quarta-feira, 15 de abril de 2020

Religião em debate (Parte I) – José Pedro Luchi (org.)

Editora: Aquarius
ISBN: 978-85-6057-434-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 360



Artigos presentes no livro:
Fé, Razão e o Debate público – Agnaldo Cuoco Portugal / A crítica de Tobias Barreto à religião natural de Jules Simon – Antônio Vidal Nunes / O problema de Deus e a questão da religião em Xavier Zubiri – Everaldo Cescon / Pensamento pós-metafisico e Sociedade pós-secular: uma recente entrevista de Habermas sobre Religião – José Pedro Luchi / A Filosofia da religião em John Caputo. Uma primeira aproximação – Júlio Zabatiero / Religião na esfera pública – Marcelo Martins Barreira / Equívocos sobre a morte de Deus na Fenomenologia do Espírito de Hegel – Vítor Hugo de Oliveira Fieni / O projeto iluminista e a religião em Kant – Rafael Pimenta Machado / O conceito de Religião como meio de crítica interpretativa da religião no pensamento de E. Kant – Ernesto José Caetano / Atualidade da filosofia kantiana da religião – Robson Ferreira Lima / A crítica de Kant à História como pretensa legitimadora da Religião – Rafael Hygino Meggiolaro / A felicidade como destino do homem na crítica kantiana da religião – João Batista da Silva Junior / O conceito de Salvação em Lutero e Kant – Ludmila Portela / O Agir entre finito e infinito: Críticas de Hegel a Kant – Márcio Lourenço Garcia / A crítica de Hegel à Ética de Kant na Fenomenologia do Espírito – Cleiton Barbosa / O Irracionalismo de R. Otto em resposta ao racionalismo kantiano da religião – Edson Kretle dos Santos / O conceito de Naturalismo em Habermas – Elaine Cristina Borges / O Cristianismo na Idade da Interpretação segundo G. Vattimo – Marcony Uliana


“As tendências de um instrumentalismo da razão, que se pretenderia prioritário, de um individualismo empobrecedor, de um ressecamento das fontes do sentido comunitário que uma liberdade vista apenas como afirmação de espaços individuais poderia trazer, tudo isso pode encontrar um antídoto no tipo da solidariedade religiosa.”
(José Pedro Luchi)


“Assim, a fé é também formada por uma decisão do fiel, que não pode ser explicada por quaisquer critérios racionais de inferência. Ela tampouco é apenas o resultado de um cálculo custo-benefício ou consequência de uma percepção do divino. Ela pode até ser uma resposta a uma percepção como essa, mas envolve uma escolha. A fé implica uma atitude de busca por estar perto do divino na esperança de que todas as preocupações serão acalmadas e todas as dúvidas serão resolvidas, mas acima de tudo porque se sente o desejo de estar perto desse divino. E uma palavra comum para se descrever essa busca e esse desejo de estar junto de algo ou alguém é “amor”. É por isso que D. Z. Phillips (‘Faith, Skepticism and Religious Understanding’, 1992) estava certo quando ele disse que conhecer Deus significa amá-lo, e que o amor não é uma questão teórica, mas prática, que não é dirigida por qualquer cálculo de utilidade. Nesse contexto, o amor é um movimento intencional que mostra confiança, compromisso e dedicação apaixonada.”
(Agnaldo Cuoco Portugal)


“Homens da fé e homens da razão, clérigos e leigos, basta de luta entre vocês e abraçai-vos como irmãos, pois ides cair juntos no mesmo abismo.” (Tobias Barreto, Crítica de religião, 1977)


“Querendo transformar Deus em homem, ainda que amplie ao infinito as capacidades humanas atribuídas ao ser supremo, os filósofos distanciam-se ainda mais da tentativa de resolução do problema, pois perambulam por caminhos sem saída. Um conselho ele deixa: “Deus é uma vasta pergunta que ainda não teve resposta, porque tem sido feita aos abismos mudos. Será bom que a filosofia não se gaste com tão loucas tentativas. Deus é um nome que só tem vocativo” (BARRETO, 1977, p. 100).”
(Antônio Vidal Nunes)


“Na etapa madura do seu pensamento Xavier Zubiri escreveu El Hombre y Dios 1998, p. 11-13, 275-9), obra na qual expressa sua abordagem última ao tema de Deus. Numa breve introdução, 0 autor explica porque se ocupou do tema do homem e Deus: “Deus é o título de um magno problema” perante o qual todos – o teísta, o ateu e o agnóstico devem dar razões de sua atitude. A única insensatez é pensar que se pode não tomar nenhuma atitude. «O fundamental é descobrir que Deus é problema para todos”, pois, em última instância, a existência de Deus é um problema que se reduz ao problema do homem por ser homem, e não por ser religioso.”
(Everaldo Cescon)


“1º. Uma filosofia vestida de ciência que pretenda ser continuadora da filosofia grega e opositora da religião se engana em dois modos. A filosofia não é uma ciência como outra porque ela não se dedica a investigar um mundo de objetos, sem considerar os próprios pressupostos. Que as ciências não devam tematizar seu ponto de partida, é claro. Mas o próprio da filosofia é a autorreflexão e não a totalização dos objetos da ciência. Que um filósofo-cientista pretenda manter esse “de nenhum lugar” significa “que ele é somente o cúmplice secreto do abandonado ‘ponto de vista de, Deus’ da Metafísica” (Habermas). Essa falsa posição pode ser caracterizada como ‘redução secularística’ da filosofia. De outro lado, como foi mostrado, os ganhos filosóficos advindos da comunicação entre Filosofia e Religião são historicamente inegáveis e abertos à continuidade.
2º. O pensamento pós-metafísico mantém a distinção entre “tomar por verdade” no âmbito da ciência e no âmbito da religião.
O intercâmbio historicamente fecundo entre Razão e Fé ser entendido como processo de aprendizado, no qual o estágio pós-metafísico não simplesmente substitui e se libera dos anteriores. A genealogia do pensar pós-metafísico conserva também seus degraus superados, enquanto eles não esgotaram seu potencial. A crítica conscientizadora vai junto com a memória resgatadora” (Habermas). Do ponto de vista político e espiritual, a modernidade não é nem uma secularidade que precisa se manter dependente de suas raízes teológicas, se não nada se teria aprendido; tampouco se deve entendê-la como substituta da herança teológica e em permanente conflito com esta. Devemos poder nos mover “etsi Deus non daretur” (como se Deus não existisse). A primeira posição, que contesta a dependência teológica do mundo secular, se dirige contra as posições políticas de Hans Blumemberg e Carl Schmidt.”
(José Pedro Luchi)


“Se em fases anteriores de seu pensamento Habermas havia caracterizado suas relações com a religião com a expressão “nem apoiá-la nem combatê-la”, agora ele a apoia enquanto “forma contemporânea do espírito” que deve ser levada a sério, no seu Potencial de fonte guardadora de solidariedade social, da qual a filosofia pode ter ainda algo a aprender. Favorece a forma reflexiva da fé religiosa, não fundamentalista, que se entende como uma presença construtora da sociedade liberal enquanto um elemento entre outros, sem pretensão de totalidade nem de impor aos demais seus pontos de vista nem de assumir posições condutoras da sociedade somente pelo fato de ser religião.
O aprendizado de conteúdos antes inacessíveis, ao nível social e pessoal-terapêutico, parece não estar esgotado. De outro lado, tipo de religião fundamentalista é claramente combatido por Habermas. Tem-se a impressão que o surgimento de grupos fundamentalistas despertou em Habermas a percepção da atualidade da religião de um modo novo, tendo mesmo mudado significativamente sua posição.
Não é mais possível uma neutralidade distanciada, é preciso agora tomar posição, a partir de um discernimento, e favorece: teoreticamente, no interesse da razão, aquelas formas de religião compatíveis com o Estado democrático de Direito e mesmo promotoras dele.
Como indica a relação entre os conceitos de pós-secular pós-metafísico, respectivamente referentes ao observador e participante, o maior interesse de Habermas pelas religiões nos últimos anos corresponde ao sentido: do sociólogo ao filósofo. Foi seu sensível “radar sociológico” em relação ao movimento, das novas constelações de sentido da sociedade contemporânea que o conduziu a refletir sobre o lugar lógico da religião num pensamento pós-metafísico que, de si mesmo, dispensaria a religião como forma atualmente relevante do espírit0, valorizando-a, sim, no quadro de uma memória do seu processo de surgimento, memória da qual o pensamento pós-metafísico admite que tem ainda algo a aprender. A posição permanece agnóstica. Porém ele não deixar de admitir, ainda que com todas as cautelas: “E sem movimentos sociais nada se movimenta. Esse é porém nosso problema hoje: Quem, exceto as Igrejas e Comunidades de Fé oferece ainda motivos a partir dos quais se age coletiva e solidariamente? E como nós sabemos, motivos religiosos, quando se tornam politicamente efetivos, frequentemente uma bênção ambígua”.8 Na carência de recursos alimentadores da solidariedade social, as religiões e comunidades de fé não fundamentalistas representam uma preciosa fonte, equiparável aos movimentos sociais, que precisa ser levada a sério e tratada no interesse da razão solidária.
Um Estado teocrático, com fundamento na religião, e interferência direta dos líderes religiosos no poder do Estado, certamente não toleraria pessoas que pensassem e agissem diferentemente. Sem dúvida também Hegel deixa claro que a qualidade do Estado depende do conceito de Deus. Ele destaca a inc0mpatibilidade do estado racional com o fanatismo religioso. Um Estado de liberdade universal só pode existir onde a individualidade é reconhecida como positiva na essência divina. Hegel reconhece que o temor de Deus pode favorecer, de um lado, a obediência ao príncipe e à lei, o cumprimento dos deveres; de outro lado, porém, “esse temor pode, já que ele eleva o universal sobre o particular, voltar-se contra esse último, tornar-se fanático e atuar de forma incendiária e destruidora do Estado, suas estruturas e instituições. Por isso o temor de Deus deve ser também, refletido e mantido com uma certa frieza, para que não se volte contra e destrua aquilo que por ele deve ser protegido e resguardado”9.
Interessante é a crítica que W. Huber10 exercita sobre a compreensão habermasiana do conceito de “secularização”, do ponto de vista da avaliação do processo do desenvolvimento social moderno. A introdução do conceito de “pós-secular” para a sociedade contemporânea pareceria pressupor uma época secular, isto é, onde a religião não tivesse sido irrelevante.
Pôde-se chegar a tal concepção de uma sociedade secular porque foi dado o passo para o Estado e para uma ordenação jurídica secular, não mais legitimados pela religião, e para uma ciência que estrutura e explica os fenômenos sem a hipótese Deus. Daí se concluiu que a sociedade como um todo poderia ser considerada como “secular”; porém assim se subdimensiona a relevância da fé, que, pelo contrário, permanece uma base determinante para a vida de grande parte dos cidadãos.
A nova atenção dada à religião por Habermas não é somente um elemento de sua história pessoal de vida, mas uma mudança na percepção da própria sociedade alemã sobre si mesma.”
8 HABERMAS. J. Ich bin alt, aber nicht fromm geworden In: FUNK, M. Ueber Habermas. Gespraeche mit Zeitgenossen Darmstadt: Primus Verlag, 2008, 181ss.
9 HEGEL, G. F. Filosofia da História, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008, p. 48. Modifiquei um pouco tradução, para maior precisão e clareza.
10 HUBER, W. Habermas in protestantischen Tradition In: FUNK. M. Ueber Habermas. Gespraeche mit Zeitgenossen Darmstadt: Primus Verlag, 2008, 130ss.
(José Pedro Luchi)


“Não é possível, segundo Caputo, compreender a religiosidade humana (ou “religião”6) se o lugar a partir do qual a estudamos não for o das orações e lágrimas. Isto não quer dizer que pessoas não-religiosas sejam incapazes de compreender a religião, mas, sim, que o próprio conceito moderno de “religião” é um empecilho à compreensão do fenômeno religioso. Religião é um conceito moderno, racional, construído mediante um radical binarismo que contrapôs fé e razão, filosofia e religião como polos antagônicos no espaço da Verdade. A religião é concebida na Modernidade como uma falta, um resquício do mundo pré-moderno e, por isso, na melhor das hipóteses infrarracional, para não dizer irracional.7
Os filósofos modernos, climaticamente no Iluminismo, conceberam a religião como uma esfera separada da existência humana e projetaram tal compreensão para as crenças e práticas cristãs da Europa pré-moderna. Tal maquinaria conceitual lhe impediu de enxergar adequadamente o fenômeno religioso, tomado exclusivamente como uma atitude dogmática, pré-racional ou mesmo irracional, antagônica à razão, às ciências e à filosofia. A religião foi extirpada do que lhe é próprio – a experiência humana da busca – e reduzida a um epifenômeno da eticidade, ou a um desvio da libido, ou à consciência alienada.
Retornando a Agostinho e Anselmo, Caputo nota que a experiência pré-moderna da religião cristã não pode ser concebida como uma esfera particular da experiência humana. A religião impregnava a mentalidade, a cosmovisão europeia pré-moderna, de tal modo que o adjetivo “religioso” não se referia a pessoas que “tinham” religião, mas ao grau de compromisso da pessoa com a religião – o que chamaríamos hoje de religiosidade ou de espiritualidade. Ninguém conceberia religião como uma esfera particular da vida, mas como o próprio ambiente da vida humana. Não se poderia conceber Deus como objeto de dúvida, mas apenas como sujeito de busca (ou não). Tanto Agostinho como Anselmo falam da busca de Deus nos termos de um círculo, no qual Deus já é concebido como existente, soberano, digno de honra e adoração. O Deus conhecido é o Deus a quem se busca, o Deus que se deseja conhecer mais e melhor. O Deus que criou o ser humano e o dotou de racionalidade, de modo que igualmente a razão não pode ser concebida como uma esfera particular da vida, e sim como o ambiente da vida propriamente humana.8
6 Caputo usa constantemente o termo “religion” para distintos referentes – uma religião em particular, a religião enquanto conceito, religião como equivalente de religiosidade, religião como um componente da condição humana que busca a transcendência. Normalmente usarei o termo no singular para me referir ao “conceito” filosófico.
7 Para esta seção sobre o conceito moderno de religião, baseei-me, principalmente, em CAPUTO, John. On Religion. Londres: Routledge, 2001, p. 37-66.
8 “That is the sense of religion that I am defending. Vera religio meant being genuinely religious, like being truly just, not “the true religion” versus “the false religion.” CAPUTO, 2001, p. 43. (“Este é o sentido de religião que defendo. Vera religio significa ser genuinamente religioso, semelhantemente a ser verdadeiramente justo, e não “a verdadeira religião” versus “a falsa religião”.”)
(Júlio Zabatiero)


“O pensamento moderno torna impossível a religião. Consequentemente, reduzida a epifenômeno da ética – redução que é apenas um passo no caminho da rejeição pura e simples da religião enquanto dimensão integrante e significativa da vida humana. Rejeição cujo diagnóstico mais duro e solene pode ser encontrado em famoso discurso de Max Weber: “a quem não conseguir suportar virilmente o destino da nossa época há que dizer: Regresse, em silêncio, lhana e simplesmente, sem a habitual e pública propaganda dos renegados, aos amplos e compassivos braços das velhas Igrejas. Estas não lhe levantarão dificuldades. Seja como for, terá de, desta ou de outra maneira, fazer – é inevitável – o ‘sacrifício do intelecto’. Não o condenaremos, se tal efetivamente conseguir”.10 “Religião nos limites da razão somente”, religião mal entendida pelo Iluminismo não-iluminado, exilada, reduzida, rejeitada, negada.”
10 WEBER, Max. Ciência como Vocação. Edição portuguesa, disponível em: www.lusosofia.net/textos/weber_a_ciencia_como_vocacao.pdf.
(Júlio Zabatiero)


“Religião não é questão de verdade ou falsidade. É questão de relacionamento, de intimidade, de fidelidade ou infidelidade, distanciamento, inimizade. Não se pode compreender a religião se dela abstrairmos os corpos vivos, patéticos, intersubjetivos, intercomunicantes. Não se pode compreender a religião se a abstrairmos de seus ritos, crenças, práticas, instituições. É preciso iluminar o iluminismo, reencantar os desencantados ouvidos e olhos do sujeito moderno para se compreender a religião.”
(Júlio Zabatiero)


“Na seção anterior deste ensaio fiz alusão a uma frase de Derrida sobre a leitura dele por Caputo, e agora trago a voz do próprio Derrida para a discussão.
“Tenho várias razões para dizer isto. Em primeiro lugar, ele me lê de um modo não somente agradável de ser lido, mas também do modo pelo qual eu me esforço para ler outras pessoas – isto é, de modo generoso na medida em que tenta creditar ao texto e ao outro o máximo possível, não a fim de incorporar, substituir ou identificar-se com o outro, mas para ‘contrasinalizar’ o texto, por assim dizer. Isto envolve aprovar e afirmar o texto, não de modo complacente ou dogmático, mas em e através do gesto de dizer sim ao texto”.15
Em um ambiente tão competitivo e politicamente carregado (por mais que tais aspectos sejam negados) como o universitário, leituras afirmativas são casos relativamente raros. Saber dizer sim é uma arte hermenêutica complexa e exigente. Dizer sim sem ser subserviente ao texto, sem ser subserviente ao campo acadêmico, sem ser subserviente à carreira acadêmica. Dizer sim que matiza todos os nãos que precisam ser enviados ao interlocutor lido.
Retorno a Derrida:
“Ele faz isto sem abrir mão de seu próprio rigor exigente, sua própria cultura e memória, bem como sua relação singular com outros textos que eu não conheço. Assim, mesmo quando ele aparentemente está lendo a mim, eu aprendo dele, pois ele ilumina meu texto com sua própria cultura e percepção. Para exemplificar: uma vez que ele conhece a obra de muitos teólogos, tais como Meister Echkart, Lutero e Kierkegaard, melhor do que eu, ele é capaz de escrever seu próprio texto, seguindo sua própria trajetória e seu próprio desejo, sem, ao mesmo tempo, me trair. Assim, não o considero, de fato, como meu comentarista ou intérprete. É outro tipo de gesto”.16
Em outras palavras, Caputo lê Derrida como qualquer texto deveria ser lido, mediante um instigante e pessoal emaranhado de relações intertextuais e interdiscursivas, que chega à intenção não-intencionada de autor e texto, sem se transformar em mera boa-intenção do leitor. Não se trata de descobrir o sentido verdadeiro do texto, a verdadeira intenção ou intencionalidade de seu autor. Trata-se de dialogar com o texto, de colocar em diálogo diferentes universos discursivos, de criar novos textos, criativamente leais ao texto lido.
“Outra razão pela qual sou tão grato por seus escritos é que quando ele lê meus textos, o que é especialmente o caso em Prayers and Tears, ele é o primeiro, e até agora, o único, a unir os elementos mais filosóficos e teóricos de meus escritos àqueles que são mais autobiográficos. Como alguns textos recentes mostram, os dois são, para mim, várias vezes indistinguíveis.”17
E Caputo percebe tal vínculo sem incorrer em psicologismos ou em análises psicológicas de Derrida. Percebe tal vínculo nos próprios textos, desemaranhando o que a exegese moderna se tornou incapaz de captar – a pessoa no texto, as paixões textualizadas – e não a pessoa extra-texto, a intenção pura, seja a da fenomenologia ontoteológica, seja a da exegese científica (metódica), seja a da fusão de horizontes. Captar a pessoa em sua flutuabilidade, em sua insustentável leveza, em seus inseparáveis e indistinguíveis momentos. Captar a pessoa em seu fluir, não o sujeito racional moderno, não o autor desmascarado tão habilmente por Roland Barthes ou Michel Foucault.
Caputo reconhece a validade do conceito da “morte do autor”, que não é confundido – o que muitos leitores de Foucault e Barthes não conseguem deixar de fazer – com a negação do autor:
“Do ponto de vista do leitor, penso que permanece verdadeiro o fato de que a ‘morte do autor’ é uma noção válida, pois ela não tem a ver com criação, mas com recepção. Um leitor pode ler um texto sem se preocupar com as alegrias, traumas e paixão pessoal que deram luz ao texto. O texto tem vida própria. A noção da morte do autor, que é suficientemente válida, opera do ponto de vista de um leitor ou da recepção. Para o escritor, porém, o autor, isto é incompreensível, é sem sentido”.18
Escrever e ler são distintos e complementares jogos, mas não se pode jogar o jogo da leitura a partir das regras do da autoria, e vice-versa. Tentar seguir regras inadequadas deste tipo acaba por resultar em uma transfiguração do autor, em uma redução do autor à imagem que dele faz o leitor.
A interpretação de Derrida por Caputo, de modo coerente com sua concepção de leitura, não transforma o filósofo em religioso:
“Também sou muito grato a Jack neste aspecto, porque ele não tenta me transformar em uma pessoa piedosa. Ele respeita o fato de que eu posso ser um ateu, e, é claro, ele assume todas as complicações que este fato sugere. Penso que ele está correto em mencionar isto porque minha relação com a religião é muito complicada e ele respeita o quão complicada é esta relação. Sem tentar me atrair de volta para a religião, ele tenta compreender o que está em luta em mim mesmo”.19
Captar a pessoa em seu fluir é captar a pessoa em sua complexidade, em sua conflitividade, em suas contradições e complicações, sem tentar reduzir essa complexidade a conceitos e explicações simples e claros.
Enfim,
“ele presta atenção aos mínimos detalhes que são significativos para mim, e ele é o único que realmente presta atenção aos motivos, detalhes, metonímias, ou sutis tropos e conexões significativos, os quais, até onde posso perceber, passam despercebidos até mesmo de meus leitores mais generosos, de meus leitores mais amigáveis. Estas são as razões por que sou tão grato”.20
Para um leitor que vem do campo da exegese bíblica, é fácil reconhecer o quão custoso é ler um texto em seus exigentes detalhes, gastar horas contemplativamente deixando-se guiar pelo texto, permitindo o fluir e o fruir do desejo de compreender o texto melhor até de que seu próprio autor. Ler realmente um texto, nos limites do sistema universitário, sob as exigências férreas de publicar, ensinar, gerenciar carreira tem se tornado cada vez mais uma demanda impossível. Lemos superfícies textuais, produzimos achatamentos, esquematizações, formulamos juízos. Ler, porém, é outro gesto. É fruição, é amizade, é lealdade incondicional. É pathos! Sequestrando a voz de Derrida, ler é manifestação da différance.”
15 DERRIDA, Jacques. “The Becoming Possible of the Impossible. An Interview with Jacques Derrida”. In: DOOLEY, Mark (ed.) A Passion for the Impossible. John D. Caputo in Focus. Albany: SUNY Press, 2003, p. 21.
16 DERRIDA, 2003, p. 21.
17 DERRIDA, 2003, p. 22.
18 CAPUTO, John. “What do I love when I love my God? An interview with John D. Caputo”. In: OLTHUIS, James H. (ed.). Religion with/out Religion. The Prayers and Tears of John D. Caputo. Londres: Routledge, 2002, p. 150.
19 DERRIDA, 2003, p. 23.
20 DERRIDA, 2003, p. 22.
(Júlio Zabatiero)


“A genealogia do religioso é encontrada em uma hermenêutica do sofrimento. O religioso é uma resposta ao que se dá e se retira no sofrimento. O sofrimento apresenta-se à mente religiosa como um ultraje moral fundamental, uma violência injustificada que desperdiça a vida. Assim, a atitude religiosa ergue-se precisamente como um protesto contra o sofrimento. Ela é essencialmente desafiadora, protestante, protestando contra uma violação da vida que não pode ser deixada sem resposta e católica, porque ela fala em nome de todos os que sofrem. Não penso que a religião aceita o sofrimento como vontade de Deus ou como uma punição pelo pecado, ou como meio de santificação, pelo menos não em sua forma mais robusta e sadia. Penso, sim, que ela protesta contra o sofrimento em nome da vida e que ela afirma Deus a fim de tornar audível seu protesto a favor da vida, de escrever seu protesto com letras capitais. Não penso que ela comece de cima, com Deus, como se expulsa do céu, e então explique o sofrimento como um movimento descendente da vontade de Deus, ou como parte de uma estratégia redentora. Ao contrário, ela começa embaixo, deixando-se levar pelo fluxo, com o sofrimento, e, então, afirma Deus em um movimento ascendente, como uma resposta ao sofrimento e expressão de sua indignação. A genealogia da religião no sofrimento significa que a afirmação de Deus está implícita na afirmação da vida e no protesto contra o sofrimento. A religião surge como uma expressão de solidariedade com o sofrimento.”26
26 CAPUTO, 1987, p. 280.
(Júlio Zabatiero)

quinta-feira, 9 de abril de 2020

O império do capital – Ellen Meiksins Wood

Editora: Boitempo
ISBN:978-85-7559-365-3
Tradução: Paulo Cezar Castanheira
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 152
Sinopse: Nesta era de globalização, ouvimos muito falar de um novo imperialismo e de seu principal impositor, os Estados Unidos. Hoje, com tal país a prometer uma guerra sem fim contra o terrorismo e a promoção de uma política de defesa preventiva, essa noção parece mais evidente do que nunca. Mas o que afinal pode significar imperialismo na ausência de conquista colonial e dominação imperial direta? Desmanchando consensos, Ellen Meiskins Wood apresenta neste livro uma das mais respeitadas análises do imperialismo norte-americano, para ela, um fenômeno absolutamente inédito na história mundial.
Descrito pelo historiador Robert Brenner como “o estudo mais convincente do imperialismo na sua fase atual – como surgiu, como opera, como difere das formas anteriores”, o livro investiga o novo imperialismo contra o fundo contrastante das formas mais antigas, desde a Roma antiga, passando pela Europa medieval, o mundo árabe maometano, as conquistas espanholas e o império comercial holandês. Pesquisando o nascimento de um imperialismo capitalista na dominação inglesa da Irlanda, Wood acompanha o seu desenvolvimento através do Império Britânico na América e na Índia.
A tese principal de Wood é de que a natureza específica do imperialismo norte-americano e, na prática, do império capitalista, é operar o máximo possível por meio dos imperativos econômicos, e não pelo domínio colonial direto. Assim afirma, sem hesitar que “os Estados Unidos foram o primeiro império verdadeiramente capitalista do mundo e que ainda está para ser substituído.”
Mesmo depois das invasões do Iraque e do Afeganistão, Wood mantém a tese ousada de que os Estados Unidos teriam preferido se manter fora de iniciativas coloniais, operando sua dominação por meio dos imperativos econômicos. Sem negar o extremismo temerário da era Bush – algo que inclusive atribui a causa provável da sua própria derrota –, Wood insiste nas continuidades com o governo Obama para ressaltar a essência de toda a política externa norte-americana do pós-guerra como pautada sempre por uma grandiosa visão imperial.
Durante o último meio século, a supremacia global foi o objetivo dos Estados Unidos. Com essa premissa, Wood retraça todo projeto norte-americano de hegemonia econômica global, apoiado por poderosa supremacia militar, desde o estabelecimento do sistema de Bretton Woods e a afirmação de sua blindagem militar com as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, até as polêmicas da globalização financeira com a dissolução desse acordo.
Wood vai adiante e localiza uma contradição fundamental no desdobramento da hegemonia norte-americana: apesar de o objetivo do imperialismo norte-americano ser a hegemonia econômica sem dominação colonial, o capital global ainda – e hoje mais do que nunca – exige uma ordem política, social e legal rigidamente regulada e previsível. Um dos destaques de O império do capital é análise das dinâmicas da hegemonia imperial em tempos de dito declínio do Estado-nação, isto é ausência de algo que se assemelhe a um Estado global capaz de assegurar a ordem necessária, tal como o faz o Estado-nação para o capital nacional.
Esta edição conta ainda com um posfácio, inédito na edição original, em que a autora responde às principais críticas feitas a seu livro, além de um prefácio inédito escrito especialmente para edição brasileira, em que a autora reflete sobre o legado de sua obra e atualiza a discussão proposta pelo livro comentando fenômenos atuais como as políticas-econômicas adotadas pelos governos Lula e Dilma, as operações espionagem em massa que vieram à tona nos EUA de Obama e o crescente protagonismo da China na nova ordem mundial.



“Hoje talvez não seja tão fácil como já foi identificar os imperativos do capitalismo global com os interesses do capital norte-americano; mas os Estados Unidos foram o primeiro império verdadeiramente capitalista do mundo e ainda estão para ser substituídos. Dizer que eles foram o primeiro império capitalista não significa que tenham sido a primeira potência capitalista a possuir um império. A questão é, pelo contrário, o fato de os Estados Unidos terem dominado o mundo não pela colonização direta, mas em grande parte pela manipulação dos mecanismos econômicos do capitalismo. O Império Britânico, que antes nutrira a esperança de explorar a riqueza econômica da Índia sem incorrer nos custos da dominação colonial, viu-se obrigado a criar um despotismo militar de extração de tributos mais semelhante aos imperialismos tradicionais que a um novo modo de hegemonia capitalista. De modo geral, os Estados Unidos preferiram, sempre que possível, evitar a dominação colonial direta e se valer da hegemonia econômica – menos custosa, menos arriscada e mais lucrativa.”


“O modo capitalista de imperialismo econômico é o primeiro imperialismo da história que não depende apenas da captura deste ou daquele território, ou da dominação de determinado povo. Cabe a ele supervisionar todo o sistema global de Estados e assegurar que o capital imperial possa navegar com segurança e lucratividade por todo esse sistema. Procura-se assim não somente resolver o problema dos Estados “bandidos” ou dos Estados “fracassados”, mas também manter os Estados subalternos vulneráveis à exploração. Ademais, para ser realmente eficaz, o imperialismo tem de estabelecer a supremacia política e militar de uma potência sobre todas as outras, porque, se o capital global precisa de um sistema ordenado de múltiplos Estados, é difícil ver como ele poderia tolerar um sistema no qual o poder militar é distribuído de forma mais ou menos igualitária entre os diversos Estados.
Então a primeira premissa da doutrina militar norte-americana, cujas raízes datam do final da Segunda Guerra Mundial, é que os Estados Unidos têm de ter tamanha superioridade militar que nenhuma outra potência, amiga ou inimiga, sequer tentaria desfiar ou igualar sua hegemonia global ou regional. O objetivo não é simplesmente impedir um ataque, mas prevenir toda e qualquer rivalidade. Em geral, outras potências capitalistas aceitaram esse sistema, embora seja verdade que, especialmente depois do desaparecimento da União Soviética, alguns dos principais aliados não tenham se mostrado tão complacentes assim. Mas, dadas as necessidades do capital global, não chega a surpreender que os principais aliados dos Estados Unidos – que sempre foram, ao mesmo tempo, seus principais competidores econômicos – tenham concordado, de forma geral, que o país deveria manter sua enorme preponderância militar e mais ou menos admitiram a própria subordinação militar.”


“Houve um tempo em que não somente o governo colonial, mas também a exploração econômica de colônias por potências imperiais, era um negócio razoavelmente transparente. Quem observasse os espanhóis na América do Sul ou, mais tarde, os belgas no Congo, não teria dificuldade para entender os meios pelos quais a riqueza do súdito era transferida para o senhor. Sob esse aspecto, o imperialismo tradicional tinha muito em comum com certas relações internas de classe. Assim como não havia nada particularmente opaco nas relações entre os senhores feudais e os camponeses de cujo trabalho ou renda eles apropriavam, ou entre o Estado absolutista e os camponeses cujos impostos ele extorquia, a relação entre os senhores coloniais e seus súditos era razoavelmente clara: o primeiro exercia a força, até o genocídio, e compelia os outros a abrirem mão da sua riqueza.
No capitalismo moderno a relação de classe entre o capital e o trabalho é muito mais difícil de decifrar. Nesse caso, não existe transferência direta de trabalho excedente. Os trabalhadores não pagam rendas, nem impostos ou tributos aos seus empregadores. Não existe nenhum meio óbvio de distinguir entre o que os trabalhadores guardam para si e o que eles cedem ao capital. De fato, longe de extorquir renda dos trabalhadores, o empregador lhes paga sob a forma de salário, e esse pagamento parece cobrir todo o trabalho executado pelo trabalhador: um salário referente a oito horas, por exemplo, pelo trabalho executado em oito horas. Não é tão fácil deslindar como os trabalhadores criam a riqueza do capital por meio do trabalho pelo qual eles não recebem nenhuma recompensa ou, dito de outra forma, como o capital obtém mais benefício, sob a forma de lucro, do trabalho dos trabalhadores do que estes recebem sob a forma de salário. Pode ser evidente, para qualquer pessoa sensata, que a acumulação de capital não seria possível sem uma transferência líquida de trabalho excedente dos trabalhadores para os capitalistas. Mas a forma como isso se dá é muito menos clara. A teoria marxista do mais-valor é uma explicação convincente de como ocorre essa transferência, mas o fato de ser necessária uma teoria tão complexa para explicar o que deveria ser uma transação razoavelmente direta atesta a opacidade da relação entre capital e trabalho2. A cobrança de renda ou impostos de um camponês – onde é evidente que uma parte do que produz o camponês se destina ao pagamento do senhor ou do Estado, seja em produto, trabalho ou dinheiro – não exige uma teorização tão complexa.
Mais particularmente, na ausência de uma força coerciva direta exercida pelo capital sobre o trabalho, não é imediatamente óbvio o que poderia compelir o trabalhador a ceder o seu excedente de trabalho. A coerção puramente econômica que leva os trabalhadores a vender sua força de trabalho por um salário é muito diferente dos poderes políticos ou militares diretos que permitem aos senhores e Estados em sociedades não capitalistas extorquir renda, impostos ou tributos dos produtores diretos. Evidentemente, o trabalhador sem propriedade tem pouco espaço de manobra quando a venda da força de trabalho em troca de um salário é a única maneira de ter acesso aos meios de subsistência, ou mesmo aos meios de trabalho em si. Mas essa compulsão é impessoal; toda a coerção que opera aqui é, ou parece ser, imposta não por homens, mas por mercados. Diante dessa que ainda parece ser uma questão de escolha, a única relação formalmente reconhecida entre capitalistas e trabalhadores – em nítido contraste, por exemplo, com a relação juridicamente reconhecida de dominação e subordinação entre senhor feudal e servo – é uma transação entre indivíduos legalmente livres e iguais.
Este não é o lugar para explorar as dificuldades da teoria do valor ou da medição do mais-valor, que representa a exploração do trabalho pelo capital. A questão aqui é simplesmente que, reconhecendo ou não que tudo que se passa entre o operário e o capitalista é de fato exploração, a relação entre ambos não é transparente, e os meios pelos quais, justa ou injustamente, o capitalista apropria o que o operário produz são obscuros por sua própria natureza.
Muito se pode dizer igualmente, e pelas mesmas razões, acerca da natureza de imperialismo capitalista. Hoje é mais difícil que nos antigos impérios coloniais detectar a transferência de riqueza das nações mais fracas para as mais fortes. Mas, mesmo quando é dolorosamente evidente que ela ocorre, a forma como isso é realizado não é menos opaca que a relação entre capital e trabalho, e essa opacidade deixa muito espaço para negativas. Também nesse caso não há, tipicamente, uma relação de coerção direta. Também nesse caso, as compulsões têm maior probabilidade de serem “econômicas”, impostas não pelos senhores (diretamente), mas pelos mercados. Também aqui, a única relação formalmente reconhecida é a que existe entre entidades legalmente livres e iguais, como compradores e vendedores, tomadores de empréstimos e emprestadores, ou até mesmo entre Estados claramente soberanos.
O que torna a dominação de classe, ou o imperialismo, especificamente capitalista é a predominância da coerção econômica, que se distingue da coerção “extraeconômica”*. Ainda assim, isso não quer dizer, de forma alguma, que o imperialismo capitalista possa abrir mão da força extraeconômica. Primeiro, o capitalismo certamente não exclui formas mais tradicionais de colonização coercitiva. Pelo contrário, sua história, desnecessário dizer, é uma história sangrenta e muito longa de conquista e opressão colonial; e, de qualquer maneira, o desenvolvimento de imperativos econômicos suficientemente fortes para substituir formas mais antigas de dominação direta se deu em um período muito longo, só chegando à plena realização no século XX. Contudo, mais particularmente, mesmo nessa forma mais madura o imperialismo capitalista exige apoio extraeconômico. A força extraeconômica é claramente essencial para a manutenção da coerção econômica em si.”
2 Resumindo, Marx explica que os trabalhadores recebem por sua forma de trabalho, não pelos frutos do seu trabalho. O capitalista paga um salário para comprar aquela força de trabalho, geralmente por um período fixo de tempo, e assim ganha o controle sobre tudo o que o trabalho produz durante aquele tempo, que pode então ser vendido no mercado. O objetivo é, dessa forma, maximizar a diferença entre o que o capitalista paga pela força de trabalho e o que resulta dos produtos do trabalho.
*: Extração do excedente por coerção direta, como renda, imposto ou tributo, por meio de poder político e militar, de privilegio jurídico, de frutos de jurisdição etc.


“O novo imperialismo se tornou o que é por ser a criatura do capitalismo, um sistema em que todos os atores econômicos – produtores e apropriadores – dependem do mercado para suas necessidades mais básicas. Trata-se de um sistema em que as relações de classe entre produtores e apropriadores, e especificamente a relação entre capitalistas e trabalhadores assalariados, também são mediadas pelo mercado, o que está em nítido contraste com as sociedades não capitalistas, nas quais produtores diretos tinham acesso por outras vias que não o mercado aos meios de produção, especialmente a terra, e portanto estavam protegidos das forças do mercado, enquanto os apropriadores dependiam da força superior para extrair trabalho excedente desses produtores diretos. No capitalismo, a dependência de produtores e apropriadores em relação ao mercado significa que eles estão sujeitos aos imperativos de concorrência, acumulação e produtividade crescente do trabalho; e todo o sistema – em que a produção competitiva é condição fundamental da existência – é movido por esses imperativos. O efeito é, entre outras coisas, uma relação distinta entre o poder político e o econômico, que tem consequências para as relações de classe e para a expansão imperialista.”


“Comecemos pela premissa de que o capitalismo global é o que é não somente por ser global, mas, acima de tudo, por ser capitalista. Os problemas que associamos à globalização – a injustiça social, o abismo crescente entre ricos e pobres, os “déficits democráticos”, a degradação ecológica, e assim por diante – não existem simplesmente porque a economia é “global”, ou porque as empresas globais são incomparavelmente cruéis, nem mesmo por serem excepcionalmente poderosas. Esses problemas existem porque o capitalismo, seja ele nacional ou global, é movido por certos imperativos sistêmicos: o imperativo da concorrência, da maximização dos lucros e da acumulação, que inevitavelmente exigem a colocação do valor de troca na frente do valor de uso e do lucro na frente das pessoas. Nem mesmo a empresa mais benigna ou “responsável” consegue fugir dessas compulsões, e deve seguir as leis do mercado para sobreviver – o que inevitavelmente significa colocar o lucro acima de todas as outras considerações, com todas as suas consequências perdulárias e destrutivas. Essas compulsões também exigem a constante autoexpansão do capital. A globalização, por mais que tenha intensificado tais imperativos, é o resultado deles e não sua causa.”


“Em toda sociedade de classes, onde uma classe apropria o trabalho excedente de outra, existem dois “momentos” de exploração relacionados, mas distintos: a apropriação do trabalho excedente e o poder coercivo que a impõe. Nas sociedades não capitalistas, eles tendiam a ser mais ou menos unidos. A separação das esferas econômica e política no capitalismo significou que esses dois momentos foram efetivamente divididos entre as empresas privadas (ou empresas públicas que operam segundo os mesmos princípios) e o poder público do Estado. Evidentemente, toda empresa capitalista tem à sua disposição um conjunto de mecanismos disciplinares, bem como hierarquias organizacionais internas, para manter os empregados na linha e trabalhando; e a sanção mais eficaz à disposição do capital é sua capacidade de negar ao trabalhador o acesso aos meios de trabalho, ou seja, sua capacidade de negar ao trabalhador um emprego e um salário, de demitir os empregados ou de simplesmente fechar a empresa. Mas a sanção última que mantém o sistema como um todo pertence ao Estado, que comanda a autoridade legal, a polícia e o poder militar necessários para exercer a força coerciva direta.
No capitalismo, esse poder coercivo está separado de forma singular das funções de apropriação (mesmo nas empresas públicas que operam segundo os princípios de uma economia capitalista). Como já vimos, isso contrasta com a unidade de apropriação e coerção de um sistema feudal, em que o poder coercivo do senhor – no fundo, seu poder militar – é também o poder de explorar, da mesma forma que os Estados não capitalistas usaram seu poder coercivo para apropriar o trabalho excedente dos produtores diretos como meio de aquisição de riqueza privada para governantes e funcionários. Assim, desde o início, a relação entre a classe capitalista e o Estado foi característica, com os capitalistas usando sua propriedade para explorar trabalhadores sem propriedade, enquanto o governo mantinha a ordem social afastada do capital.
O capitalismo é, por sua própria natureza, um sistema anárquico, em que as “leis” do mercado ameaçam constantemente romper a ordem social. Ainda assim, provavelmente mais que qualquer outra ordem social, o capitalismo precisa de estabilidade e de previsibilidade nas suas organizações sociais. O Estado-nação ofereceu isso por meio de uma elaborada estrutura legal e institucional, apoiada pela força coerciva, para sustentar as relações de propriedade do capitalismo, seu complexo aparelho contratual e suas intricadas transações financeiras.”


“Desde o início, o imperialismo capitalista foi afetado por uma das principais contradições do capitalismo: a necessidade de impor suas “leis” econômicas tão universalmente quanto possível e, ao mesmo tempo, limitar as consequências danosas dessa universalização para o próprio capital. O capitalismo é movido pela concorrência, mas ainda assim o capital precisa sempre tentar evitar a concorrência. Precisa expandir constantemente seus mercados e buscar lucro em novos locais, mas ainda assim subverte a expansão dos mercados pelo bloqueio do desenvolvimento de concorrentes potenciais.”


“Esses movimentos anticapitalistas” foram eficazes em trazer à luz os efeitos devastadores da “globalização”, especialmente ao capturar a atenção do mundo capitalista avançado, que há muito tempo ignora as consequências do capitalismo global. Aumentaram a consciência de muitas pessoas em todo o mundo e ofereceram a promessa de novas forças opositoras. Mas é possível que, sob certos aspectos, eles se baseiem em premissas falsas. A convicção de que as companhias globais são a fonte última dos males da globalização e de que o poder do capital global está politicamente representado acima de tudo nas instituições supranacionais, como a OMC, talvez seja baseada na premissa de que o capitalismo global se comporta da maneira como se comporta por ser global, e não (ou especificamente) por ser capitalista. A principal tarefa das forças opositoras, ao que parece, é visar os instrumentos do alcance global do capital, e não desafiar o sistema capitalista em si.
De fato, muitos participantes de movimentos desse tipo não são tanto anticapitalistas quanto “antiglobalização”, ou talvez antineoliberais, ou quem sabe apenas contrários a algumas companhias particularmente malignas. Eles pressupõem que os efeitos nocivos do sistema capitalista podem ser eliminados domesticando-se as companhias globais ou tornando-as mais “éticas”, “responsáveis, socialmente conscientes.
Mas mesmo aqueles mais inclinados a se opor ao sistema capitalista propriamente dito podem supor que, quanto mais global se torna a economia capitalista, mais global será a organização política do capital. Assim, se a globalização tornou cada vez mais irrelevante o Estado nacional, as lutas anticapitalistas devem passar imediatamente para além do Estado-nação, para as instituições nas quais o poder do capital global se encontra verdadeiramente.”


“Assim como a globalização não é uma economia mundial verdadeiramente integrada, ela também não é um sistema de Estados-nação em declínio. Pelo contrário, o Estado está no coração do novo sistema global. Ele continua a desempenhar seu papel essencial na criação e manutenção das condições de acumulação de capital; e nenhuma outra instituição, nenhuma agência transnacional, começou, por enquanto, a substituir o Estado-nação como garantidor administrativo e coercivo de ordem social, relações de propriedade, estabilidade ou previsibilidade contratual, nem como qualquer outra das condições básicas exigidas pelo capital em sua vida diária.
Assim como o Estado está longe de ser fraco, as companhias multinacionais estão longe de ser todo-poderosas. Um exame das operações corporativas provavelmente revelaria que “empresas multinacionais não são particularmente boas em administrar suas operações internacionais” e que os lucros tendem a ser mais baixos, enquanto os custos são mais altos, que nas operações domésticas5. Tais empresas “têm muito pouco controle sobre suas próprias operações internacionais, e ainda menos sobre a globalização”. Qualquer sucesso desfrutado por essas companhias na economia global dependeu do apoio indispensável do Estado, tanto na localização de sua sede no próprio país quanto nos outros países de sua rede “multinacional”.
O Estado, tanto nas economias imperiais quanto nas subordinadas, ainda oferece as condições indispensáveis de acumulação para o capital global, tanto como para as empresas locais; e, em última análise, é o criador das condições que permitem ao capital global sobreviver e navegar o mundo. Não seria um exagero dizer que o Estado é a única instituição não econômica verdadeiramente indispensável ao capital. Apesar de podermos imaginar que 0 capital continuaria suas operações diárias se a OMC fosse destruída, e talvez até agradecesse a remoção de obstáculos colocados em seu caminho por organizações que dão alguma voz às economias subordinadas, é inconcebível que essas operações pudessem sobreviver por muito tempo à destruição do Estado local.
A globalização foi certamente marcada pela retirada do Estado das suas funções de bem-estar social e melhoria social; para muitos observadores, isso, mais do que qualquer outra coisa, criou uma impressão de declínio do Estado. Mas, apesar de todos os ataques ao Estado de bem-estar lançados por sucessivos governos neoliberais, não se pode nem mesmo argumentar que o capital global tenha tido condições de operar sem as funções sociais executadas pelos Estados-nação desde os primeiros dias do capitalismo. Mesmo enquanto forças e movimentos operários de esquerda recuavam, quando os chamados governos social-democratas se juntaram ao assalto neoliberal, pelo menos uma rede mínima de “segurança” de provisão social provou ser uma condição essencial de sucesso econômico e estabilidade social nos países capitalistas avançados. Ao mesmo tempo, países em desenvolvimento que no passado talvez tivessem sido capazes de se valer mais de apoios tradicionais, como as famílias estendidas e aldeias comunitárias, passaram a sofrer pressão para transferir pelo menos algumas dessas funções para o Estado, à medida que o processo de “desenvolvimento e mercantilização da vida destruía ou enfraquecia as antigas redes sociais – embora, ironicamente, isso os tenha tornado ainda mais vulneráveis às demandas do capital imperial, à medida que a privatização dos serviços públicos se tornou uma condição de investimento, empréstimos e ajuda.
Os movimentos de oposição devem lutar constantemente para manter algo que se aproxime de uma provisão social decente. Mas é difícil ver como uma economia capitalista pode sobreviver, quanto mais prosperar, sem um Estado que até certo ponto, ainda que inadequadamente, equilibre as quebras sociais e econômicas causadas pelo mercado capitalista e pela exploração de classe. A globalização, que continuou a solapar as comunidades e redes sociais tradicionais, tornou a função estatal mais, e não menos, necessária à preservação do sistema capitalista. Isso não quer dizer que o capital decida incentivar deliberadamente as provisões sociais. Significa simplesmente que sua hostilidade a programas sociais, considerados necessariamente obstáculos à acumulação de capital, é uma das muitas contradições insolúveis do capitalismo.”
5 São esses os resultados de um escudo do Conselho de Pesquisa Econômica e Social, resumidos pelo professor Alan Rugman, citado em Larry Elliott, “Big Business isn’t Really that Big”, Guardian, Londres; 2 set., 2002, p. 23.


“A própria essência da globalização é uma economia global administrada por um sistema de Estados múltiplos e soberanias locais, estruturada numa relação complexa de dominação e subordinação.
A administração e a imposição do novo imperialismo por um sistema de Estados múltiplos criaram por si só muitos problemas, evidentemente. Não é simples manter o tipo certo de ordem entre tantas entidades nacionais, cada uma com suas próprias necessidades e pressões internas, sem falar dos seus próprios poderes coercivos. Inevitavelmente, administrar um sistema como esse exige, em última instância, um único poder militar esmagador, capaz de manter todos os outros na linha. Ao mesmo tempo, esse poder não pode ter autorização para romper a previsibilidade ordeira exigida pelo capital, nem a guerra pode colocar em risco os mercados e as fontes virais de capital. Esse é o enigma a ser resolvido pela única superpotência do mundo.”


“Pela primeira vez na história do Estado-nação moderno, as maiores potências do mundo não estão engajadas numa rivalidade geopolítica e militar direta. Essa rivalidade foi efetivamente deslocada pela competição à maneira capitalista. Ainda assim, à medida que a competição econômica foi superando o conflito militar nas relações entre os principais governos, mais os Estados Unidos lutaram para se tornar o poder militar mais esmagadoramente dominante que o mundo já viu.
Por que é necessário, na nova ordem capitalista mundial, que os Estados Unidos respondam por no mínimo 40% dos gastos militares do mundo, particularmente quando o país ainda tem tantas necessidades internas não atendidas, como, por exemplo, um sistema de saúde decente? Por que existe uma disparidade de poder tão grande no mundo, em que a “assimetria” mais gritante não é a que existe entre os Estados Unidos e os bandidos”, ou “terroristas”, mas “entre os Estados Unidos e o restante das potências”1? Já se disse que os Estados Unidos possuem hoje uma força militar maior que o conjunto das oito potências seguintes reunidas (e, de acordo com algumas avaliações, maior que todos os outros países combinados), mas o seu orçamento é igual ao dos doze ou quinze seguintes reunidos. Alguns poderiam chamar isso de “imperialismo excedente”, mas seja qual for o nome que se dê, suas razões não são de nenhum modo óbvias2.
Esse é o paradoxo do novo imperialismo. É o primeiro imperialismo em que o poder militar foi criado não para conquistar território nem para derrotar rivais. É um imperialismo que não busca expansão territorial nem dominação física de rotas territoriais. Ainda assim ele produziu essa enorme e desproporcional capacidade militar com um alcance global sem precedentes. Talvez seja precisamente por não ter nenhum objetivo claro e finito que o novo imperialismo exija força militar tão pesada. A dominação ilimitada de uma economia global e dos múltiplos Estados que a administram exige ação militar sem fim, em propósito ou tempo.”
1 Paul Kennedy, “The Eagle has Landed”, Financial Times, 2-3 fev., 2002, p. 1.
2 Devo a expressão a Robert Brenner.


“Os Estados Unidos estão preparados para incentivar até certo ponto o desenvolvimento das forças militares europeias, desde que sua natureza e seu uso possam ser confinados ao serviço de seus próprios objetivos — por exemplo, as forças europeias de manutenção da paz podem desempenhar um papel útil na limpeza da lambança deixada pela ação militar norte-americana, ou forças especializadas de diversos tipos podem ser mobilizadas na “guerra contra o terror”. Mas estão tomando todo cuidado para evitar o surgimento de qualquer rival militar verdadeiramente independente na Europa. A estratégia preferida é manter as forças europeias no abraço seguro da Otan, onde podem, como descreveu o sagaz analista William Pfaff, ser a “legião estrangeira do Pentágono”10.”
10 William Pfaff, “A Foreign Legion for the Pentagon? NATO's ‘Relevance’”, International Herald Tribune, Nova York, 7 nov. 2002, p. 8.


“Em 1992, o New York Times publicou um documento vazado, Defense Planning Guidance [Orientação para o planejamento de defesa], produzido pelo Pentágono. O autor era Paul Wolfowitz, que o escreveu para George Bush pai e se tornou conselheiro de George W. Bush, ao passo que seu principal apoiador, no momento de sua publicação, foi Dick Cheney, que se tornou vice-presidente. A lógica desse documento é bastante tortuosa, mas seu significado é claro: o objetivo de manter a posição militar dos Estados Unidos, no Oriente Médio e em outras partes, tem menos a ver com, por exemplo, proteger o fornecimento de petróleo aos Estados Unidos do que com desencorajar “as nações industriais avançadas a desafiar nossa liderança”. Em particular, potências aspirantes na Ásia e na Europa devem ser enfrentadas com uma dominância capaz de “dissuadir competidores potenciais até mesmo de aspirar a um maior papel regional ou global”11. O objetivo é o que foi chamado “dominância de amplo espectro”, que se estende até o espaço. Esse documento demonstra claramente que a guerra “total” defendida por Richard Perle não é apenas uma resposta ao 11 de Setembro. Pelo contrário, aquele evento trágico foi usado como pretexto para ativar uma agenda havia muito ativa.
Até mesmo o menos hidrófobo dos falcões, Colin Powell, concorda com o objetivo de, como diz um analista, “dominação mundial unilateral”, insistindo já em 1992 que os Estados Unidos devem ter poder suficiente “para dissuadir qualquer desafiante até de sonhar em nos desafiar no palco mundial”12.
A doutrina esboçada em Defense Planning Guidance recebeu status oficial na nova Estratégia de Segurança Nacional, de George W. Bush, publicada em setembro de 2002. A Doutrina Bush exige o direito exclusivo e unilateral de ataque preventivo, a qualquer tempo, em qualquer lugar, sem as peias de nenhum acordo internacional, a fim de garantir que “nossas forças serão suficientemente fortes para dissuadir adversários potenciais de promover ampliação militar na esperança de ultrapassar ou igualar o poder dos Estados Unidos”.
Desde que foi enunciado pela primeira vez, o objetivo dessa doutrina não escapou de diversos analistas, solidários e críticos. Ficou claro para eles que os alvos da estratégia militar podem não ser os óbvios e que a hegemonia sobre os principais competidores, inclusive amigos e aliados, foi um objetivo primordial.”
11 Citado em Nick Cohen, “With a Friend like This...”, Observer, Londres, 7 abr. 2002, p. 29.
12 Citado em Anatol Lieven, “The Push for War”, London Review of Books, 3 out. 2002, p. 8.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (Parte III) – Vladimir Safatle

Editora: Autêntica
ISBN: 978-85-5130-455-6
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 320
Sinopse: Ver Parte I



“Não há ação de transformação social sem a contraprodução de modelos de recuperação conservadora da revolta e é dessa forma que o nazismo será compreendido. Como dirão Adorno e Horkheimer: “O fascismo é totalitário na medida em que se esforça por colocar diretamente a serviço da dominação a própria rebelião da natureza reprimida contra a dominação”436. Ou seja, há uma rebelião na base do fascismo, há uma revolta cuja energia é desviada de sua força transformadora para colocar-se a serviço do recrudescimento da dominação. Há uma rebelião que se transforma em reação.”
436 ADORNO; HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, p. 172. Ver ainda: HORKHEIMER, Max. The Eclipse of Reason. Londres: Continuum Press, 2007.


“O que nossos últimos vinte anos mostraram foi que nenhuma ascensão da extrema-direita seria possível sem a naturalização de políticas de direita e extrema-direita pela socialdemocracia. Ela traz, assim, para dentro do espectro político, a agenda contra a qual ela normalmente deveria combater.”


Política e subjetivação
No entanto, é possível dizer sobre a posição de Adorno que ela parece ignorar o fato de revoltas e lutas revolucionárias se darem em um campo heterogêneo de forças sociais, nunca no interior de um campo homogêneo previamente balizado por um sujeito genérico.450 Por eclodirem em um campo heterogêneo, elas lidam com tendências muitas vezes contraditórias, muitas delas francamente regressivas. Cabe ao processo de mobilização procurar criar hegemonia “em movimento”, ou seja, a partir da própria intervenção no campo de ações. Nesse sentido, a colocação de seu antigo estudante, Hans Jurgen Krahl, a respeito da “inabilidade da teoria de Adorno em lidar com questões de organização”451 não deveria ser descartada. Elas dizem respeito à compreensão concreta dos processos de emergência. Ao menos nesse contexto, ela aponta para um problema central de reflexão sobre processos de constituição de hegemonia. Pois sujeitos políticos emergem no interior de lutas e revoltas, não previamente a elas. Para que tal emergência seja possível, faz-se necessário que a crítica social se desdobre ao menos em indicação de potencialidades de organização tendo em vista a insurgência. O diagnóstico adorniano do “enfraquecimento da consciência de classe’ no interior do capitalismo tardio parece paralisá-lo diante da possibilidade de lutar pela constituição de hegemonia em um campo de atores sociais fragmentado, já que falta a Adorno a constituição teórica de um sujeito genérico interno aos embates políticos, capaz de emergir “em movimento” no interior das lutas sociais (como faz Marx a respeito do proletariado). Para tanto, seria necessário que o próprio conceito de “sujeito não-idêntico” fosse projetado para dentro do campo de embates políticos, o que não ocorre. Essa talvez seja uma tarefa política maior deixada pela dialética negativa. Isso nos levaria à questão de como sujeitos não-idênticos se organizam em processos de insurgência, como eles se manifestam em situações “cedo demais”, questões que Adorno se recusa terminantemente a colocar. Questões que ficaram para a posteridade.
Note-se que isso nada tem a ver com alguma forma de “resignação escapista” que seria própria à dialética negativa. A insistência de Adorno na irredutibilidade do momento teórico é, na verdade, fruto da consciência da impotência de uma prática incapaz de se orientar diante de uma avaliação adequada de contextos e impactos de ações. Pois, “a passagem à práxis sem teoria é motivada pela impotência objetiva da teoria, e multiplica aquela impotência mediante o isolamento e fetichização do momento subjetivo do movimento histórico: a espontaneidade”.453 Esse ponto é tão central para a concepção política de Adorno que em certos momentos ele explicitará a necessidade de novas formas de aliança entre intelectuais e classe trabalhadora como condição fundamental para que a energia negativa das classes subalternas se transforme em força revolucionária:
Hoje em dia, quando o conceito de proletariado, intocado em sua essência econômica, está tão obliterado pela tecnologia que, no maior dos países industrializados, não há possibilidade de uma consciência proletária de classe, o papel dos intelectuais já não seria alertar os obtusos para seus interesses mais patentes, porém tirar a venda dos olhos dos espertos, tirar a ilusão de que o capitalismo que faz deles seus beneficiários transitórios baseia-se em outra coisa que não sua exploração e opressão. Os trabalhadores enganados dependem diretamente daqueles que ainda conseguem enxergar alguma coisa e falar-lhes de seu engano. Seu ódio pelos intelectuais sofreu uma mudança correspondente. Alinhou-se com as opiniões correntes do senso comum. As massas já não desconfiam dos intelectuais por eles traírem a revolução, mas porque eles talvez a queiram; com isso, relevam quão grande é sua própria necessidade de intelectuais. A humanidade só sobreviverá se os extremos se unirem.454
A colocação é clara e repete uma ideia presente em muitos momentos nos textos adornianos, a saber, não há como apelar à emergência de uma consciência de classe, independente dos antagonismos de classe terem permanecido intocados. Mesmo assim, nesse contexto, a função dos intelectuais continua decisiva, o que demonstra uma consciência explícita de autopertencimento a uma dinâmica de luta social. Essa função dos intelectuais não consiste, no entanto, em enunciar ao proletariado a natureza de seus próprios interesses, como se fosse questão de retomar uma visão redentora e dirigista de uma pretensa vanguarda intelectual. Ela é um insistir na impossibilidade da integração, no embuste da participação e da “parceria social”. A classe intelectual tem uma função desintegradora que só aparece de forma efetiva quando ela assume para si querer uma práxis revolucionária, sua não-participação é ativa. Ela é uma desintegração em ato. Assim, ela recusa sua própria integração e permite, com isso, a imagem improvável de uma união entre os extremos, mesmo que não se possa dizer que essa força da recusa seja atualmente uma posição muito presente entre a classe intelectual.
No entanto, diante dos impasses e desafios dessa natureza, a Teoria Crítica preferiu abandonar o que seria a tarefa exigida pelo tempo histórico, a saber, aprofundar a reflexão sobre a dialética necessária para as potencialidades revolucionárias do presente, aprofundar a reflexão sobre processos de emergência. Ou ainda, pensar a sociedade capitalista a partir de sua plasticidade revolucionária imanente. O que ela se tornou foi um celeiro de intelectuais para os quais a própria ideia de “revolução” perdera completamente o sentido. Teria sido necessário meditar com mais vagar afirmações de Adorno como:
Meu sentimento mais íntimo sobre isso é: no momento tudo está fechado, mas a qualquer momento isso pode mudar. Eu faço a seguinte consideração: essa sociedade não se move em direção a um Estado de Bem-Estar. [...] Eu não consigo imaginar que exista um mundo intensificado a tal ponto de delírio, sem que contraforças objetivas sejam liberadas.455
Ou seja, teria sido necessário pensar com mais vagar sobre essas contraforças objetivas que se movem para fora do modelo do Estado do bem-estar social, o último estágio possível de compromissos no interior das sociedades capitalistas avançadas. Teria sido necessário pensar uma plasticidade revolucionária indissociável do movimento polar entre emancipação e risco de regressão fascista. Em vez disso, as gerações posteriores da Escola de Frankfurt, animadas pelo medo do que aparecia a alguns como “fascismo de esquerda” (expressão colocada em circulação pelo jovem Habermas), acabarão por abraçar um projeto político muito mais desinflacionado de aspirações de transformação. A filosofia que precisa manter-se viva para lembrar a potência do que ainda não foi realizado e dos sujeitos que virão dará lugar à análise dos potenciais imanentes às estruturas de interação já em operação nas esferas de reprodução da vida social, A solidariedade entre filosofia e revolução, solidariedade que, como dizia Freud a respeito da razão, pode falar baixo mas nunca se cala, será cortada de vez no interior do pensamento frankfurtiano. Ela simplesmente desaparecerá como questão relevante para uma reflexão político-filosófica.
Até mesmo a crítica totalizante da sociedade capitalista implacavelmente feita por Adorno será vista, muitas vezes, como mera expressão de um niilismo sem freios, elitista e aristocrático. Sua crítica da cultura será vista como incapaz de dar conta da multiplicidade dos processos de ressignificação próprios à recepção e à remediação. Teremos então uma geração de pensamento crítico sem a capacidade e o desejo de operar de forma implacável no campo da crítica cultural e na destituição da indústria cultural. Geração que preferirá ver, na crítica cultural, a expressão inconfessa do elitismo e da afirmação colonial. Mas a deposição da crítica da cultura é o primeiro estágio do embotamento de toda imaginação política. Por isso, há de se lembrar que recuperar a dialética adorniana nunca será uma operação anódina em suas consequências políticas.”
451 KRAHL, Hans Jurgen. fre political contradiction in Adorno’s critical theory. Telos: critical theory of the contemporary, v. 21, n. 164, 1974.
452 ADORNO, Gesammelte Schriften, v. 8, p. 15.
453 ADORNO, Palavras e sinais, p. 212. Lembremos ainda de que: “A crítica lógica e a enfático-prática, de que a sociedade precisa ser transformada, são momentos do mesmo movimento do conceito. Que também uma tal análise não pode simplesmente ignorar a separação do vinculado, a de ciência e política, se confirma pelo procedimento de Marx. Ele tanto criticou como respeitou a separação; aquele que em sua juventude escreveu as Teses de Feuerbach permaneceu por toda a sua vida um teórico da economia política” (ADORNO, Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã, p. 139).
454 ADORNO. Theodor. Mensagens numa garrafa. ŽIŽEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007, p. 50.
455 ADORNO, Theodor; HORKHEIM Max. Diskussion über Theorie und Praxis. In: HORKHEIMER, Max. Gesammelle Schriften. Band 19. Frankfurt: Suhrkamp, 2003, p. 47.


“No entanto, devemos insistir em uma questão central nesse debate: entre Deleuze e Hegel passa ao menos um ponto em comum, a saber, todas as duas são filosofias para as quais o problema filosófico fundamental consiste em pensar a atualidade do infinito, criticando, com isso, o papel estabilizador do recurso ao fundamento. Todo debate sobre os dois filósofos deveria partir dessa aceitação. Todos os dois procuram, à sua maneira, definir a tarefa da filosofia como a exigência de, através dos conceitos, “adquirir consistência sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha”.483 Todos eles colocam como tarefa maior criticar a finitude da representação, seja sob a forma da finitude dos modos de determinação próprios ao entendimento (Hegel), seja sob a forma de uma imagem do pensamento ligada ao primado da identidade (Deleuze). Por ter um projeto comum, mas construído a partir de uma base metafísica distinta (como gostaria de mostrar mais à frente), a relação de Deleuze com Hegel será necessariamente problemática e mesmo necessariamente injusta. Os filósofos que não podemos ler não são aqueles com os quais discordamos, mas aqueles com os quais mantemos uma relação não-aceita de proximidade relativa. (...)
Digamos que, para Hegel, infinito é aquilo que porta em si mesmo sua própria negação e que, em vez de se autodestruir, conserva-se em uma determinidade. Daí por que ele pode afirmar, em uma frase-chave:
A infinitude, ou essa inquietude absoluta do puro mover-se-a­si-mesmo, faz com que tudo o que é determinado de qualquer modo – por exemplo, como ser – seja antes o contrário dessa determinidade.484
Notemos essa maneira peculiar de falar sobre o infinito. Primeiro, Hegel o define como “a inquietude absoluta do puro mover-si-a-si-mesmo”, ou seja, o infinito é uma forma de movimento, uma forma de passagem, e não uma situação. Um movimento infinito será aquele que é marcado por uma inquietude “absoluta”. Ela é absoluta por não ser “relativa” a uma situação dada, mas ser contínua ultrapassagem de si por si mesmo, o que pode ser entendido como: atualização do que não é um mero possível da situação dada. Por isso, a infinitude é construída a partir da experiência da contradição, pois ela é atualização de impossíveis. Dessa forma, a infinitude aparecerá como a constituição de um objeto da experiência que se move a si mesmo, que tem em si mesmo a própria causa de sua transformação, não no sentido de ter seu princípio de desenvolvimento em um regime potência/ato, mas de ter em si o processo que destrói sua própria identidade imediata.
Mais uma vez poderíamos dizer que isso parece fazer com que o infinito seja o ato contínuo de ultrapassagem do finito, de um finito que permanece, que se conserva por precisar ser continuamente ultrapassado. Portanto, Deleuze podia dizer que, em Hegel, a representação infinita não se livra do princípio de identidade, mesmo que ele agora seja mobilizado preferencialmente através daquilo que indica seu limite, como as noções de oposição, antagonismo, contradição e conflito.
No entanto, e vale a pena voltar a esse ponto de forma mais sistemática, lembremos como tal leitura só seria possível se reduzíssemos todas as figuras dialéticas da negação à oposição, o que está longe de ser o caso em Hegel. A oposição pode admitir que só é possível pôr um termo através da pressuposição da realidade do seu oposto, que aparece aqui como limite de significação. Mas a oposição não pode admitir, e aqui começa uma compreensão dialética da infinitude, que a realização de um processo é a autonegação de sua identidade imediata, é a destruição de seu limite suposto. Em suma, ela não pode admitir que “tudo o que é determinado de algum modo é o contrário desta determinidade”, que toda determinação é precária por estar em movimento. Admitir isso significaria desarticular a própria noção de identidade em sua força de distinção entre elementos, o que desarticularia a noção de “finito”. Pois perdida a capacidade de distinção entre elementos, o que resta da identidade? Certamente, nada referente a seu significado habitual. Ela deixa de ter a função organizadora que normalmente esperamos da representação.”
484 HEGEL, Fenomenologia do Espírito, p. 116.


“No entanto, podemos lembrar como a negatividade em Hegel não pode ser pensada sob a forma da privação ou da falta, mas sob a forma da indeterminação produtiva. Hegel compreende que o fracasso do finito em determinar-se deve ser momento de atualização de um infinito que, inicialmente, deve aparecer como força de indeterminação, para depois aparecer como força produtiva através da virtualização dos limites do finito. As determinações finitas e sua estética própria do tempo e do espaço devem entrar em colapso; elas devem se autonegar através de uma crítica imanente na qual elas descobrem em si mesmas o infinito em operação, na qual elas começam a falar outra linguagem, como se sua linguagem natural fosse simplesmente destruída. As determinações finitas devem, de certa forma, explodir seus limites, suspendendo a força de organização de uma estética submetida ao pensar representativo para assim se realizarem como infinito.487 É dessa forma que devemos entender uma afirmação central, que descreve o movimento dialético hegeliano:
A superação (Aufheben) não é a alteração ou o ser-outro em geral, nem a superação de algo. Isso, em que o finito se supera, é o infinito como a negação da finitude, mas a finitude foi determinada por muito tempo apenas como existência enquanto não-ser. Por seu lado, a infinitude foi determinada como o negativo da finitude e da determinidade em geral, como o vazio do para além. A superação de si na finitude é um retorno deste voo vazio, a negação do para além que é, em si mesmo, um negativo.488
Podemos dizer que esse retorno do voo vazio, a negação da negação do para além como realização efetiva do infinito se dá através de uma peculiar virtualização da efetividade capaz de desarticular o sistema de limites do pensar representativo. Hegel fornece uma figura exemplar dessa virtualidade recorrendo às noções de tempo histórico e temporalidade concreta.489 Basta extrair as consequências necessárias de afirmações como:
A vida do espírito presente é um círculo de degraus que, por um lado, permanecem justapostos e apenas por outro lado aparecem como passados. Os momentos que o espírito parece ter atrás de si, ele também os tem em sua profundidade presente.490
A capacidade de colocar em justaposição o que até então era radicalmente disjunto, de criar a contemporaneidade do não contemporâneo implica um colapso da estética transcendental do tempo e sua linearidade. Ao se livrarem dos limites da representação, as determinações realizam sua infinitude ao se encontrarem no tempo histórico. Pois, se vários tempos podem estar atualizados em uma profundidade presente, é porque eles não se submetem a uma concepção representacional, mas organizam-se como uma multiplicidade. A recondução do tempo à sua historicidade é figura exemplar da maneira hegeliana de pensar a atualização da virtualidade como figura da infinitude, e fornece um belo exemplo da razão pela qual a negação de uma negação resulta, em Hegel, em uma afirmação. Os instantes temporais negam-se entre si, pois se determinam inicialmente a partir de diferenças opositivas. A negação de sua negação é a atualização de uma estrutura de implicações impensável para o entendimento, mas profundamente real, por isto afirmativa.”
487 Notemos que não estamos distantes de uma operação bem descrita por Lapoujade: “É um erro afirmar que o projeto de Deleuze é antidialético com o pretexto de que ele rejeita toda mediação; pelo contrário, é porque ele coloca em curto-circuito todas as mediações entre o sensível e a Ideia que seu projeto é propriamente dialético” (LAPOUJADE, Deleuze: os movimentos aberrantes, p. 102).
488 HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 160).
489 Desenvolvi este ponto de maneira mais sistemática em O circuito dos afetos.
490 HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, 2005, p. 104.


“Gostaria de terminar procurando caracterizar melhor o ponto no qual, a meu ver, a distinção entre Hegel e Deleuze pode ser posta de maneira mais produtiva. Isso exige retornar ao problema da contradição em Hegel, em especial a seu caráter de “contradição objetiva”, ou se quisermos, de contradição real. Como vimos, a contradição em Hegel não diz respeito apenas à contradição lógica entre o universal e o particular, ou entre dois termos contrários enunciados sob o mesmo aspecto (como em uma relação de tese e antítese). Da mesma forma como Kant precisa distinguir oposição lógica e real, Hegel também opera com uma distinção fundamental entre contradição lógica e real.
Eu insistira anteriormente que o movimento dialético não é mera modificação, mas é a destruição da identidade inicialmente posta. A contradição é negação da totalidade da identidade inicial através do movimento da identidade realizar-se como exceção de si, da totalidade encarnar-se em um termo que a nega e que, inicialmente, lhe parece absolutamente exterior, o que não poderia ser diferente para alguém que define o movimento da essência como uma autonegação. Definir tal autonegação como atualização do movimento da essência significa que a destruição da identidade posta não é fruto de um acidente, mas a realização da essência, ou mesmo a integração do acidente no interior da essência (e poderíamos dizer que essa é uma das determinações fundamentais da dialética, a saber, a capacidade de integrar o acidente no interior da essência). Se fosse um acidente meramente exterior, não haveria contradição. Nesse sentido, podemos dizer que o que se move move-se por destruição de si e por inscrição dessa destruição em um movimento de “retorno em si” (Rückkehr in sich selbst) que modifica retroativamente a situação inicial finita e limitada, em vez de assegurá-la em sua identidade inicial.
Ou seja, Hegel admite, à sua maneira, uma proposição cara a Deleuze: só a repetição produz uma experiência da diferença. Mas trata-se aqui de uma repetição pensada como modalidades de retorno a si que reinstauram regimes de determinação em um nível mais elevado de complexidade.508 Esta é a maneira hegeliana de afirmar que algo tem em si a própria causa do que lhe transforma. Ter em si a própria causa do que lhe transforma não é expressar a imanência de um devir que se desdobra no interior da totalidade da substância. Antes, ter em si a própria causa do que lhe transforma é integrar uma exceção, uma contingência que só poderá ser encarnada por uma totalidade, ou seja, que só pode ser integrada à condição de a totalidade modificar o que determina seu regime de relações. Daí por que é necessário falar em contradição como condição para um movimento de transformação efetiva.”
508 Podemos dizer que esta função do retorno a si representa uma diferença importante entre Hegel e Deleuze. “Para Hegel, se não há retorno, a potência da ideia se dissipa até submergir-se na penunbra da alienação. [...] Contra o retorno hegeliano (zurückkehren), Deleuze oporá o eterno retorno nietzscheano como chave da repetição que articula a diferença” (FERREYRA, Julien. Hegel leitor de Deleuze: uma perspectiva crítica da ontologia afirmativa a partir das objeções a Spinoza na Ciência da Lógica. Kriterion, Belo Horizonte, v. 54, n. 127, jun. 2013).


“Podemos falar de indeterminação de duas maneiras: como um abismo em que tudo se dissolve ou como uma superfície em que determinações não se organizam como um sistema de partes integradas e claramente diferenciadas. Este segundo conceito de indeterminação será posteriormente recuperado sob a forma da noção de “plano de imanência”.
Essa é a maneira deleuzeana de afirmar que o verdadeiro pensamento da diferença a compreende não como modo de distinção entre elementos fortemente determinados, mas como uma potência interna de indiferenciação que habita toda determinação. Pois toda atualização da virtualidade é indissociável de um movimento de destituição das formas até então vigentes e temos todo o direito de nos perguntar se movimentos de destituição podem ser corretamente descritos a partir de potências meramente afirmativas.
Isso leva Deleuze a insistir que “quando o fundo sobe à superfície, o rosto humano se decompõe neste espelho no qual o indeterminado, assim como as determinações, se confunde em uma única determinação que ‘faz’ diferença”.512 Ou ainda, que o leva a mostrar como a figura fundamental da diferença não é a oposição, mas esta “potência informal do fundo que leva cada coisa a esta forma extrema na qual sua representação se desfaz”513. Tal potência informal do fundo é o fundamento da “diferença nela mesma”, uma diferença interna ao processo de determinação de uma individualidade.”
512 DELEUZE, G. Différence et répétition, p. 44.
513 Ibid., p. 80.


“Podemos dizer que foi por uma razão semelhante que Hegel apareceu como um dos primeiros a propor uma ontologia desprovida do conceito de ser enquanto conceito fundamental. Na verdade, o conceito ontológico central de Hegel é essência (Wesen), com sua dinâmica de movimentos produzidos a partir de estruturas relacionais como a identidade, a diferença, a oposição e a contradição. Hegel crê que o conceito de ser é, de certa forma, um falso conceito por sua generalidade abstrata ser, na verdade, índice de indeterminação improdutiva. Portanto, ele precisa apreender a substância não como ser, mas como sujeito em atividade de negatividade, ou seja, ele precisa compreender a atualização como uma atividade na qual a multiplicidade só é posta através da reflexão, o que não significa que ela é meramente abstrata, mas que ela não originária, que ela só pode ser fruto de uma atividade de reconhecimento capaz de produzir relações que não existiam anteriormente. Ao compreender isso, a contradição deixa de ser um limite ao pensamento para ser a expressão de um mundo que é movimento, que só se estabiliza temporariamente em uma transformação da linguagem.
Ao afirmar que é necessário apreender a substância como sujeito, Hegel não está a dar uma definição substancial de sujeito, mas a mostrar como a relação entre o que se coloca no lugar da substância e a existência não é uma expressão, por mais que tal expressão não seja, por sua vez, uma mera participação. Ela é a reflexão em algo que aparece inicialmente como exterioridade, como quebrando as dobras da substância. Tal exterioridade não é apenas uma aparência derivada de um modo imperfeito de conhecimento. Ela é a condição para conservar a possibilidade de emergir aquilo que não é simplesmente a possibilidade de uma atualidade posta. Nesse sentido, apreender a substância como sujeito significa afirmar que não há experiência sem implicação, que a experiência é o nome deste processo de implicação com o que se coloca inicialmente como exterioridade bruta, como contradição em relação às dinâmicas de atualização de uma substância. Dessa forma, a dialética admite que toda e qualquer violência dos acontecimentos exteriores será sempre convertível em afirmação.”


“Há situações em que a colisão é uma forma de encontro. A forma mais bela e misteriosa de todas.”


“A revolução haitiana e sua guerra de independência é a história da realização efetiva dos ideais de igualdade que emergem através da Revolução Francesa contra os próprios franceses. Ela é o momento no qual a revolução francesa deixa de ser limitada por um horizonte colonial e se transforma em possibilidade de efetivação de uma universalidade concreta. E isso se dá através de um movimento dialético no qual o enunciador recebe sua mensagem de volta, mas de forma invertida. Lembremos, por exemplo, desse momento maior da luta entre o exército haitiano e os destacamentos franceses, enviados para remeter o povo da ilha à escravidão:
A posição política desonesta do exército francês agora cobrava seu preço. Os soldados ainda se viam como uma armada revolucionária. Mas à noite ouviam os negros na fortaleza cantando a “marselhesa”, a «ça ira» e outras canções revolucionárias. Lacroix relatou que aqueles miseráveis extraviados estremeciam e olhavam para seus superiores quando ouviam as músicas, como se dissessem: “Será que os nossos inimigos bárbaros têm a justiça do seu lado? Será que já não somos mais os soldados da República francesa? E será que nos tornamos meros instrumentos políticos?”. Um regimento de poloneses, recordando sua própria luta pelo nacionalismo, recusou-se a tomar parte do massacre dos seiscentos negros, ordenado por Leclerc.543
Depois disso, o Império perdeu. Essa potência plebeia de interversão é, no entanto, a real realização do conceito efetivamente revertido. Há uma astúcia dialética aqui que faz dos ex-escravos, em uma aliança inaudita e transtemporal com os setores de sedição da classe intelectual, os enunciadores efetivos das aspirações da razão na história (bem, eu sei o peso de afirmar algo dessa natureza em um contexto histórico como o nosso. E mesmo assim, ela está escrita).”
543 JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 289.


“Em seu último livro, O novo tempo do mundo, Paulo Arantes fornece pela primeira vez uma impressionante filosofia da história de larga escala. No entanto, ela parece inicialmente orientada, na verdade, como filosofia do colapso do tempo histórico. Pois se trata de descrever as condições para a realização de certa sobreposição entre espaço de experiência e horizonte de expectativa que, longe de marcar a aceleração do tempo em direção à possibilidade de transformações revolucionárias e emancipatórias, ou seja, à realização da potência redentora da utopia, é a perpetuação coroada de um “tempo morto”. Longe da força transformadora da crise como explicitação de contradições que produzem o movimento histórico em direção a um futuro qualitativamente diferente, teríamos agora um “estado de crise permanente” no qual crise não é mais o índice de uma impossibilidade de governar, mas a forma mesma de governo.559 Tal forma de governo consolida-se como a gestão e a produção de um “horizonte de expectativas decrescentes”, pois se trata de reduzir acontecimentos a “riscos” que permitem a submissão do tempo à projeção, trata-se de gerir a anulação da expectativa de qualquer mudança. Algo que fica mais visível em um país periférico que expõe, em sua história, a farsa das promessas de “formação” e “desenvolvimento”.
Tal horizonte decrescente de expectativas implica, entre outros, uma “experiência negativa da espera”, um “disciplinamento pela espera”,560 ou seja, uma espera sem horizonte que aparece como horizonte real de uma disciplina dos corpos, do tempo do trabalho, das formas do desejo no último estágio das sociedades capitalistas. Disciplina que só pode ser suportável à condição da generalização da paranoia com sua elevação do medo a afeto político central, com seus discursos da segurança, da imunização necessária, do risco contínuo. Foi assim que “o horizonte contemporâneo tornou-se nada mais, nada menos que a securização de um risco permanente e incontornável, contra o qual toda precaução é pouca”.561 Como não há mais nada o que esperar, toda paranoia é pouca para esconder dos agentes como eles estão a correr no vazio. Na periferia, é mais fácil perceber, como disse Adorno, que não há nenhuma história universal que conduza do selvagem à humanidade. Mas há certamente uma que conduz da atiradeira à bomba atômica.”
559 De fato, a confluência do espírito do tempo é forte. A mesma época, o grupo Comitê Invisível publicava Aos nossos amigos: crise e insurreição onde se defendia a tese de que, longe de uma crise do capitalismo, viveríamos um capitalismo de crise no qual: “o discurso da crise intervém como método político de gestão das populações. A reestruturação permanente de tudo – dos organogramas aos programas sociais, das empresas aos bairros – através de uma perturbação constante das condições de existência é a única forma de organizar a inexistência do partido opositor. [...] Ela corresponde a uma estratégia que se formula nestes termos: “Prevenir, por via da crise permanente, toda e qualquer crise efetiva” (COMITÊ INVISÍVEL. Aos nossos amigos: crise e insurreição. São Paulo: N-1, 2016, p. 26).
560 ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 163.
561 Idem, p. 190.


“Complicar sua própria vida é toda uma arte.”