Editora: Autêntica
ISBN: 978-85-5130-455-6
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 320
Sinopse: Em Dar
corpo ao impossível, Vladimir Safatle parte de uma reflexão a respeito do
sentido da última figura da dialética que o pensamento filosófico conheceu, a
saber, a dialética negativa de Theodor Adorno. Ele recusa as interpretações
deceptivas da dialética negativa, tão presentes até hoje, a fim de explorar
suas dinâmicas de produtividade e as modificações que ela produz em conceitos
como: totalidade, materialismo, sujeito, diferença e infinito. Isso leva
Safatle a propor uma articulação de estrutura entre a dialética negativa e aquelas
de matriz hegeliana e marxista. Articulação esta que procura compreender o
sentido mais profundo das relações entre configurações da dialética e
determinações históricas específicas.
Trata-se ainda de se perguntar sobre o que a
reatualização da dialética proposta por Adorno deve à psicanálise freudiana e à
confrontação incessante à fenomenologia de Martin Heidegger.
Ao final, Dar corpo ao impossível serve-se
do saldo de tais reflexões para repensar a recusa da dialética que anima a
filosofia francesa contemporânea, em especial através do anti-hegelianismo de
Gilles Deleuze, assim como para retomar o uso que a dialética, enquanto
experiência crítica, conheceu no Brasil, em especial graças a Paulo Arantes.
“O capitalismo nunca será tratado como um
sistema específico de trocas econômicas, mas como uma forma de vida que
constitui modos de subjetividade, formas de trabalho, de desejo e de linguagem.
Modos esses que, por sua vez, assentam-se em uma verdadeira metafísica na qual
identidade, propriedade, possessão, abstração são os únicos regimes gerais de
relação possível. Sua superação não poderá ser feita sem a transformação
estrutural dos modos de determinação e de ser. Por isso, a dialética negativa
será indissociável da tarefa de pensar as condições para experiências que se assumam
como modos de desabamento do horizonte metafísico no qual o capitalismo se
assenta e reconstrói. O pensamento deve privilegiar a processualidade contínua
para permitir à ação operar sem referência à preservação dos modos atuais de
reprodução material da vida e de sua gramática. É nesse sentido que devemos
dizer que as opções filosóficas do pensamento adorniano são imediatamente
opções práticas, são posições a respeito da recusa em sustentar a rede de
orientações práticas que naturaliza formas hegemônicas de vida. Essa recusa é
feita em nome de possibilidades concretas de emancipação que exigem uma
articulação cerrada entre crítica social e crítica da razão, ou ainda entre
crítica da economia política (historicamente situada) e crítica da racionalidade
instrumental (que se confunde com a consolidação do horizonte da razão
ocidental).”
“De acordo com o momento histórico, a
dialética não teme em usar o positivo ou o negativo. Ela é um pensamento que se
desloca em um tempo que não é apenas temporalidade inerte, mas historicidade
que exige certa plasticidade das estratégias do pensar. A dialética demonstra
como toda enunciação filosófica é sempre uma enunciação em situação. Uma
enunciação filosófica não se produz através da definição normativa do
dever-ser, e ninguém mais do que Hegel recusou tal ideia. Ela se produz através
do reconhecimento da forma específica do sofrimento em relação aos limites da
situação em que os sujeitos da enunciação se encontram. Por estar disposta a
ouvir tal sofrimento, ela nasce como crítica, sem que precise começar por
definir qual seria o horizonte normativo que a legitima. Por estar em
processualidade contínua, a dialética precisa de uma ontologia capaz de conservar
a proximidade do pensamento em relação ao que ainda não está realizado, mas
esta será uma ontologia em situação.”
“A possibilidade não é apenas mera
possibilidade que aparece como ideal irrealizado. Ela é a latência do existente
que nos esclarece de onde a existência retira sua força para se mover. Esta é a
dimensão irredutivelmente revolucionária da dialética.”
“As dinâmicas dialéticas exigem a organização
das lutas a partir da identificação de contradições globais em relação à
situação atual, posição derivada do marxismo de Adorno. Isso significa
organizar lutas, desdobrá-las a partir do potencial de contradição global que
elas portam, recusando a conciliação possível com uma “vida mutilada”. “Não há
vida correta na falsa”16 é também uma maneira de lembrar que crítica
significa contraposição global a uma forma de vida.17 Não há conciliação,
nem negociação com modos de reprodução social solidários de uma vida falsa
ligada às estruturas gerais de reificação e alienação, próprias ao sistema
capitalista. Este verdadeiro déficit de dialética na Teoria Crítica
pós-adorniana trouxe consequências decisivas para a própria noção de crítica,
assim como para a noção de quais são seus objetos e sua real extensão. Ou seja,
as consequências se fizeram sentir nos desdobramentos políticos da teoria. Há
várias formas de “reconciliação extorquida” e a dialética consequente saberá
recusar todas.”
16 ADORNO, Theodor. Mínima moralia.
São Paulo: Azouge, 1993, par. 18.
17 Ver, a este respeito: JAEGGI, Rahel. Une
critique des formes de vie est-elle possible: le négativisme éthique d’Adorno
dans Minima moralia. Actuel Marx, n. 38, p. 135-158, 2005. Embora sua
compreensão do que significa “crítica do capitalismo” não seja a mesma que
defendo neste livro, como ficará claro.
“Esse modelo nasce inicialmente da noção
fascista de “Estado total” que, como compreendera Marcuse já nos anos 1930,
nunca havia se contraposto ao liberalismo. Antes, era seu desdobramento
necessário em um horizonte de capitalismo monopolista. Compreendendo como o
fundamento liberal da redução da liberdade a liberdade do sujeito econômico
individual em dispor da propriedade privada com a garantia jurídico-estatal que
esta exige permanecia como a base da estrutura social do fascismo, Marcuse
alertava para o fato de o “Estado total” fascista ser compatível com a ideia
liberal de liberação da atividade econômica e forte intervenção nas esferas
políticas da luta de classe.20 Essa articulação entre liberalismo e
fascismo fora tematizada por Carl Schmitt, pois vem de Schmitt a noção de que a
democracia parlamentar com seus sistemas de negociações tendia a criar um “Estado
total”.21 Tendo que dar conta das múltiplas demandas vindas de
vários setores sociais organizados, a democracia parlamentar acabaria por
permitir ao Estado intervir em todos os espaços da vida, regulando todas as
dimensões do conflito social, transformando-se em mera emulação dos
antagonismos presentes na vida social. Contra isso, não seria necessário menos estado,
mas pensar uma outra forma de estado total. Nesse caso, um estado capaz de
despolitizar a sociedade, tendo força suficiente para intervir politicamente na
luta de classes, eliminar as forças de sedição a fim de permitir a liberação da
economia de seus pretensos entraves sociais. Como bem lembrará Pollock, esse
mesmo modelo poderá tanto operar em chave de democracia liberal quanto de
regime autoritário. Se pudermos completar, essa indiferença vem do fato de os
dois polos estarem menos longe do que se gostaria de imaginar. Na verdade,
tanto em um caso como em outro os fundamentos da racionalização liberal, com
sua noção de agentes econômicos maximizadores de interesses individuais,
permaneciam como a estrutura da vida social e dos modos de subjetivação,
justificando toda forma de intervenção violenta contra tendências contrárias.”
20 Daí por que: “Os fundamentos econômicos
desse trajeto da teoria liberal à teoria totalitária serão assumidos como
pressupostos: repousam essencialmente na mudança da sociedade capitalista do
capitalismo mercantil e industrial, edificado sobre a livre concorrência dos
empresários individuais autônomos, ao moderno capitalismo monopolista, em que
as relações de produção modificadas (sobretudo as grandes ‘unidades’ dos
cartéis, dos trustes, etc.) exigem um Estado forte, mobilizador de todos os
meios do poder” (MARCUSE, Herbert. Cultura e sociedade. São Paulo: Paz e
Terra, 1997, v. I, p. 61).
21 Ver: SCHMITT, Carl. Starker Staat und gesunde Wirtschaft. Ein Vortrag
für Wirtschaftsführen. In: Volk und Reich Politische Monatshefte für das junge
Deutschland, 1933, tomo 1, caderno 2, p. 81-94.
“Nesse sentido, insistir, em tal contexto
histórico, na irredutibilidade da dialética às formas disponíveis de síntese já
era apostar na possibilidade de evidenciar a fragilidade do caráter meramente
aparente da estabilidade social propalada, evidenciar o fundamento violento que
lhe é próprio. Principalmente, uma dialética cujo motor central será a
insistência na “não-identidade” será a forma de o pensamento crítico evidenciar
que não haverá transformação possível sem levar a experiência a se confrontar
com o que nega radicalmente os modos de integração da existência aos regimes de
determinação do presente. Adorno sabe que a força do capitalismo está não
apenas nas promessas econômicas que ele, momentaneamente, pareceu ser capaz de
realizar (ao menos durante os trinta primeiros anos do pós-guerra). Ela está na
capacidade de conformar a imaginação à gramática de repetições e identidades
que se impõem a nós através dos campos da cultura e do entretenimento e que
constituem o núcleo real de nossa adesão às formas atuais de vida. Há uma
gestão psíquica, ligada à redução da experiência à forma da identidade, que
será o fundamento da resiliência do capitalismo. Contra isso, o pensamento
precisa ser capaz de recuperar o sentido e a força transformadora do que “diferença”
pode realmente significar, e essa é a função central de uma dialética negativa.”
“Sabemos como cabe a Marx a compreensão precisa
de que a dialética se organiza a partir de uma crítica da falsa totalidade. O
Capital é um modo de reprodução material da vida que se impõe globalmente em
toda extensão, adaptando-se a configurações específicas e arcaísmos locais. Ele
reorganiza todas as velocidades e intensidades dos processos de produção a
partir de uma axiomática geral baseada nas dinâmicas de valorização do valor e
de submissão da atividade humana às formas do trabalho. Ele reorganiza também
as relações a si, generalizando seus modos de objetividade até o ponto de
produção de uma vida psíquica que lhe seja conforme, o que ocorre através da
generalização da forma-mercadoria como modelo global de objetividade social ou
através da generalização da forma-empresa (em sua versão neoliberal).33
Nesse contexto, o pensamento deve ser capaz de alcançar o que coloca a falsa
totalidade em contradição por ser portador do que ainda não saberia como se
realizar em formas hegemônicas de vida, nem saberia como ser reorganizado por
elas.”
33 Para este tópico, ver: FOUCAULT, Michel. O
nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 102.
“Há de se lembrar que há uma existência
pulsional da não-identidade e é ela que garantirá o horizonte das lutas sociais
para fora do capitalismo como forma de vida. Essa talvez seja a astúcia maior
de uma defesa não-substancial da universalidade com seu uso produtivo da
negatividade e da indeterminação, a saber, enraizá-la na existência pulsional
da não-identidade. Se, ao menos segundo Adorno, a possibilidade de emergência
de uma consciência de classe estará impossibilitada devido à profunda gestão
psíquica e espoliação do inconsciente que sustenta os modos de adesão social no
capitalismo contemporâneo com seus usos administrativos da cultura, com sua engenharia
humana, há uma irredutibilidade do inconsciente, para além de sua espoliação
social, que será politicamente decisiva. Ela é muitas vezes esquecida por
leitores de Adorno, mas ela está lá em seus textos, em sua forma de se lembrar
da verdade do sofrimento psíquico, ou seja, dessa verdade cuja impossibilidade
de enunciação no interior de uma vida mutilada nos faz sofrer, da recusa
psíquica às reconciliações forçadas. Ela está lá permitindo a defesa de
emergências possíveis à condição de que seja feita uma crítica implacável da
identidade (em todas suas formas, a saber, individual, de classe, social,
coletiva), dispositivo maior de colonização da capacidade de metamorfoses
categorias do sujeito.”
“De certa forma, tanto no campo do pensamento
quanto no campo dos regimes de organização das lutas sociais, a dialética se
confronta atualmente com processos que parecem corroborar o diagnóstico
adorniano. O recurso à identidade como dispositivo essencialista de mobilização
política, tão recorrente tanto nas forças reativas quanto naqueles que procuram
fazer avançar a emancipação social, impede não apenas a emergência de uma
implicação genérica que poderia abrir espaço a uma diferença radical em relação
aos modos de reprodução das formas hegemônicas de vida, como também coloniza os
sujeitos em um campo de experiências previamente demarcado pelo potencial de
demandas e formas já declaradas, já enunciadas por movimentos sociais.40
Como se as formas gerais de existência já estivessem de antemão definidas a
partir do que pode ser apropriado por uma identidade qualquer, ou ainda, a
partir de uma ontologia das propriedades que a dialética sempre
combateu. Ontologia cuja tradução política seria a redução da luta social à
defesa daquilo que é “meu”. Nunca a definição adorniana da identidade como a
forma originária da ideologia, com seu sistema de paralisia da imaginação
social, foi tão atual. Não há possibilidade alguma de o uso não-provisório das
categorias de identidade nos levar para além de meras novas partilhas dos modos
atuais de existência e de realidade social. Ou seja, por mais que pareça índice
de sublevação, os usos políticos não-provisórios das categorias de identidade
serão sempre a astúcia final da perpetuação da gramática liberal das
propriedades. Insistamos, a verdadeira contraposição não é entre demandas
identitárias de reconhecimento e lógica de luta de classe (pois o próprio
conceito de classe pode funcionar em chave identitária, como vimos muitas vezes
ocorrer com o uso substancialista da noção de “proletariado”). Toda a legião de
crítica às políticas de identidade que mobiliza o pretenso esquecimento das
chamadas lutas de classe erra. Não se contrapõe uma ontologia das propriedades
a uma ontologia das classes. A contraposição é entre demandas identitárias e
emergências não-identitárias que se coloquem como ponto de contradição global
em relação às determinações sociais atuais por propriedade e por classes. Tal
contradição ocorre quando identidades historicamente vulneráveis, marcadas pela
reiteração da violência e da invisibilidade social, começam a falar em nome de uma
universalidade até agora impossível. O que nos lembra como a questão política
central nunca é “qual o lugar de minha fala”, mas “quem pode falar em nome de
uma universalidade que implica em contradição global com a situação atual?”
Pois a impossibilidade de sustentar um ponto
de contradição global capaz de nos abrir a modelos de ação social em recusa
radical de nossas formas hegemônicas de vida tem raízes subjetivas profundas.
Tais raízes impedem os sujeitos de se verem como dinâmicas em transformação e
ruptura, o que traz consequências necessárias a todas as suas formas de ação. A
insistência adorniana em pensar o sujeito, a ainda operar com o sujeito, mas
pensar um sujeito não-idêntico, sujeito como espaço de uma experiência
contraditória de integração e recusa era sua forma de insistir que trazemos em
nós o germe de uma potencialidade de emergência. Esta não-integração é uma voz
que pode falar baixo, mas nos faz sempre lembrar do caráter mutilado de nossas
vidas e da possibilidade de utilizar a força do negativo como dinâmica de
passagem.”
40 Tomo a liberdade de remeter a: SAFATLE,
Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2012. Ver
também: HOLLOWAY, John. Negative and positive autonomism or Why Adorno? In: Negativity
and revolution, part 2.
“Mas voltemos à caracterização da dialética e
seu conceito de contradição. Pois o mais importante ainda não foi dito. Há algo
que garante a essa impossibilidade lógica indicada pela contradição não se
reduzir a apenas um mero impasse existencial, uma mera formalização de sistemas
de aporias. Se Adorno pode apostar na ideia de que “chocando-se contra seus
próprios limites, o pensamento ultrapassa a si mesmo”, é porque o que produz o
choque já tem em si o impulso para outra situação. Chocando-se contra seus próprios
limites o pensamento poderia simplesmente delirar, entrar em decomposição, em
vez de ultrapassar a si mesmo. Se Adorno pode defender o caráter inexorável de
tal ultrapassagem é porque lhe acompanha certo hegelianismo que não teria como
desaparecer do horizonte. O mesmo hegelianismo que nos mostrará como as contradições
contra as quais o pensamento da identidade se choca já são figuras da
infinitude em ato.”
“A chave da posição de Adorno vem logo em
seguida, quando lembrar que “as obras de arte significativas são aquelas que
ambicionam um extremo: as que se destroem no caminho e cujas fraturas permanecem
como cifras da verdade suprema que não conseguiram nomear”126 As
obras de arte fiéis a seu conteúdo de verdade precisam se destruir no caminho,
pois seus dispositivos de construção integral devem ser postos e devem falhar.
Toda verdadeira obra de arte é a história de um fracasso e a expressão de uma
fratura. Ela precisa expor a tensão em direção à construção absoluta, como
forma de operar à crítica à ilusão de significação natural que seus materiais
parecem portar. Ela não pode “encontrar” seus materiais. Antes, ela precisa
procurar transcender a literalidade de seus materiais, sob pena de aceitar o
estado arruinado da linguagem própria a uma sociedade que toda obra de arte
verdadeira combate.”
126 ADORNO, Quasi una fantasia, p.
321.
“Podemos dizer que interpretar um conceito
filosófico será, para Adorno, explicitar a necessidade de seu movimento no
interior de situações sócio-históricas muitas vezes contraditórias entre si;
situações às quais o conceito em questão foi referido. Não se trata de afirmar
que tal multiplicidade de referências a situações contraditórias seja resultado
da inabilidade de alguns em compreender a verdadeira referência do conceito. Na
verdade, o movimento é interno ao próprio conceito. Adorno chegará a dizer que
a imposição fundamental da dialética não consiste em defender que a verdade
estaria no tempo ou em oposição a ele: “mas que a própria verdade tem um núcleo
temporal (einen Zeitkern)”149 O que é uma maneira de afirmar
que o conceito produz um processo histórico-social que obriga a mudanças contínuas
na sua própria estrutura de significação, redimensionando sua referência, isso
se ele quiser “permanecer fiel a si mesmo”. Um contextualismo historicamente
distendido que nunca poderia ser compreendido em chave relativista, mas em
determinação situacional. Portanto, um verdadeiro conceito filosófico nunca é
homogêneo, mas move-se de maneira distinta em situações sócio-históricas
específicas.”
“Todos conhecem a afirmação canônica de
Adorno: “O todo é o nãoverdadeiro”. Mas a análise detalhada da maneira com que
Adorno compreende o problema da totalidade em Hegel demonstra um julgamento
mais complexo. Pois ele sabe que a negação simples da experiência da totalidade
leva, necessariamente, à fascinação positivista pela pretensa imediaticidade da
facticidade e do meramente dado. Tal negação simples da totalidade é a senha
para a validação de uma ciência que apenas constata, ordena e que, por se
aferrar à afirmação da existência desconexa, perde a força para levar a cabo
toda crítica à realidade reificada.157 Isso faz com que Adorno
procure, em Hegel, o modelo de crítica a tal tentação positivista, e ele o encontrará
exatamente no conceito de totalidade. Para tanto, Adorno precisa lembrar, sobre
Hegel:
Assim como as partes não são tomadas de maneira autônoma contra o todo,
que é o elemento delas, o crítico dos românticos sabe também que o todo apenas
se realiza por meio das partes, apenas por meio da separação, da alienação, da
reflexão, em suma, por meio de tudo o que é anátema para a teoria da Gestalt.158
Ou seja, Adorno não defende a ideia corrente
de que a totalidade em Hegel seria uma espécie de estrutura prévia à
experiência da consciência, sempre presente e pronta para ser desvelada ao
final por um processo que já estaria determinado desde sempre e que, por isso,
não seria processo algum, o que nos daria uma totalidade como movimento sem
acontecimento. Exemplo paradigmático de tal interpretação pode ser encontrado
na crítica heideggeriana a Hegel.159 Ao contrário, Adorno insiste
que a totalidade em Hegel deve ser inicialmente vista como a quintessência dos
momentos parciais que apontam para além de si mesmos. É isso que lhe permite
afirmar que, no caso da totalidade hegeliana, “o nexo [entre os elementos] não
é aquele da passagem contínua, mas da mudança brusca; o processo não ocorre na
aproximação dos momentos, mas propriamente por meio da ruptura”.160
Essa é outra maneira de dizer que a totalidade não deve ser compreendida
como determinação normativa capaz de definir, por si só, o sentido daquilo que
ela subsume, mas como a força de descentramento da identidade autárquica dos
particulares. Descentramento sentido pelos particulares como ruptura e mudança
brusca. Isso leva Adorno a afirmar que o sistema hegeliano não quer ser um
esquema que tudo engloba, mas o centro de força latente que atua nos momentos
singulares, impulsionando tais momentos com a abertura da transcendência.
Dessa forma, Adorno deve reconhecer, nos
melhores momentos de seus textos, que em Hegel a totalidade não pode ser vista
como negação simples do particular, como subsunção completa das situações
particulares a uma determinação estrutural genérica. Ela será a consequência
necessária de a compreensão do particular ser sempre mais do que si mesmo, de
ele nunca estar completamente realizado, de ser uma determinação instável. Na
verdade, ela aparecerá como a condição para que a força que transcende a
identidade estática dos particulares não seja simplesmente perdida, mas possa
produzir relações.”
159 Por exemplo: “o progresso na marcha
histórica da história da formação da consciência não é impulsionado em direção
ao ainda indeterminado, pela figura respectiva de cada momento da consciência,
mas ele é impulsionado pelo alvo já proposto” (HEIDEGGER, Martin. Caminhos
da floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2014, p. 157). Em outra
chave, mas com a mesma leitura, Habermas, falará: “de um espírito que arrasta
para dentro do sorvo da sua absoluta autorreferência as diversas contradições
atuais apenas para fazê-las perder o seu caráter de realidade, para transformá-las
no modus da transparência fantasmagórica de um passado recordado – e para lhes
tirar toda a seriedade” (HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade,
p. 60).
160 ADORNO, Três estudos sobre Hegel,
p. 75.
161 LUKÁCS, Georg. História e consciência
de classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 141.
“No entanto, podemos encontrar em Hegel uma
noção relativamente distinta de totalidade, a saber, algo que deve ser descrito
como uma processualidade em contínua reordenação de séries de elementos
anteriormente postos em relação. Neste caso, as relações entre os elementos e
momentos continuam necessárias, mas tal necessidade não obedece a uma 16gica
determinista, e sim a um processo de transfiguração da contingência em
necessidade.162 Tal transfiguração exige pensar a totalidade como um
sistema aberto ao desequilíbrio periódico e infinito, pois a integração
contínua de novos elementos inicialmente experimentados como contingentes e
indeterminados reconfigura o sentido dos demais. A negação determinada não
aparece, assim, apenas como passagem de um conteúdo a outro que visaria mostrar
o caráter limitado dos momentos parciais da experiência. Ela é principalmente a
reconfiguração posterior de conteúdos já postos tomados como conjunto. O
movimento que a negação determinada produz é um movimento de mutação para
frente, mas também para trás. Adorno insiste neste ponto ao afirmar que aquilo
que Hegel denomina como síntese “não é apenas a qualidade emergente da negação
determinada e simplesmente nova, mas o retorno do negado; a progressão
dialética é sempre também um recurso àquilo que se tornou vítima do conceito
progressivo: o progresso na concreção do conceito é a sua autocorreção”.163”
162 Desenvolvi isto de maneira mais
sistemática no terceiro capítulo de O circuito dos afetos.
163 ADORNO, Dialética
negativa, p. 276.
“Assim, a totalidade não pode ser definida
aqui como o que permite a compreensão semântica de todos os elementos
que ela subsume (como está pressuposto na citação anterior de Lukács), mas como
a perspectiva que permite a compreensão sintática do movimento de reabsorção
contínua do que inicialmente apareceu como indeterminado e contingente. Pois
há, no interior mesmo da ontologia hegeliana, um risco de indeterminação
que sempre devemos inicialmente assumir para poder após integrar.167”
167: De fato: “Cada vez que Hegel chega a um
momento de perfeição no qual a identidade parece fechar-se em si mesmo para um
gozo autárquico, é a negação desta identidade que salva o Absoluto da abstração
e da indeterminação” (MABILLE, Bernard. Idéalisme spéculatif, subjectivité et négations.
In: GODDARD, J.-C. (Org.). Le transcendantal. Paris: Vrin, 1999, p. 170).
“A impossibilidade de resolução do conflito, a
contínua luta contra a organicidade, não nos leva, como poderíamos inicialmente
esperar, a uma forma sem força sintética. Pois a processualidade da ideia já
fornece a unidade no nível construtivo. Este é o ponto central: a
contradição entre os momentos, potencializada pela eliminação de processos visíveis
de transição, não chega a eliminar a univocidade produzida pela relação de cada
momento à ideia. A ideia tem a força de se refratar em atualizações
contraditórias, sem com isso perder sua univocidade. Pois ela desenvolve, ao
mesmo tempo, o antagonismo entre a finitude de seus momentos e a univocidade de
sua processualidade que absorve a multiplicidade das determinações.”
“Há de se lembrar disso quando for questão de
avaliar as relações entre Adorno e Hegel, assim como seus respectivos conceitos
de dialética. Não é possível compreender tais relações em toda sua extensão
amputando o sentido do recurso filosófico à estética, com suas referências
estratégicas a Hegel, no interior da obra adorniana. De toda forma, que uma
figura fundamental da reconciliação se desloque, paradoxalmente, para essa arte
que parece recusar toda conciliação possível não deveria nos estranhar. Ela é
uma forma de afirmar que a verdadeira ação social, e mesmo a verdadeira ação
política, só pode ocorrer através do redimensionamento da força produtiva da
imaginação animada pela confrontação com as obras de artes avançadas de nosso
tempo. As experiências que mobilizam a ação social transformadora, como a
liberdade e a emancipação, são, de certa forma, produções estéticas. Elas
procuram realizar, na vida social, a liberdade e a ausência de dominação que as
obras de arte são capazes de produzir. Há uma consequência política danosa
vinda da recusa em admitir que a arte é o setor da vida social mais claramente
portador de força redimensionadora da experiência. A insensibilidade à arte só
pode ser também insensibilidade às transformações sociais.”
“Liberdade não é algo que se predica de um
sujeito sem que tal predicação não acabe por nos levar a um processo
contraditório com a situação atual e suas relações de reconhecimento e
trabalho, a uma desarticulação do próprio campo dos predicados, a um estado
impossível de ser determinado a partir das potencialidades de determinação
vigentes no aqui e agora.”
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