Editora: Autêntica
ISBN: 978-85-5130-455-6
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 320
Sinopse: Ver Parte
I
“Não há ação de transformação social sem a
contraprodução de modelos de recuperação conservadora da revolta e é dessa
forma que o nazismo será compreendido. Como dirão Adorno e Horkheimer: “O
fascismo é totalitário na medida em que se esforça por colocar diretamente a
serviço da dominação a própria rebelião da natureza reprimida contra a
dominação”436. Ou seja, há uma rebelião na base do fascismo, há uma
revolta cuja energia é desviada de sua força transformadora para colocar-se a
serviço do recrudescimento da dominação. Há uma rebelião que se transforma em
reação.”
436 ADORNO; HORKHEIMER, Dialética
do esclarecimento, p. 172. Ver ainda: HORKHEIMER, Max. The Eclipse of Reason. Londres:
Continuum Press, 2007.
“O que nossos últimos vinte anos mostraram
foi que nenhuma ascensão da extrema-direita seria possível sem a naturalização
de políticas de direita e extrema-direita pela socialdemocracia. Ela traz,
assim, para dentro do espectro político, a agenda contra a qual ela normalmente
deveria combater.”
“Política e subjetivação
No entanto, é possível dizer sobre a posição
de Adorno que ela parece ignorar o fato de revoltas e lutas revolucionárias se
darem em um campo heterogêneo de forças sociais, nunca no interior de um campo
homogêneo previamente balizado por um sujeito genérico.450 Por
eclodirem em um campo heterogêneo, elas lidam com tendências muitas vezes
contraditórias, muitas delas francamente regressivas. Cabe ao processo de
mobilização procurar criar hegemonia “em movimento”, ou seja, a partir da
própria intervenção no campo de ações. Nesse sentido, a colocação de seu antigo
estudante, Hans Jurgen Krahl, a respeito da “inabilidade da teoria de Adorno em
lidar com questões de organização”451 não deveria ser descartada. Elas
dizem respeito à compreensão concreta dos processos de emergência. Ao menos
nesse contexto, ela aponta para um problema central de reflexão sobre processos
de constituição de hegemonia. Pois sujeitos políticos emergem no interior de
lutas e revoltas, não previamente a elas. Para que tal emergência seja possível,
faz-se necessário que a crítica social se desdobre ao menos em indicação de
potencialidades de organização tendo em vista a insurgência. O diagnóstico adorniano
do “enfraquecimento da consciência de classe’ no interior do capitalismo tardio
parece paralisá-lo diante da possibilidade de lutar pela constituição de hegemonia
em um campo de atores sociais fragmentado, já que falta a Adorno a constituição
teórica de um sujeito genérico interno aos embates políticos, capaz de emergir “em
movimento” no interior das lutas sociais (como faz Marx a respeito do
proletariado). Para tanto, seria necessário que o próprio conceito de “sujeito
não-idêntico” fosse projetado para dentro do campo de embates políticos, o que
não ocorre. Essa talvez seja uma tarefa política maior deixada pela dialética negativa.
Isso nos levaria à questão de como sujeitos não-idênticos se organizam em
processos de insurgência, como eles se manifestam em situações “cedo demais”,
questões que Adorno se recusa terminantemente a colocar. Questões que ficaram
para a posteridade.
Note-se que isso nada tem a ver com alguma
forma de “resignação escapista” que seria própria à dialética negativa. A
insistência de Adorno na irredutibilidade do momento teórico é, na verdade,
fruto da consciência da impotência de uma prática incapaz de se orientar diante
de uma avaliação adequada de contextos e impactos de ações. Pois, “a passagem à
práxis sem teoria é motivada pela impotência objetiva da teoria, e multiplica
aquela impotência mediante o isolamento e fetichização do momento subjetivo do
movimento histórico: a espontaneidade”.453 Esse ponto é tão central
para a concepção política de Adorno que em certos momentos ele explicitará a
necessidade de novas formas de aliança entre intelectuais e classe trabalhadora
como condição fundamental para que a energia negativa das classes subalternas
se transforme em força revolucionária:
Hoje em dia, quando o conceito de proletariado, intocado em sua essência
econômica, está tão obliterado pela tecnologia que, no maior dos países
industrializados, não há possibilidade de uma consciência proletária de classe,
o papel dos intelectuais já não seria alertar os obtusos para seus interesses
mais patentes, porém tirar a venda dos olhos dos espertos, tirar a ilusão de
que o capitalismo que faz deles seus beneficiários transitórios baseia-se em
outra coisa que não sua exploração e opressão. Os trabalhadores enganados
dependem diretamente daqueles que ainda conseguem enxergar alguma coisa e
falar-lhes de seu engano. Seu ódio pelos intelectuais sofreu uma mudança
correspondente. Alinhou-se com as opiniões correntes do senso comum. As massas
já não desconfiam dos intelectuais por eles traírem a revolução, mas porque
eles talvez a queiram; com isso, relevam quão grande é sua própria necessidade
de intelectuais. A humanidade só sobreviverá se os extremos se unirem.454
A colocação é clara e repete uma ideia
presente em muitos momentos nos textos adornianos, a saber, não há como apelar
à emergência de uma consciência de classe, independente dos antagonismos de
classe terem permanecido intocados. Mesmo assim, nesse contexto, a função dos
intelectuais continua decisiva, o que demonstra uma consciência explícita de
autopertencimento a uma dinâmica de luta social. Essa função dos intelectuais
não consiste, no entanto, em enunciar ao proletariado a natureza de seus
próprios interesses, como se fosse questão de retomar uma visão redentora e
dirigista de uma pretensa vanguarda intelectual. Ela é um insistir na
impossibilidade da integração, no embuste da participação e da “parceria social”.
A classe intelectual tem uma função desintegradora que só aparece de forma
efetiva quando ela assume para si querer uma práxis revolucionária, sua não-participação
é ativa. Ela é uma desintegração em ato. Assim, ela recusa sua própria
integração e permite, com isso, a imagem improvável de uma união entre os
extremos, mesmo que não se possa dizer que essa força da recusa seja atualmente
uma posição muito presente entre a classe intelectual.
No entanto, diante dos impasses e desafios
dessa natureza, a Teoria Crítica preferiu abandonar o que seria a tarefa
exigida pelo tempo histórico, a saber, aprofundar a reflexão sobre a dialética
necessária para as potencialidades revolucionárias do presente, aprofundar a
reflexão sobre processos de emergência. Ou ainda, pensar a sociedade
capitalista a partir de sua plasticidade revolucionária imanente. O que ela se
tornou foi um celeiro de intelectuais para os quais a própria ideia de “revolução”
perdera completamente o sentido. Teria sido necessário meditar com mais vagar
afirmações de Adorno como:
Meu sentimento mais íntimo sobre isso é: no momento tudo está fechado,
mas a qualquer momento isso pode mudar. Eu faço a seguinte consideração: essa
sociedade não se move em direção a um Estado de Bem-Estar. [...] Eu não consigo
imaginar que exista um mundo intensificado a tal ponto de delírio, sem que
contraforças objetivas sejam liberadas.455
Ou seja, teria sido necessário pensar com
mais vagar sobre essas contraforças objetivas que se movem para fora do modelo
do Estado do bem-estar social, o último estágio possível de compromissos no
interior das sociedades capitalistas avançadas. Teria sido necessário pensar
uma plasticidade revolucionária indissociável do movimento polar entre
emancipação e risco de regressão fascista. Em vez disso, as gerações posteriores
da Escola de Frankfurt, animadas pelo medo do que aparecia a alguns como “fascismo
de esquerda” (expressão colocada em circulação pelo jovem Habermas), acabarão
por abraçar um projeto político muito mais desinflacionado de aspirações de
transformação. A filosofia que precisa manter-se viva para lembrar a potência do
que ainda não foi realizado e dos sujeitos que virão dará lugar à análise dos
potenciais imanentes às estruturas de interação já em operação nas esferas de
reprodução da vida social, A solidariedade entre filosofia e revolução,
solidariedade que, como dizia Freud a respeito da razão, pode falar baixo mas
nunca se cala, será cortada de vez no interior do pensamento frankfurtiano. Ela
simplesmente desaparecerá como questão relevante para uma reflexão
político-filosófica.
Até mesmo a crítica totalizante da sociedade
capitalista implacavelmente feita por Adorno será vista, muitas vezes, como
mera expressão de um niilismo sem freios, elitista e aristocrático. Sua crítica
da cultura será vista como incapaz de dar conta da multiplicidade dos processos
de ressignificação próprios à recepção e à remediação. Teremos então uma
geração de pensamento crítico sem a capacidade e o desejo de operar de forma
implacável no campo da crítica cultural e na destituição da indústria cultural.
Geração que preferirá ver, na crítica cultural, a expressão inconfessa do
elitismo e da afirmação colonial. Mas a deposição da crítica da cultura é o
primeiro estágio do embotamento de toda imaginação política. Por isso, há de se
lembrar que recuperar a dialética adorniana nunca será uma operação anódina em
suas consequências políticas.”
451 KRAHL, Hans Jurgen. fre political contradiction in Adorno’s critical
theory. Telos: critical theory of the contemporary, v. 21, n. 164, 1974.
452 ADORNO, Gesammelte Schriften, v. 8, p. 15.
453 ADORNO, Palavras e sinais, p. 212.
Lembremos ainda de que: “A crítica lógica e a enfático-prática, de que a
sociedade precisa ser transformada, são momentos do mesmo movimento do
conceito. Que também uma tal análise não pode simplesmente ignorar a separação
do vinculado, a de ciência e política, se confirma pelo procedimento de Marx.
Ele tanto criticou como respeitou a separação; aquele que em sua juventude escreveu
as Teses
de Feuerbach permaneceu por toda a sua vida um teórico da economia
política” (ADORNO, Introdução à controvérsia sobre o positivismo na
sociologia alemã, p. 139).
454 ADORNO. Theodor. Mensagens numa garrafa. ŽIŽEK,
Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007,
p. 50.
455 ADORNO, Theodor; HORKHEIM Max. Diskussion
über Theorie und Praxis. In: HORKHEIMER, Max. Gesammelle Schriften. Band
19. Frankfurt: Suhrkamp, 2003, p. 47.
“No entanto, devemos insistir em uma questão
central nesse debate: entre Deleuze e Hegel passa ao menos um ponto em comum, a
saber, todas as duas são filosofias para as quais o problema filosófico
fundamental consiste em pensar a atualidade do infinito, criticando, com isso,
o papel estabilizador do recurso ao fundamento. Todo debate sobre os dois
filósofos deveria partir dessa aceitação. Todos os dois procuram, à sua
maneira, definir a tarefa da filosofia como a exigência de, através dos
conceitos, “adquirir consistência sem perder o infinito no qual o pensamento
mergulha”.483 Todos eles colocam como tarefa maior criticar a
finitude da representação, seja sob a forma da finitude dos modos de
determinação próprios ao entendimento (Hegel), seja sob a forma de uma imagem
do pensamento ligada ao primado da identidade (Deleuze). Por ter um projeto
comum, mas construído a partir de uma base metafísica distinta (como gostaria
de mostrar mais à frente), a relação de Deleuze com Hegel será necessariamente
problemática e mesmo necessariamente injusta. Os filósofos que não podemos ler
não são aqueles com os quais discordamos, mas aqueles com os quais mantemos uma
relação não-aceita de proximidade relativa. (...)
Digamos que, para Hegel, infinito é aquilo
que porta em si mesmo sua própria negação e que, em vez de se autodestruir,
conserva-se em uma determinidade. Daí por que ele pode afirmar, em uma
frase-chave:
A infinitude, ou essa inquietude absoluta do puro mover-se-asi-mesmo,
faz com que tudo o que é determinado de qualquer modo – por exemplo, como ser –
seja antes o contrário dessa determinidade.484
Notemos essa maneira peculiar de falar sobre
o infinito. Primeiro, Hegel o define como “a inquietude absoluta do puro
mover-si-a-si-mesmo”, ou seja, o infinito é uma forma de movimento, uma
forma de passagem, e não uma situação. Um movimento infinito será aquele
que é marcado por uma inquietude “absoluta”. Ela é absoluta por não ser “relativa”
a uma situação dada, mas ser contínua ultrapassagem de si por si mesmo, o que
pode ser entendido como: atualização do que não é um mero possível da situação
dada. Por isso, a infinitude é construída a partir da experiência da
contradição, pois ela é atualização de impossíveis. Dessa forma, a infinitude
aparecerá como a constituição de um objeto da experiência que se move a si
mesmo, que tem em si mesmo a própria causa de sua transformação, não no sentido
de ter seu princípio de desenvolvimento em um regime potência/ato, mas de ter
em si o processo que destrói sua própria identidade imediata.
Mais uma vez poderíamos dizer que isso parece
fazer com que o infinito seja o ato contínuo de ultrapassagem do finito, de um
finito que permanece, que se conserva por precisar ser continuamente
ultrapassado. Portanto, Deleuze podia dizer que, em Hegel, a representação
infinita não se livra do princípio de identidade, mesmo que ele agora seja
mobilizado preferencialmente através daquilo que indica seu limite, como as noções
de oposição, antagonismo, contradição e conflito.
No entanto, e vale a pena voltar a esse ponto
de forma mais sistemática, lembremos como tal leitura só seria possível se
reduzíssemos todas as figuras dialéticas da negação à oposição, o que está
longe de ser o caso em Hegel. A oposição pode admitir que só é possível pôr um
termo através da pressuposição da realidade do seu oposto, que aparece aqui
como limite de significação. Mas a oposição não pode admitir, e aqui começa uma
compreensão dialética da infinitude, que a realização de um processo é a
autonegação de sua identidade imediata, é a destruição de seu limite suposto.
Em suma, ela não pode admitir que “tudo o que é determinado de algum modo é o
contrário desta determinidade”, que toda determinação é precária por estar em
movimento. Admitir isso significaria desarticular a própria noção de identidade
em sua força de distinção entre elementos, o que desarticularia a noção de “finito”.
Pois perdida a capacidade de distinção entre elementos, o que resta da
identidade? Certamente, nada referente a seu significado habitual. Ela deixa de
ter a função organizadora que normalmente esperamos da representação.”
484 HEGEL, Fenomenologia do Espírito, p.
116.
“No entanto, podemos lembrar como a
negatividade em Hegel não pode ser pensada sob a forma da privação ou da falta,
mas sob a forma da indeterminação produtiva. Hegel compreende que o fracasso do
finito em determinar-se deve ser momento de atualização de um infinito que,
inicialmente, deve aparecer como força de indeterminação, para depois aparecer
como força produtiva através da virtualização dos limites do finito. As
determinações finitas e sua estética própria do tempo e do espaço devem entrar
em colapso; elas devem se autonegar através de uma crítica imanente na qual
elas descobrem em si mesmas o infinito em operação, na qual elas começam a
falar outra linguagem, como se sua linguagem natural fosse simplesmente
destruída. As determinações finitas devem, de certa forma, explodir seus
limites, suspendendo a força de organização de uma estética submetida ao pensar
representativo para assim se realizarem como infinito.487 É dessa
forma que devemos entender uma afirmação central, que descreve o movimento
dialético hegeliano:
A superação (Aufheben) não é a alteração ou o ser-outro em geral,
nem a superação de algo. Isso, em que o finito se supera, é o infinito como a
negação da finitude, mas a finitude foi determinada por muito tempo apenas como
existência enquanto não-ser. Por seu lado, a infinitude foi
determinada como o negativo da finitude e da determinidade em geral, como o
vazio do para além. A superação de si na finitude é um retorno deste voo vazio,
a negação do para além que é, em si mesmo, um negativo.488
Podemos dizer que esse retorno do voo vazio, a
negação da negação do para além como realização efetiva do infinito se dá através
de uma peculiar virtualização da efetividade capaz de desarticular o sistema de
limites do pensar representativo. Hegel fornece uma figura exemplar dessa
virtualidade recorrendo às noções de tempo histórico e temporalidade concreta.489
Basta extrair as consequências necessárias de afirmações como:
A vida do espírito presente é um círculo de degraus que, por um lado,
permanecem justapostos e apenas por outro lado aparecem como passados. Os
momentos que o espírito parece ter atrás de si, ele também os tem em sua
profundidade presente.490
A capacidade de colocar em justaposição o que
até então era radicalmente disjunto, de criar a contemporaneidade do não contemporâneo
implica um colapso da estética transcendental do tempo e sua linearidade. Ao se
livrarem dos limites da representação, as determinações realizam sua infinitude
ao se encontrarem no tempo histórico. Pois, se vários tempos podem estar
atualizados em uma profundidade presente, é porque eles não se submetem a uma
concepção representacional, mas organizam-se como uma multiplicidade. A recondução
do tempo à sua historicidade é figura exemplar da maneira hegeliana de pensar a
atualização da virtualidade como figura da infinitude, e fornece um belo
exemplo da razão pela qual a negação de uma negação resulta, em Hegel, em uma
afirmação. Os instantes temporais negam-se entre si, pois se determinam inicialmente
a partir de diferenças opositivas. A negação de sua negação é a atualização de
uma estrutura de implicações impensável para o entendimento, mas profundamente
real, por isto afirmativa.”
487 Notemos que não estamos distantes de uma
operação bem descrita por Lapoujade: “É um erro afirmar que o projeto de Deleuze
é antidialético com o pretexto de que ele rejeita toda mediação; pelo contrário,
é porque ele coloca em curto-circuito todas as mediações entre o sensível e a
Ideia que seu projeto é propriamente dialético” (LAPOUJADE, Deleuze: os
movimentos aberrantes, p. 102).
488 HEGEL, Wissenschaft der Logik I, p. 160).
489 Desenvolvi este ponto de maneira mais
sistemática em O circuito dos afetos.
490 HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, 2005,
p. 104.
“Gostaria de terminar procurando caracterizar
melhor o ponto no qual, a meu ver, a distinção entre Hegel e Deleuze pode ser
posta de maneira mais produtiva. Isso exige retornar ao problema da contradição
em Hegel, em especial a seu caráter de “contradição objetiva”, ou se quisermos,
de contradição real. Como vimos, a contradição em Hegel não diz respeito apenas
à contradição lógica entre o universal e o particular, ou entre dois termos
contrários enunciados sob o mesmo aspecto (como em uma relação de tese e antítese).
Da mesma forma como Kant precisa distinguir oposição lógica e real, Hegel
também opera com uma distinção fundamental entre contradição lógica e real.
Eu insistira anteriormente que o movimento
dialético não é mera modificação, mas é a destruição da identidade inicialmente
posta. A contradição é negação da totalidade da identidade inicial através
do movimento da identidade realizar-se como exceção de si, da totalidade
encarnar-se em um termo que a nega e que, inicialmente, lhe parece absolutamente
exterior, o que não poderia ser diferente para alguém que define o movimento da
essência como uma autonegação. Definir tal autonegação como atualização do movimento
da essência significa que a destruição da identidade posta não é fruto de um
acidente, mas a realização da essência, ou mesmo a integração do acidente no
interior da essência (e poderíamos dizer que essa é uma das determinações
fundamentais da dialética, a saber, a capacidade de integrar o acidente no
interior da essência). Se fosse um acidente meramente exterior, não haveria
contradição. Nesse sentido, podemos dizer que o que se move move-se por
destruição de si e por inscrição dessa destruição em um movimento de “retorno
em si” (Rückkehr in sich selbst) que modifica retroativamente a situação
inicial finita e limitada, em vez de assegurá-la em sua identidade inicial.
Ou seja, Hegel admite, à sua maneira, uma
proposição cara a Deleuze: só a repetição produz uma experiência da diferença.
Mas trata-se aqui de uma repetição pensada como modalidades de retorno a si que
reinstauram regimes de determinação em um nível mais elevado de complexidade.508
Esta é a maneira hegeliana de afirmar que algo tem em si a própria causa do que
lhe transforma. Ter em si a própria causa do que lhe transforma não é expressar
a imanência de um devir que se desdobra no interior da totalidade da
substância. Antes, ter em si a própria causa do que lhe transforma é integrar
uma exceção, uma contingência que só poderá ser encarnada por uma totalidade,
ou seja, que só pode ser integrada à condição de a totalidade modificar o que
determina seu regime de relações. Daí por que é necessário falar em contradição
como condição para um movimento de transformação efetiva.”
508 Podemos dizer que esta função do retorno
a si representa uma diferença importante entre Hegel e Deleuze. “Para Hegel, se
não há retorno, a potência da ideia se dissipa até submergir-se na penunbra da
alienação. [...] Contra o retorno hegeliano (zurückkehren), Deleuze
oporá o eterno retorno nietzscheano como chave da repetição que articula a
diferença” (FERREYRA, Julien. Hegel leitor de Deleuze: uma perspectiva crítica
da ontologia afirmativa a partir das objeções a Spinoza na Ciência da Lógica.
Kriterion, Belo Horizonte, v. 54, n. 127, jun. 2013).
“Podemos falar de indeterminação de duas
maneiras: como um abismo em que tudo se dissolve ou como uma superfície em que
determinações não se organizam como um sistema de partes integradas e
claramente diferenciadas. Este segundo conceito de indeterminação será
posteriormente recuperado sob a forma da noção de “plano de imanência”.
Essa é a maneira deleuzeana de afirmar que o
verdadeiro pensamento da diferença a compreende não como modo de distinção
entre elementos fortemente determinados, mas como uma potência interna de
indiferenciação que habita toda determinação. Pois toda atualização da
virtualidade é indissociável de um movimento de destituição das formas até
então vigentes e temos todo o direito de nos perguntar se movimentos de
destituição podem ser corretamente descritos a partir de potências meramente
afirmativas.
Isso leva Deleuze a insistir que “quando o
fundo sobe à superfície, o rosto humano se decompõe neste espelho no qual o
indeterminado, assim como as determinações, se confunde em uma única
determinação que ‘faz’ diferença”.512 Ou ainda, que o leva a mostrar
como a figura fundamental da diferença não é a oposição, mas esta “potência
informal do fundo que leva cada coisa a esta forma extrema na qual sua
representação se desfaz”513. Tal potência informal do fundo é o
fundamento da “diferença nela mesma”, uma diferença interna ao processo de
determinação de uma individualidade.”
512 DELEUZE, G. Différence et répétition,
p. 44.
513 Ibid., p. 80.
“Podemos dizer que foi por uma razão
semelhante que Hegel apareceu como um dos primeiros a propor uma ontologia
desprovida do conceito de ser enquanto conceito fundamental. Na verdade, o
conceito ontológico central de Hegel é essência (Wesen), com sua dinâmica
de movimentos produzidos a partir de estruturas relacionais como a identidade,
a diferença, a oposição e a contradição. Hegel crê que o conceito de ser é, de certa
forma, um falso conceito por sua generalidade abstrata ser, na verdade, índice
de indeterminação improdutiva. Portanto, ele precisa apreender a substância não
como ser, mas como sujeito em atividade de negatividade, ou seja, ele precisa
compreender a atualização como uma atividade na qual a multiplicidade só é posta
através da reflexão, o que não significa que ela é meramente abstrata, mas que ela
não originária, que ela só pode ser fruto de uma atividade de reconhecimento
capaz de produzir relações que não existiam anteriormente. Ao compreender isso,
a contradição deixa de ser um limite ao pensamento para ser a expressão de um
mundo que é movimento, que só se estabiliza temporariamente em uma
transformação da linguagem.
Ao afirmar que é necessário apreender a
substância como sujeito, Hegel não está a dar uma definição substancial de sujeito,
mas a mostrar como a relação entre o que se coloca no lugar da substância e a
existência não é uma expressão, por mais que tal expressão não seja, por sua
vez, uma mera participação. Ela é a reflexão em algo que aparece inicialmente
como exterioridade, como quebrando as dobras da substância. Tal exterioridade não
é apenas uma aparência derivada de um modo imperfeito de conhecimento. Ela é a
condição para conservar a possibilidade de emergir aquilo que não é
simplesmente a possibilidade de uma atualidade posta. Nesse sentido, apreender
a substância como sujeito significa afirmar que não há experiência sem
implicação, que a experiência é o nome deste processo de implicação com o que se
coloca inicialmente como exterioridade bruta, como contradição em relação às
dinâmicas de atualização de uma substância. Dessa forma, a dialética admite que
toda e qualquer violência dos acontecimentos exteriores será sempre convertível
em afirmação.”
“Há situações em que a colisão é uma forma de
encontro. A forma mais bela e misteriosa de todas.”
“A revolução haitiana e sua guerra de independência
é a história da realização efetiva dos ideais de igualdade que emergem através
da Revolução Francesa contra os próprios franceses. Ela é o momento no qual a
revolução francesa deixa de ser limitada por um horizonte colonial e se transforma
em possibilidade de efetivação de uma universalidade concreta. E isso se dá
através de um movimento dialético no qual o enunciador recebe sua mensagem de
volta, mas de forma invertida. Lembremos, por exemplo, desse momento maior da
luta entre o exército haitiano e os destacamentos franceses, enviados para
remeter o povo da ilha à escravidão:
A posição política desonesta do exército francês agora cobrava seu
preço. Os soldados ainda se viam como uma armada revolucionária. Mas à noite
ouviam os negros na fortaleza cantando a “marselhesa”, a «ça ira» e outras
canções revolucionárias. Lacroix relatou que aqueles miseráveis extraviados
estremeciam e olhavam para seus superiores quando ouviam as músicas, como se
dissessem: “Será que os nossos inimigos bárbaros têm a justiça do seu lado?
Será que já não somos mais os soldados da República francesa? E será que nos
tornamos meros instrumentos políticos?”. Um regimento de poloneses, recordando
sua própria luta pelo nacionalismo, recusou-se a tomar parte do massacre dos seiscentos negros, ordenado por Leclerc.543
Depois disso, o Império perdeu. Essa potência
plebeia de interversão é, no entanto, a real realização do conceito efetivamente
revertido. Há uma astúcia dialética aqui que faz dos ex-escravos, em uma
aliança inaudita e transtemporal com os setores de sedição da classe
intelectual, os enunciadores efetivos das aspirações da razão na história (bem,
eu sei o peso de afirmar algo dessa natureza em um contexto histórico como o
nosso. E mesmo assim, ela está escrita).”
543 JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros.
São Paulo: Boitempo, 2010, p. 289.
“Em seu último livro, O novo tempo do
mundo, Paulo Arantes fornece pela primeira vez uma impressionante filosofia
da história de larga escala. No entanto, ela parece inicialmente orientada, na
verdade, como filosofia do colapso do tempo histórico. Pois se trata de
descrever as condições para a realização de certa sobreposição entre espaço
de experiência e horizonte de expectativa que, longe de marcar a aceleração
do tempo em direção à possibilidade de transformações revolucionárias e
emancipatórias, ou seja, à realização da potência redentora da utopia, é a perpetuação
coroada de um “tempo morto”. Longe da força transformadora da crise como
explicitação de contradições que produzem o movimento histórico em direção a um
futuro qualitativamente diferente, teríamos agora um “estado de crise
permanente” no qual crise não é mais o índice de uma impossibilidade de governar,
mas a forma mesma de governo.559 Tal forma de governo consolida-se como
a gestão e a produção de um “horizonte de expectativas decrescentes”, pois se
trata de reduzir acontecimentos a “riscos” que permitem a submissão do tempo à
projeção, trata-se de gerir a anulação da expectativa de qualquer mudança. Algo
que fica mais visível em um país periférico que expõe, em sua história, a farsa
das promessas de “formação” e “desenvolvimento”.
Tal horizonte decrescente de expectativas
implica, entre outros, uma “experiência negativa da espera”, um “disciplinamento
pela espera”,560 ou seja, uma espera sem horizonte que aparece como
horizonte real de uma disciplina dos corpos, do tempo do trabalho, das formas
do desejo no último estágio das sociedades capitalistas. Disciplina que só pode
ser suportável à condição da generalização da paranoia com sua elevação do medo
a afeto político central, com seus discursos da segurança, da imunização
necessária, do risco contínuo. Foi assim que “o horizonte contemporâneo
tornou-se nada mais, nada menos que a securização de um risco permanente e
incontornável, contra o qual toda precaução é pouca”.561 Como não há
mais nada o que esperar, toda paranoia é pouca para esconder dos agentes como
eles estão a correr no vazio. Na periferia, é mais fácil perceber, como disse
Adorno, que não há nenhuma história universal que conduza do selvagem à
humanidade. Mas há certamente uma que conduz da atiradeira à bomba atômica.”
559 De fato, a confluência do espírito do
tempo é forte. A mesma época, o grupo Comitê Invisível publicava Aos nossos
amigos: crise e insurreição onde se defendia a tese de que, longe de uma
crise do capitalismo, viveríamos um capitalismo de crise no qual: “o discurso
da crise intervém como método político de gestão das populações. A
reestruturação permanente de tudo – dos organogramas aos programas sociais, das
empresas aos bairros – através de uma perturbação constante das condições de
existência é a única forma de organizar a inexistência do partido opositor.
[...] Ela corresponde a uma estratégia que se formula nestes termos: “Prevenir,
por via da crise permanente, toda e qualquer crise efetiva” (COMITÊ INVISÍVEL. Aos
nossos amigos: crise e insurreição. São Paulo: N-1, 2016, p. 26).
560 ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo.
São Paulo: Boitempo, 2014, p. 163.
561 Idem, p. 190.
“Complicar sua própria vida é toda uma arte.”
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