terça-feira, 7 de abril de 2020

Dar corpo ao impossível: o sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (Parte III) – Vladimir Safatle

Editora: Autêntica
ISBN: 978-85-5130-455-6
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 320
Sinopse: Ver Parte I



“Não há ação de transformação social sem a contraprodução de modelos de recuperação conservadora da revolta e é dessa forma que o nazismo será compreendido. Como dirão Adorno e Horkheimer: “O fascismo é totalitário na medida em que se esforça por colocar diretamente a serviço da dominação a própria rebelião da natureza reprimida contra a dominação”436. Ou seja, há uma rebelião na base do fascismo, há uma revolta cuja energia é desviada de sua força transformadora para colocar-se a serviço do recrudescimento da dominação. Há uma rebelião que se transforma em reação.”
436 ADORNO; HORKHEIMER, Dialética do esclarecimento, p. 172. Ver ainda: HORKHEIMER, Max. The Eclipse of Reason. Londres: Continuum Press, 2007.


“O que nossos últimos vinte anos mostraram foi que nenhuma ascensão da extrema-direita seria possível sem a naturalização de políticas de direita e extrema-direita pela socialdemocracia. Ela traz, assim, para dentro do espectro político, a agenda contra a qual ela normalmente deveria combater.”


Política e subjetivação
No entanto, é possível dizer sobre a posição de Adorno que ela parece ignorar o fato de revoltas e lutas revolucionárias se darem em um campo heterogêneo de forças sociais, nunca no interior de um campo homogêneo previamente balizado por um sujeito genérico.450 Por eclodirem em um campo heterogêneo, elas lidam com tendências muitas vezes contraditórias, muitas delas francamente regressivas. Cabe ao processo de mobilização procurar criar hegemonia “em movimento”, ou seja, a partir da própria intervenção no campo de ações. Nesse sentido, a colocação de seu antigo estudante, Hans Jurgen Krahl, a respeito da “inabilidade da teoria de Adorno em lidar com questões de organização”451 não deveria ser descartada. Elas dizem respeito à compreensão concreta dos processos de emergência. Ao menos nesse contexto, ela aponta para um problema central de reflexão sobre processos de constituição de hegemonia. Pois sujeitos políticos emergem no interior de lutas e revoltas, não previamente a elas. Para que tal emergência seja possível, faz-se necessário que a crítica social se desdobre ao menos em indicação de potencialidades de organização tendo em vista a insurgência. O diagnóstico adorniano do “enfraquecimento da consciência de classe’ no interior do capitalismo tardio parece paralisá-lo diante da possibilidade de lutar pela constituição de hegemonia em um campo de atores sociais fragmentado, já que falta a Adorno a constituição teórica de um sujeito genérico interno aos embates políticos, capaz de emergir “em movimento” no interior das lutas sociais (como faz Marx a respeito do proletariado). Para tanto, seria necessário que o próprio conceito de “sujeito não-idêntico” fosse projetado para dentro do campo de embates políticos, o que não ocorre. Essa talvez seja uma tarefa política maior deixada pela dialética negativa. Isso nos levaria à questão de como sujeitos não-idênticos se organizam em processos de insurgência, como eles se manifestam em situações “cedo demais”, questões que Adorno se recusa terminantemente a colocar. Questões que ficaram para a posteridade.
Note-se que isso nada tem a ver com alguma forma de “resignação escapista” que seria própria à dialética negativa. A insistência de Adorno na irredutibilidade do momento teórico é, na verdade, fruto da consciência da impotência de uma prática incapaz de se orientar diante de uma avaliação adequada de contextos e impactos de ações. Pois, “a passagem à práxis sem teoria é motivada pela impotência objetiva da teoria, e multiplica aquela impotência mediante o isolamento e fetichização do momento subjetivo do movimento histórico: a espontaneidade”.453 Esse ponto é tão central para a concepção política de Adorno que em certos momentos ele explicitará a necessidade de novas formas de aliança entre intelectuais e classe trabalhadora como condição fundamental para que a energia negativa das classes subalternas se transforme em força revolucionária:
Hoje em dia, quando o conceito de proletariado, intocado em sua essência econômica, está tão obliterado pela tecnologia que, no maior dos países industrializados, não há possibilidade de uma consciência proletária de classe, o papel dos intelectuais já não seria alertar os obtusos para seus interesses mais patentes, porém tirar a venda dos olhos dos espertos, tirar a ilusão de que o capitalismo que faz deles seus beneficiários transitórios baseia-se em outra coisa que não sua exploração e opressão. Os trabalhadores enganados dependem diretamente daqueles que ainda conseguem enxergar alguma coisa e falar-lhes de seu engano. Seu ódio pelos intelectuais sofreu uma mudança correspondente. Alinhou-se com as opiniões correntes do senso comum. As massas já não desconfiam dos intelectuais por eles traírem a revolução, mas porque eles talvez a queiram; com isso, relevam quão grande é sua própria necessidade de intelectuais. A humanidade só sobreviverá se os extremos se unirem.454
A colocação é clara e repete uma ideia presente em muitos momentos nos textos adornianos, a saber, não há como apelar à emergência de uma consciência de classe, independente dos antagonismos de classe terem permanecido intocados. Mesmo assim, nesse contexto, a função dos intelectuais continua decisiva, o que demonstra uma consciência explícita de autopertencimento a uma dinâmica de luta social. Essa função dos intelectuais não consiste, no entanto, em enunciar ao proletariado a natureza de seus próprios interesses, como se fosse questão de retomar uma visão redentora e dirigista de uma pretensa vanguarda intelectual. Ela é um insistir na impossibilidade da integração, no embuste da participação e da “parceria social”. A classe intelectual tem uma função desintegradora que só aparece de forma efetiva quando ela assume para si querer uma práxis revolucionária, sua não-participação é ativa. Ela é uma desintegração em ato. Assim, ela recusa sua própria integração e permite, com isso, a imagem improvável de uma união entre os extremos, mesmo que não se possa dizer que essa força da recusa seja atualmente uma posição muito presente entre a classe intelectual.
No entanto, diante dos impasses e desafios dessa natureza, a Teoria Crítica preferiu abandonar o que seria a tarefa exigida pelo tempo histórico, a saber, aprofundar a reflexão sobre a dialética necessária para as potencialidades revolucionárias do presente, aprofundar a reflexão sobre processos de emergência. Ou ainda, pensar a sociedade capitalista a partir de sua plasticidade revolucionária imanente. O que ela se tornou foi um celeiro de intelectuais para os quais a própria ideia de “revolução” perdera completamente o sentido. Teria sido necessário meditar com mais vagar afirmações de Adorno como:
Meu sentimento mais íntimo sobre isso é: no momento tudo está fechado, mas a qualquer momento isso pode mudar. Eu faço a seguinte consideração: essa sociedade não se move em direção a um Estado de Bem-Estar. [...] Eu não consigo imaginar que exista um mundo intensificado a tal ponto de delírio, sem que contraforças objetivas sejam liberadas.455
Ou seja, teria sido necessário pensar com mais vagar sobre essas contraforças objetivas que se movem para fora do modelo do Estado do bem-estar social, o último estágio possível de compromissos no interior das sociedades capitalistas avançadas. Teria sido necessário pensar uma plasticidade revolucionária indissociável do movimento polar entre emancipação e risco de regressão fascista. Em vez disso, as gerações posteriores da Escola de Frankfurt, animadas pelo medo do que aparecia a alguns como “fascismo de esquerda” (expressão colocada em circulação pelo jovem Habermas), acabarão por abraçar um projeto político muito mais desinflacionado de aspirações de transformação. A filosofia que precisa manter-se viva para lembrar a potência do que ainda não foi realizado e dos sujeitos que virão dará lugar à análise dos potenciais imanentes às estruturas de interação já em operação nas esferas de reprodução da vida social, A solidariedade entre filosofia e revolução, solidariedade que, como dizia Freud a respeito da razão, pode falar baixo mas nunca se cala, será cortada de vez no interior do pensamento frankfurtiano. Ela simplesmente desaparecerá como questão relevante para uma reflexão político-filosófica.
Até mesmo a crítica totalizante da sociedade capitalista implacavelmente feita por Adorno será vista, muitas vezes, como mera expressão de um niilismo sem freios, elitista e aristocrático. Sua crítica da cultura será vista como incapaz de dar conta da multiplicidade dos processos de ressignificação próprios à recepção e à remediação. Teremos então uma geração de pensamento crítico sem a capacidade e o desejo de operar de forma implacável no campo da crítica cultural e na destituição da indústria cultural. Geração que preferirá ver, na crítica cultural, a expressão inconfessa do elitismo e da afirmação colonial. Mas a deposição da crítica da cultura é o primeiro estágio do embotamento de toda imaginação política. Por isso, há de se lembrar que recuperar a dialética adorniana nunca será uma operação anódina em suas consequências políticas.”
451 KRAHL, Hans Jurgen. fre political contradiction in Adorno’s critical theory. Telos: critical theory of the contemporary, v. 21, n. 164, 1974.
452 ADORNO, Gesammelte Schriften, v. 8, p. 15.
453 ADORNO, Palavras e sinais, p. 212. Lembremos ainda de que: “A crítica lógica e a enfático-prática, de que a sociedade precisa ser transformada, são momentos do mesmo movimento do conceito. Que também uma tal análise não pode simplesmente ignorar a separação do vinculado, a de ciência e política, se confirma pelo procedimento de Marx. Ele tanto criticou como respeitou a separação; aquele que em sua juventude escreveu as Teses de Feuerbach permaneceu por toda a sua vida um teórico da economia política” (ADORNO, Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã, p. 139).
454 ADORNO. Theodor. Mensagens numa garrafa. ŽIŽEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007, p. 50.
455 ADORNO, Theodor; HORKHEIM Max. Diskussion über Theorie und Praxis. In: HORKHEIMER, Max. Gesammelle Schriften. Band 19. Frankfurt: Suhrkamp, 2003, p. 47.


“No entanto, devemos insistir em uma questão central nesse debate: entre Deleuze e Hegel passa ao menos um ponto em comum, a saber, todas as duas são filosofias para as quais o problema filosófico fundamental consiste em pensar a atualidade do infinito, criticando, com isso, o papel estabilizador do recurso ao fundamento. Todo debate sobre os dois filósofos deveria partir dessa aceitação. Todos os dois procuram, à sua maneira, definir a tarefa da filosofia como a exigência de, através dos conceitos, “adquirir consistência sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha”.483 Todos eles colocam como tarefa maior criticar a finitude da representação, seja sob a forma da finitude dos modos de determinação próprios ao entendimento (Hegel), seja sob a forma de uma imagem do pensamento ligada ao primado da identidade (Deleuze). Por ter um projeto comum, mas construído a partir de uma base metafísica distinta (como gostaria de mostrar mais à frente), a relação de Deleuze com Hegel será necessariamente problemática e mesmo necessariamente injusta. Os filósofos que não podemos ler não são aqueles com os quais discordamos, mas aqueles com os quais mantemos uma relação não-aceita de proximidade relativa. (...)
Digamos que, para Hegel, infinito é aquilo que porta em si mesmo sua própria negação e que, em vez de se autodestruir, conserva-se em uma determinidade. Daí por que ele pode afirmar, em uma frase-chave:
A infinitude, ou essa inquietude absoluta do puro mover-se-a­si-mesmo, faz com que tudo o que é determinado de qualquer modo – por exemplo, como ser – seja antes o contrário dessa determinidade.484
Notemos essa maneira peculiar de falar sobre o infinito. Primeiro, Hegel o define como “a inquietude absoluta do puro mover-si-a-si-mesmo”, ou seja, o infinito é uma forma de movimento, uma forma de passagem, e não uma situação. Um movimento infinito será aquele que é marcado por uma inquietude “absoluta”. Ela é absoluta por não ser “relativa” a uma situação dada, mas ser contínua ultrapassagem de si por si mesmo, o que pode ser entendido como: atualização do que não é um mero possível da situação dada. Por isso, a infinitude é construída a partir da experiência da contradição, pois ela é atualização de impossíveis. Dessa forma, a infinitude aparecerá como a constituição de um objeto da experiência que se move a si mesmo, que tem em si mesmo a própria causa de sua transformação, não no sentido de ter seu princípio de desenvolvimento em um regime potência/ato, mas de ter em si o processo que destrói sua própria identidade imediata.
Mais uma vez poderíamos dizer que isso parece fazer com que o infinito seja o ato contínuo de ultrapassagem do finito, de um finito que permanece, que se conserva por precisar ser continuamente ultrapassado. Portanto, Deleuze podia dizer que, em Hegel, a representação infinita não se livra do princípio de identidade, mesmo que ele agora seja mobilizado preferencialmente através daquilo que indica seu limite, como as noções de oposição, antagonismo, contradição e conflito.
No entanto, e vale a pena voltar a esse ponto de forma mais sistemática, lembremos como tal leitura só seria possível se reduzíssemos todas as figuras dialéticas da negação à oposição, o que está longe de ser o caso em Hegel. A oposição pode admitir que só é possível pôr um termo através da pressuposição da realidade do seu oposto, que aparece aqui como limite de significação. Mas a oposição não pode admitir, e aqui começa uma compreensão dialética da infinitude, que a realização de um processo é a autonegação de sua identidade imediata, é a destruição de seu limite suposto. Em suma, ela não pode admitir que “tudo o que é determinado de algum modo é o contrário desta determinidade”, que toda determinação é precária por estar em movimento. Admitir isso significaria desarticular a própria noção de identidade em sua força de distinção entre elementos, o que desarticularia a noção de “finito”. Pois perdida a capacidade de distinção entre elementos, o que resta da identidade? Certamente, nada referente a seu significado habitual. Ela deixa de ter a função organizadora que normalmente esperamos da representação.”
484 HEGEL, Fenomenologia do Espírito, p. 116.


“No entanto, podemos lembrar como a negatividade em Hegel não pode ser pensada sob a forma da privação ou da falta, mas sob a forma da indeterminação produtiva. Hegel compreende que o fracasso do finito em determinar-se deve ser momento de atualização de um infinito que, inicialmente, deve aparecer como força de indeterminação, para depois aparecer como força produtiva através da virtualização dos limites do finito. As determinações finitas e sua estética própria do tempo e do espaço devem entrar em colapso; elas devem se autonegar através de uma crítica imanente na qual elas descobrem em si mesmas o infinito em operação, na qual elas começam a falar outra linguagem, como se sua linguagem natural fosse simplesmente destruída. As determinações finitas devem, de certa forma, explodir seus limites, suspendendo a força de organização de uma estética submetida ao pensar representativo para assim se realizarem como infinito.487 É dessa forma que devemos entender uma afirmação central, que descreve o movimento dialético hegeliano:
A superação (Aufheben) não é a alteração ou o ser-outro em geral, nem a superação de algo. Isso, em que o finito se supera, é o infinito como a negação da finitude, mas a finitude foi determinada por muito tempo apenas como existência enquanto não-ser. Por seu lado, a infinitude foi determinada como o negativo da finitude e da determinidade em geral, como o vazio do para além. A superação de si na finitude é um retorno deste voo vazio, a negação do para além que é, em si mesmo, um negativo.488
Podemos dizer que esse retorno do voo vazio, a negação da negação do para além como realização efetiva do infinito se dá através de uma peculiar virtualização da efetividade capaz de desarticular o sistema de limites do pensar representativo. Hegel fornece uma figura exemplar dessa virtualidade recorrendo às noções de tempo histórico e temporalidade concreta.489 Basta extrair as consequências necessárias de afirmações como:
A vida do espírito presente é um círculo de degraus que, por um lado, permanecem justapostos e apenas por outro lado aparecem como passados. Os momentos que o espírito parece ter atrás de si, ele também os tem em sua profundidade presente.490
A capacidade de colocar em justaposição o que até então era radicalmente disjunto, de criar a contemporaneidade do não contemporâneo implica um colapso da estética transcendental do tempo e sua linearidade. Ao se livrarem dos limites da representação, as determinações realizam sua infinitude ao se encontrarem no tempo histórico. Pois, se vários tempos podem estar atualizados em uma profundidade presente, é porque eles não se submetem a uma concepção representacional, mas organizam-se como uma multiplicidade. A recondução do tempo à sua historicidade é figura exemplar da maneira hegeliana de pensar a atualização da virtualidade como figura da infinitude, e fornece um belo exemplo da razão pela qual a negação de uma negação resulta, em Hegel, em uma afirmação. Os instantes temporais negam-se entre si, pois se determinam inicialmente a partir de diferenças opositivas. A negação de sua negação é a atualização de uma estrutura de implicações impensável para o entendimento, mas profundamente real, por isto afirmativa.”
487 Notemos que não estamos distantes de uma operação bem descrita por Lapoujade: “É um erro afirmar que o projeto de Deleuze é antidialético com o pretexto de que ele rejeita toda mediação; pelo contrário, é porque ele coloca em curto-circuito todas as mediações entre o sensível e a Ideia que seu projeto é propriamente dialético” (LAPOUJADE, Deleuze: os movimentos aberrantes, p. 102).
488 HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 160).
489 Desenvolvi este ponto de maneira mais sistemática em O circuito dos afetos.
490 HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, 2005, p. 104.


“Gostaria de terminar procurando caracterizar melhor o ponto no qual, a meu ver, a distinção entre Hegel e Deleuze pode ser posta de maneira mais produtiva. Isso exige retornar ao problema da contradição em Hegel, em especial a seu caráter de “contradição objetiva”, ou se quisermos, de contradição real. Como vimos, a contradição em Hegel não diz respeito apenas à contradição lógica entre o universal e o particular, ou entre dois termos contrários enunciados sob o mesmo aspecto (como em uma relação de tese e antítese). Da mesma forma como Kant precisa distinguir oposição lógica e real, Hegel também opera com uma distinção fundamental entre contradição lógica e real.
Eu insistira anteriormente que o movimento dialético não é mera modificação, mas é a destruição da identidade inicialmente posta. A contradição é negação da totalidade da identidade inicial através do movimento da identidade realizar-se como exceção de si, da totalidade encarnar-se em um termo que a nega e que, inicialmente, lhe parece absolutamente exterior, o que não poderia ser diferente para alguém que define o movimento da essência como uma autonegação. Definir tal autonegação como atualização do movimento da essência significa que a destruição da identidade posta não é fruto de um acidente, mas a realização da essência, ou mesmo a integração do acidente no interior da essência (e poderíamos dizer que essa é uma das determinações fundamentais da dialética, a saber, a capacidade de integrar o acidente no interior da essência). Se fosse um acidente meramente exterior, não haveria contradição. Nesse sentido, podemos dizer que o que se move move-se por destruição de si e por inscrição dessa destruição em um movimento de “retorno em si” (Rückkehr in sich selbst) que modifica retroativamente a situação inicial finita e limitada, em vez de assegurá-la em sua identidade inicial.
Ou seja, Hegel admite, à sua maneira, uma proposição cara a Deleuze: só a repetição produz uma experiência da diferença. Mas trata-se aqui de uma repetição pensada como modalidades de retorno a si que reinstauram regimes de determinação em um nível mais elevado de complexidade.508 Esta é a maneira hegeliana de afirmar que algo tem em si a própria causa do que lhe transforma. Ter em si a própria causa do que lhe transforma não é expressar a imanência de um devir que se desdobra no interior da totalidade da substância. Antes, ter em si a própria causa do que lhe transforma é integrar uma exceção, uma contingência que só poderá ser encarnada por uma totalidade, ou seja, que só pode ser integrada à condição de a totalidade modificar o que determina seu regime de relações. Daí por que é necessário falar em contradição como condição para um movimento de transformação efetiva.”
508 Podemos dizer que esta função do retorno a si representa uma diferença importante entre Hegel e Deleuze. “Para Hegel, se não há retorno, a potência da ideia se dissipa até submergir-se na penunbra da alienação. [...] Contra o retorno hegeliano (zurückkehren), Deleuze oporá o eterno retorno nietzscheano como chave da repetição que articula a diferença” (FERREYRA, Julien. Hegel leitor de Deleuze: uma perspectiva crítica da ontologia afirmativa a partir das objeções a Spinoza na Ciência da Lógica. Kriterion, Belo Horizonte, v. 54, n. 127, jun. 2013).


“Podemos falar de indeterminação de duas maneiras: como um abismo em que tudo se dissolve ou como uma superfície em que determinações não se organizam como um sistema de partes integradas e claramente diferenciadas. Este segundo conceito de indeterminação será posteriormente recuperado sob a forma da noção de “plano de imanência”.
Essa é a maneira deleuzeana de afirmar que o verdadeiro pensamento da diferença a compreende não como modo de distinção entre elementos fortemente determinados, mas como uma potência interna de indiferenciação que habita toda determinação. Pois toda atualização da virtualidade é indissociável de um movimento de destituição das formas até então vigentes e temos todo o direito de nos perguntar se movimentos de destituição podem ser corretamente descritos a partir de potências meramente afirmativas.
Isso leva Deleuze a insistir que “quando o fundo sobe à superfície, o rosto humano se decompõe neste espelho no qual o indeterminado, assim como as determinações, se confunde em uma única determinação que ‘faz’ diferença”.512 Ou ainda, que o leva a mostrar como a figura fundamental da diferença não é a oposição, mas esta “potência informal do fundo que leva cada coisa a esta forma extrema na qual sua representação se desfaz”513. Tal potência informal do fundo é o fundamento da “diferença nela mesma”, uma diferença interna ao processo de determinação de uma individualidade.”
512 DELEUZE, G. Différence et répétition, p. 44.
513 Ibid., p. 80.


“Podemos dizer que foi por uma razão semelhante que Hegel apareceu como um dos primeiros a propor uma ontologia desprovida do conceito de ser enquanto conceito fundamental. Na verdade, o conceito ontológico central de Hegel é essência (Wesen), com sua dinâmica de movimentos produzidos a partir de estruturas relacionais como a identidade, a diferença, a oposição e a contradição. Hegel crê que o conceito de ser é, de certa forma, um falso conceito por sua generalidade abstrata ser, na verdade, índice de indeterminação improdutiva. Portanto, ele precisa apreender a substância não como ser, mas como sujeito em atividade de negatividade, ou seja, ele precisa compreender a atualização como uma atividade na qual a multiplicidade só é posta através da reflexão, o que não significa que ela é meramente abstrata, mas que ela não originária, que ela só pode ser fruto de uma atividade de reconhecimento capaz de produzir relações que não existiam anteriormente. Ao compreender isso, a contradição deixa de ser um limite ao pensamento para ser a expressão de um mundo que é movimento, que só se estabiliza temporariamente em uma transformação da linguagem.
Ao afirmar que é necessário apreender a substância como sujeito, Hegel não está a dar uma definição substancial de sujeito, mas a mostrar como a relação entre o que se coloca no lugar da substância e a existência não é uma expressão, por mais que tal expressão não seja, por sua vez, uma mera participação. Ela é a reflexão em algo que aparece inicialmente como exterioridade, como quebrando as dobras da substância. Tal exterioridade não é apenas uma aparência derivada de um modo imperfeito de conhecimento. Ela é a condição para conservar a possibilidade de emergir aquilo que não é simplesmente a possibilidade de uma atualidade posta. Nesse sentido, apreender a substância como sujeito significa afirmar que não há experiência sem implicação, que a experiência é o nome deste processo de implicação com o que se coloca inicialmente como exterioridade bruta, como contradição em relação às dinâmicas de atualização de uma substância. Dessa forma, a dialética admite que toda e qualquer violência dos acontecimentos exteriores será sempre convertível em afirmação.”


“Há situações em que a colisão é uma forma de encontro. A forma mais bela e misteriosa de todas.”


“A revolução haitiana e sua guerra de independência é a história da realização efetiva dos ideais de igualdade que emergem através da Revolução Francesa contra os próprios franceses. Ela é o momento no qual a revolução francesa deixa de ser limitada por um horizonte colonial e se transforma em possibilidade de efetivação de uma universalidade concreta. E isso se dá através de um movimento dialético no qual o enunciador recebe sua mensagem de volta, mas de forma invertida. Lembremos, por exemplo, desse momento maior da luta entre o exército haitiano e os destacamentos franceses, enviados para remeter o povo da ilha à escravidão:
A posição política desonesta do exército francês agora cobrava seu preço. Os soldados ainda se viam como uma armada revolucionária. Mas à noite ouviam os negros na fortaleza cantando a “marselhesa”, a «ça ira» e outras canções revolucionárias. Lacroix relatou que aqueles miseráveis extraviados estremeciam e olhavam para seus superiores quando ouviam as músicas, como se dissessem: “Será que os nossos inimigos bárbaros têm a justiça do seu lado? Será que já não somos mais os soldados da República francesa? E será que nos tornamos meros instrumentos políticos?”. Um regimento de poloneses, recordando sua própria luta pelo nacionalismo, recusou-se a tomar parte do massacre dos seiscentos negros, ordenado por Leclerc.543
Depois disso, o Império perdeu. Essa potência plebeia de interversão é, no entanto, a real realização do conceito efetivamente revertido. Há uma astúcia dialética aqui que faz dos ex-escravos, em uma aliança inaudita e transtemporal com os setores de sedição da classe intelectual, os enunciadores efetivos das aspirações da razão na história (bem, eu sei o peso de afirmar algo dessa natureza em um contexto histórico como o nosso. E mesmo assim, ela está escrita).”
543 JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 289.


“Em seu último livro, O novo tempo do mundo, Paulo Arantes fornece pela primeira vez uma impressionante filosofia da história de larga escala. No entanto, ela parece inicialmente orientada, na verdade, como filosofia do colapso do tempo histórico. Pois se trata de descrever as condições para a realização de certa sobreposição entre espaço de experiência e horizonte de expectativa que, longe de marcar a aceleração do tempo em direção à possibilidade de transformações revolucionárias e emancipatórias, ou seja, à realização da potência redentora da utopia, é a perpetuação coroada de um “tempo morto”. Longe da força transformadora da crise como explicitação de contradições que produzem o movimento histórico em direção a um futuro qualitativamente diferente, teríamos agora um “estado de crise permanente” no qual crise não é mais o índice de uma impossibilidade de governar, mas a forma mesma de governo.559 Tal forma de governo consolida-se como a gestão e a produção de um “horizonte de expectativas decrescentes”, pois se trata de reduzir acontecimentos a “riscos” que permitem a submissão do tempo à projeção, trata-se de gerir a anulação da expectativa de qualquer mudança. Algo que fica mais visível em um país periférico que expõe, em sua história, a farsa das promessas de “formação” e “desenvolvimento”.
Tal horizonte decrescente de expectativas implica, entre outros, uma “experiência negativa da espera”, um “disciplinamento pela espera”,560 ou seja, uma espera sem horizonte que aparece como horizonte real de uma disciplina dos corpos, do tempo do trabalho, das formas do desejo no último estágio das sociedades capitalistas. Disciplina que só pode ser suportável à condição da generalização da paranoia com sua elevação do medo a afeto político central, com seus discursos da segurança, da imunização necessária, do risco contínuo. Foi assim que “o horizonte contemporâneo tornou-se nada mais, nada menos que a securização de um risco permanente e incontornável, contra o qual toda precaução é pouca”.561 Como não há mais nada o que esperar, toda paranoia é pouca para esconder dos agentes como eles estão a correr no vazio. Na periferia, é mais fácil perceber, como disse Adorno, que não há nenhuma história universal que conduza do selvagem à humanidade. Mas há certamente uma que conduz da atiradeira à bomba atômica.”
559 De fato, a confluência do espírito do tempo é forte. A mesma época, o grupo Comitê Invisível publicava Aos nossos amigos: crise e insurreição onde se defendia a tese de que, longe de uma crise do capitalismo, viveríamos um capitalismo de crise no qual: “o discurso da crise intervém como método político de gestão das populações. A reestruturação permanente de tudo – dos organogramas aos programas sociais, das empresas aos bairros – através de uma perturbação constante das condições de existência é a única forma de organizar a inexistência do partido opositor. [...] Ela corresponde a uma estratégia que se formula nestes termos: “Prevenir, por via da crise permanente, toda e qualquer crise efetiva” (COMITÊ INVISÍVEL. Aos nossos amigos: crise e insurreição. São Paulo: N-1, 2016, p. 26).
560 ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 163.
561 Idem, p. 190.


“Complicar sua própria vida é toda uma arte.”

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