sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Pandemia: Covid-19 e a reinvenção do comunismo, de Slavoj Žižek

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-772-9

Tradução: Artur Renzo

Opinião: ★★★★☆

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 136

Sinopse: Uma pandemia global assola o planeta. Com a brusca mudança na rotina de bilhões de pessoas, vivemos em um momento em que o maior ato de responsabilidade é se manter distante daqueles que amamos. Nesta obra escrita em plena quarentena, o filósofo esloveno Slavoj Žižek mergulha de cabeça no espírito de nossa época. Ao longo de treze ensaios de escrita rápida, afiada e bem-humorada, são destrinchados diferentes aspectos do surto provocado pelo novo coronavírus: filosóficos, psicanalíticos, políticos, sociais, econômicos, ecológicos e ideológicos.

Quando governos austeros, reconhecidos por cortes implacáveis nos gastos públicos, decidem subitamente gerar trilhões, Žižek demonstra como uma nova forma de comunismo pode ser a única maneira de evitar uma descida à barbárie global.

Escrito com seu conhecido estilo irreverente e o gosto do autor por analogias da cultura pop (Tarantino, Hitchcock e H. G. Wells flertam com Marx, Hegel e Lacan nestas páginas), este livro fornece fotogramas concisos e provocativos da crise à medida que ela se alastra e engole todos nós.

Para apresentar a ousada tese que atravessa os ensaios que compõem esta obra, Žižek não se furta de travar um debate direto com outros intérpretes contemporâneos da crise causada pela covid-19, como Giorgio Agamben, Byung-Chul Han, Alain Badiou e Bruno Latour, entre outros.

O autor abriu mão dos direitos autorais da obra, que serão revertidos à organização internacional Médicos Sem Fronteiras, dedicada a oferecer ajuda médica e humanitária a populações em situações de emergência em todo o planeta.

 

“Na gramática paranoica, só há dois: eu e o outro. Se estou certo, o outro está errado; se o outro está com a razão, tenho de admitir eu mesmo minha própria loucura.” (Christian Dunker)

 

 

Voltemos ao valor simbólico e pragmático da ciência e das universidades. Nem tudo é jogo de interesses e ideologia. Nem tudo se reduz ao “nervosismo dos mercados”, ao axioma do “Estado mínimo”. Aliás, para aqueles que ainda querem discutir o assunto nesses termos, recomendo a doação de seus próprios respiradores, de seus leitos e de sua cota de medicamentos (afinal, vá importar os seus). A realidade mais simples, a de que mesmo com dinheiro você não conseguirá garantir a salvação da própria vida, precisou de uma epidemia para mostrar seu impacto real.

O ser humano é esta noite, este vazio, este nada diante da força da natureza. Dieta narcísica forçada e redimensionamento da volumetria do mundo, com sua fé no progresso do indivíduo como razão e valor universal. Contra isso temos agora a moral da máscara, irônica vingança dos anos de islamofobia. A máscara não deve ser usada para que você não seja contaminado pelo vírus; aliás, desse ponto de vista, ela pode até facilitar as coisas, pois umedece o tecido perto da boca, tornando-se um caldo de cultura e uma porta de entrada para o vírus. A máscara não te protege, ela protege o outro. Se você usa máscara, é possível que você, se estiver infectado, não transmita o vírus para outros. Ao mesmo tempo, o melhor jeito de se proteger é usando uma máscara – porque assim outros também usarão máscaras, e você estará protegido deles. Ridiculamente simples, eficaz e concreto, mas insuficiente para evitar que ficássemos por décadas discutindo a biologia do egoísmo e do altruísmo, a glorificação do indivíduo e o caráter acessório de ideias como democracia ou comunidade.

Assim como a ideia de que o mundo não existe, de que ele é apenas um conjunto de narrativas e pontos de vista interpretativos sumariamente extinguiu o desconstrucionismo pós-moderno americano, parece que agora a moral neoliberal se afundará de vez, e com ela a reencarnação hobbesiana de que a vida de cada um será, antes de tudo, o maior e mais inegociável valor. Os hobbesianos de plantão estão comprando papel higiênico para estocar. Nada poderia demonstrar melhor a tese lacaniana de que o sintoma é uma metáfora: estão “cagando-se de medo”, sentados em suas privadas de ouro, esperando o Anjo exterminador de Buñuel.

O medo não é angústia, pois enquanto o primeiro tem por horizonte o objeto na realidade, o segundo tem sua origem nas profundezas regressivas do eu: o desamparo, a intrusão, o édipo, o desmame. O pânico não é mais que a progressão da angústia sobre o medo, o avanço do Real sobre a realidade. Desde quando viveu este grande teórico da arte da guerra que foi Clausewitz, sabemos que o pior inimigo do exército em batalha é a perda de seu general. Não porque ele seja particularmente sagaz ou poderoso em sua ação contra o inimigo, mas porque ele representa a encarnação do objeto em nosso ideal de eu, o ponto de contato místico e mágico entre poder e autoridade protetora. Enquanto isso funciona, temos a lógica contábil do sacrifício: deixemos os velhos, os incapazes, os inaptos morrerem para que os jovens e produtivos sobrevivam. Não foi por outro caminho que a política de Hitler começou por eliminar doentes terminais e crianças deficientes mentais – porque elas eram um peso para o Estado.

Em momentos de guerra e de peste, os improdutivos devem ser deixados para trás. Assim pensa a necropolítica, tendo por pressuposto a biopolítica. Contra isso levantam-se Žižek e a ideia de uma “solidariedade incondicional”, ou seja: não é porque o cálculo econômico diz que algumas vidas valem mais que outras que devemos agir politicamente de acordo com isso. Quem discorda é porque na própria fantasia descansa em um lugar de proteção divina e especialidade. Quem diz a si mesmo, ainda que silenciosamente, “comigo isso não acontece”, ou “antes de mim virão tantos outros que terei tempo de mudar minha posição”, ainda não foi purificado pelo corona. Precisa passar pela “Lava a Jato” (versão álcool em gel) imediatamente.

Contra esse etnocentrismo narcísico bastaria lembrar que Trump desviou um avião com equipamentos médicos simplesmente oferecendo mais dinheiro que Bolsonaro. O argumento cínico de que é preciso proteger os pobres do Terceiro Mundo senão eles invadirão e destruirão gradualmente a forma de vida liberal – europeia ou americana, chinesa ou japonesa – continua verdadeiro em tempos de coronavírus.” (Christian Dunker)

 

 

Mas há um paradoxo mais profundo em operação: quanto mais nosso mundo estiver conectado, mais um desastre local pode deflagrar um pavor global e, eventualmente, uma catástrofe. Na primavera de 2010, uma nuvem proveniente de uma pequena erupção vulcânica em uma geleira na Islândia (uma perturbação mínima no complexo mecanismo da vida na Terra) paralisou o tráfego aéreo em boa parte da Europa – um lembrete de como, mesmo com toda sua formidável atividade de transformar a natureza, o ser humano continua sendo somente mais uma das espécies vivas do planeta. O próprio efeito socioeconômico catastrófico de um surto tão pequeno deve-se a nosso desenvolvimento tecnológico (as viagens aéreas): um século antes, uma irrupção dessas teria passado despercebida. O desenvolvimento tecnológico nos torna mais independentes da natureza e, ao mesmo tempo, em outro patamar, mais dependentes dos caprichos da natureza. Isso vale também para a disseminação do coronavírus: se tivesse ocorrido antes das reformas de Deng Xiaoping, provavelmente nem teríamos ouvido falar dessa epidemia.”

 

 

Devemos resistir à tentação de tratar a epidemia em curso como algo dotado de um significado mais profundo: como a punição cruel, porém justa da humanidade por toda a exploração implacável feita sobre outras formas de vida na Terra, ou qualquer coisa do tipo… Se buscássemos um recado escondido como esse, permaneceríamos pré-modernos: estaríamos tratando nosso universo como um parceiro na comunicação. Mesmo com nossa própria sobrevivência ameaçada, há ainda algo reconfortante na ideia de estarmos sendo punidos – afinal, o universo (ou mesmo “alguém-lá-fora”) estaria nos observando… O que é realmente difícil de aceitar é que a epidemia em curso é resultado, por excelência, de uma contingência natural, que foi simplesmente algo que aconteceu e que ela não guarda nenhum outro significado mais profundo. Na ordem mais ampla das coisas, somos uma espécie sem importância.”

 

 

Os cinco estágios da epidemia

Talvez possamos aprender algo a respeito de nossas reações à epidemia do coronavírus com a psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross, que, em seu livro Sobre a morte e o morrer[1], propôs o famoso esquema dos cinco estágios de como reagimos ao tomar conhecimento de que portamos uma doença terminal. São eles: negação (a simples recusa de aceitar o fato: “Isso não pode estar acontecendo, não comigo.”); raiva (que estoura quando já não podemos mais negar o fato: “Como isso pôde acontecer comigo?”); negociação (a esperança de que, de alguma forma, possamos postergar ou mitigar o fato: “Se eu pudesse apenas viver a tempo de ver meus filhos se formarem.”); depressão (desinvestimento libidinal: “Eu vou morrer, então por que afinal me importar com qualquer coisa?”); e aceitação (“Se não posso combater a morte, posso ao menos me preparar para ela.”). Mais tarde, Kübler-Ross aplicou esse esquema a qualquer forma de perda pessoal catastrófica (desemprego, morte de um ente querido, divórcio, drogadição), e enfatizou que esses estágios não necessariamente vêm na mesma ordem, e que nem todo paciente passa pelos cinco estágios.

É possível identificar os mesmos cinco estágios sempre que uma sociedade se depara com alguma ruptura traumática. Tomemos a ameaça de uma catástrofe ambiental, por exemplo. Primeiro, tendemos a negá-la: “Não passa de uma grande paranoia, na verdade são apenas as oscilações comuns dos padrões climáticos”. Daí vem a raiva – dirigida contra as grandes corporações que poluem nosso meio ambiente, contra o governo que ignora os perigos, contra a cultura de toda uma geração etc. –, seguida por tentativas de negociação: “Se reciclarmos nosso lixo, conseguiremos ganhar algum tempo; além disso, há um lado positivo: as embarcações terão condição de transportar bens da China para os Estados Unidos com muito mais rapidez pela rota do norte, novas terras férteis estão aparecendo no norte da Sibéria em função do derretimento do pergelissolo”. Depois disso, é claro, a depressão (o sentimento de que é tarde demais, de que tudo está perdido) e, finalmente, a aceitação de que estamos diante de uma ameaça séria e precisamos mudar todo o nosso modo de vida.

Isso vale também para a crescente ameaça do controle digital sobre nossas vidas. A primeira tendência é a negação: “É um exagero, uma paranoia esquerdista, nenhuma instância pode controlar nossas atividades cotidianas”. Depois explodimos em raiva e indignação diante das grandes empresas e agências estatais secretas que nos conhecem melhor que nós mesmos e utilizam esse conhecimento para nos controlar e manipular. No estágio seguinte, da negociação, vemos raciocínios do tipo: “As autoridades têm direito de buscar terroristas, mas não de violar nossa privacidade”. Depois, a depressão: “É tarde demais, nossa privacidade está perdida, a era das liberdades pessoais acabou” e, por fim, a aceitação, o pleno entendimento de que o controle digital é uma ameaça a nossa liberdade, e que precisamos conscientizar o público de todas as suas dimensões e nos mobilizar para combatê-lo.

Mesmo na esfera da política, isso vale para aqueles que ficaram traumatizados com a eleição de Donald Trump, por exemplo. Primeiro veio a negação (“Não se preocupe, Trump só está fazendo cena, nada vai realmente mudar se ele tomar o poder”), seguida de raiva (dirigida contra as forças obscuras que permitiram que ele tomasse o poder, contra os populistas que o apoiam e representam uma ameaça a nossa substância moral); depois a negociação (“Nem tudo está perdido, talvez as instituições o contenham, vamos só tolerar alguns de seus excessos e focar no principal”); a depressão (“Estamos no caminho do fascismo, a democracia está perdida nos Estados Unidos”) e, por fim, a aceitação de que há um regime político novo nos Estados Unidos, que os bons e velhos tempos da democracia estadunidense acabaram, e que vamos agora ter de encarar o perigo e planejar com tranquilidade como superar o populismo de Trump.

Em tempos medievais, a população de uma cidade afetada reagiu aos sinais de uma peste de maneira parecida. Depois da negação, a raiva diante de “nossa vida pecaminosa, pelas quais agora estamos sendo punidos de maneira tão horrível” (ou mesmo contra a crueldade de Deus, que permitiu que isso ocorresse). Em seguida, as tentativas de negociação e o raciocínio de que afinal as coisas não são tão ruins assim, basta evitar os doentes ou algo do tipo. Curiosamente, na etapa de depressão (“nossa vida vai acabar”), o que se viu foram orgias (“já que nossa vida vai acabar, tiremos dela todos os prazeres que ainda forem possíveis: embriaguez, sexo...”). E, finalmente, houve a aceitação de que a situação afinal era aquela e que o jeito seria ir levando a vida assim mesmo.

E não é assim que estamos lidando com a epidemia do coronavírus que irrompeu no final de 2019? Primeiro, houve a fase da negação, em que se insistiu em dizer: “Não há nada grave ocorrendo, há apenas alguns indivíduos irresponsáveis disseminando pânico”. Depois, o sentimento de raiva – muitas vezes sob forma racista ou anti-Estado: “Os culpados são os chineses sujos ou a ineficiência do Estado em lidar com esse tipo de crise”. Na sequência, entram os raciocínios da fase de negociação: “Ok, há algumas vítimas, mas a situação é menos grave que a SARS e ainda podemos limitar o estrago”. E se nada disso funcionar, bate a depressão (“Não nos enganemos mais, estamos todos perdidos”). Mas como seria a aceitação aqui? É estranho constatar que essa epidemia apresenta um traço em comum com a última rodada de protestos sociais ocorridos na França, em Hong Kong, na América Latina etc., a saber: não são fenômenos que explodem e depois passam; eles permanecem e simplesmente perduram, trazendo medo e fragilidade permanentes a nossas vidas.

Aquilo que devemos aceitar, a realidade com a qual devemos nos reconciliar, é que há uma subcamada de vida – a vida pré-sexual, estupidamente repetitiva, morta-viva dos vírus – que sempre esteve aqui e que sempre estará entre nós como uma sombra escura, representando uma ameaça a nossa própria sobrevivência, sendo capaz de irromper quando menos esperarmos. E em um nível ainda mais geral, a epidemia viral nos lembra do caráter em última instância contingente e desprovido de sentido de nossas vidas. Não importa quão magníficos são os edifícios espirituais que nós, a humanidade, somos capazes de produzir, uma contingência natural estúpida como um vírus ou um meteoro pode acabar com tudo de uma só vez... sem falar na lição de ecologia de que nós, a humanidade, podemos também estar contribuindo sem saber para esse fim.

Voltaremos a isso, mas por ora vale frisar que a aceitação nesse caso pode assumir duas direções. Ela pode significar simplesmente a renormalização da doença, como quem diz: “Ok, as pessoas vão continuar morrendo, mas a vida vai seguir, talvez até haja alguns efeitos colaterais positivos”. Ou a aceitação pode (e deve) nos estimular à mobilização, sem pânico e sem ilusões, para agir em solidariedade coletiva.”

 

 

Noli me tangere

“Não me toques”. Foi isso que, segundo João 20:17, Jesus teria dito a Maria Madalena quando ela o reconheceu depois da ressurreição. De que forma eu, um ateu cristão confesso, interpreto essas palavras? Primeiro, leio-as em conjunto com a resposta de Cristo à pergunta de seu discípulo sobre como saberemos que ele voltou, que ele renasceu. Cristo diz que estará lá sempre que houver amor entre seus fiéis; estará lá não como uma pessoa a ser tocada, mas como o vínculo de amor e solidariedade entre as pessoas. Por isso “não me toques, toca e trata as outras pessoas no espírito do amor”.

Hoje, contudo, em meio à epidemia do coronavírus, somos bombardeados precisamente pelo imperativo de não tocar os outros, mas isolar a nós mesmos, manter uma distância corpórea adequada. O que isso significa quanto ao “não me toques”? As mãos não podem alcançar a outra pessoa, é só de dentro de nós mesmos que conseguimos nos aproximar dos outros – e as janelas para nosso “interior” são nossos olhos. Esses dias, quando você encontra alguém próximo (ou mesmo um estranho) e mantém uma distância adequada, um olhar profundo nos olhos do outro pode revelar mais que um toque íntimo. Em um de seus fragmentos escritos na juventude, Hegel disse: “O ser amado [der Geliebte] não está em oposição a nós, ele é um com nosso ser; só vemos a nós mesmos por meio dele, e assim ele já não é mais um nós – uma charada, um milagre [ein Wunder], que não somos capazes de compreender”[1].

É crucial não interpretar essas duas proposições em oposição, como se o ser amado fosse parcialmente um “nós”, parte de mim mesmo, e parcialmente uma charada. O milagre do amor não é justamente que você é parte de minha identidade bem na medida em que permanece um milagre que não sou capaz de compreender, uma charada não apenas para mim, mas também para você mesmo? Para citar outra passagem conhecida do jovem Hegel: “O ser humano é essa noite, esse nada vazio, que contém tudo em sua simplicidade; uma riqueza inesgotável de representações, imagens, das quais nenhuma pertence a ele – ou está presente. Tem-se um vislumbre dessa noite quando se olha no olho dos seres humanos”[2].

Nenhum coronavírus pode tirar isso de nós – então, há esperança de que o distanciamento corporal irá inclusive fortalecer a intensidade de nossos vínculos com os outros. É somente agora, quando sou obrigado a evitar muitos daqueles que me são próximos, que tenho a experiência plena da presença deles, da importância deles para mim... Já posso ouvir aqui uma risada cínica: “OK, talvez haverá momentos como esses de proximidade espiritual, mas como isso nos ajudará a lidar com a catástrofe em curso? Aprenderemos algo com ela?”.

Hegel escreveu que a única coisa que podemos aprender com a história é que não aprendemos nada com a história, então duvido que a epidemia nos deixará mais sábios. A única coisa que está clara é que ela irá estilhaçar os próprios fundamentos de nossas vidas, provocando não apenas uma imensa quantidade de sofrimento, mas também um caos econômico possivelmente pior que o da Grande Recessão. Não há retorno ao normal, o novo “normal” terá de ser construído sobre as ruínas de nossas antigas vidas, ou nos encontraremos em uma nova barbárie cujos sinais já estão ficando cada vez mais perceptíveis. Então, não bastará tratarmos a epidemia como um acidente infeliz, nos livrar de suas consequências e retornar ao funcionamento tranquilo do velho sistema. Será preciso levantar a pergunta-chave: o que há de errado em nosso sistema atual para sermos pegos despreparados por essa catástrofe, apesar de os cientistas estarem há anos nos alertando sobre ela? Fornecer uma resposta a essa questão demandará muito mais que apenas novas formas de atendimento de saúde global.”

[1] “Der Geliebte ist uns nicht entgegengesetzt, er ist eins mit unserem Wesen; wir sehen nur uns in ihm, und dann ist er doch wieder nicht wir – ein Wunder, das wir nicht zu fassen vermögen.” G. W. F. Hegel, “Entwürfe über Religion und Liebe,” em Frühe Schriften, Werke 1 (Frankfurt, Suhrkamp, 1986), p. 244.

[2] Idem, “Jenaer Realphilosophie”, em Frühe politische Systeme (Frankfurt, Ullstein, 1974), p. 204.

 

 

O diretor-geral da OMS, dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou nesta quinta-feira que, embora as autoridades de saúde pública de todo o mundo possuam a capacidade de efetivamente combater a disseminação do vírus, a organização demonstra preocupação diante do fato de que, em alguns países, o nível de comprometimento político não está à altura do patamar da ameaça. “Essa não é uma simulação. Essa não é a hora de desistir. Esse não é um momento para desculpas. Esse é um momento de fazer absolutamente tudo que for possível. Países vêm traçando planos para cenários como este há décadas. Agora é a hora de agir com base nesses planos”, disse Tedros. “Essa epidemia pode ser revertida, mas somente por meio de uma abordagem coletiva, coordenada e abrangente, que mobilize toda a máquina do governo”.[3]

Poderíamos ainda acrescentar que tal abordagem abrangente deve ir muito além da máquina de governos individuais: ela deve englobar tanto a mobilização local de pessoas fora do controle estatal como a coordenação e colaboração fortes e eficientes em nível internacional. Se milhares de pessoas tiverem de ser hospitalizadas por conta de problemas respiratórios, será necessário um número incrivelmente maior de aparelhos respiradores. Para obtê-los, o Estado deve intervir diretamente, da mesma forma que faz em condições de guerra, quando são necessários milhares de armamentos, e deve poder contar inclusive com a cooperação de outros Estados. Como em uma operação militar, as informações devem ser compartilhadas e os planos totalmente coordenados – é apenas isso que quero dizer quando falo no “comunismo” exigido hoje. Ou, como colocou Will Hutton: “Agora, uma determinada forma de globalização, desregulada, de livre mercado, propensa a crises e a pandemias está certamente morrendo. Mas está nascendo outra forma de globalização, que reconhece interdependência e primazia da ação coletiva amparada em evidências”. A postura predominante ainda hoje é “cada país por si”. “Há proibições nacionais sobre a exportação de produtos-chave como suprimentos médicos, países tendo que recorrer às próprias análises da crise em meio a escassezes localizadas, e abordagens primitivas, aleatórias, em relação à contenção.”[4]

A epidemia do coronavírus não assinala apenas o limite da globalização de mercado; ela assinala também o limite ainda mais fatal do populismo nacionalista que insiste na soberania plena de Estado. Não custa repetir: acabou o “América (ou quem quer que seja) em primeiro lugar!”, visto que a América só pode ser salva por meio de coordenação e colaboração globais. Não estou sendo utópico, não recorro a uma solidariedade idealizada entre os povos. Pelo contrário: a atual crise demonstra claramente como solidariedade e cooperação globais interessam à sobrevivência de cada um de nós, como essa é a única coisa egoísta racional a se fazer. E não se trata apenas da crise do coronavírus: a própria China enfrentou as consequências de uma enorme gripe suína alguns meses atrás, e agora é ameaçada pela perspectiva de uma invasão de gafanhotos. Além disso, como assinalou Owen Jones, a crise climática mata mais pessoas no mundo que o coronavírus, mas não se vê nenhum pânico em torno disso[5].

De um ponto de vista vitalista cínico, seria tentador enxergar o coronavírus como uma infecção benéfica que permite à humanidade se livrar dos fracos, dos idosos e dos doentes, contribuindo assim à saúde global, como alguém que arranca as ervas semipodres de uma horta. A abordagem comunista ampla que estou defendendo é a única forma de realmente abandonar esse tipo de perspectiva vitalista primitiva. Nos debates em curso, já é possível identificar sinais de uma retração da solidariedade incondicional, como no seguinte comentário a respeito do papel dos “três homens sábios” se a epidemia tomar uma feição mais catastrófica no Reino Unido:

Pacientes do Serviço Nacional de Saúde (NHS) podem não receber cuidados de salvamento se as unidades de cuidado intensivo estiverem batalhando para dar conta da demanda durante um surto severo de coronavírus na Inglaterra, alertam médicos. Sob um protocolo assim chamado de “os três homens sábios”, três consultores sênior de cada hospital seriam obrigados a tomar decisões a respeito de racionamento de recursos de cuidado, tais como respiradores e leitos, caso os hospitais fiquem sobrecarregados de pacientes.[6]

Em quais critérios esses “três homens sábios” se baseariam? Sacrificar os mais fracos e os mais idosos? Essa situação não abriria um espaço imenso para corrupção? Não poderíamos dizer que procedimentos como esse indicam que estamos nos preparando para decretar a mais brutal lógica da sobrevivência do mais apto? Então, mais uma vez, a escolha em última instância é entre isso e alguma forma de comunismo reinventado.”

[3] Joshua Berlinger, “WHO warns governments ‘this is not a drill’ as coronavirus infections near 100,000 worldwide”, CNN, 6 mar. 2020. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2020/03/06/asia/coronavirus-covid-19-update-who-intl-hnk/index.html>; acesso em: 2 abr. 2020.

[4] Will Hutton, “Coronavirus won’t end globalisation, but change it hugely for the better”, The Guardian, 8 mar. 2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/mar/08/the-coronavirus-outbreak-shows-us-that-no-one-can-take-on-this-enemy-alone>; acesso em: 2 abr. 2020.

[5] Owen Jones, “Why don’t we treat the climate crisis with the same urgency as coronavirus?”, The Guardian, 5 mar. 2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/mar/05/governments-coronavirus-urgent-climate-crisis>; acesso em: 2 abr. 2020.

[6] Shaun Lintern, “Coronavirus: Weakest patients could be denied lifesaving care due to lack of funding for NHS, doctors admit”, The Independent, 26 fev. 2020. Disponível em: <https://www.independent.co.uk/news/health/coronavirus-uk-deaths-nhs-intensive-care-flu-wise-men-protocol-a9361916.html>; acesso em: 2 abr. 2020.

 

 

Por que estamos sempre cansados?

A epidemia do coronavírus nos confronta com duas figuras opostas que prevalecem em nossa vida cotidiana: por um lado, aqueles que estão com uma sobrecarga imensa de trabalho a ponto de exaustão (profissionais de saúde, cuidadores etc.) e aqueles que não tem nada para fazer, pois estão forçosa ou voluntariamente confinados em seus lares. Como alguém pertencente à segunda categoria, me sinto obrigado a utilizar essa condição para propor uma breve reflexão a respeito das diferentes maneiras pelas quais podemos nos sentir cansados. Vou ignorar o paradoxo evidente de como a própria inatividade forçada também cansa, então permita-me começar com o filósofo Byung-Chul Han, que forneceu uma leitura sistemática de como e por que vivemos em uma “sociedade do cansaço”[1]. Aqui vai uma sinopse curta da obra-prima dele, que copiei direto da Wikipédia, sem nenhuma vergonha:

Movidos pela demanda de perseverar e não fracassar, bem como pela ambição da eficiência, nos tornamos sujeitos ao mesmo tempo do comprometimento e do sacrifício e adentramos uma espiral de demarcação, autoexploração e colapso. “Quando a produção é imaterial, todo mundo detém os meios de produção de si. O sistema neoliberal não é mais um sistema de classes propriamente dito. Ele não consiste em classes que apresentam antagonismo mútuo. Daí a estabilidade do sistema.” Han defende que os sujeitos se tornam autoexploradores: “Hoje, cada um é um trabalhador autoexplorador em sua própria empresa. As pessoas são agora ao mesmo tempo senhor e escravo. Até mesmo a luta de classes converteu-se em uma luta interna contra si mesmo”. Os indivíduos tornaram-se aquilo que Han denomina “sujeitos-realização”; eles não acreditam ser “sujeitos” subjugados, mas “projetos em constante remodelação e reinvenção”, o que “culmina em uma forma de compulsão e coação – de fato, em um tipo mais eficiente de subjetivação e subjugação. Como um projeto que se considera livre de limitações externas e alienígenas, o Eu está agora subjugando a si mesmo conforme limitações internas e autoamarras, que assumem a forma de conquistas e otimização compulsivas.[2]

Embora Han ofereça sacadas perspicazes a respeito do novo modo de subjetivação, e com as quais podemos aprender muito (o que ele identifica é a figura atual do superego), eu, não obstante, penso que é preciso pontuar algumas observações críticas. Primeiro, as limitações e amarras definitivamente não são apenas internas: há novas regras estritas de comportamento sendo impostas, especialmente entre os membros da nova classe “intelectual”. Basta pensar, por exemplo, nas amarras politicamente corretas que formam uma esfera especial de “luta contra si mesmo” em relação às tentações “incorretas”. Ou vejam o seguinte caso de uma limitação muito externa: alguns anos atrás, Udi Aloni organizou a vinda a Nova York do grupo palestino de Jenin, The Freedom Theatre, e uma reportagem a respeito da visita para o The New York Times quase deixou de ser publicada. Pediram que Aloni indicasse sua publicação mais recente para a matéria, e ele citou um volume que havia editado. O problema era que a palavra “binacional” constava no subtítulo do livro. Com medo de indispor os israelenses, o jornal exigiu que a palavra fosse deletada, caso contrário a matéria não seria publicada...

Um exemplo parecido, mais recente: a escritora inglesa-paquistanesa Kamila Shamsie escreveu o romance Home Fire, uma versão modernizada muito bem-sucedida de Antígona, que recebeu vários prêmios internacionais, dentre os quais o prêmio Nelly Sachs, concedido pela cidade de Dortmund. No entanto, quando se soube que ela apoiava o movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções), o prêmio lhe foi retroativamente revogado com a explicação de que, quando decidiram conceder o reconhecimento a ela, “os membros do júri não tinham consciência de que a autora estava participando das medidas de boicote contra o governo de Israel por conta de suas políticas em relação à Palestina desde 2014”[3]. É aqui que estamos hoje: Peter Handke recebe tranquilamente o Nobel de Literatura, apesar de apoiar as operações militares sérvias na Bósnia, mas apoiar um protesto pacífico contra a política de Israel na Cisjordânia te exclui da esfera dos prêmios.

Em segundo lugar, a nova forma de subjetividade descrita por Han é condicionada pela nova etapa do capitalismo global, que permanece um sistema de classes com desigualdades crescentes – lutas e antagonismos não podem de forma alguma ser reduzidos à dimensão intrapessoal da “luta contra si mesmo”. Ainda existem milhões de trabalhadores manuais em países de Terceiro Mundo, e há diferenças enormes entre os diferentes tipos de trabalhadores imateriais (basta mencionar a esfera crescente de “serviços humanos” como cuidadores de idosos). Há um abismo que separa o executivo de alto escalão que possui e gere uma empresa do trabalhador precário que passa seus dias sozinho em casa em frente ao computador – eles definitivamente não são simultaneamente senhor e escravo no mesmo sentido.

Muito se tem escrito a respeito de como o velho modo de trabalho na linha de produção fordista teria sido substituído por uma nova modalidade de trabalho cooperativo de criação que deixa muito mais espaço para a inventividade individual. No entanto, o que está efetivamente ocorrendo não é tanto uma substituição, mas uma terceirização: o trabalho na Microsoft e na Apple pode ser organizado de maneira cooperativa, mas os produtos finais são montados de maneira bastante fordista na China ou na Indonésia – o trabalho do chão de fábrica na linha de produção foi simplesmente terceirizado para fora do país. Assim, ficamos com uma nova divisão do trabalho: trabalhadores autoempregados e autoexplorados (descritos por Han) no Ocidente desenvolvido, trabalho debilitante na linha de produção no Terceiro Mundo, além da esfera crescente de trabalhadores de cuidado humano em todas as suas formas (cuidadores, garçons etc.), em que também abunda a exploração. Somente o primeiro grupo (trabalhadores autônomos, geralmente precários) se encaixa na descrição de Han.

A cada um dos três grupos corresponde uma modalidade específica de cansaço e sobretrabalho. O trabalho de chão de fábrica na linha de produção é simplesmente debilitante em sua repetitividade – você fica desesperadamente cansado de tanto montar o mesmo iPhone atrás de uma mesa em uma fábrica da Foxconn localizada em um subúrbio de Xangai. Em contraste com esse cansaço, o que faz do trabalho de cuidado humano algo tão cansativo é justamente o fato de que você é pago (também) para demonstrar verdadeira afeição em seu trabalho, como se você realmente se importasse com seus “objetos” de trabalho: uma pessoa que trabalha em um jardim de infância também recebe para demonstrar afeto sincero pelas crianças, e o mesmo vale para aqueles que cuidam de idosos aposentados etc. Dá para imaginar o estresse de ter de “ser gentil” o tempo inteiro? Em contraste com essas duas esferas, em que ao menos podemos manter algum tipo de distância interior em relação àquilo que estamos fazendo (mesmo quando é esperado que tratemos uma criança com afeto e gentileza, ainda podemos simplesmente fingir fazê-lo), a terceira esfera demanda algo ainda mais cansativo. Imagine que sou contratado para elaborar como divulgar ou embalar um produto a fim de seduzir as pessoas a comprarem-no – ainda que eu pessoalmente não me importe com isso ou, ainda, odeie a ideia, preciso mobilizar de maneira um tanto intensa aquilo que só poderíamos chamar de criatividade na tentativa de encontrar soluções originais, e um esforço desse tipo pode me exaurir muito mais que um trabalho repetitivo de linha de produção. Esse é o tipo específico de cansaço ao qual Han está se referindo.”

[1] Ver Byung-Chul Han, The Burnout Society (Redwood City, Stanford University Press, 2015) [ed. bras.: Sociedade do cansaço, trad. Enio Paulo Giachini, Petrópolis, Vozes, 2015].

[2] Ver o artigo da Wikipédia sobre Byung-Chul Han. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Byung-Chul_Han>; acesso em: 2 abr. 2020.

[3] Mustafa Abu Sneineh, “Kamila Shamsie stripped of German literary prize over support for BDS”, Middle East Eye, 18 set. 2020. Disponível em: <https://www.middleeasteye.net/news/german-city-reverse-prize-uk-author-kamila-shamsie-over-support-bds>; acesso em: 2 abr. 2020.

 

 

Abster-se de apertos de mãos e isolar-se quando necessário é a forma atual de solidariedade.”

 

 

Em trabalhos anteriores, usei ao menos uma dezena de vezes a velha piada sobre o homem que acredita ser um grão de milho. O sujeito é levado a uma instituição mental em que os médicos fazem de tudo para o convencerem de que ele de fato é um ser humano, não um grão de milho. Quando finalmente recebe alta (enfim curado e plenamente seguro de não ser um grão de milho) e lhe permitem deixar o hospital, o homem imediatamente volta, tremendo. Há uma galinha na porta e ele teme que ela tentará comê-lo. “Mas, meu caro”, diz o médico, “você sabe muito bem que não é um grão de milho, e sim um homem”. “É claro que eu sei”, responde o paciente, “mas a galinha sabe disso?”. Meu amigo croata Dejan Kršić recentemente me enviou uma atualização dessa piada para o contexto do coronavírus: “Olá, meu amigo!” “Bom dia, professor!” “Por que você está usando máscara? Duas semanas atrás você afirmava por aí que as máscaras na verdade não nos protegem contra o vírus…” “Sim, eu sei que elas não funcionam, mas talvez o vírus não saiba!”

Essa versão da piada ignora um fato crucial: o vírus não sabe de nada (e também não deixa de saber de nada) porque nem sequer pertence ao domínio do conhecimento. Não se trata de um inimigo tentando nos destruir; ele simplesmente se autorreproduz com um automatismo cego. Algumas pessoas de esquerda evocam outro paralelo: será que o próprio capital não pode igualmente ser considerado um vírus que parasita a humanidade? Afinal, ele também é um mecanismo cego dotado de uma tendência implacável à autoreprodução expandida, manifestando total indiferença ao nosso sofrimento. Há, contudo, uma diferença-chave em operação aqui: o capital é uma entidade virtual que não existe na realidade independentemente de nós – ele só existe porque nós, seres humanos, participamos do processo capitalista. Como tal, o capital é uma entidade espectral: se parássemos de agir como se acreditássemos nele (ou, digamos, se um poder estatal nacionalizasse todas as forças produtivas e abolisse o dinheiro), o capital deixaria de existir, ao passo que o vírus constitui uma parte da realidade com a qual só podemos lidar por meio da ciência.”

 

 

Estamos passando hoje por algo que até pouco tempo atrás considerávamos impossível: as coordenadas básicas do nosso mundo da vida estão desaparecendo. Nossa primeira reação ao vírus foi presumir que ele não passava de um pesadelo do qual logo acordaríamos. Agora sabemos que isso não vai ocorrer. Precisamos aprender a viver em um mundo viral. É necessário reconstruir, dolorosamente, um novo mundo da vida.

Mas há outra combinação de discurso e realidade em operação na atual pandemia: existem processos materiais que só podem ocorrer se forem mediados por nosso conhecimento sobre eles. Ou seja, nos é dito que algo catastrófico ocorrerá conosco, buscamos escapar desse desfecho, mas, por meio de nossas próprias tentativas de evitá-lo, ele acaba ocorrendo… Lembre-se da velha história árabe sobre o “compromisso em Samarra”, recontada por W. Somerset Maugham. Nela, um servo cumprindo incumbências no movimentado mercado de Bagdá se depara com a Morte. Aterrorizado por seu olhar fixo, volta correndo para a casa de seu senhor e lhe pede um cavalo para cavalgar o dia todo a tempo de chegar ao anoitecer a Samarra, onde a Morte não o encontraria. O bom senhor não apenas concede o cavalo ao servo, como vai pessoalmente ao mercado atrás da Morte para confrontá-la por ter afugentado seu fiel servo, ao que ela responde: “Mas eu não queria assustar seu servo. Só não entendi o que ele estava fazendo aqui, sendo que tenho um compromisso em Samarra hoje à noite…”.

E se a mensagem dessa história não for que a morte do sujeito é inevitável, de que tentar se desvencilhar dela só acabará reforçando ainda mais sua inelutabilidade, mas o exato oposto: a saber, se aceitarmos o destino como impreterível, é possível se desvencilhar de suas garras? Os pais de Édipo recebem um presságio de que o filho deles assassinaria seu pai e esposaria a própria mãe, e são justamente as medidas que o casal toma para evitar esse destino (expondo o filho à morte por abandono no monte Citerão) que garantem o cumprimento da profecia – sem essa tentativa de desviar-se do presságio, a profecia não teria se realizado.

Não poderíamos dizer que se trata de uma parábola perfeita para descrever o destino da intervenção estadunidense no Iraque? Os Estados Unidos viram sinais da ameaça fundamentalista, intervieram a fim de evitá-la, mas com isso acabaram, na verdade, a fortalecendo. Não teria sido muito mais eficaz aceitar a ameaça, ignorá-la e, assim, quebrar seu garrote? Então, voltando a nossa história, imagine que, ao se deparar com a Morte no mercado, o servo optasse logo por abordá-la à queima-roupa: “Qual é seu problema comigo? Se você tem algo a fazer comigo, ora, que faça de uma vez. Caso contrário, caia fora!”. Perplexa, a Morte balbuciaria algo do tipo “Mas… era para nos encontrarmos em Samarra. Não posso te matar aqui!” e fugiria (provavelmente para Samarra). Aqui reside a aposta do assim chamado plano da “imunidade de rebanho” para enfrentar o coronavírus.

O objetivo declarado tem sido atingir a “imunidade de rebanho” a fim de lidar com o surto e prevenir uma “segunda onda” catastrófica no próximo inverno […]. Uma enorme parcela da população – grosso modo, qualquer um com até quarenta anos de idade – se encontra em situação de risco mais baixo de desenvolver uma doença severa. Assim o raciocínio é de que, ainda que em um mundo perfeito o ideal seria que ninguém tivesse que correr o risco de se infectar, gerar imunidade nos mais jovens é uma forma de proteger a toda a população.[8]

A aposta aqui é de que, se agirmos como se não soubéssemos, isto é, se na prática ignorarmos a ameaça, quem sabe o dano real seja menor do que se agirmos conscientemente. É disso que os populistas conservadores tentam nos convencer: a Samarra de nosso compromisso é nossa ordem econômica vigente e nosso modo de vida como um todo, de forma que, se escutarmos o alerta dos epidemiologistas e reagirmos a ele tentando escapar de nossa realidade (implementando políticas de isolamento e lockdown etc.), acabaremos ensejando uma catástrofe ainda maior (pobreza, sofrimento…) que a pequena porcentagem de mortes decorrentes do vírus em si.

No entanto, como bem notou Alenka Zupančič[9], o “vamos voltar ao trabalho” é um caso exemplar da falsidade da preocupação de Trump com a classe trabalhadora: ele se dirige a pessoas comuns de baixa renda para as quais a pandemia também significa uma catástrofe econômica, pessoas que não têm condições financeiras de se isolar e para as quais o colapso econômico representa uma ameaça ainda maior que o vírus. A pegadinha aqui, é claro, é dupla. Primeiro, a política econômica de Trump (desmantelamento do Estado de bem-estar social) é em larga medida responsável pelo fato de muitos trabalhadores de baixa renda se encontrarem em uma situação calamitosa a ponto de a pobreza representar, para eles, uma ameaça maior que o próprio vírus. Segundo, aqueles que realmente “voltariam a trabalhar” são eles, os pobres, enquanto os mais ricos permaneceriam confortavelmente em isolamento.

Devemos sempre ter em mente que, para que alguns de nós possamos nos autoisolar, há aqueles que não o podem fazer – não apenas todas as pessoas que tornaram possível nosso isolamento (profissionais de saúde, produtores de alimentos, entregadores e trabalhadores responsáveis por cuidar do fornecimento de eletricidade, água e outros serviços básicos), mas também refugiados e populações que simplesmente não dispõem de nenhum lugar (“casa”) onde se retirar em autoisolamento. Como explicar aos milhares de pessoas confinadas em um campo de refugiados a necessidade de manter distanciamento social? Basta lembrar o caos ocorrido na Índia quando o governo determinou uma paralisação de catorze dias, com milhões de pessoas tentando se deslocar das grandes cidades para o campo… (...)

O desfecho mais provável da epidemia é o prevalecimento de um novo capitalismo bárbaro: muitos fracos e idosos serão sacrificados e abandonados à morte, os trabalhadores terão de aceitar um padrão muito mais baixo de vida, o controle digital de nossa vida perdurará como uma característica permanente, as distinções de classe devem se tornar ainda mais que hoje uma questão de vida ou morte… Quantas das medidas comunistas que aqueles no poder agora se veem obrigados a aplicar permanecerão?

Por isso, não devemos perder tempo demais com meditações espiritualistas new age a respeito de como “a crise do vírus nos permitirá focar no real significado de nossa vida”. A verdadeira luta se dará em torno de qual forma social substituirá a nova ordem mundial liberal-capitalista. Esse é nosso verdadeiro compromisso em Samarra.”

[8] William Hanage, “I’m an epidemiologist. When I heard about Britain’s ‘herd immunity’ coronavirus plan, I thought it was satire”, The Guardian, 15 mar. 2020.

[9] Comunicação particular.

[10] Provavelmente não existe nenhum livro meu em que eu não me refira ao menos uma vez a essa cena.

[11] Ver Ryszard Kapuscinski, Shah of Shahs (Nova York, Vintage, 1992) [ed. bras.: O xá dos xás, trad. Tomasz Barcinski, São Paulo, Companhia das Letras, 2012].

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Introdução à filosofia antiga, de Antonio Djalma Braga Junior e Luís Fernando Lopes

Editora: InterSaberes

ISBN: 978-85-4430-300-9

Opinião: ★★★☆☆

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 240

Sinopse: A obra pretende iniciar o leitor na história da filosofia antiga. Para isso, oferece uma análise introdutória dos principais pressupostos teóricos desenvolvidos pelos mais importantes pensadores da Antiguidade, que vai desde o nascimento da filosofia até o helenismo. Por meio deste livro, você terá uma visão geral das principais preocupações filosóficas da Antiguidade e do legado que os filósofos desse período deixaram para a humanidade.

 

1.2.5 – A invenção da vida urbana e da política

Entre todas as riquezas culturais que os gregos nos legaram, sem dúvida nenhuma a invenção da política é uma das mais importantes para a sociedade ocidental. A política surgiu em um contexto de ampliação e estruturação da vida urbana, fazendo com que as cidades se organizassem de maneira a alcançar uma funcionalidade prática baseada em ideais inéditos.

Com o florescimento do comércio e do artesanato, os gregos se depararam com a necessidade de desenvolver técnicas de fabricação de produtos e estratégias de troca e venda que tornassem os processos comerciais da época mais ágeis e eficientes. Esse fator foi determinante para a diminuição do prestígio das famílias que pertenciam à aristocracia grega e elevou o poder econômico da classe dos comerciantes.

A ascensão social de uma classe de comerciantes suplantou o poderio da elite aristocrática grega, fazendo com que essa parcela da sociedade desenvolvesse estratégias de distinção e prestígio social por intermédio das artes. Essa aristocracia passou, então, a estimular, incentivar e patrocinar o desenvolvimento às artes, às técnicas e aos conhecimentos da época, preparando, assim, o terreno para o surgimento da filosofia. Além disso, essa aglomeração nos centros urbanos exigiu do povo grego a criação de formas de organização social por meio da política, de modo que a nova classe detentora de poderio econômico - os comerciantes - pudesse também participar das decisões políticas, não mais ficando restritas apenas às grandes famílias proprietárias de terras.

Essa organização política traz alguns aspectos interessantes a serem analisados sob a ótica do surgimento da filosofia. Chaui (2000) destaca esses aspectos da seguinte maneira:

1. A ideia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade - da pólis - servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional.

2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poeta vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, diziam aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer. Agora, com a pólis, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa. A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.

3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A ideia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a Filosofia. (Chaui, 2000, p. 36-37, grifo do original)

Essas três ideias levantadas por Marilena Chaui nos ajudam a compreender como o surgimento da política está diretamente relacionado ao surgimento da filosofia, principalmente pelo fato de a política exigir do cidadão grego o desenvolvimento da prática do debate nos espaços públicos e a articulação de discursos que todos pudessem compreender, não somente os iniciados aos mistérios das divindades e musas. Um discurso claro, livre de contradições e elementos fantasiosos, característicos do discurso mítico; um discurso baseado na razão e na lógica.

Sem dúvida nenhuma, não fossem esses fatos históricos, a filosofia não teria surgido nesse período e nessa região. Isso prova que a filosofia não se origina do nada, mas surge como uma reação a uma série de fatores e acontecimentos históricos que, de certa forma, foram fundamentais para o princípio desse tipo de conhecimento.

Pudemos perceber, ao longo dessas linhas, que essas transformações fizeram com que os gregos se afastassem do pensamento mítico e aderissem ao pensamento racional filosófico.”

 

 

“Essas características dos mitos, de impregnar a natureza de qualidades emocionais, nos permite compreender como o pensamento mítico está ligado aos anseios e aos desejos dos seres humanos, projetando nas narrativas míticas o que gostariam que acontecesse. Essa dinâmica abriu espaço para a criação de rituais como uma estratégia para que os deuses realizassem seus desejos: “o ritual é o mito tornado ação” (Aranha; Martins, 2005, p. 125). Com a função de acalmar o espírito dos homens e tranquilizá-los diante de um mundo assustador, cheio de pestes e doenças, catástrofes naturais e guerras, o mito, caracterizado por ações fantasiosas e mágicas, assegurava que o que acontecia na natureza dependia das ações ritualísticas: uma vez cumprido o ritual de maneira correta, as bênçãos dos deuses cairiam sobre eles; uma vez descumprindas tais ações, coisas ruins aconteceriam em forma de castigo pela desobediência.

Vejamos um exemplo de como isso acontece nas narrativas míticas relacionadas ao Minotauro. A mitologia nos mostra que Minos, filho do rei cretense Astérion e irmão de Sarpédon e Radamanto, clamou para si o direito de ser o sucessor de seu pai no governo de Creta. Como argumento, falou aos irmãos que essa era a vontade dos deuses, conforme se segue na passagem da obra de Junito de Souza Brandão intitulada Mitologia grega (1996, p. 61-62, grifo do original):

Minos alegou que, de direito, Creta lhe pertencia por vontade dos deuses e, para prová-lo, afirmou que estes lhe concederiam o que bem desejasse. Um dia, quando sacrificava a Posídon, solicitou ao deus que fizesse sair um touro do mar, prometendo que lhe sacrificaria, em seguida, o animal. O deus atendeu-lhe o pedido, o que valeu ao rei o poder, sem mais contestação por parte de Sarpédon e Radamanto. Minos, no entanto, dada a beleza extraordinária da rês e desejando conservar-lhe a raça, enviou-a para junto de seu rebanho, não cumprindo o prometido a Posídon. O deus, irritado, enfureceu o animal, o mesmo que Héracles matou mais tarde (ou foi Teseu?) a pedido do próprio Minos ou por ordem de Euristeu. A ira divina, todavia, não parou aí, como se verá. Minos se casou com Pasífae, filha do deus Hélio, o Sol, da qual teve vários filhos, entre os quais se destacam Glauco, Androgeu, Fedra e Ariadne. Para vingar-se mais ainda do rei perjuro, Posídon fez que a esposa de Minos concebesse uma paixão fatal e irresistível pelo touro. Sem saber como entregar-se ao animal, Pasífae recorreu às artes de Dédalo, que fabricou uma novilha de bronze tão perfeita que conseguiu enganar o animal. Pasífae colocou-se dentro do simulacro e concebeu do touro um ser monstruoso, metade homem, metade touro, o Minotauro.

Perceba, caro leitor, que o fato de Minos não realizar o ritual de sacrifício do touro entregue por Posêidon para demonstrar que os deuses estavam com o pretenso rei fez com que recebesse um castigo terrível: sua mulher concebeu um filho que era metade homem, metade touro. A história segue seu curso com a ordem de Minos a Dédalo para construir um labirinto e aprisionar a fera dentro, fazendo com que, de tempos em tempos, a fera fosse alimentada com carne humana em forma de tributo ao Rei Minos, até que Teseu libertasse o povo desse tributo matando o Minotauro com a ajuda da filha do rei, Ariadne.

Cabe destacarmos aqui que essa é uma característica de toda mitologia: acreditar que suas ações mágicas, por meio de rituais e sacrifícios, determinam o que acontece ou não na vida dos seres humanos. O ritual se transforma em uma espécie de barganha com os deuses, que, aceitando os sacrifícios, abençoam os homens. É nesse sentido que Aranha e Martins (2005) definem a função de ritual e de mito:

O ritual é a repetição dos atos executados pelos deuses no início dos tempos e que devem ser imitados e repetidos para que as forças do bem e do mal sejam mantidas sob controle. Desse modo, o ritual “atualiza”, isto é, torna atual o acontecimento sagrado que teve lugar no passado mítico.

O mito é uma primeira fala sobre o mundo, uma primeira atribuição de sentido ao mundo, sobre a qual a afetividade e a imaginação exercem grande papel e cuja função principal não é explicar a realidade, mas acomodar o ser humano ao mundo. (Aranha; Martins, 2005, p. 125, grifo do original)

Diante disso, podemos afirmar, por um lado, que os mitos têm uma função de representar essa primeira tentativa de atribuir sentido à realidade, procurando - por meio de rituais que atualizam os mistérios sagrados narrados pelos mitos - fazer com que os gregos conseguissem conviver em um mundo caótico, de incertezas e falta de conhecimento sobre a natureza. Por outro lado, esses mitos apresentam um caráter moralizante, que dita o que os homens devem ou não fazer com base em preceitos morais predeterminados nas narrações míticas.”

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

O socialismo jurídico, de Friedrich Engels e Karl Kautsky

 Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-210-6

Tradução: Lívia Cotrim e Márcio Brilharinho Naves

Opinião: ★★★☆☆

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 80

Sinopse: Planejado por Friedrich Engels e Karl Kautsky, o artigo O socialismo jurídico foi publicado sem assinatura na revista da social-democracia alemã, Neue Zeit, em 1887. O objetivo era dar uma resposta aos ataques à teoria econômica de Karl Marx, assim como elaborar uma crítica ao reformismo jurídico e combater a sua influência no movimento operário.

“À época da escrita deste livro, os reformistas, em combate às ideias revolucionárias de Marx, apontavam para uma transição controlada, objetivando ganhos por meio do aumento de direitos, sem transformar plenamente as contradições da exploração capitalista”, afirma na orelha do livro o professor da Faculdade de Direito da USP, Alysson Leandro Mascaro, para quem O socialismo jurídico é uma das obras clássicas do marxismo sobre a relação entre o direito e o capitalismo.

“Engels e Kautsky dedicam esta obra justamente a combater o socialismo dos juristas – ou o socialismo por meio do direito. O direito é, irremediavelmente, uma forma do capitalismo. Assim sendo, é a revolução – e não a reforma por meio de instituições jurídicas – a única opção realmente transformadora das condições das classes trabalhadoras”, conclui Mascaro. O texto é também uma crítica ao livro O direito ao produto integral do trabalho historicamente exposto, do sociólogo e jurista burguês austríaco Anton Menger, publicado em 1886, e que vinha obtendo grande repercussão. Em tal obra, Menger tentou provar que a teoria econômica de Marx fora plagiada dos socialistas utópicos ingleses da escola ricardiana, especialmente William Thompson. Essas afirmações, bem como a falsificação da essência da teoria marxiana efetuada por Menger, não poderiam passar despercebidas a Engels, que decidiu interceder.

 

“Relacionando a forma do direito com a forma da mercadoria – “O intercâmbio de mercadorias [...] engendra complicadas relações contratuais recíprocas” –, Engels e Kautsky permitem desvendar todo o segredo do direito: o processo de trocas mercantis generalizado exige, para a sua efetivação, o surgimento da subjetividade jurídica e dos princípios da liberdade, da igualdade etc. que a acompanham8. A emergência da categoria de sujeito de direito vai possibilitar, então, que o homem circule no mercado como mercadoria, ou melhor, como proprietário que oferece a si mesmo no mercado: “O sujeito existe apenas a título de representante da mercadoria que ele possui, isto é, a título de representante de si próprio enquanto mercadoria”9. Desse modo, o direito põe o homem em termos de propriedade, ele aparece ao mesmo tempo na condição de sujeito e objeto de si mesmo, isto é, na condição de proprietário que aliena a si próprio: “A estrutura mesma do sujeito de direito, na dialética da vontade-produção-propriedade, não é, definitivamente, mais que a expressão jurídica da comercialização do homem”10. O direito faz funcionar, assim, as categorias da liberdade e da igualdade, já que o homem não poderia dispor de si se não fosse livre – a liberdade é essa disposição de si como mercadoria – nem poderia celebrar um contrato – esse acordo de vontades – com outro homem se ambos não estivessem em uma condição de equivalência formal (caso contrário, haveria a sujeição da vontade de um pela do outro). Como diz Bernard Edelman:

O essencial são as trocas, e as trocas realizam o homem; as formas jurídicas que são impostas pela circulação são as mesmas formas da liberdade e da igualdade; a forma sujeito desvenda a realidade das suas determinações numa prática concreta: o contrato; a circulação é um processo de sujeitos.11

A Engels e Kautsky não escapou a percepção do papel decisivo da categoria da igualdade jurídica e é a isso que eles se referem quando relacionam a concorrência, “forma fundamental das relações entre livres produtores de mercadorias”, “niveladora ao extremo”, com a igualdade jurídica, que se tornou o “brado de guerra” da burguesia12.

Não é de surpreender, portanto, que a classe operária, na luta contra a burguesia, ou permanecesse dentro do campo do direito, formulando reivindicações de igualdade, ou construísse projetos utópicos de sociedade, em uma apenas aparente recusa do campo jurídico-político. Dizem Engels e Kautsky:

Ambas as concepções abstraíam a base histórica à qual deviam a existência; as duas apelavam para o sentimento, uma para o sentimento jurídico, outra para o sentimento de humanidade. Ambas formulavam suas reivindicações como votos piedosos.13

Nos dois casos, a rigor, a classe operária exprimia os seus interesses dentro do terreno jurídico, seja por meio de uma alteração no direito existente (reivindicação de igualdade), seja pela elaboração de um novo direito (sociedade utópica). Como lembra Peter Schöttler, “em ambos os casos se trata ainda de ‘votos piedosos’; a ilusão jurídica mantém toda a sua força”14.

Para que a classe operária possa transformar as relações sociais existentes, é necessário que rompa com a ideologia jurídica, pois ela “não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica”, de modo que os trabalhadores possam compreender essas condições na própria realidade, a partir da demonstração de que “todas as representações dos homens – jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas etc. – derivam, em última instância, [...] de seu modo de produzir e trocar os produtos”15.

Ora, a isso se contrapõe todo o esforço dos aparelhos de Estado burgueses, que se encaminha no sentido de encerrar a existência da classe operária e suas lutas no estrito terreno jurídico, ali onde a luta já está, por antecipação, ganha pela burguesia, uma vez que o funcionamento do direito implica obrigatoriamente a reprodução das relações sociais burguesas.

Essa legalização da luta de classes significa que as formas de luta do proletariado só são legalmente reconhecidas se observam os limites que o direito e a ideologia jurídica estabelecem. Assim, a greve só se transforma em direito de greve se os trabalhadores aceitam os termos que a ela emprestam licitude: a greve não pode desorganizar a produção colocando em risco o processo do capital, questionando, portanto, a dominação burguesa dos meios de produção. Como diz Edelman:

O direito de greve é um direito burguês. Entendemo-nos: eu não disse que a greve é burguesa, o que não teria sentido, mas o direito de greve é um direito burguês. O que quer dizer muito precisamente que a greve só acede à legalidade em certas condições, e que essas condições são as mesmas que permitem a reprodução do capital.16

8 Cf. Evgeni Pasukanis, A teoria geral do direito e o marxismo (Rio de Janeiro, Renovar, 1989).

9 Bernard Edelman, O direito captado pela fotografia, cit., p. 95.

10 Idem, “Esquisses d’une théorie du sujet”, Communications, n. 26, 1977, p. 195.

11 Idem, O direito captado pela fotografia, cit., p. 130.

12 Ver p. 19 desta edição. Sobre a questão da igualdade jurídica, ver o excepcional trabalho de Celso Naoto Kashiura Júnior, Crítica da igualdade jurídica – contribuição ao pensamento jurídico marxista, cit.

13 Ver p. 21 desta edição.

14 Peter Schöttler, “Friedrich Engels and Karl Kautsky...“, cit., p. 14.

15 Ver p. 21-2 desta edição.

16 Bernard Edelman, La légalisation de la classe ouvrière, t. 1: L’entreprise (Paris, Christian Bourgois, 1980), p. 52.

(Márcio Brilharinho Naves)

 

 

“As reivindicações jurídicas do proletariado devem conter um elemento desestabilizador, que “perturbe” a quietude do domínio da ideologia jurídica. É precisamente a isso que se refere Peter Schöttler quando menciona um texto de Engels no qual ele aponta para a espécie de reivindicação jurídica que o movimento operário pode exprimir: Engels, após analisar a tradicional reivindicação jurídica do movimento sindical em favor de um salário “justo”, sugere a sua substituição pela reivindicação da posse dos meios de produção pelos trabalhadores20.

Ora, essa reivindicação é incompatível com o direito burguês, revela os seus limites e demonstra a necessidade da sua abolição21.

Mas, além disso, Engels e Kautsky acrescentam que o movimento socialista não elabora “uma nova filosofia do direito”, isto é, que não pode existir um “direito socialista”, e que o direito burguês perdura na fase da transição socialista até que se extinga a forma valor. Só quando a natureza das relações de produção e o caráter das forças produtivas capitalistas forem revolucionarizados, e as formas mercantis extintas, só então será possível, como dizia Karl Marx na Crítica do Programa de Gotha*, ultrapassar o estreito horizonte do direito burguês e conhecer, por fim, a liberdade real jamais experimentada, a liberdade comunista.”

20 Peter Schöttler, “Friedrich Engels and Karl Kautsky as Critics of ‘Legal Socialism’”, International Journal of the Sociology of Law, n. 14, 1986, p. 22.

21 A transferência de titularidade não é, evidentemente, incompatível com o direito burguês. Observemos, porém, que Engels e Kautsky não se referem à propriedade, mas à “posse” dos meios de produção, apontando, assim, para uma condição não jurídica, absolutamente necessária para a instauração das novas relações sociais, a apropriação real dos meios de produção pelos trabalhadores. É por isso que essa reivindicação é incompatível com o direito burguês, porque ela traz em si um elemento que anula a sua natureza jurídica. De modo que, nesse inocente “deslize” jurídico, revela-se a impossibilidade de se sair desse círculo de ferro: uma vez apenas formulada, a reivindicação jurídica simplesmente se despedaça! Sobre a questão da propriedade, da posse e da apropriação real, ver Charles Bettelheim, Cálculo económico e formas de propriedade (Lisboa, Dom Quixote, 1972), Etienne Balibar, “Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico”, em Louis Althusser, Etienne Balibar e Roger Establet, Ler O capital, v. II (Rio de Janeiro, Zahar, 1980), e Maria Turchetto, “As características específicas da transição ao comunismo”, em Márcio Bilharinho Naves (org.), Análise marxista e sociedade de transição (Campinas, IFCH/Unicamp, 2005).

* São Paulo, Boitempo, 2012, p. 31-2. (N. E.)

(Márcio Brilharinho Naves)

 

 

“Na Idade Média, a concepção de mundo era essencialmente teológica. A unidade interna europeia, de fato inexistente, foi estabelecida pelo cristianismo diante do inimigo exterior comum representado pelo sarraceno. Essa unidade do mundo europeu ocidental, formada por um amálgama de povos em desenvolvimento, foi coordenada pelo catolicismo. A coordenação teológica não era apenas ideal; consistia, efetivamente, não só no papa, seu centro monárquico, mas sobretudo na Igreja, organizada feudal e hierarquicamente, a qual, proprietária de cerca de um terço das terras, em todos os países detinha poderosa força no quadro feudal. Com suas propriedades fundiárias feudais, a Igreja se constituía no verdadeiro vínculo entre os vários países; sua organização feudal conferia consagração religiosa à ordem secular. Além disso, sendo o clero a única classe culta, era natural que o dogma da Igreja fosse a medida e a base de todo pensamento. Jurisprudência, ciência da natureza e filosofia, tudo se resumia em saber se o conteúdo estava ou não de acordo com as doutrinas da Igreja.

Entretanto, no seio da feudalidade desenvolvia-se o poder da burguesia. Uma classe nova se contrapunha aos grandes proprietários de terras. Enquanto o modo de produção feudal se baseava, essencialmente, no autoconsumo de produtos elaborados no interior de uma esfera restrita – em parte pelo produtor, em parte pelo arrecadador de tributos –, os burgueses eram sobretudo e com exclusividade produtores de mercadorias e comerciantes. A concepção católica de mundo, característica do feudalismo, já não podia satisfazer à nova classe e às respectivas condições de produção e troca. Não obstante, ela ainda permaneceu por muito tempo enredada no laço da onipotente teologia. Do século XIII ao século XVII, todas as reformas efetuadas e lutas travadas sob bandeiras religiosas nada mais são, no aspecto teórico, do que repetidas tentativas da burguesia, da plebe urbana e em seguida dos camponeses rebelados de adaptar a antiga concepção teológica de mundo às condições econômicas modificadas e à situação de vida da nova classe. Mas tal adaptação era impossível. A bandeira religiosa tremulou pela última vez na Inglaterra no século XVII, e menos de cinquenta anos mais tarde aparecia na França, sem disfarces, a nova concepção de mundo, fadada a se tornar clássica para a burguesia, a concepção jurídica de mundo.

Tratava-se da secularização da visão teológica. O dogma e o direito divino eram substituídos pelo direito humano, e a Igreja pelo Estado. As relações econômicas e sociais, anteriormente representadas como criações do dogma e da Igreja, porque esta as sancionava, agora se representam fundadas no direito e criadas pelo Estado. Visto que o desenvolvimento pleno do intercâmbio de mercadorias em escala social – isto é, por meio da concessão de incentivos e créditos – engendra complicadas relações contratuais recíprocas e exige regras universalmente válidas, que só poderiam ser estabelecidas pela comunidade – normas jurídicas estabelecidas pelo Estado –, imaginou-se que tais normas não proviessem dos fatos econômicos, mas dos decretos formais do Estado. Além disso, uma vez que a concorrência, forma fundamental das relações entre livres produtores de mercadorias, é a grande niveladora, a igualdade jurídica tornou-se o principal brado de guerra da burguesia. Contribuiu para consolidar a concepção jurídica de mundo o fato de que a luta da nova classe em ascensão contra os senhores feudais e a monarquia absoluta, aliada destes, era uma luta política, a exemplo de toda luta de classes, luta pela posse do Estado, que deveria ser conduzida por meio de reivindicações jurídicas.

Mas a burguesia engendrou o antípoda de si mesma, o proletariado, e com ele novo conflito de classes, que irrompeu antes mesmo de a burguesia conquistar plenamente o poder político. Assim como outrora a burguesia, em luta contra a nobreza, durante algum tempo arrastara atrás de si a concepção teológica tradicional de mundo, também o proletariado recebeu inicialmente de sua adversária a concepção jurídica e tentou voltá-la contra a burguesia. As primeiras formações partidárias proletárias, assim como seus representantes teóricos, mantiveram-se estritamente no jurídico “terreno do direito”, embora construíssem para si um terreno do direito diferente daquele da burguesia. De um lado, a reivindicação de igualdade foi ampliada, buscando completar a igualdade jurídica com a igualdade social; de outro lado, concluiu-se das palavras de Adam Smith – o trabalho é a fonte de toda a riqueza, mas o produto do trabalho dos trabalhadores deve ser dividido com os proprietários de terra e os capitalistas – que tal divisão não era justa e devia ser abolida ou modificada em favor dos trabalhadores. Entretanto, a percepção de que relegar o fato apenas ao jurídico “terreno do direito” absolutamente não possibilitava eliminar as calamidades criadas pelo modo de produção burguês-capitalista, especialmente pela grande indústria moderna, levou as cabeças mais significativas dentre os primeiros socialistas – Saint-Simon, Fourier e Owen – a abandonar por completo a esfera jurídico-política e a declarar que toda luta política é estéril.

As duas posições eram igualmente insuficientes, tanto para expressar a situação econômica da classe trabalhadora quanto para estruturar a luta emancipatória dela decorrente. A reivindicação da igualdade, assim como do produto integral do trabalho, perdia-se em contradições insolúveis tão logo se buscava formular seus pormenores jurídicos, e deixava mais ou menos intacto o cerne do problema, a transformação do modo de produção. A rejeição da luta política pelos grandes utópicos era, ao mesmo tempo, rejeição da luta de classes, portanto da única forma de ação possível para a classe cujos interesses defendiam. Ambas as concepções abstraíam a base histórica à qual deviam a existência; as duas apelavam para o sentimento, uma para o sentimento jurídico, outra para o sentimento de humanidade. Ambas formulavam suas reivindicações como votos piedosos, dos quais era impossível dizer por que deviam se realizar justamente agora, e não mil anos antes ou depois.

A classe trabalhadora – despojada da propriedade dos meios de produção no curso da transformação do modo de produção feudal em modo de produção capitalista e continuamente reproduzida pelo mecanismo deste último na situação hereditária de privação de propriedade – não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia. Só pode conhecer plenamente essa condição se enxergar a realidade das coisas, sem as coloridas lentes jurídicas. A concepção materialista da história de Marx ajuda a classe trabalhadora a compreender essa condição de vida, demonstrando que todas as representações dos homens – jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas etc. – derivam, em última instância, de suas condições econômicas de vida, de seu modo de produzir e trocar os produtos. Está posta com ela a concepção de mundo decorrente das condições de vida e luta do proletariado; à privação da propriedade só podia corresponder a ausência de ilusões na mente dos trabalhadores. E essa concepção proletária de mundo percorre agora o planeta.”

 

 

“É francamente desprezível a opinião de Menger de que as condições econômicas para o socialismo nunca tenham sido tão favoráveis como no tempo do Império Romano. Os socialistas, alvo da contestação dele, veem a garantia do êxito do socialismo no desenvolvimento da própria produção. De um lado, por meio do desenvolvimento da mecanização industrial e agrícola em larga escala, a produção se torna cada vez mais social e a produtividade do trabalho, gigantesca; isso estimula a superação das diferenças de classes e a transição da produção de mercadorias em empresas privadas para a produção direta para e pela sociedade. De outro lado, o moderno modo de produção gera a classe que, em medida sempre crescente, tem o interesse e a força para de fato levar avante esse desenvolvimento – um proletariado livre e trabalhador.”

 

 

“O direito jurídico, que apenas reflete as condições econômicas de determinada sociedade, ocupa posição muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx; ao contrário, aparecem em primeiro plano a legitimidade histórica, as situações específicas, os modos de apropriação, as classes sociais de determinadas épocas, cujo exame interessa fundamentalmente aos que veem na história um desenvolvimento contínuo, apesar de muitas vezes contraditório, e não simples caos [Wust] de loucura e brutalidade, como a via o século XVIII. Marx compreende a inevitabilidade histórica e, em consequência, a legitimidade dos antigos senhores de escravos, dos senhores feudais medievais etc. como alavancas do desenvolvimento humano em um período histórico delimitado; do mesmo modo, reconhece também a legitimidade histórica temporária da exploração, da apropriação do produto do trabalho por outros; mas demonstra igualmente não apenas que essa legitimidade histórica já desapareceu, mas também que a continuidade da exploração, sob qualquer forma, ao invés de promover o desenvolvimento social, dificulta-o cada vez mais e implica choques crescentemente violentos.”

 

 

“Isso naturalmente não significa que os socialistas renunciem a propor determinadas reivindicações jurídicas. É impossível que um partido socialista ativo não as tenha, como qualquer partido político em geral. As reivindicações resultantes dos interesses comuns de uma classe só podem ser realizadas quando essa classe conquista o poder político e suas reivindicações alcançam validade universal sob a forma de leis. Toda classe em luta precisa, pois, formular suas reivindicações em um programa, sob a forma de reivindicações jurídicas. Mas as reivindicações de cada classe mudam no decorrer das transformações sociais e políticas e são diferentes em cada país, de acordo com as particularidades e o nível de desenvolvimento social. Daí decorre também o fato de as reivindicações jurídicas de cada partido singular, apesar de concordarem quanto à finalidade, não serem completamente iguais em todas as épocas e entre todos os povos. Constituem elemento variável e são revistas de tempos em tempos, como se pode observar nos partidos socialistas de diversos países. Para essas revisões, são as relações reais que devem ser levadas em conta; em contrapartida, não ocorreu a nenhum dos partidos socialistas existentes fazer uma nova filosofia do direito a partir do seu programa, e possivelmente não lhes ocorrerá no futuro.”

Caminhos da filosofia, de Roseane Almeida da Silva

 Editora: InterSaberes

ISBN: 978-85-5972-454-7

Opinião: ★★☆☆☆

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 270

Sinopse: O que é a filosofia? Qual é a natureza do pensamento filosófico? Quais são as principais áreas que compõem essa ciência? Quais são os filósofos de maior destaque e quais argumentos estes desenvolveram? Essas são apenas algumas das muitas perguntas que costumam surgir quando damos nossos primeiros passos no estudo dessa rica área do saber. Na obra que você tem mãos, os conceitos e as ideias mais fundamentais da filosofia foram organizados de forma a lhe ajudar a desenvolver criticidade em relação à realidade humana. Siga conosco nestas páginas e descubra o vasto universo do pensar!

 


“Para ajudar a compreender um conceito de ciência, recorreremos a Lakatos e Marconi (2003, p. 80)*, que afirmam que ciência é “uma sistematização de conhecimentos, um conjunto de proposições logicamente correlacionadas sobre o comportamento de certos fenômenos que se deseja estudar”.”

*: A autora citou, mas não referenciou a obra.

 

 

“Sócrates constata que todo conhecimento possível parte do indivíduo, ou seja, é parte do ser. Desse modo, cada pessoa pode apenas conhecer aquilo que em si já sabe. Assim, fazendo uma reflexão sobre o “conhece-te a ti mesmo”, é possível concluir que a atitude de conhecer é a prática de voltar o olhar sobre si mesmo, atividade que se dá única e exclusivamente através do uso da razão.

É aí que entra o trabalho da parteira, pois, segundo Sócrates, o ato de conhecer ou de pensar é semelhante a um parto. Não físico, mas racional.

Sócrates desenvolveu uma forma de ajudar os jovens em sua formação, auxiliando-os na descoberta dos próprios conhecimentos e conduzindo-os ao “conhece-te a ti mesmo”. Essa forma, que o próprio pensador chamava de maiêutica, que significa “parto” em grego, consistia em uma espécie de interrogatório em que, com muita habilidade, o filósofo induzia as pessoas a exporem seus pensamentos sobre os mais diversos assuntos. Em seguida, com um trabalho de reflexão e inquisição intelectual, Sócrates questionava ou contrapunha as opiniões oferecidas de forma implacável, sempre possibilitando ao interlocutor a autorreflexão. Por esse motivo, pode-se afirmar que o método socrático é dialético, ou seja, fundamenta-se em um conhecimento que, embora seja inerente ao próprio sujeito que conhece, se desenvolve pela possibilidade de ser reflexivo (Reale; Antiseri, História da filosofia: Antiguidade e Idade Média, 1990). Por meio da maiêutica, Sócrates chegou a outro elemento peculiar do ato de filosofar: a ironia.

Vimos que pela maiêutica Sócrates estimulava as pessoas não só a refletir mas também a falar, a expor as suas ideias. (...)

No entanto, como Sócrates queria extrair sempre mais conhecimento, acreditando que cada pessoa teria mais dentro de si, Sócrates lançava um novo questionamento, justamente no momento em que o interlocutor acreditava que sabia tudo, que havia chegado a uma conclusão. A pessoa partia do zero, novamente não sabia de nada, de novo teria que supor, indagar-se até uma nova conclusão, que possivelmente seria também derrubada com um novo argumento socrático.”

 

 

“Na história da humanidade e, mais precisamente, na história da filosofia, é possível observar que os filósofos sempre foram contestadores e ao mesmo tempo instigadores. Sempre contestaram o senso comum, o óbvio, as maiorias. Por meio dessa contestação, sempre instigaram a reflexão, a crítica e o questionamento de verdades, muitas vezes impostas, consideradas incontestáveis.

Imbuídos dessa postura contestadora, o filósofo acaba por se tornar indesejado para a sociedade, pois chama a atenção para as ideologias, para a estrutura social que envolve a política, a economia, a cultura, a educação, dentre outros elementos sociais.

O debate proposto pelos filósofos tende a “desmascarar” essas estruturas que são construídas, na maioria das vezes, por discursos que pressupõem uma dominação social e ideológica. Nesse sentido, o filósofo propõe uma nova visão sobre aquilo que está sendo debatido ou, ao menos, observado por ele.

Ainda que muitos não reconheçam, ser filósofo é criar novas concepções e diretrizes de pensamento, como um guia que direciona o olhar do outro para a reflexão e contém ideias pioneiras que despertam o indivíduo, um grupo ou a sociedade para um outro olhar – um olhar mais crítico, profundo, tenaz e contumaz sobre as coisas materiais, espirituais, sociais e científicas que se inter-relacionam na composição e atuação do ser humano como sujeito em si e cidadão.

Não há exagero em considerar que é dever do filósofo estar atento a todo movimento do sujeito, da sociedade (com todos os seus elementos) e da ciência, bem como ensinar as pessoas a serem críticas, a refletirem sobre esses movimentos. O filósofo tem o dever de conduzir os seres humanos do senso comum a uma consciência crítica que perpassa as questões práticas do dia a dia, como o consumo, o trabalho, as relações, até temas como política e ideologias.

Em uma sociedade como a nossa, que apresenta inúmeras injustiças sociais, com uma política consumida pela corrupção, com uma mídia que favorece a alienação e transforma a população em massa de manobra a serviço daqueles que estão no poder, com um dinamismo econômico e social que reduz o trabalhador à sua função e a um consumo voraz, é fundamental que o filósofo se faça cada vez mais presente.

Ressaltamos que a ausência do pensamento crítico dos indivíduos colabora para a deterioração da sociedade, uma vez que ideologias dominantes exercem seu poder sobre o povo. O filósofo não pode ser ignorado. Precisa ser visto como profissional capaz de construir a crítica do homem na sociedade, de conduzir o homem a seu próprio pensamento crítico.

Uma vez mais reafirmamos: o filósofo não renuncia ao pensamento crítico e, ao não fazê-lo hoje em nossa sociedade, possibilita àqueles que o observam, que o escutam e, principalmente, que aprendem com ele a traçar seu próprio horizonte reflexivo.”

 

 

“Os métodos científicos e as perguntas em torno deles passaram a ser objetos de estudo da filosofia da ciência. Embora haja várias ciências e vários métodos, a estrutura lógica do método científico apresenta algumas etapas comuns, conforme apontam Lakatos e Marconi (1991)*: a colocação do problema (questão levantada que o conhecimento disponível ainda não responde); a formulação de hipótese (solução ou um conjunto de soluções que possam servir como respostas a serem testadas para solucionar o problema); testes (conjunto de testes que avaliarão as hipóteses); conclusão (resultados sobre os testes aplicados que comprovarão a resolução do problema, ou até mesmo a criação de alguma teoria).”

*: A autora citou, mas também não referenciou a obra.

 

 

“Outro filósofo contemporâneo que traz novos elementos para a discussão da ética é Gilles Lipovetski (A sociedade pós-moralista, 2005). Analisando a nossa sociedade atual, o filósofo francês afirma que os valores de hoje mudaram, o que fez mudar a moral. Na contemporaneidade, que Lipovetski chama de pós-modernidade, o bem passou a ter a ideia de bem-estar, quando não um bem-estar social. O homem ético não tem mais o dever moral diante da sociedade como tinha na Modernidade, muito menos o dever religioso que tinha no período medieval. Na pós-modernidade, seu dever é para com o seu bem-estar. O individualismo, o consumo, o apelo da mídia, o narcisismo são elementos que Lipovetski (2005, p. 127) traz para sua discussão:

No momento em que impera o culto do ego é que os valores da tolerância triunfam; no momento em que perece a escola do dever, o ideal do respeito aos outros atinge sua consagração suprema. A consciência individualista é uma mescla de indiferença e repugnância pela violência, de relativismo e universalismo, de incerteza e imposição absoluta dos direitos do homem, de abertura às diferenças “dignas de consideração” e recusa às diferenças “inadmissíveis”.

O sujeito ético da pós-modernidade é individualista no sentido de que é guiado por suas próprias escolhas. Não mais se guia pelo dever, mas por um querer, por isso a busca pelos seus direitos, por isso a indiferença e indignação ou não a essa ou aquela situação.

Esse novo cenário é estimulado pela mídia que, segundo Lipovetski (2005, p. 110), também exerce um papel ético:

Agora, os “empresários da moral” não são apenas as associações caritativas e humanitárias, mas também as redes de TV e os astros da mídia. Quanto mais se depaupera a religião do dever, mais consumimos generosidade; quanto mais os valores individuais ganham terreno, mais proliferam e alcançam recordes de audiência as encenações midiáticas das boas causas.”

 

 

“Na tradição do conhecimento filosófico, chamamos de estética o campo que estuda a natureza do belo e suas manifestações na arte. O fundamental em uma reflexão estética é o entendimento sobre a valoração humana no que diz respeito às suas experiências sensoriais e à produção de sentimentos gerados pela percepção de fenômenos estéticos naturais ou criados pelo ser humano como a arte e, consequentemente, o próprio conceito de arte. (...)

O que é o belo? A beleza e a feiura estão nos objetos do mundo ou são apenas julgamentos feitos por sujeitos exteriores a eles? É possível uma apreciação estética do feio? Por que as pessoas gostam da representação de coisas desagradáveis, como peças trágicas ou filmes de violência e terror? Esse tipo de discussão acaba sendo central na estética e na filosofia da arte, desde a filosofia clássica até a contemporânea.

 

4.2.1 Estética e filosofia clássica

A preocupação com uma noção verdadeira da beleza remonta aos pensadores clássicos da Grécia Antiga, inicialmente com Sócrates, que entendia o belo como intimamente relacionado à utilidade do objeto em questão. Para o filósofo grego, o objeto em questão deve ser útil e ter uma boa funcionalidade para aquilo que foi construído: o que é útil é belo, e o que é belo é útil. Essa noção socrática do belo é perceptível em diálogos como Hípias maior (1980), na obra A República, de Platão, em que o discípulo de Sócrates afirma que seria feio um olho que não pudesse enxergar ou um corpo humano incapaz de desempenhar atividades físicas (Platão, 1980). A mesma discussão pode ser observada no texto Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, escrito por Xenofonte, em que Sócrates afirma que um cesto de lixo pode ser belo, enquanto um escudo de ouro pode ser feio. Se o cesto de lixo é adequado para cumprir sua função, é belo, e se o escudo de ouro se apresenta pesado demais para cumprir a sua função, seria feio (Sócrates, 1987).

Enquanto para Sócrates um objeto belo é aquele que desempenha adequadamente sua função, para seu discípulo Platão, a noção de belo se torna um tanto diferente. Para Platão, o belo passa a ser uma característica não acessível pelos sentidos, mas passível de ser apreendida de forma sensível, entretanto, apenas possível de ser compreendida pela intelecção (Nougué, O belo e a arte segundo Platão, 2013). O belo só pode ser em si no mundo das ideias, como o justo, o verdadeiro e o bem.

Em sua obra A República, Platão critica os artistas (pintores, escultures, poetas e atores) por acreditar que esses indivíduos, sendo miméticos (mimesis em grego, ou “imitação”), faziam cópias imperfeitas das coisas, inferiores em sua verdade. Se o nosso mundo sensível já é imperfeito e os objetos menos verdadeiros que no mundo das ideias, as obras de arte seriam então menos verdadeiras ainda.

O belo não pode ser criado, pois existe por si mesmo no mundo das ideias, e a obra de arte é apenas imitação. Para Platão, os artistas, além de serem reprodutores de cópias imperfeitas, eram criadores de obras que mexem com as sensações e as emoções do homem, confundindo então sua capacidade intelectiva e racional (Nougué, 2013).

Aristóteles concorda que a obra de arte é uma cópia, que é mimética que produz efeitos. Porém, o estagirita discorda do papel da arte para a polis (cidade) conferido por Platão, acredita no efeito positivo da poesia, do teatro, das artes plásticas e de outras formas de representação (Nougué, 2013).

Aristóteles distingue dois tipos de arte: as que imitam a natureza (mas que podem abordar o que é impossível) e as que têm utilidade prática. Aristóteles trouxe uma noção importante para a estética: de que não apenas o belo e o alegre podem ter um valor artístico, mas também o feio e o triste. Por isso, o filósofo afirma que, ao assistir peças trágicas, como Édipo Rei*, as pessoas gostam e se entretêm com obras dessa natureza porque causam uma sensação de terror ligada a uma sensação de piedade e, ao fim da peça, uma limpeza, um alívio de tensões. Isso é o que ele chama de catarse (em grego katharsis, que significa “purificação”) (Aristóteles, Poética, 2008).”

* Peça clássica de Sófocles que retrata a história de um homem que acaba por matar seu pai, se casar com uma mulher sem saber que ela é a sua mãe. Ao descobrir, esses eventos, arranca os próprios olhos.