quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Hegel e a liberdade dos modernos (Parte I), de Domenico Losurdo

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-709-5

Tradução: Diego Silveira Coelho Ferreira e Ana Maria Chiarini

Opinião: ★★★☆☆

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 472

Sinopse: Hegel e a liberdade dos modernos recupera a discussão dos principais princípios políticos e filosóficos por trás do liberalismo contemporâneo. Por meio de uma interpretação revolucionária do pensamento de G. W. F. Hegel, Domenico Losurdo (1941-2018), um dos maiores hegelianos da atualidade, demonstra como o filósofo da dialética estava totalmente engajado nas controvérsias políticas de seu tempo.

Nesta obra de fôlego, Losurdo revela como as questões abordadas por Hegel no século XIX reverberam em muitas das principais preocupações políticas da atualidade, como comunidade, nação, liberalismo, Estado e liberdade. Partindo do exame de todo o corpus de Hegel, sua análise desmonta o dualismo entre intepretações ‘conservadoras’ e ‘liberais’ do filósofo alemão, e assim fornece uma discussão renovada a respeito da relação entre a filosofia política de Hegel e o pensamento de Karl Marx e de Friedrich Engels.

 

“O intérprete moderno faria bem em evitar assumir uma postura de profeta, como se a verdade, o significado autêntico da filosofia de Hegel, tivesse permanecido escondido para todos e inacessível por mais de um século e meio para se revelar, de repente e de modo fulgurante, a um estudioso afortunado e genial, estudioso que é, naturalmente, o último a aparecer em ordem temporal. Vêm à mente as palavras com que Engels descreve a postura dos profetas religiosamente inspirados, que anunciam o advento de uma nova ordem social, livre, por fim, dos velhos erros: “O que faltava era o gênio individual que agora entrou em cena e reconheceu a verdade […]. Esse gênio poderia muito bem ter nascido quinhentos anos antes e, nesse caso, teria poupado à humanidade quinhentos anos de erros, lutas e sofrimentos”[86]. Em nosso caso, a economia de anos consentida pela nova e inédita interpretação de Hegel seria inferior, apesar de considerável, mas permaneceria de qualquer forma imutável o essencial, isto é, a postura de profeta.”

[86] Friedrich Engels, “Die Entwicklung des Sozialismus von der Utopie zur Wissenschaft”, cit., p. 191-2 [ed. bras.: Anti-Dühring, trad. Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2015, p. 47-8].

 

 

“O contratualismo protoburguês é a legitimação do monopólio político dos proprietários e a consagração explícita da subordinação do poder político à defesa dos interesses da propriedade. E, se é assim, o contratualismo protoburguês tem pouco ou nada a ver com o “contratualismo” hodierno (assim como é configurado por Bobbio), no âmbito do qual o Estado tem a ambição de se colocar como órgão de mediação entre as várias classes, entre os diversos e contrapostos sujeitos sociais. Deve-se discutir até que ponto tal ambição se realiza, mas permanece o fato de que ela, de qualquer forma, pressupõe no Estado um mínimo de transcendência em relação aos diversos e contrastantes interesses. Desse ponto de vista, ao menos no que se refere a suas ambições declaradas, o Estado burguês moderno está muito mais próximo da teoria hegeliana do que do contratualismo protoburguês. Ou melhor, o contratualismo de tipo feudal ou protoburguês continua a se manifestar nos atos de força ou nas ameaças de atos de força com que, não poucas vezes, os grupos privilegiados reagiram ou reagem a intervenções sobre o direito de propriedade, sobre as relações de propriedade e produção, intervenções consideradas não liberais e despóticas.

Sim, a hodierna democracia parlamentar é constituída de tratativas e de barganhas, mas não é preciso confundir duas definições de contrato totalmente heterogêneas. Examinando o desenvolvimento das contradições entre norte e sul que levaram mais tarde à eclosão da Guerra de Secessão, Tocqueville nos fornece um exemplo esclarecedor de “contratualismo” no mundo contemporâneo. Eis o modo em que os futuros secessionistas definem sua postura em relação às leis da União tidas como inaceitáveis: “A constituição é um contrato em que os Estados aparecem como soberanos. Agora, toda vez que intervém um contrato entre partes que não reconhecem um árbitro comum, cada uma delas mantém o direito de julgar por si mesma a extensão de suas obrigações”[32]. O “contrato” implica, então, o direito de veto das partes contratantes; nesse sentido, a lei é desprovida de um caráter obrigatório enquanto, mesmo depois da promulgação, depende, para a execução, do beneplácito das partes, que têm o direito de verificar sua conformidade ao contrato estipulado. Portanto, as partes contratantes são, em última instância, soberanas ou reivindicam uma substancial soberania; assim ocorria no período medieval, assim ocorria nos clássicos do protoliberalismo e assim ocorre nos Estados Unidos quando da secessão do sul. Contra esse contratualismo, polemiza Hegel, mas também o liberal Tocqueville, que observa com desânimo o esfacelamento dos poderes da União por obra dos contratualistas-secessionistas do sul.

Bobbio, por sua vez, fala de contratualismo moderno no sentido que o Estado, antes de proceder com uma eventual intervenção legislativa, se esforça em levar em consideração os interesses das várias partes em causa, as estimula e as pressiona para que negociem; ou seja, desempenha um papel ativo de mediação. No entanto, uma vez promulgada, a lei não passa a depender sistematicamente do beneplácito das partes em causa. A radical diversidade desse segundo tipo de contratualismo, em relação ao primeiro, emerge do texto do próprio Bobbio: o Estado é “o mediador e o garante das negociações” entre os diferentes sujeitos políticos e sociais. Então, o Estado, mais do que ser uma das partes contraentes, é o garante das superpartes das contratações entre os diversos sujeitos políticos e sociais. E não é só isso. Bobbio ainda escreve sobre as modalidades de funcionamento do “contrato” no nível político-parlamentar: “Um partido que não tem votos suficientes para levar seus representantes ao Parlamento é um partido que não é legitimado para tomar parte nas tratativas e no contrato social e, portanto, não tem poder contratual”[33]. O Estado não apenas é superpartes, mas define, em cada circunstância, também as partes autorizadas a participar da tratativa.

Deve-se acrescentar que não há nenhum tipo de polêmica com esse segundo tipo de contratualismo por parte de Hegel, o qual, aliás, exige que as várias corporações, associações e comunidades locais estejam diretamente presentes na Câmara baixa, de modo a expressar seus reais interesses e permitir que o aparato governamental e estatal proceda com uma mediação autêntica e eficaz (Rph., § 308*). Seria o alargamento da rede de tratativas e mediações a prova da inatualidade da polêmica anticontratualista de Hegel? Hoje, porém, o Estado democrático-parlamentar não é mais, não pode mais ser, o mero conjunto de vigias da propriedade privada teorizado pelo protoliberalismo, o simples “guarda noturno” dos bens dos proprietários denunciado pelo hegeliano Lassalle[34]. Esse contratualismo entrou em crise no momento em que, por meio de ásperas e complexas lutas, os não proprietários impuseram ao Estado toda uma série de outros deveres, com intervenções diretas no campo econômico-social, percebidas pelos proprietários como alargamento indevido da esfera de atividades do Estado para além das tarefas contratualmente definidas. É dessa nova situação que surge a exigência de um constante e difícil trabalho de mediação entre as partes sociais.

Do ponto de vista de Hegel, no entanto, é exatamente nesse trabalho de mediação que se dá a realização do universal. O Estado se constitui como comunidade ética na medida em que não se preocupa apenas com a segurança da propriedade, mas também, como veremos, com a garantia do sustento, do “bem-estar” dos indivíduos, do “direito ao trabalho” e até com o “direito à vida”, na medida em que reconhece cada cidadão como titular de direitos inalienáveis – logo, irrenunciáveis e fora da esfera do contrato. Com Hegel, os direitos inalienáveis tendem a assumir um conteúdo material. A condição do faminto é comparada à do escravo, e eis que se impõe uma intervenção pública que garanta de maneira concreta o direito inalienável à liberdade. Tal intervenção implica inevitavelmente uma restrição imposta ao mercado e à esfera do contrato. A cada intervenção com que o Estado proibiu ou regulamentou o emprego de crianças nas fábricas (intervenção explicitamente requerida por Hegel), reduziu o horário de trabalho etc., os setores mais retrógrados do capitalismo sempre responderam com altos gritos de protesto pela violação da liberdade de contrato: basta ler, nas páginas de O capital, a história das lutas que acompanharam a limitação, por lei, da jornada de trabalho a dez horas. No que diz respeito à Prússia de Hegel, ou aquela imediatamente posterior à sua morte, o patronato esbraveja contra “hegelianos” e “socialistas”, que, desprovidos do “espírito prático dos liberais”, eram culpados de pretender recorrer à intervenção “artificial” do Estado para limitar o emprego de mulheres e crianças nas fábricas e “organizar o trabalho”[35].”

[32] Alexis de Tocqueville, “De la démocratie en Amérique”, I (1835), em Œuvres complètes (org. Jacob-Peter Mayer, Paris, Gallimard, 1951 e seg.), p. 408.

[33] Norberto Bobbio, Il contratto sociale oggi, cit., p. 25 e 39-40.

*: Rph. III = Philosophie des Rechts. Die Vorlesung von 1819-1820 in einer Nachscrift, organizada por Dieter Henrich, Frankfurt, 1983.

[34] Ferdinand Lassalle, “Das Arbeitprogramm” (1862-1863), em Gesammelte Reden und Schriften (org. Eduard Bernstein, Berlim, P. Cassirer, 1919-1920), v. II, p. 195-6.

[35] Assim se expressa o grande capitalista e liberal renano David Hansemann, cujas palavras são reportadas por Jacques Droz, Le libéralisme rhénan (1815-1848) (Paris, Sorlot, 1940), p. 242-3.

 

 

“A liberdade formal é o momento do consenso subjetivo e, nesse sentido, não tem nenhum significado negativo em Hegel, ou melhor, constitui um momento essencial do mundo moderno, da liberdade moderna: “A liberdade formal é a elaboração e a realização das leis” (Ph. G., p. 927*). Na Inglaterra, “a liberdade formal, na discussão de todos os negócios de Estado, tem lugar em sumo grau”; não se trata de um juízo negativo, pois o que Hegel aprecia na Inglaterra é exatamente “o Parlamento aberto ao público, o hábito das reuniões públicas em todas as classes, a liberdade de imprensa”. Essas, no entanto, eram apenas as condições favoráveis para realizar “os princípios franceses da liberdade e da igualdade” (Ph. G., p. 934). A liberdade formal é a condição para a realização da liberdade “objetiva ou real”. Nesse âmbito estão inseridas a liberdade da propriedade e a liberdade da pessoa. Cessa, com isso, toda não liberdade do vínculo feudal, caem todas as normas derivadas desse direito, os dízimos, os impostos. “Da liberdade real fazem parte também a liberdade dos ofícios, isto é, o fato de ser concedido ao homem usar suas forças como quiser, e o livre acesso a todos os cargos estatais” (Ph. G., p. 927). Assim, liberdade formal e liberdade substancial não são em si termos contraditórios: A liberdade tem em si uma dupla determinação. Uma concerne ao conteúdo da liberdade, à sua objetividade, à própria coisa. A outra concerne à forma da liberdade, em que o sujeito se sabe ativo, porque a exigência da liberdade é que o sujeito se sinta nela satisfeito e assim assuma a própria tarefa, sendo seu interesse que a coisa se realize. (Ph. G., p. 926) A liberdade formal deveria ser o veículo da liberdade real. Quando isso se verifica, temos o livre querer da liberdade, isto é, a adesão e o consenso consciente em relação às instituições político-sociais que realizam a liberdade objetiva. No concreto de determinada situação histórico-política, porém, a liberdade formal pode entrar em colisão com a liberdade real. De fato, “os momentos da liberdade real […] não repousam sobre o sentimento, porque o sentimento deixa existir até a servidão da gleba e a escravidão, mas sobre o pensamento e sobre a autoconsciência que o homem tem da própria essência espiritual” (Ph. G., p. 927). A imprevisibilidade de sentimentos, hábitos e tradições pode fazer com que falte consenso para a liberdade real; a liberdade formal pode negar a liberdade real e se agarrar a instituições que sejam a negação da liberdade. Um exemplo particularmente ostensivo, do ponto de vista de Hegel, é a Polônia: as contínuas discussões da Dieta, com certeza, são um momento de liberdade formal, que, entretanto, nesse caso específico, é utilizada para perpetuar o poder extraordinário dos barões e a servidão da gleba, ou seja, para perpetuar a não liberdade. Colisão análoga, ainda que menos dura e de caráter mais limitado, verifica-se na Inglaterra. A liberdade formal não está em discussão; no entanto, a Idade Média e o feudalismo foram apenas parcialmente comprometidos: “No conjunto, a constituição inglesa permaneceu a mesma desde os tempos do domínio feudal e se funda quase exclusivamente sobre velhos privilégios”. Em teoria, a tradição liberal que carregava em seu passado poderia permitir que a Inglaterra realizasse de forma mais ágil do que outros países “liberdade e igualdade”, a liberdade real; mas, por uma série de razões históricas (orgulho nacionalista etc.), ocorreu o contrário, e não por acaso a Inglaterra dirigiu todas as coalisões contra os franceses (Ph. G., p. 934). E, como se não bastasse, a aristocracia que arrancou da Coroa a “liberdade formal” se serve dela para impedir reformas antifeudais incisivas, para criar obstáculos ou para bloquear o processo de realização da “liberdade objetiva”, isto é, do “direito racional” (Enc., § 544 A**).

Finalmente, pode-se verificar que momentos essenciais da liberdade real são impostos do alto, com uma série de reformas que ferem a tradição feudal e estabelecem liberdade da pessoa e liberdade da propriedade (esta última é, assim, libertada dos vínculos feudais), mas a esse desenvolvimento da liberdade real não corresponde, ou corresponde só parcialmente e com atraso, o desenvolvimento da liberdade formal. É essa a situação da Alemanha e, em particular, da Prússia, que foi se configurando a partir das reformas da era Stein-Hardenberg. Com tais reformas, a liberdade objetiva começa a penetrar (segundo Engels, o início da revolução burguesa na Prússia e na Alemanha tem início a partir delas)[55], mas a liberdade formal não caminha no mesmo passo: Frederico Guilherme III não mantém suas promessas de renovação constitucional, embora Hegel continue a esperar que a liberdade formal alcance o mesmo nível da liberdade substancial, mais uma vez com o processo de reforma pelo alto, mesmo que estimulado por baixo por uma restrita opinião pública de intelectuais e funcionários “iluminados” – e iluminados graças também à difusão da “filosofia”.

É interessante notar que a distinção entre liberdade formal e substancial está presente, de alguma forma, na própria tradição liberal, mas com significado diferente e contraposto àquele que acabamos de ver. Segundo Montesquieu,

em um Estado existem sempre pessoas ilustres de nascimento, riquezas e honras: se elas fossem confundidas com o povo e só tivessem uma voz, assim como os outros, a liberdade comum seria então sua escravidão, e elas não teriam interesse algum em defende-la, pois a maior parte das resoluções seria contrária a elas.[56]

Cabe observar que Montesquieu desenvolve essas considerações no capítulo dedicado à constituição da Inglaterra para ressaltar o papel positivamente exercido pela aristocracia nesse país. É justamente pelo peso do privilégio feudal que Hegel considera formal a liberdade inglesa que ignora a universalidade dos princípios e, em última análise, a igualdade. Para Tocqueville, ao contrário, é nivelamento igualitário que pode esvaziar a liberdade. Liberdade formal e liberdade substancial são por vezes definidas de maneira radicalmente antitética; contudo, é indubitável que essa distinção está presente em ambas as tradições de pensamento aqui confrontadas.”

*: Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte, organizada por Georg Lasson, Leipzig, 1930.

**: Enciclopedia delle scienze filosofiche in compendio.

56 Charle-Louis de Secondat de Montesquieu, De l’Esprit des lois, XI, 6.

 

 

“O individualismo por sua natureza não é revolucionário”. (Wilhelm von Humboldt)

 

 

“De tal maneira — nota o jovem hegeliano Karl Marx — os defeitos objetivos de uma instituição são imputados a indivíduos para, sem melhoramento essencial, insinuar a aparência de um melhoramento”[25]. O problema perde sua dimensão objetiva, a atenção é retirada da coisa para se concentrar na pessoa. “No exame da situação estatal somos facilmente tentados a negligenciar a natureza objetiva das relações e explicar tudo a partir da vontade das pessoas agentes”. No entanto, uma correta análise política exige que se identifiquem “relações”, Verhältnisse — o termo, como já vimos, remete diretamente a Hegel — “lá onde, à primeira vista, parecem agir apenas pessoas”[26].

Por comparar o rei a um pingo no “i”, por desvalorizar o indivíduo até de um nível mais alto, na pessoa do monarca, Hegel é considerado por Haym em irremediável contraposição à inspiração de fundo do liberalismo moderno. Mais uma vez, porém, vem à tona a inconsistência da alternativa liberal/conservador, pois Haym indica no individualismo a barreira mais eficaz não contra a conservação, mas contra a “revolução”. É verdade que, por um lado, o autor de Hegel e seu tempo denuncia o autor por ele investigado como um teórico do absolutismo, mas isso se encaixa no tópos liberal, já visto, que busca  assimilar sob a égide do absolutismo tudo o que não se encaixa na tradição liberal propriamente dita.

 

3. Instituições e questão social

É certo que o individualismo liberal não tem a configuração irredutivelmente intimista própria dos teóricos da reação. Ao menos em sua fase revolucionária, é obrigado a reivindicar leis e instituições que garantam objetivamente a liberdade do indivíduo; mas, com um dos olhos voltado para a miséria da massa, já tende a dissolver a questão social em um problema concernente, exclusivamente ou em primeiro lugar, ao indivíduo, a um problema que não chama tanto em causa a configuração objetiva das relações jurídicas e sociais, como a capacidade, as atitudes, bem como a disposição de ânimo do indivíduo aflito pela pobreza. E isso, para Hegel, é absurdo: “Todos os indivíduos, o coletivo é algo bem diferente dos indivíduos isolados” (Rph., III, p. 154). E dessa observação poderia se aproximar aquela feita algumas décadas mais tarde pelo jovem Engels, para quem o “socialismo” repousa “sobre o princípio da não imputabilidade dos indivíduos”[27], entenda-se, no plano político. A objetividade da questão social não pode emergir sem que a atenção se desloque do indivíduo para as instituições político-sociais.

Mais uma vez, pode ser útil uma comparação com a tradição liberal: partamos de um contemporâneo de Hegel. Para Von Humboldt, deve ser rechaçada com firmeza a visão de que o Estado deve se preocupar positivamente com o bem-estar dos cidadãos. Não, ele tem apenas a tarefa negativa de garantir a segurança e, portanto, a autonomia da esfera privada: “A felicidade a que o homem se destina não é senão aquela que lhe dá a sua força”, sua capacidade[28]. Contrariamente a tantas representações consolidadas, é essa visão liberal que — fazendo coincidir riqueza e mérito individual, atribuindo ao indivíduo a responsabilidade exclusiva de seu insucesso — desemboca na consagração ideológica do status quo, senão para as instituições políticas, pelo menos no que diz respeito às relações sociais e de propriedade. Justamente porque coloca em dúvida essa espécie de harmonia preestabelecida entre mérito e posição social do indivíduo, Hegel destaca as tarefas positivas da comunidade política para resolver ou atenuar o drama da miséria. Segundo a tradição do liberalismo político e econômico, o fim do direito e da vida em sociedade é “a tranquila segurança (Sicherheit) da pessoa e da propriedade; esse objetivo não é posto em discussão por Filosofia do direito, que, porém, dele aproxima, significativa e polemicamente, a garantia ou a “segurança (Sicherung) da subsistência e do bem-estar (Wohl) do indivíduo, isto é, do bem-estar (Wohl) particular” (Rph., 230). Aquela “felicidade” que, segundo Humboldt, remetia apenas à iniciativa e à responsabilidade do indivíduo agora, após ter conquistado uma configuração menos intimista e mais material e objetiva, depois de ter se tornado Wohl, “bem-estar” ligado não a um indefinível estado de ânimo, mas, em primeiro lugar, à “segurança da subsistência”, esse Wohl não só constitui uma “determinação essencial” (V. Rph., III, p. 689-90*) no plano da vida em sociedade, mas exige ser “tratado e realizado enquanto direito” (Rph., 230).

A miséria já se configura em Hegel como uma questão social, que não é explicável simplesmente por suposta preguiça ou por outras características do indivíduo reduzido à miséria. Nítida é a diferenciação em relação a Locke. Segundo este último, o indivíduo pode sempre se dirigir à natureza para assegurar a sobrevivência. De fato, por mais povoado que o mundo pareça”, há sempre terra pronta a dar frutos “em uma região interna ou despovoada da América” ou em outro lugar:

Ouvi dizer que, na Espanha, um homem pode arar, semear e colher despreocupado num terreno ao qual não tem outro direito senão aquele derivado do uso que dele faz. Aliás, os habitantes do lugar são gratos àqueles que, doando o trabalho em terras incultas e, por isso, desertas aumentaram a provisão de trigo de que necessitavam.[29]

Então, o indivíduo deve recriminar apenas a si mesmo pela eventual miséria. Hegel parece responder a Locke quando afirma que “a natureza é fecunda, mas limitada, muito limitada”, e que, no âmbito de uma sociedade desenvolvida, não existem mais terras sem dono e “não se lida mais com a natureza externa” (V. Rph., IV, p. 494). Se em Locke a miséria não chama em causa o ordenamento político-social, o contrário se dá em Hegel: não faz sentido reivindicar um direito em relação à natureza, mas “nas condições da sociedade, no momento que se depende dela e dos homens, a indigência adquire imediatamente a forma de injustiça cometida contra esta ou aquela classe”. Na sociedade civil desenvolvida, o homem não tem mais como referente a natureza, e a miséria não pode mais ser colocada na conta da natureza por meio da categoria de “desgraça” ou calamidade natural (V. Rph., IV, p. 609). Mais uma vez, fica evidente a superioridade ou, talvez, a maior modernidade de Hegel em relação à tradição liberal. Já falamos de Locke. Para Bentham, “a pobreza não é consequência do ordenamento social. Por que, então, recriminá-lo por ela? É uma herança do estado de natureza”[30]. Ao polemizar com o jusnaturalismo, Bentham ironiza o recurso à natureza para fundamentar direitos que fazem sentido apenas no âmbito da sociedade, mas agora a natureza desponta para apagar do âmbito do ordenamento social a responsabilidade pela miséria. E até Tocqueville denuncia como perigosa demagogia querer fazer a “multidão” acreditar que “as misérias humanas são obra das leis, não da providência”[31]. Aqui, providência é outro nome para natureza, serve para indicar uma esfera independente das instituições políticas e das relações sociais que, assim, proclamam a própria inocência.”

[25] Karl Marx, “Bemerkungen über die preuBische Zensurinstruktion” (1843), em MEW, v. I, p. 4.

[26] Idem, “Rechtfertigung des ** Korrespondenten von der Mosel” (1843), em MEW, v. 1, p. 177.

[27] Friedrich Engels, “Die Lage der arbeitenden Klasse in England” (1845), em MEW, v. II, p. 505 [ed. bras.: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, trad. B. A, Schumann, São Paulo, Boitempo, 2008, p. 328, com alterações para melhor adaptação à tradução oferecida por Domenico Losurdo]

[28] Wilhelm von Humboldt, “Ideen zu einem Versuch die Grãnzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen”, cit., p. 117.

[29] John Locke, Two Treatises of Civil Government, II, § 36.

V. Rph. = Vorlesungen über Rechtsphilosophie, organizada por Karl-Heinz Ilting, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1973-1974.

[30] Assim o discípulo e colaborador de Bentham, P. E. L. Arago, sintetizava fielmente o pensamento do mestre. Ver Jeremy Bentham, “Théorie des peines et des recompenses” (1811), em Œuvres de Jérémie Bentham (3. ed., org. Etienne Dumont, Bruxelas, Hauman, 1840), v. II, p. 201; ver Jeremy Bentham, “Principles of the Civil Code”, em The Works (org. John Bowring, Edimburgo, William Tait, 1838-1843), v. I, p. 309.

 

 

“A negação da questão social é ainda mais radical no jornalismo neoliberal de nossos dias, que, não por acaso, também em tal negociação, acaba unindo-se a Nietzsche. Hayek não se cansa de repetir que é absurdo falar de justiça ou injustiça “social” diante de um estado de coisas que não é “resultado da vontade consciente” de alguém, diante de um estado de coisas que, não sendo “deliberadamente produzido pelos homens, não tem nem inteligência nem virtude, tampouco justiça ou qualquer outro atributo dos valores humanos”[32]. Nietzsche, por sua vez, polemizando com aqueles que falam de “profundas injustiças” no ordenamento social, acusa-os de ter “imaginado responsabilidades e formas de vontade que não existem de modo algum. Não é lícito falar de injustiça em casos em que não estão presentes as condições preliminares para a justiça e a injustiça”[33]. Assim como em Nietzsche, o protesto social, longe de remeter a condições objetivas e a uma real “injustiça”, remete ao ressentiment, ao rancor que os falidos nutrem pelos melhores e mais afortunados, também para Hayek, o que alimenta a demanda por “justiça social” são “sentimentos” nada elevados, como “o desprezo por pessoas que estão melhor do que nós ou simplesmente a inveja” e “instintos de rapina”34. A objetividade da questão social dissolve-se, dessa forma, na responsabilidade individual e até na psicologia dos indivíduos que sofrem com a condição de miséria.

 

4. Trabalho e otium

Constant nega os direitos políticos aos não proprietários pelo fato de que eles são desprovidos do “lazer (loisir) indispensável para a aquisição da cultura e de um reto juízo”[35]. É nítida a continuidade em relação à tradição de pensamento conservadora e reacionária. O Schelling tardio remete a Aristóteles para se declarar de acordo com ele quanto ao fato de que não pode existir nenhum tipo de ordenamento que não implique, “desde o nascimento” distinção entre dominadores e dominados. Outro acordo se apresenta quanto ao fato de que “a primeira função do Estado é garantir o otium aos melhores”[36]. A demarcação entre dominadores e dominados coincide com a demarcação entre beneficiários do otium e aqueles que são obrigados a uma vida de esforços e dificuldades. Para Nietzsche, o otium é uma condição tão decisiva na aquisição da cultura e da existência de uma civilização em geral que ele não hesita em teorizar a escravidão para aqueles que devem se empenhar na produção material de bens. A linha de continuidade é clara. Constant deixa escapar uma excusatio não solicitada: os trabalhadores manuais obrigados a uma “eterna dependência” porque desprovidos de otium e obrigados a trabalhar noite e dia não são “escravos”, mas apenas “crianças”[37]. Burke não parece ter os mesmos escrúpulos: é natural que as atividades mais humildes sejam “servis”, e aquele que executa uma delas pode bem ser comparado a um instrumentum vocal[38] O whig ou liberal inglês não menciona o erudito romano Varrão[39], de quem cita a definição, mas Nietzsche conhecia muito bem a Antiguidade clássica para não saber que o instrumentum vocal não era senão o escravo.

Essa celebração do otium como pressuposto indispensável da liberdade é um motivo totalmente ausente em Hegel: não por acaso, um celebérrimo capítulo de Fenomenologia demonstra a superioridade cultural do trabalho dos escravos em relação ao otium de seus senhores. Também em relação ao operário moderno, o proprietário que tem a comodidade da riqueza e do otium não pode reivindicar nenhum título de superioridade. Riqueza e propriedade não são, de forma alguma, sinônimo de probidade cívica e de maturidade política, como na tradição liberal. Ao contrário, há um curso de filosofia do direito em que a dialética do escravo e do senhor, que conhecemos de Fenomenologia, parece ser aplicada às novas relações capitalistas: é o escravo antigo ou moderno que representa o momento do progresso e até da cultura substantiva (infra, cap. VII, 7).

Uma análoga celebração do trabalho estaria presente também na tradição liberal? Convém não confundir problemas bastante diferentes. Por trabalho podemos entender a relação homem-natureza, a progressiva ampliação do domínio do homem na natureza, e então é óbvio que essa temática se encontra bem presente em autores como Locke e Smith, que filosofam no país com desenvolvimento capitalista mais avançado, enquanto se delineia a Revolução Industrial. No entanto, quando no trabalho se ressalta a relação homem-homem, é óbvio que estamos na presença de dois comportamentos nitidamente diferentes. E apenas em Hegel que está presente a celebração da superioridade, tanto no plano produtivo quanto no cultural, do trabalho do escravo em comparação ao ócio estéril do senhor. Não, decerto, em Smith. O trabalhador assalariado, devido à obrigação e monotonia do trabalho, “em geral, tão estúpido e ignorante quanto possa ser uma criatura humana”, incapaz de tomar parte em qualquer conversa racional” e até de “conceber qualquer sentimento generoso”, é contraposto em Riqueza das nações àqueles que têm “muito tempo livre, durante o qual podem se aperfeiçoar em todo ramo de conhecimento, útil ou decorativo[40]. A tradição liberal é bem capaz de captar o aspecto alienante do trabalho assalariado, mas não o aspecto formativo e emancipador da atividade produtiva, que, porém, não escapa a Hegel (e a Marx). Uma confirmação evidente desse fato é oferecida por Locke, que, apesar de exibir uma situação real, dá uma descrição em tom quase animalesco dos trabalhadores manuais e dos assalariados, que “vivem geralmente da mão à boca (from hand to mouth) e, de toda forma, obrigados a lutar pela “mera subsistência”, não têm “[...] nunca o tempo e a oportunidade de elevar seus pensamentos acima dela”[41]. Também nesse caso, o otium é o pressuposto da cultura e até de uma existência realmente humana. Não é capaz de vida propriamente intelectual “a maior parte da humanidade, que se dedica ao trabalho e se torna escrava das exigências de sua condição medíocre e cuja vida se consome apenas no suprimento das próprias necessidades”. Esses homens são todos “absorvidos pelo esforço de acalmar as queixas de seu estômago ou os gritos de seus filhos. Não se pode esperar que um homem que se esforça por toda a vida num trabalho pesado saiba da variedade das coisas que existem no mundo, assim como não se pode esperar que um cavalo de carga, levado da casa ao mercado e vice-versa, por trilha estreita e estrada suja, seja conhecedor da geografia do lugar”. Tudo isso não só é um dado de fato, como é um dado de fato imodificável: “Por isso grande parte dos homens, devido ao natural e inalterável estado de coisas neste mundo e à constituição das questões humanas, é inevitavelmente abandonada à ignorância invencível das provas sobre as quais outros constroem e que são necessárias para fundamentar suas opiniões”. Locke não hesita em afirmar que “existe entre alguns homens distância maior do que entre alguns homens e alguns animais”. É verdade que se trata de um tópos clássico presente também em Montaigne, mas é significativo que Locke, para explicitar essa enorme distância que existe entre homem e homem, dê o exemplo, por um lado, do “palácio de Westminster” e da “Bolsa” e, por outro, dos “asilos de mendicância” (além do “manicômio”)[42]. Não se trata, em Locke, de uma ideia isolada, mas de um motivo recorrente: “A diferença é grandíssima entre alguns homens e alguns animais; mas, se compararmos o intelecto e as habilidades de alguns homens e alguns bichos, encontraremos uma diferença tão pequena que será difícil dizer que as habilidades do homem são mais claras e mais extensas.”[43]”

[32] Friedrich August von Hayek, Law, Legislation and Liberty (1982; as três partes que compõem a obra são respectivamente de 1973, 1976 e 1979); ed. it.: Legge, legislazione e libertà (trad. Pier Giuseppe Monateri, Milão, II Saggiatore, 1986), p. 271 e 509.

[33] Friedrich Nietzsche, “Nachgelassene Fragmente 1887-1889”, em Sämtliche Werke, Kritische Studienausgabe (org. Giorgio Colli e Mazzino Montinari, Munique, Deutscher Taschenbuch, 1980) (+KSA), v. XIII, p. 73-4.

[34] Friedrich August von Hayek, Law, Legislation and Liberty, cit.; ed. it., p. 304.

[35] Benjamin Constant, “Principes de politique” (1815), em Œuvres (org. Alfred Roulin, Paris, Gallimard, 1957), p. 1.147.

[36] Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, “Philosophie der Mythologie”, v.I, em Sämtliche Werke (Sttutgart/Augsburgo, Cotta, 1856-1861), p. 530 e nota.

[37] Benjamin Constant, “Principes de politique”, cit., p. 1.146.

[38] Edmund Burke, “Reflections on the Revolution in France”, cit., p. 105; idem, “Thoughts and Details on Scarcity” (1795), em The Works of the Right Honourable Ednumd Burke, cit., v. MI, p. 383.

[39] Marco Terêncio Varrão, De re rustica, I, 17.

[40] Adam Smith, An Inquiry into the Nature and the Causes of the Wealth of Nations (1775-1776; 3. ed., 1783), Livro I, cap. I, parte III, art. II, p. 782 e 784 (citamos as obras de Smith a partir da reimpressão, Indianápolis, Liberty Fund, 1981, ed. Glasgow: v. I).

[41] John Locke, “Some Considerations of the Consequences of Lowering the Interest and Raising the Value of Money?’ (1691), em The Works (Londres, Thomas Tegg, 1823; ed. Fac-similar: Aalen, 1963), v. V, p. 23-4 e 71.

[42] Idem, An Essay Concerning Human Understanding (1689), IV, XX, 2, e IV, XX, 5. Quanto a Montaigne, cf. Essais (1580), I, 42. Quem, ao contrário, aproxima, sobre o tema do trabalho, Locke e Hegel, é Norberto Bobbio — Studi hegeliani (Turim, Einaudi, 1981) p. 181-2 , que, em tal caso, desiste da tese a ele cara da heterogeneidade entre Hegel e a tradição liberal. Mais uma vez, a tese de Bobbio é também a de Karl-Heinz Ilting, “The Structure of Hegel’s Philosophy of Right”, em Walter Kaufmann (org.), Hegel’s Political Philosophy (Nova York, Atherton, 1970), p. 107, nota 45.

[43] John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, IV, XM, 12.

sábado, 5 de setembro de 2020

Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético (Parte III), de Slavoj Žižek

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-316-5
Tradução: Rogério Bettoni
Link para compra: Clique aqui
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 656
Sinopse: Ver Parte I

“Como devemos esclarecer essa esquiva diferença entre Hegel e Freud? Mladen Dolar propôs interpretar “Hegel é Freud” como o maior juízo filosófico indefinido, posto que Hegel e Freud só podem aparecer como absolutos opostos: Saber Absoluto (a unidade entre o sujeito e o Absoluto) versus inconsciente (o sujeito que não é mestre na própria morada); conhecimento excessivo versus falta de conhecimento. A primeira complicação nessa oposição simples é que, para Freud e Lacan, o inconsciente não é apenas um campo instintual cego, mas também um tipo de conhecimento, um conhecimento inconsciente, um conhecimento que não conhece a si mesmo (“não sabidos sabidos”, nos termos da epistemologia de Rumsfeld) – e se o Saber Absoluto deve ser localizado na própria tensão entre o conhecimento ciente de si e o conhecimento não sabido? E se a “absolutidade” do saber refere-se não ao nosso acesso ao divino Absoluto-em-si, ou a uma autorreflexão total pela qual teríamos pleno acesso ao nosso “saber não sabido” e assim atingiríamos a autotransparência subjetiva, mas sim a uma sobreposição muito mais modesta (e ainda mais difícil de pensar) entre a falta do nosso conhecimento “consciente” e a falta inscrita no próprio cerne do nosso conhecimento não sabido? É nesse nível que devemos situar o paralelo entre Hegel e Freud: se Hegel descobre a desrazão (contradição, a dança louca dos opostos que abala qualquer ordem racional) no cerne da razão, Freud descobre a razão no cerne da desrazão (em atos falhos, sonhos, loucura). Eles compartilham a lógica da retroatividade: em Hegel, o Um é um efeito retroativo de sua perda, é o próprio retorno ao Um que o constitui; e, em Freud, a repressão e o retorno do reprimido são coincidentes, o reprimido é o efeito retroativo do seu retorno.”


“No domínio da ideologia, o objeto fantasmático primordial, a mãe de todos os objetos ideológicos, é o objeto do antissemitismo, o chamado “judeu conceitual”: por trás do caos do mercado, da degradação dos costumes etc., está a conspiração judaica. Segundo Freud, a atitude do homem para com a castração envolve uma clivagem paradoxal: sei que a castração não é uma ameaça efetiva, que não ocorrerá de fato e, no entanto, sou assombrado por sua perspectiva. O mesmo vale para a figura do “judeu conceitual”: ele não existe (como parte de nossa experiência da realidade social), mas, por essa razão, eu o temo ainda mais – em suma, a própria não existência do judeu na realidade funciona como o principal argumento para o antissemitismo. Isso equivale a dizer que o discurso antissemita constrói a figura do judeu como um ente semelhante a um fantasma, que não pode ser encontrado em lugar nenhum da realidade, e depois usa essa mesma lacuna entre o “judeu conceitual” e os judeus de fato existentes como o argumento definitivo para o antissemitismo. Desse modo, somos aprisionados em uma espécie de círculo vicioso: quanto mais normais as coisas parecem, mais suspeitas despertam e mais apavorados ficamos. Nesse sentido, o judeu é como o falo materno: ele não existe na realidade, mas, por essa razão, sua presença fantasmática e espectral dá origem a uma angústia insuperável. Nisso consiste também a definição mais sucinta do Real lacaniano: quanto mais meu raciocínio (simbólico) me diz que X não é possível, mais seu espectro me assombra – como aquele corajoso inglês que não só não acreditava em fantasmas, como também não tinha medo deles.”


“Heidegger gostava de citar um verso de Stefan George: Kein Ding sei wo das Wort gebricht – nenhuma Coisa existe onde se rompe a palavra. Quando falamos da Coisa, esse verso deve ser invertido: Ein Ding gibt es nur wo das Wort gebricht – uma Coisa existe apenas onde se rompe a palavra. A ideia de que as palavras representam coisas ausentes é rechaçada: a Coisa é uma presença que surge onde as palavras (representações simbólicas) falham, é uma coisa que representa a palavra ausente. Nesse sentido, um objeto sublime é “um objeto elevado à dignidade da Coisa”: o vazio da Coisa não é um vazio na realidade, mas, em primeiro lugar, um vazio no simbólico, e o objeto sublime é um objeto no lugar da palavra falhada60. Essa talvez seja a definição mais sucinta de aura: ela envolve um objeto quando ocupa um vazio (buraco) dentro da ordem simbólica. Isso indica que o domínio do simbólico é não-Todo – é tolhido a partir de dentro61.
Repetindo, o que é presença? Imaginemos a conversa de um grupo em que todos sabem que um deles tem câncer e sabem que todos do grupo sabem disso; eles conversam sobre tudo, os livros que leram, os filmes que viram, seus contratempos profissionais, política... tudo para evitar o assunto do câncer. Em uma situação como essa, podemos dizer que o câncer está totalmente presente, uma presença pesada que lança sua sombra sobre tudo o que as pessoas dizem, e que só vai piorando à medida que se tenta evitá-la.
Então, e se a verdadeira linha de separação não for a que separa a presença e a representação simbólica, mas a que cruza essa divisão, cindindo a partir de dentro cada um dos dois momentos? O “estruturalismo” tem o crédito eterno de ter “desermeneutizado” o próprio campo do simbólico, de ter tratado a tessitura significante como independente do universo da experiência do significado; e a maior realização das elaborações do último Lacan a respeito do Real é ter revelado uma “presença” intrusiva traumática que provoca estragos em cada experiência aurática significativa da Presença. Lembramos aqui A náusea, de Sartre, uma das paradigmáticas abordagens literárias do Real: é muito difícil, contraintuitivo, subsumir o lodo repugnante do Real inerte sob a categoria da “aura”. A aura não é precisamente uma “domesticação” do Real, uma tela que nos protege de seu impacto traumático? O tema de uma presença “deste lado da hermenêutica” é central para Lacan, para quem a psicanálise não é hermenêutica, especialmente não uma forma profunda. A psicanálise lida com o sujeito contemporâneo ao advento do Real moderno, que surge quando o significado é evacuado da realidade: não só o real científico acessível nas fórmulas matemáticas, mas também, de Schelling a Sartre, o abismo proto-ontológico da inércia do “mero real” desprovido de qualquer significado. Para Lacan, portanto, não há necessidade de uma hermenêutica psicanalítica – a religião cumpre essa função perfeitamente bem.”


“Heidegger gostava de citar um verso de Stefan George: Kein Ding sei wo das Wort gebricht – nenhuma Coisa existe onde se rompe a palavra. Quando falamos da Coisa, esse verso deve ser invertido: Ein Ding gibt es nur wo das Wort gebricht – uma Coisa existe apenas onde se rompe a palavra. A ideia de que as palavras representam coisas ausentes é rechaçada: a Coisa é uma presença que surge onde as palavras (representações simbólicas) falham, é uma coisa que representa a palavra ausente. Nesse sentido, um objeto sublime é “um objeto elevado à dignidade da Coisa”: o vazio da Coisa não é um vazio na realidade, mas, em primeiro lugar, um vazio no simbólico, e o objeto sublime é um objeto no lugar da palavra falhada60. Essa talvez seja a definição mais sucinta de aura: ela envolve um objeto quando ocupa um vazio (buraco) dentro da ordem simbólica. Isso indica que o domínio do simbólico é não-Todo – é tolhido a partir de dentro61.
Repetindo, o que é presença? Imaginemos a conversa de um grupo em que todos sabem que um deles tem câncer e sabem que todos do grupo sabem disso; eles conversam sobre tudo, os livros que leram, os filmes que viram, seus contratempos profissionais, política... tudo para evitar o assunto do câncer. Em uma situação como essa, podemos dizer que o câncer está totalmente presente, uma presença pesada que lança sua sombra sobre tudo o que as pessoas dizem, e que só vai piorando à medida que se tenta evitá-la.
Então, e se a verdadeira linha de separação não for a que separa a presença e a representação simbólica, mas a que cruza essa divisão, cindindo a partir de dentro cada um dos dois momentos? O “estruturalismo” tem o crédito eterno de ter “desermeneutizado” o próprio campo do simbólico, de ter tratado a tessitura significante como independente do universo da experiência do significado; e a maior realização das elaborações do último Lacan a respeito do Real é ter revelado uma “presença” intrusiva traumática que provoca estragos em cada experiência aurática significativa da Presença. Lembramos aqui A náusea, de Sartre, uma das paradigmáticas abordagens literárias do Real: é muito difícil, contraintuitivo, subsumir o lodo repugnante do Real inerte sob a categoria da “aura”. A aura não é precisamente uma “domesticação” do Real, uma tela que nos protege de seu impacto traumático? O tema de uma presença “deste lado da hermenêutica” é central para Lacan, para quem a psicanálise não é hermenêutica, especialmente não uma forma profunda. A psicanálise lida com o sujeito contemporâneo ao advento do Real moderno, que surge quando o significado é evacuado da realidade: não só o real científico acessível nas fórmulas matemáticas, mas também, de Schelling a Sartre, o abismo proto-ontológico da inércia do “mero real” desprovido de qualquer significado. Para Lacan, portanto, não há necessidade de uma hermenêutica psicanalítica – a religião cumpre essa função perfeitamente bem.”

60 Pippin observou o contraste entre o sublime kantiano e o sublime religioso: enquanto este visa provocar um assombro humilhante (não sou ninguém diante do poder divino infinito e inconcebível), na visão “herética” de Kant, a experiência do sublime é um processo de duas etapas que culmina na asserção da “supremacia absoluta do homem sobre toda a natureza em virtude de sua vocação moral e sua independência de qualquer condição ou poder” (Robert Pippin, The Persistence of Subjectivity, cit., p. 294).

61 Essa falta ou imperfeição do (grande) Outro é expressa de maneira maravilhosamente simples em uma piada sobre dois amigos que tentam acertar uma lata com uma bola. Depois de acertá-la várias vezes, um deles diz: “Mas que diabo, errei!”. O amigo, um religioso fanático, reclama: “Como se atreve a falar assim, que blasfêmia! Tomara que Deus puna você, acertando-o com um raio!”. Algum tempo depois, o raio realmente cai, mas acerta o religioso, que, gravemente ferido e quase morrendo, olha para o céu e pergunta: “Mas por que acertaste a mim, meu Deus, e não o verdadeiro culpado?”. Uma voz grave ressoa do céu: “Mas que diabo, errei!”.


“Essa estrutura do campo escópico em oposição ao campo da visão, essa experiência de que “quando olho para o mundo, sempre sinto que, de algum modo, as coisas olham de volta para mim” – em oposição ao puro sujeito cartesiano que percebe o mundo ao longo de linhas geométricas claras – fornece o dispositif mínimo subjacente da religião. “Deus” é, em sua forma mais elementar, esse olhar do Outro devolvido pelos objetos, um olhar imaginado certamente (procuramos em vão por ele na realidade), mas não menos real. Esse olhar existe apenas para o sujeito que deseja, como objeto-causa de seu desejo, e não na realidade (exceto para o psicótico). No amor apaixonado, há momentos em que a pessoa amada sente que o amante vê nela alguma coisa de que ela mesma não tem consciência – é somente através do olhar do amante que ela toma consciência dessa dimensão que existe nela. O que a pessoa amada sente nesses momentos é “o que há nela mais que ela mesma”, o je ne sais quoi que causa o desejo do amante por ela e existe somente para o olhar do amante, que, de certa forma, é o correspondente objetal do desejo, a inscrição do desejo em seu objeto. O que o amante vê é a parte perdida de si mesmo contida no outro (envolvida por ele). Como tal, o objeto-olhar não pode ser reduzido a um efeito da ordem simbólica (o grande Outro): “o olhar permanece do lado do Outro, mesmo se o Outro não existe”69.”
69 Jacques-Alain Miller, “As prisões do gozo”, cit., p. 25.


“Difícil não mencionarmos aqui outro incidente envolvendo café no cinema popular, dessa vez um drama inglês de classe média chamado Um toque de esperança. O protagonista acompanha uma linda jovem até em casa; quando os dois chegam à entrada do apartamento, ela pergunta se ele gostaria de entrar e tomar um café. Ele diz: “Só tem um problema: eu não tomo café”, ao que ela responde com um sorriso: “Não tem problema, eu também não tenho café...”. A força erótica da resposta está no modo como – mais uma vez por uma dupla negação – ela faz uma proposta sexual embaraçosamente direta, sem nem sequer mencionar o sexo: quando convida o rapaz para um café e admite que não tem café, ela não desfaz o convite, mas deixa claro que o convite para um café era um substituto ou pretexto, indiferente em si mesmo, para o convite sexual. Nessa mesma linha, podemos imaginar um diálogo entre os Estados Unidos e a Europa no fim de 2002, quando a invasão do Iraque estava sendo preparada. Os Estados Unidos dizem para a Europa: “Vocês gostariam de se juntar a nós no ataque ao Iraque para encontrar a arma de destruição em massa (ADM)?”; a Europa responde: “Nós não temos equipamento para procurar a ADM!”, ao que Rumsfeld replica: “Não tem problema, não existem nenhuma ADM no Iraque”. A fórmula geral das intervenções humanitárias não é algo parecido? “Vamos intervir no país X, levando ajuda humanitária e alívio para o sofrimento que impera lá!” “Mas nossa intervenção só vai causar mais sofrimento e morte!” “Não tem problema, assim teremos razões para intervir ainda mais”.”


“A noção-padrão de amor na psicanálise é reducionista: não existe amor puro, o amor é apenas luxúria sexual “sublimada”. Até seus últimos ensinamentos, Lacan também insistiu no caráter narcisista do amor: quando amo o Outro, amo a mim no Outro; ainda que o Outro seja mais do que eu mesmo, ainda que eu esteja pronto a me sacrificar pelo Outro, o que amo no Outro é meu Eu idealizado aperfeiçoado, meu Bem Supremo – mas ainda assim meu Bem. A surpresa aqui é que Lacan inverte a oposição usual de amor versus desejo como luxúria ética versus patológica: ele localiza a dimensão ética não no amor, mas no desejo – a ética, para ele, é a ética do desejo, da fidelidade ao desejo, do não compromisso com o nosso desejo54.
Além disso, o último Lacan reafirma surpreendentemente a possibilidade de outro amor do Outro, autêntico ou puro, o amor do Outro como tal, e não meu outro imaginário. Ele se refere à teologia medieval e do início da Era Moderna (Fénélon), que distinguia o amor “físico” do amor “extático” puro. No primeiro (desenvolvido por Aristóteles e Aquino), só podemos amar o outro se for o meu bem, por isso amamos a Deus como nosso Bem supremo. No segundo, o sujeito que ama realiza uma autoanulação total, uma dedicação total ao Outro em sua alteridade, sem retorno, sem benefício, cujo caso exemplar é a autoanulação mística. Aqui Lacan se envolve em uma especulação teológica extrema, imaginando uma situação impossível: “o auge do amor a Deus teria sido dizer-lhe ‘se essa é a tua vontade, condena-me’, ou seja, o exato oposto da aspiração ao bem supremo”55. Mesmo que não haja misericórdia de Deus, mesmo que Deus me condene completamente ao sofrimento exterior, meu amor por Ele é tão grande que eu continuo a amá-lo plenamente. Isso é amor, se amar é ter le moindre sens [o mínimo sentido]. François Balmès faz aqui a pergunta adequada: onde está Deus nisso tudo, por que teologia? Como ele mesmo observa com perspicácia56, o amor puro deve ser distinguido do desejo puro: este implica o assassinato de seu objeto, é um desejo purificado de todos os objetos patológicos, como desejo pelo vazio ou falta em si, ao passo que o amor puro precisa de um Outro radical para se referir a ele. É por isso que o Outro radical (como um dos nomes do divino) é correlato necessário do amor puro.”
54 Na hermenêutica da suspeita do amor, Lacan vai muito além de uma denúncia ordinária da vantagem secreta no amor altruísta – mesmo que meu sacrifício pelo Outro seja puro, trata-se de um sacrifício destinado a evitar ou impedir a castração do Outro, a falta no Outro. Aqui, o exemplo surpreendente é o julgamento-espetáculo stalinista, no qual se espera que o acusado confesse sua culpa para salvar a pureza do partido.
55 Jacques Lacan, Lacan in Italia, 1953-1978 (Milão, La Salamandra, 1978), p. 98.
56 François Balmès, Dieu, le sexe et la vérité, cit., p. 186-7.


“O conceito de Estado nomeia certo problema: como conter o antagonismo de classes de uma sociedade? Todas as formas particulares de Estado são outras tantas tentativas (fracassadas) de encontrar uma solução para esse problema.”


“Em Sr. e Sra. Smith, Brad Pitt e Angelina Jolie representam um casal entediado que busca aconselhamento com um terapeuta; um não conhece a identidade do outro, e os dois trabalham (para agências diferentes) como assassinos profissionais (a trama deslancha, é claro, quando são encarregados de matar um ao outro). Temos aqui um dilema interpretativo: Pitt e Jolie são um casal comum e sonham (fantasiam) ser contratados como assassinos profissionais para animar o casamento ou, ao contrário, são assassinos profissionais que fantasiam ter uma vida comum de casal? (Aqui há uma ligação com o filme de Hitchcock de mesmo títulog: ambos são “comédias de recasamentos”.) Quando Karl Kraus soube que Trotsky, que ele conhecera em Viena antes da Primeira Guerra Mundial, salvara a Revolução de Outubro organizando o Exército Vermelho, ele retrucou: “Quem do Café Central esperaria isso de Herr Bronstein!”. Temos mais uma vez aqui o mesmo dilema: era Trotsky, o grande revolucionário, que tinha de frequentar o Café Central em Viena como parte de seu trabalho clandestino ou era o gentil e loquaz Herr Bronstein do Café Central que, posteriormente, tornou-se o grande revolucionário? As duas situações são variações da famosa história de Chuang-Tzu sobre se era Chuang-Tzu que sonhava ser uma borboleta ou se era uma borboleta que sonhava ser Chuang-Tzu. Os ideólogos de múltiplas identidades cambiáveis gostam de citar essa passagem, mas, via de regra, param de repente e deixam de fora um insight fundamental: “No entanto, deve haver alguma diferença entre Chuang-Tzu e uma borboleta!”. Essa lacuna é o lugar do Real: o Real não é a “verdadeira realidade” para a qual estamos despertos (se estivermos), mas a própria lacuna que separa um sonho de outro.
Sob uma análise mais profunda, no entanto, percebemos imediatamente que é preciso dar mais um passo, pois a relação entre os dois opostos não é simétrica. É verdade que a “burguesia” nomeia a classe que impede o proletariado de realizar-se plenamente, mas não é verdade que o proletariado impede a burguesia de realizar-se plenamente. É verdade que o sujeito masculino impede o sujeito feminino de realizar-se plenamente, mas o inverso não é verdadeiro. Isso quer dizer que cada sexo não é simplesmente Um-em-si e Outro-do-Outro: a relação entre Um e Outro não é puramente formal e, como tal, aplicada a cada um dos dois sexos, mas reflete-se na própria qualidade dos dois sexos – o sexo masculino é “em si” Um, e o feminino “em si” (isto é, não pelo seu Outro, mas com respeito a si) é “o outro sexo” (como afirma Simone de Beauvoir). Portanto, há apenas um sexo que é si mesmo, o Um, e o outro sexo não é outro Um e muito menos um tipo de Alteridade substancial oniabrangente que todos habitamos (como a Mãe primordial). O mesmo vale para a luta de classes: não temos apenas duas classes; como diz o próprio Marx, há apenas uma classe “como tal”, a burguesia; as classes anteriores à burguesia (senhores feudais, clero etc.) ainda não são classes no sentido pleno do termo, sua identidade de classes é encoberta por outras determinações hierárquicas (castas, estamentos...); depois da burguesia, há o proletariado, que é uma não classe disfarçada de classe e, como tal, o Outro não só para a burguesia, mas também para si mesma.”
g No Brasil, o filme foi lançado com o título Um casal do barulho. (N. T.)


“Essa matriz lacaniana da “negação da negação” é claramente identificada na noção de Leo Strauss acerca da necessidade do filósofo de empregar “mentiras nobres”, recorrer ao mito ou a narrativas ad captum vulgi. O problema é que Strauss não extrai todas as consequências da ambiguidade dessa posição, porque está dividido entre a ideia de que filósofos sábios conhecem a verdade, mas julgam que é inapropriada para as pessoas comuns, que não podem atestá-la (isso arruinaria os próprios fundamentos da moralidade, que precisa da “mentira nobre” de um Deus pessoal que pune os pecados e recompensa as boas ações), e a ideia de que o núcleo da verdade é inacessível ao pensamento conceitual como tal, por isso os próprios filósofos têm de recorrer aos mitos e outras formas de fabulação para preencher as lacunas estruturais em seu conhecimento. É óbvio que Strauss tem consciência da ambiguidade da condição do segredo: o segredo não é apenas o que o professor sabe, mas recusa-se a divulgar aos não iniciados; o segredo também é segredo para o próprio professor, algo que ele não pode compreender e articular totalmente em termos conceituais. Consequentemente, o filósofo usa o discurso parabólico e enigmático por duas razões: para esconder o verdadeiro núcleo de seu ensinamento das pessoas comuns, que não estão prontas para ele, e porque o uso desse discurso é a única maneira de descrever as ideias filosóficas mais elevadas74.”
74 Leo Strauss, Persecution and the Art of Writing (Chicago, University of Chicago Press, 1988), p. 57.


“Desse modo, podemos expressar a relação entre teoria e prática como um quadrado das fórmulas de sexuação: do lado esquerdo (masculino), todos os casos são subsumidos a um conceito universal da teoria clínica/existe pelo menos um caso que não é subsumido a nenhum conceito universal; do lado direito (feminino), não há caso nenhum que é subsumido a um conceito universal/não-Todos casos são subsumidos a um conceito universal. Aqui, o lado feminino (não há nada fora da teoria, a inconsistência é imanente à teoria, um efeito de seu caráter não-Todo) é a “verdade” do lado masculino (a teoria é universal, mas solapada pelas exceções factuais).
A negação da negação lacaniana também nos permite entender por que a lógica da suspensão carnavalesca é limitada às sociedades hierárquicas tradicionais: hoje, dado o desenvolvimento total do capitalismo, é a vida “normal” que de certo modo é carnavalizada, com sua constante autorrevolução, suas reversões, crises e reinvenções. Como então devemos revolucionar uma ordem cujo princípio é o da constante autorrevolução? Esse é o problema da negação da negação: como negar o capitalismo sem retornar a uma forma de estabilidade pré-moderna (ou, pior ainda, a algum tipo de “síntese” entre mudança e estabilidade, um capitalismo estável e orgânico conhecido como fascismo...). Aqui, mais uma vez, o não não-capitalismo não é uma ordem pré-moderna (ou qualquer combinação entre modernidade e tradição, essa eterna tentação fascista que hoje está ressurgindo na forma do confuciano “capitalismo de valores asiáticos”), mas também não é a superação do capitalismo da forma como Marx o concebia, o que envolvia certa versão da Aufhebung hegeliana, uma versão do jogar fora a água suja (exploração capitalista) e manter o bebê saudável (produtividade humana livre). Nisso reside a má compreensão propriamente utópica da Aufhebung: distinguir no fenômeno tanto seu núcleo saudável quanto as desafortunadas condições particulares que impedem a plena efetivação desse núcleo, e depois se livrar dessas condições, permitindo que o núcleo efetive plenamente seu potencial. O capitalismo, portanto, é aufgehoben, suprassumido, no comunismo: negado, porém mantido, posto que seu núcleo essencial é elevado a um nível superior. Essa abordagem nos cega para o fato de que o obstáculo ao pleno desenvolvimento da essência é ao mesmo tempo sua condição de possibilidade, tanto que, quando removemos o falso invólucro das condições particulares, perdemos o núcleo em si. Aqui, mais que em qualquer outro lugar, a verdadeira tarefa não é jogar fora a água suja e guardar o bebê, mas jogar fora o bebê supostamente saudável (e a água suja desaparecerá por – cuidará de – si).
Recordamos aqui o paradoxo da noção de reflexividade como “o movimento que foi usado para gerar um sistema torna-se, por meio de uma mudança na perspectiva, parte do sistema que ele gera”82. Via de regra, essa aparência reflexiva do movimento gerador dentro do sistema gerado, na qualidade do que Hegel chamou de “determinação opositiva”, toma a forma de seu oposto: na esfera material, o Espírito aparece na forma do momento mais inerte (crânio, como em “o Espírito é um osso”, a pedra negra disforme em Meca); no último estágio de um processo revolucionário em que a Revolução começa a devorar seus próprios filhos, os agentes políticos que efetivamente puseram o processo em movimento são relegados ao papel de principal obstáculo, indecisos ou traidores absolutos, que não estão prontos para seguir a lógica revolucionária até o fim. Nessa mesma linha, uma vez que a ordem sociossimbólica está plenamente estabelecida, a própria dimensão que introduziu a atitude “transcendente” que define um ser humano, isto é, a sexualidade, a paixão sexual “não morta”, unicamente humana, aparece como seu próprio oposto, como o principal obstáculo à elevação de um ser humano à pura espiritualidade, como aquilo que o prende à inércia da existência corporal. Por essa razão, o fim da sexualidade representado pelo tão falado ente “pós-humano”, que é capaz de se clonar e deve surgir em breve, longe de abrir caminho para uma espiritualidade pura, sinalizará o fim daquilo que é definido tradicionalmente como a capacidade exclusivamente humana de transcendência espiritual. Apesar de toda a comemoração das novas e “melhoradas” possibilidades para a vida sexual oferecidas pela Realidade Virtual, nada pode esconder o fato de que, uma vez que a clonagem tiver suplementado a diferença sexual, o jogo acabará de fato83.”
82 N. Katherine Hayles, How We Became Post-Human (Chicago, Chicago University Press, 1999), p. 8.
83 A propósito, com toda a atenção voltada para as novas experiências de prazer que vêm por aí com o desenvolvimento da realidade virtual, os implantes neurais etc., o que dizer das novas e “melhoradas” possibilidades de tortura? A biogenética e a realidade virtual, combinadas, não abriram um horizonte novo e sem precedentes para ampliar nossa capacidade de suportar a dor (ampliando nossa capacidade sensorial de aguentar a dor, inventando novas formas de infligi-la)? Talvez a figura sadiana definitiva da vítima de tortura “não morta”, que pode suportar uma dor infinita, sem apelar para a morte como fuga, também possa se tornar realidade? Talvez, em uma ou duas décadas, os casos mais tenebrosos de tortura (por exemplo, o que fizeram com o chefe do estado-maior do Exército dominicano depois do golpe fracassado, em que o ditador Trujillo foi morto – costuraram seus olhos para que não pudesse ver os torturadores e, durante quatro meses, cortaram partes de seu corpo da maneira mais dolorosa possível, como a remoção da genitália com uma tesoura) parecerão as mais ingênuas brincadeiras de criança.


Vejamos a última frase da descrição do filme Super 8 na Wikipédia: “O filme termina com uma nave espacial decolando rumo ao planeta da criatura, enquanto Joe e Alice se dão as mãos”. O par é formado quando a Coisa, que servia como obstáculo ambíguo, desaparece – ambíguo porque, não obstante, era necessário para unir o casal. É isso que significa “na prática” il n’y a pas de rapport sexuel: a relação direta é impossível, um terceiro objeto que serve como obstáculo é necessário para estabelecer uma ligação. Melancolia, de Lars von Trier, mostra uma interessante reversão dessa fórmula clássica de um objeto-Coisa (asteroide, alienígenas) que serve como o obstáculo que possibilita a produção do par: no fim do filme, a Coisa (um planeta em rota de colisão com a Terra) não se afasta, mas atinge a Terra e destrói toda a vida; o filme trata das diferentes maneiras como os protagonistas lidam com a catástrofe iminente (do suicídio à aceitação cínica).
Isso também nos permite abordar de uma nova maneira o conceito de Badiou do “ponto” como ponto de decisão, como o momento em que a complexidade de uma situação é “filtrada” por uma disposição binária e depois reduzida a uma simples escolha: consideradas todas as coisas, somos pró ou contra? (Devemos atacar ou recuar? Apoiar a proclamação ou nos opor a ela?) Com respeito ao Terceiro momento enquanto subtração do Dois da hegemonia política, não devemos nos esquecer de que uma operação básica da ideologia hegemônica é impor um ponto falso, impor sobre nós uma falsa escolha – como na atual “guerra ao terror”, em que todos que tentam chamar a atenção para a complexidade e a ambiguidade da situação são interrompidos, mais cedo ou mais tarde, por uma voz impaciente que diz: “Tudo bem, chega de confusão. Estamos envolvidos em uma luta difícil, em que está em jogo o destino do mundo livre, portanto deixe claro qual é sua verdadeira posição: você apoia ou não a liberdade e a democracia?”95. O anverso dessa imposição de uma falsa escolha é, obviamente, o ofuscamento da verdadeira linha divisória – aqui o nazismo, com sua designação do inimigo judeu como um agente da “conspiração plutocrática bolchevique”, continua insuperável. Nessa designação, o mecanismo é quase desnudado: a verdadeira oposição (“plutocratas” versus “bolcheviques”, isto é, capitalistas versus proletários) é literalmente obliterada, borrada em Um, e nisso consiste a função do nome “judeu” – servir como operador dessa obliteração. A primeira tarefa da política emancipatória, portanto, é distinguir entre pontos “falsos” e “verdadeiros”, escolhas “falsas” e “verdadeiras”, trazer de volta o terceiro elemento cuja obliteração sustenta a falsa escolha – assim como, hoje, a falsa escolha da “democracia liberal ou fascismo islâmico” é sustentada pela obliteração da política emancipatória secular.
Portanto, devemos ser claros ao rejeitar o perigoso lema “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”, que pode nos levar em particular ao discernimento de um potencial anti-imperialista “progressivo” nos movimentos islâmicos fundamentalistas. O universo ideológico de organizações como o Hezbollah é baseado no ofuscamento das diferenças entre o neoimperialismo capitalista e a emancipação progressista secular: dentro do espaço ideológico do Hezbollah, a emancipação das mulheres, os direitos dos homossexuais etc., não são nada mais que o aspecto moral “decadente” do imperialismo ocidental. Aqui vemos com clareza que a burguesia funciona de modo masculino e o proletariado, de modo feminino: para a burguesia, o campo da política é uma relação dupla fechada na qual o inimigo do meu inimigo é meu amigo, pelo que eles estão pagando caro – os inimigos de hoje, os fundamentalistas muçulmanos, foram ontem os inimigos do inimigo (comum) – o comunismo soviético; para o proletariado como não-Todo, o campo não está fechado de maneira binária – o inimigo do meu inimigo não é meu amigo (nada de alianças com os fundamentalistas religiosos), mas, por outro lado, ser um não não-burguês não é ser burguês de novo, mas o nosso (do proletariado) provável aliado.”
95 Podemos até imaginar uma versão humanitária dessa chantagem pseudoética: “Tudo bem, chega de confusão com o neocolonialismo, a responsabilidade do Ocidente etc. Você quer realmente fazer alguma coisa para ajudar os milhões de pessoas que sofrem na África ou só quer usá-las para marcar pontos na sua luta político-ideológica?”.


“Na “decisão por um Estado”, o povo determina a si mesmo ao decidir por determinado tipo de Estado ou, para parafrasear um provérbio bem conhecido, “diga-me que tipo de Estado o povo tem e eu te direi que tipo de povo é.”


“Para parafrasear um antigo crítico de Renan, nação é um grupo de pessoas unidas por uma visão errada de seu passado, pelo ódio que sentem hoje por seu próximo e por ilusões perigosas a respeito de seu futuro. (Por exemplo, os eslovenos de hoje são unidos pelos mitos sobre o reino esloveno no século XVIII, pelo ódio que sentem [neste momento] pelos croatas e pela ilusão de que seguem um caminho para se tornarem a próxima Suíça.) Cada forma histórica é uma totalidade que engloba não só seu passado posto retroativamente, mas também seu próprio futuro, um futuro que, por definição, nunca é realizado: é o futuro imanente desse presente, de modo que, quando a forma presente se desintegra, destrói também seu passado e seu futuro13. É também dessa maneira que devemos entender a difração em relação às bordas indefinidas de um objeto: não pelo senso comum de que, quando o analisamos mais de perto, suas linhas de demarcação são imprecisas, mas no sentido de que a virtualidade dos movimentos futuros de um objeto faz parte da realidade desse objeto.”
13 Nessa mesma linha, talvez possamos conceber a função de onda na física quântica como a teleiosis de um objeto desprovido da efetividade do objeto, como a direção de um ponto sem sua realidade.


“(...) É isso que Hegel quis dizer por singularidade elevada a universalidade: o aspecto patológico que Kureishi identificou em seu pai faz parte de todo pai; não existe pai normal, o pai de todo mundo é uma figura que não viveu à altura de suas expectativas e por isso deixou para o filho a tarefa de quitar seus débitos simbólicos.”


“De que maneira a ideologia hegemônica nos prepara para reagir a uma situação como essa? Há uma anedota (apócrifa, é claro) sobre uma troca de telegramas entre os quartéis-generais da Alemanha e da Áustria no meio da Primeira Guerra Mundial: os alemães enviaram a mensagem: “Aqui, do nosso lado do front, a situação é séria, mas não catastrófica”, ao que os austríacos responderam: “Aqui, a situação é catastrófica, mas não séria”. Não é dessa maneira que muitos de nós, pelo menos no Ocidente, lidamos cada vez mais com nossa situação global? Todos temos conhecimento da catástrofe iminente, mas de certo modo não podemos levá-la a sério. Na psicanálise, essa atitude é chamada de cisão fetichista: “Sei muito bem, mas... (não acredito realmente)”, e é uma clara indicação da força material da ideologia que nos faz recusar o que vemos e conhecemos61.”
61 Um caso exemplar do poder material da ideologia é o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria. Seu objetivo é fornecer “uma linguagem comum e um critério-padrão para a classificação dos transtornos mentais. Ele é usado nos Estados Unidos e em vários níveis no mundo todo, por clínicos, pesquisadores, agências reguladoras de medicamentos psiquiátricos, empresas de plano de saúde, indústria farmacêutica e autoridades políticas. Houve quatro edições revisadas desde que foi publicado em 1952, incluindo gradualmente mais transtornos, embora alguns tenham sido removidos e não sejam mais considerados transtornos mentais, mais notavelmente a homossexualidade”; a próxima edição (a quinta), a DSM-5, deve ser publicada em maio de 2013. (Ver a entrada da Wikipédia para “Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais”. Baseio-me aqui na análise crítica de Sarah Kamens.) O papel do DSM é crucial, porque hospitais, clínicas e companhias de seguro costumam exigir um diagnóstico de DSM de todos os pacientes tratados – e como o complexo médico industrial nos Estados Unidos movimenta duas vezes mais dinheiro que o famigerado complexo militar industrial, podemos imaginar as amplas consequências financeiras de mudanças aparentemente marginais nas classificações do DSM.


“Embora seja verdade que o anticapitalismo não pode ser o objetivo direto da ação política – na política, nós nos opomos aos agentes políticos concretos e suas ações, não ao “sistema” anônimo –, devemos usar aqui a distinção lacaniana entre meta e alvo: o anticapitalismo, se não a meta imediata da política emancipatória, deve ser seu alvo definitivo, o horizonte de toda a sua atividade. Não seria essa a lição da ideia marxista da “crítica da economia política”? Embora a esfera da economia pareça “apolítica”, ela é o ponto secreto de referência e princípio estruturador das lutas políticas.”