dossiê da PF e afastou o delegado José Castilho Neto,
responsável pela investigação. Seria porque as averiguações poderiam rumar na
direção de tucanos de penas douradas?
O Banespa,
Banco do Estado de São Paulo, sob controle tucano, enviou ao exterior em 1997,
mediante o esquema, R$ 50 bilhões – daria para arrumar todas as rodovias
federais de Minas e Goiás em mau estado ou por asfaltar, e sobraria troco; ou
melhor: falta creche no seu bairro? Na sua cidade? Seria possível ajudar até
nossos vizinhos e construir 132.626 creches para 300 guris cada uma no Brasil e
América Latina afora.
O Banestado,
Banco do Estado do Paraná, quebrou em 1998, lesando seus quatro mil clientes em
US$ 200 milhões – aí se foram mais 2.647 ambulâncias equipadas, com tudo o que
é necessário para salvar vidas, uma para cada dois municípios brasileiros.
Em junho de
2003, procuradores da República entregaram à Receita Federal aproximadamente
seis mil documentos sobre mais de 80 mil pessoas que lavaram US$ 30 bilhões nos
Estados Unidos, a partir da agência do Banestado de Foz do Iguaçu – mandaram
para o exterior dinheiro que serviria para construir 67.500 postos de saúde
equipados inclusive com gabinete dentário.
As
investigações recaíram principalmente sobre os Bornhausen: o Araucária, banco
da família, teria lavado, por baixo, US$ 5 bilhões no esquema, dinheiro de
origens obscuras. Apenas para comparar: os US$ 5 bilhões equivalem ao custo
anual de 10.300 escolas para 500 alunos cada uma, incluindo a merenda das
crianças; ou, já que eles são catarinenses, os US$ 5 bilhões dariam para
construir 50 quilômetros de metrô em Florianópolis.
Só em 2005,
após o escândalo Banestado, o governo – por intermédio do Conselho Monetário
Nacional, CMN – mudou as regras. Quem quisesse mandar dinheiro para fora
deveria agora assinar contrato de câmbio com algum banco, registrado no Banco
Central. O CMN “instalou” uma torneira, sob seu controle, no “encanamento” da
CC5.”
“No
momento em que todos os observadores políticos percebem que a luz
de Fernando Henrique emana sinais presidenciais, olhos e ouvidos se aguçam
nos repórteres mais atilados. Alguns miram na fazenda de FHC e Sérgio Motta e
acham uma discrepância entre o preço “real” e aquele declarado no Imposto de
Renda: para a Receita Federal, é uma fazendinha de não mais que US$ 2 mil; mas
o valor de mercado bate nos US$ 400 mil.
Um repórter faz
a matéria e envia para a matriz de seu jornal em São Paulo. Apenas dois ou três
leitores ficaram informados de seu conteúdo, antes que ela jazesse na gaveta do
editor. Os leitores (e eleitores) da publicação ficaram sem saber que, desde 1988,
Fernando Henrique e Sérgio Motta dividiam a propriedade no distrito de Serra
Bonita, município de Buritis, Minas Gerais, a duas horas e meia de viagem, por
terra, da capital federal. Terras boas para o cultivo de arroz.
Algumas
publicações estavam inclusive saindo em defesa preventiva de FHC. Veja e
O Globo, mesmo que nada tivesse sido publicado contra ele, optaram por
favorecê-lo com notas de apoio explícito.
Os magnatas da
mídia, portanto, esqueceram a fazendola de 1.046 hectares, equivalente a um
décimo da área urbana de São Paulo, com valor declarado ao Fisco duzentas vezes
menor que o valor verdadeiro.”
“Embora
pensem numa campanha propositiva, os tucanos pedem a uma empresa que assumiu a
assessoria de comunicação, para acompanhar secretamente, inclusive tirando
fotos, a suposta amante de um adversário. Haverá troco caso mexam com a vida
privada de FHC.
Mas os tucanos
espiões viram reles arapongas numa das missões. Investigam o acidente que matou
o ex-líder estudantil Luís Travassos no Rio, em 1982, três anos depois de
voltar do exílio. Quem dirigia o carro era Aloizio Mercadante, candidato a vice
de Lula. Os tucanos-arapongas descobriram que o inquérito foi arquivado por um
tio de Mercadante, Waldir Muniz, secretário de Segurança do Rio, famoso pelo
envolvimento com o atentado do Riocentro.
Trabalharam
duro para que as informações chegassem à redação de um jornal carioca a tempo
de publicação no dia seguinte. Causariam belo estrago na candidatura de Lula.
Só que Mercadante não tem tio algum chamado Waldir Muniz. Confundiram Waldir
com Wilson — Wilson Muniz, tio de Mercadante e ex-reitor da USP, Universidade
de São Paulo.”
“Faltando
quatro meses para as eleições, a 2 de junho de 1994, “um torpedo político”
atinge o PT e, é claro, a candidatura Lula. O Estado de S. Paulo publica
no alto da página 17:
SAE afirma que sem-terra treinam guerrilha
SAE: Secretaria
de Assuntos Estratégicos, da Presidência da República. O serviço secreto – o
Serviço – tinha dado uma requentada no caso da guerrilha do Araguaia, movimento
militar que o Partido Comunista do Brasil, PCdoB, enquistou em 1966 no Bico do
Papagaio, sul do Pará, aniquilado 20 anos antes daquele 1994, em 1974.
O Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra, MST, praticamente se confundia com o PT. A
matéria do Estadão feriu gravemente a candidatura Lula.
Do ponto de
vista da técnica jornalística, a repórter do jornal paulista, Tânia Monteiro,
havia produzido texto “isento”, limitava-se a reproduzir o documento do
Serviço. Mas acontece que o relatório misturava informações corretas com dados
falsos e um tom que recuperava a histeria anticomunista do passado. Dizia que
os sem-terra estavam fortemente armados – possuíam na verdade o de sempre,
armas para caçar e armas caseiras, como facas, facões e foices. Destacava que
tinha “apoio do PT”. E que, “treinados por alemães, chilenos, cubanos,
nicaraguenses e russos, planejavam instalar bases guerrilheiras na região do
Bico do Papagaio”. Um delírio.”
(O
informante do jornal com vistas a prejudicar a candidatura de Lula e beneficiar
a de FHC foi o então presidente Itamar Franco, que depois viria a se arrepender
amargamente do apoio dado ao tucano.)
“Restava
a “questão” Marco Maciel, substituto do alagoano Guilherme Palmeira, este
ejetado da candidatura a vice de FHC após denúncia de que teria favorecido a
empreiteira Sérvia com emendas ao Orçamento da União.
Fernando
Henrique o engoliu atravessado por conta de sua carreira política na Arena pela
qual, inclusive, foi nomeado governador de Alagoas durante o período
ditatorial. A solução apresentada pelo PFL, Marco Maciel, vem eivada de
suspeições. Além de igualmente haver progredido sob as asas da ditadura – em
1979, foi “eleito” pelos militares governador de Pernambuco – teria recebido
dinheiro de PC Farias para sua campanha ao Senado em 1990. Uma pesquisa pedida
em regime de urgência mostra que ninguém aceitaria relações com o tesoureiro de
Fernando Collor, que continuou arrecadando dinheiro mesmo depois que a campanha
já havia acabado.
Diante de
Fernando Henrique, um Marco Maciel garante que não há cheque algum de PC Farias
na sua conta pessoal. Se houvesse denúncia, não negariam que o tesoureiro de
Collor ajudou o vice de FHC indiretamente, e diriam que nunca houve dinheiro
das arcas colloridas na conta pessoal dele, Maciel. Por prudência, Marco Maciel
vira o sujeito oculto da campanha, tão bem escondido, que parece que Fernando
Henrique está disputando a eleição sem vice. (...)
Nada
atrapalhava o caminho, nem o escândalo de agosto, que poderia significar
tropeço fatal se fosse com algum candidato que não FHC, brindado com a
blindagem da mídia “a favor”. Aconteceu aquele problema com o alagoano
Guilherme Palmeira, até então vice na chapa da coligação União,
Trabalho e Progresso, indicado em maio de 1994 pelo PFL. Ex-deputado pela
Arena, governador biônico nomeado pelo general Geisel, em 1978 – na mesma leva
que incluiu Jorge Bornhausen – a denúncia que o envolvia com aquela empreiteira
desembocou na sua substituição. Veio outro nordestino do “pê-fê-lê”: o
pernambucano Marco Maciel, vulgo Mapa do Chile, de tão esguio e magro. Palmeira
seria recompensado em 1998 quando, após perder a vaga no Senado para a então
petista Heloísa Helena, foi indicado ministro do Tribunal de Contas da União
sob FHC. No livro Sérgio Motta – O Trator em Ação, de
José Prata, Nirlando Beirão e Teiji Tomioka (Geração Editorial, 1999), de quase
meio milheiro de páginas, Palmeira não faz sequer uma pontinha. E sua queda da
chapa PSDB-PFL em 1994 nem foi percebida pelos eleitores, ofuscados pela nova
moeda e seu presumido criador.”
“Numa
entrevista, Lula havia dito:
“Esse
plano econômico é um estelionato eleitoral.”
No fim do
segundo ano do primeiro mandato de FHC, enfim Lula tem câmeras e um microfone à
disposição para explicar, a um auditório de jovens, por que achava o real
irreal. Foi no Programa Livre, do apresentador Serginho Groisman,
no segundo semestre de 1996, no canal SBT. A uma garota que pergunta o que acha
das viagens de FHC, diz que está certo, pois chama atenção para a importância
do país, e cria mais uma de suas famosas metáforas:
“O
Brasil, em matéria de política internacional, faz o papel de gandula. É
importante, mas não tem presença, está em campo mais para pegar a bola para os
outros jogar.”
Um garoto
pergunta o que ele acha do Plano Real. Ele ri, diz que sabia que lhe fariam a
pergunta e no caminho vinha pensando em como se fazer entender. Ali estão
adolescentes, não têm mais que 15, 16 anos. Lula diz que “é preciso garantir
que dê certo”, mas está montado, o plano, sobre base falsa. E lá vem outra
metáfora:
“Um
prédio, para você fazer, precisa apoiar em colunas; e as colunas em cima de
sapatas grandes de cimento, para poder segurar, senão, qualquer coisinha a casa
arreia, trinca. O Plano Real está montado numa base falsa, que é a política
cambial. A nossa moeda está sobrevalorizada em relação ao dólar e, portanto,
facilitando as importações e dificultando as exportações – está quebrando a
indústria brasileira, e daí você vê as denúncias de desemprego na imprensa.
Segundo: o Plano Real está montado numa política de juros que é a maior do
mundo. O juro de um mês no Brasil é maior que o juro de um ano nos Estados
Unidos, no Japão e outros. E juros altos faz o quê? Faz com que a moeda brasileira...
que fique caro o dinheiro, as empresas não podem tomar dinheiro emprestado, os
agricultores não podem tomar emprestado, e portanto gera mais desemprego.”
Mas no ano
eleitoral de 1994, quem o ouvia? O grosso do eleitorado já estava hipnotizado
pelo real e só oito anos depois descobriria que Lula estava certo.”
“Protógenes
Queiroz, policial federal que se tornou deputado pelo PCdoB de São Paulo, nem
sonhava com a Câmara Federal quando me falou pela primeira vez do Caso Paribas
– como se trata de banco francês, pronunciemos à francesa: Parribá.
Ele não apenas falou. Naquela noite de meados da década de 2000, no saguão do
hotel no bairro de Santa Ifigênia, em São Paulo, delineou o mapa minucioso da
armação que envolvia o Parribá no Brasil. Seu rosto nem sequer havia surgido na
mídia, apenas o nome, mas já conduzia aparatosas operações da PF, envolvendo o
ex-governador Paulo Maluf, o ex-deputado federal pelo PFL do Acre Hildebrando
“Motosserra” Pascoal e o contrabandista de origem chinesa Law Kin Chong.
A segunda vez
foi em sua primeira entrevista exclusiva à imprensa, na sede de Caros Amigos,
que durou de duas e meia da tarde às oito e meia da noite. De tudo se tratou.
Não por coincidência, depois da entrevista setores poderosos da PF botaram a
vida de Protógenes de pernas para o ar. Vamos ao trecho da entrevista-bomba,
concedida em novembro de 2008 e publicada em dezembro, no número 141 da
revista:
Palmério Dória – Você está falando do Fernando
Henrique Cardoso?
Fernando Henrique Cardoso.
Palmério Dória – Você está falando do Paribas,
de como o presidente manipulou e ganhou com isso?
Exatamente. Nossa dívida externa é artificial e eu
provei isso na investigação. Houve repulsa minha porque quando era estudante
empunhei muita bandeira “Fora FMI”, “Nós não devemos isso”.
Mylton Severiano – “A
dívida já está paga”.
“A dívida já está paga”. E foi muito jato d’água,
muita cacetada, muito gás lacrimogêneo, “bando de doido, tem que tomar porrada,
pau nesses garotos”. Você cresce achando que era um idiota, não é? Chega um
momento que pensa “a dívida foi criada no regime militar, mas a gente precisa
pagar”.
Fernando Lavieri – Como
você provou isso?
Palmério Dória – O jogo começou a ser jogado no Ministério
da Fazenda?
Sim. Querem essa história?
Todos – Sim!
Vocês não vão dormir direito. Isso é para maiores
de 50 anos. Estamos em 2002, me atravessa as mãos o expediente para um banco
francês, “esse banco eu conheço, é sério”. E a suspeita que investigo é fraude
com títulos públicos brasileiros, negociados no mercado internacional, títulos
da dívida externa. Negociados na década de 1980: o que chama atenção?
Mylton Severiano – Fim
da ditadura.
E transição para o regime civil. José Sarney pega o
país em frangalhos, devendo até a alma, sem dinheiro para financiar as contas
públicas, muito menos honrar compromissos, a famigerada dívida com o FMI. Havia
até o “decrete-se a moratória”. Era o papo nosso, da esquerda, dos estudantes,
“não vamos pagar, já levaram tudo”. E o Sarney, o que faz? Bota a mão na
manivela e nossos títulos da dívida externa valiam, no mercado internacional,
no máximo 20% do valor de face, era negociado na bolsa de Nova Iorque. No
paralelo valiam 1%. O que significa? Não passa pela bolsa. Comprei, quero me
livrar, então 1% do valor de face, título de um país “à beira de uma convulsão
social, ninguém sabe o que vai acontecer com aquele país, um conjunto de raças
da pior espécie”: essa, a visão primeiro-mundista, o que representávamos para
os banqueiros. Escória. E aqui estávamos, discutindo a reconstrução do país.
Vamos dialogar, botar os partidos para funcionar, eleições, e o Sarney tendo
que dar uma solução. Fecha a manivela e toca a jogar título no mercado de Nova
Iorque. Cada título que valia 10%, 15%, mandava dinheiro aqui para dentro. Seis
anos depois, o mercado financeiro internacional detectou que no Brasil haveria
desordem, até guerra civil, e eles não iam receber o que tinham colocado aqui
com a compra dos papéis podres, queriam receber mesmo os 15%. E fazem uma
regrinha de três e colocam para o Banco Central: “Você vai instituir uma norma,
os títulos da dívida externa brasileira adquiridos no mercado financeiro
internacional, no nacional poderão ser convertidos no Banco Central pelo valor
de face desde que esse dinheiro seja investido em empresas brasileiras.”
Bacana, não? Se funcionasse como ficou estabelecido, nosso país seria uma
potência, não? Ainda que uma norma perfeita, acho um critério não normal, não
é? Não é moralmente ético eu comprar um título por 15% e ter um lucro de 100%,
em tão pouco tempo. Mas enquanto regra de mercado financeiro tenho de admitir
que sou devedor. Se vendi a 15%, na bolsa, assumi o risco de, no futuro, o
lucro ser maior para o credor. Tenho que pagar. Foi assim que foi feito? Não.
Será que o grupo Votorantim recebeu algum dinheiro convertido? Alguma outra
empresa nacional do porte recebeu? Não. O que o sistema montou? Uma grande
operação em determinado período para sangrar as reservas do país, e ainda tinha
as cartas de intenção, que diziam “se você não me pagar posso explorar o
subsolo de 50 mil quilômetros da Amazônia”.
Wagner Nabuco – Era a fiança?
Sim. Então me deparo com um banco, o Paribas, hoje
BNP-Paribas que se uniu ao National de Paris. Com três diretores, em São Paulo,
e dois outros, mais um contador que foi assassinado e um laranja que se chamava
Alberto. O banco adquire esses títulos, no valor de 20 milhões de dólares, não
é? E converte no Banco Central e aplica em empresas brasileiras,
empresas-laranja. Comprou no paralelo a 1%, eram 200 mil dólares, e converteu a
20 milhões de dólares aqui no Brasil e colocou nessa empresa-laranja...
Mylton Severiano – Empresa
de quê?
De participações. Chamava-se Alberto Participações,
com capital social de 10 mil reais. Já tem coisa errada. Como uma empresa com
capital de 10 mil reais pode receber um investimento estrangeiro da ordem de 20
milhões? Cadê o patrimônio da empresa? Como é que o Banco Central aprova? Mando
pegar o processo. Ela investiu, vamos ver aonde o dinheiro vai. Converteu os 20
milhões e ao longo de doze meses o dinheiro é sacado mensalmente na boca do
caixa em uma conta e convertido no dólar paralelo e enviado para a matriz em
Paris. Eu digo “Banco Central, me dá o processo do Paribas”. Aí não consigo,
quem consegue é o procurador que trabalhava comigo, Luiz Francisco. Consegue e
remete pra mim em São Paulo. Vejo que no Banco Central houve uma briga interna
pela conversão. Os técnicos se indignaram, e indeferiram. Aí houve uma gestão
forte para que houvesse a conversão. De quem? Do ministro da Fazenda. Que era
quem?
Mylton Severiano – Fernando.
Marcos Zibordi – Henrique.
Mylton Severiano – Cardoso.
Tento localizar os banqueiros. Todos fugiram. Os
franceses todos. O contador, assassinado. O laranja Alberto morreu de morte
natural, assim falam no Líbano, onde ele morreu. E me sobra a sócia dele, uma
senhora chamada Celma. Morava na avenida São Luís. Ah, é? Um foi embora, outro
fugiu, outro morreu, outro foi assassinado: querem brincar com a Polícia
Federal? Com a dívida externa do Brasil? Descubro essa sem-vergonhice, essa
patranha, essa picaretagem de fundo de quintal que acontecia enquanto nós,
estudantes, lutávamos, dizíamos que a dívida externa não existia, e, de fato,
parte dela era artificial. A coisa é grave, vamos fazer uma continha, nós
contribuintes, que cremos que existe uma ordem no país. Títulos que adquiri por
200 mil, converti no Brasil aos 20 milhões de dólares, quanto tive de lucro?
Dezenove milhões e 800 mil. Vamos fazer essa continha para vocês dormirem
direito hoje. Esses 19 milhões mandei para minha matriz, o papel está na minha
mão ainda, porque dizia o seguinte a norma do Banco Central: ao converter esse
título, invista em empresa brasileira, e ao final de doze anos “Brasil, mostre
a sua cara e me pague aqui, você me deve, pois sou credor dessa nota
promissória chamada título da dívida externa brasileira”. Está na lei. Bota aí.
Soma 20 milhões com 19 milhões e 800 mil: 39 milhões e 800 mil. Nós devemos
isso aí? E mais, o que pedi? Que o juiz bloqueasse o título do Paribas, não
pagasse, indiciei os diretores. Por quê? Porque estava se aproximando o final
dos doze anos, o título estava vencendo e tínhamos que pagar. Pedi que o Banco
Central enviasse cópia de todos os processos de conversão da dívida externa
brasileira pra mim. Estou esperando até hoje. Sabe o que o Banco Central falou?
“O departamento não existe, nunca existiu, era feito por uma seção
aleatoriamente lá no Banco Central.” Então nós não devemos esse montante de
milhões que cobram.
Renato Pompeu – Só não entendi o que o Fernando Henrique
Cardoso ganhou com isso.
Calma, calma. Sobrou uma para contar a história. A
Celma da avenida São Luís. A mulher de verdade. Era companheira do Alberto,
ex-embaixador do Brasil no Líbano. Quando estourou a guerra ele fugiu e viveu
na França, estudando na Sorbonne. Quem ele conhece lá?
Mylton Severiano – Fernandinho.
Colegas de faculdade. A Celma, marquei depoimento
numa quinta, véspera de feriado, às seis da tarde na superintendência da
Polícia Federal. Uma morena bonita, quase 60 anos, me disse que tinha sido
miss, modelo, era sócia nessa empresa, tinha tipo 1%. Furiosa, “que absurdo,
véspera de feriado, perder meus negócios, engarrafamento”. Já estava gritando
no corredor. Dei um molho de uns trinta minutos até ela se acalmar. Pensei
“essa mulher está furiosa e tem culpa no cartório”. Falei “obrigado por ter
vindo”, e ela “obrigado nada, o senhor é indelicado, desumano, sou dona de uma
indústria de sorvetes, e me chama numa hora importante porque tenho que
distribuir sorvete, é feriado, o senhor não tem coração”. No meio da
esculhambação, digo “tenho que cumprir meu dever, sou funcionário público”, e
ela “aposto que é o caso daquele Paribas, não sei por que ficam me chamando, e
tem mais, fui companheira do Alberto, e ele foi muito mais brasileiro que muita
gente. Era digno, honesto, ficam manchando a alma dele. Eu ajudei ele até
o fim da vida, inclusive sustentei parte da família dele”. Percebi que não
sabia a verdade, ela disse “ele morreu pobre, ficou esperando a conversão dessa
dívida que nunca houve”. Detalhe: na quebra de sigilo bancário encontrei um
cheque do Alberto que ele recebeu, 64 milhões, na boca do caixa do Banco Safra.
E ele transfere as cotas para uma empresa criada pelo Paribas em nome dos
diretores.
Mylton Severiano – No
Brasil?
Já é um Paribas do Brasil. Transfere para a
subsidiária, e os diretores começam a sacar. O primeiro que recebe é ele, valor
equivalente a 5%. E ela disse “ele não recebeu a comissão dele que era de 5%”.
Bateu! Tranquei o gabinete, falei “vou mostrar um documento, mas se disser que
mostrei, prendo a senhora”, era a cópia do cheque, com assinatura e data. A
mulher começou a chorar. “Desgraçado. Que o inferno o acolha!” Ela disse “tenho
muito documento na minha casa”. Se fizesse pedido de busca e apreensão chamaria
atenção da Justiça, teria um indeferimento. Essa investigação estava sendo arrastada.
Fiz uma busca e apreensão ao inverso, “a senhora permite que selecione o que
quero?”, ela disse “perfeito”. Naquela véspera de feriado, peguei dois agentes,
contrariando colegas que queriam ir embora...
Mylton Severiano – Qual
o ano?
2002. Saímos de lá de madrugada, era um apartamento
antigo, magnífico. Ela chorando, “desgraçado, até comida na boca eu dei”. Ela
me dá uma agenda, “aqui parecia o Banco Central, eu atendia o doutor Alberto,
da área internacional”. Encontrei documentos, agendas que vinculavam ele ao
Armínio Fraga, ao Fernando Henrique, inclusive uma carta manuscrita, não vou
falar de quem, depois confirmada, ela falou – “levei esse presente,
pessoalmente, até a casa do Fernando”. Mandei documentos para perícia. Na época
era eleição do Fernando Henrique...
Renato Pompeu – Não, do Lula.
Isso. Lula venceu contra Serra. Fernando Henrique
era presidente.
Renato Pompeu – Ele recebeu dinheiro então?
Vamos pegar a linha do tempo. Ele sai de ministro
da Fazenda e vira presidente. O gerente da área internacional que dá o parecer
no processo, quem era? Armínio Fraga. Que presidiu o Banco Central. Essa
investigação não sei que fim deu. Pedi ao Banco Central o bloqueio de todos os
títulos da dívida externa brasileira que foram convertidos. E pedi cópia de
todos os processos de conversão no Banco Central para investigação.
Renato Pompeu – Saiu na mídia?
Em parte, mas foi abafado. Quem conseguiu publicar
foi, se não me engano, a Época.
Palmério Dória – Citando Fernando Henrique?
Não, não citou. A reportagem era Fraude à
francesa. Essa investigação surge da denúncia de um advogado, Marcos Davi de
Figueiredo. Ele sofre uma pressão implacável dentro do banco. A Celma passa a
ser ameaçada, logo que presta depoimento entregando tudo. Inclusive, sobre os
escritórios que deram suporte a essa operação, um do Pinheiro Neto, ela diz que
sofria ameaça do próprio Pinheiro Neto. O procurador foi o doutor Kleber
Uemura.”
2 comentários:
Diferentemente de todos os outros livros, tive de dividir em três partes as postagens desta obra, posto que ele destrinça a história viva do país de maneira muito peculiar.
Se eu fizesse de uma só leva, teria de omitir muitos trechos sumamente relevantes para a compreensão da política nacional.
Excelente o livro! É o resultado da expressão: "seria cômico se não fosse trágico". Não dá nem pra selecionar algum trecho, está tudo muito bom. É muita coisa suja, chega a assustar.
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