terça-feira, 12 de novembro de 2013

Ecos da Marselhesa: dois séculos reveem a Revolução Francesa – Eric J. Hobsbawm

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-7164-594-3
Tradução: Maria Celia Paoli
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 160
Sinopse: Em quatro ensaios brilhantes, o historiador inglês Eric J. Hobsbawm enfrenta as tentativas de revisão historiográfica da Revolução Francesa que tiveram grande repercussão por ocasião do recente bicentenário da tomada da Bastilha.
Em Ecos da Marselhesa, Hobsbawm se propõe não só defender como explicar a interpretação de inspiração marxista que hoje é alvo da crítica revisionista. Para tanto, ele situa a Revolução Francesa na história dos séculos XIX e XX, examinando o processo de sua recepção nestes duzentos anos e o significado de sua herança.
As conexões teóricas e políticas da Revolução Francesa com a Revolução Russa também são exploradas: 1917 aparece como a realização dos ideais de 1789 e isso tem impacto na historiografia contemporânea. Ecos da Marselhesa conclui analisando como a crise do socialismo real e do paradigma comunista no fim do século XX acabou por atingir a tradição marxista de interpretação da Revolução Francesa.



“A burguesia, uma nova nação, cujas maneiras e moral são constituídas pela igualdade civil e pelo trabalho independente, surgiu agora entre nobres e servos e, portanto, destruiu para sempre a dualidade social original do feudalismo anterior. Seu instinto para a inovação, sua atividade, o capital que acumulou formam uma força que reage de mil modos contra o poder daqueles que possuíam a terra.” (Augustin Thierry)


“Qualquer que fosse a natureza da classe média ou burguesia do século XIX, ela era formada pela combinação de vários grupos situados entre a nobreza e o campesinato, e que antes não julgavam que tivessem, necessariamente, muito em comum entre si, como uma classe única, consciente de si e tratada pelos outros como tal; esse era o caso sobretudo daqueles cuja posição estava baseada na educação. A história do século XIX é incompreensível para qualquer um que suponha que apenas empresários eram realmente burgueses.”


“Em alguns momentos entre o século XV e a metade do século XX, as histórias de quase todos os Estados “desenvolvidos” – com algumas raras exceções, como a Suécia – e de todos os grandes poderes do mundo moderno registraram uma ou mais descontinuidades repentinas, cataclismas ou rupturas históricas, classificadas como revolução ou moldadas na revolução. É um abuso atribuir tal fato, simplesmente, a uma combinação de coincidências, embora seja um tanto quanto ilegítimo e evidentemente errado inferir, do registro histórico, que é inevitável que a mudança venha por rupturas descontínuas em todos os casos.”


“As “classes disponíveis” do Terceiro Estado, que assim se tomaram naturalmente modeladores da nova França, estavam no meio em outro sentido. Elas se encontravam política e socialmente opostas tanto à aristocracia acima quanto ao povo abaixo. O drama da Revolução Francesa para aqueles que podemos chamar, em retrospecto, de liberais moderados – a palavra em si mesma, como sua análise da Revolução, somente apareceu na França depois da queda de Napoleão – foi que o apoio do povo era essencial contra a aristocracia, o antigo regime e a contrarrevolução, enquanto esse povo e os estratos médios tinham interesses seriamente conflitantes. Tal como foi posto, um século depois, por A. V. Dicey, ele próprio o menos radical dos liberais: “A confiança no apoio da multidão parisiense significava conivência com o ultraje e com crimes que tornavam impossível estabelecer instituições livres na França. A repressão à multidão parisiense significava reação e, muito provavelmente, a restauração do despotismo”. Em outras palavras, sem a multidão não haveria a nova ordem; com ela, viria o risco da revolução social, o que pareceu tornar-se realidade por um breve período em 1793-1794. Os construtores do novo regime precisavam de proteção contra os velhos e os novos perigos. Não surpreende que aprendessem a se reconhecer, no curso dos acontecimentos e também retrospectivamente, como uma classe média, e a reconhecer a Revolução como uma luta de classes tanto contra a aristocracia quanto contra os pobres.” 


“O medo de revolução é mais comum do que as perspectivas reais dela.”


“A burguesia havia ganhado uma liberdade genuína através da revolução, mas a liberdade do povo era apenas nominal. Portanto, o povo precisava fazer sua revolução francesa. Observadores mais lúcidos e radicais iam adiante e viam uma luta de classes entre a classe dominante dos novos burgueses e o proletariado que ela explorava como o principal conteúdo da história capitalista – assim como aquela da burguesia contra o feudalismo nos tempos antigos.”


“Uma vez mais, lembremo-nos do protótipo histórico derivado da Revolução Francesa. Ele consistia de seis fases: o rebentar da Revolução, ou seja, a perda de controle pela monarquia, do curso dos acontecimentos na primavera e no verão de 1789; o período da Assembleia Constituinte, que terminou com a Constituição Liberal de 1791; a quebra da nova fórmula em 1791-1792, devida a tensões internas e externas, que levaram à segunda revolução em 10 de agosto de 1792 e à instituição da República em 1792-1793, quando a direita e a esquerda revolucionárias – a Gironda e a Montanha – lutavam por ela na nova Convenção Nacional, e o regime lutava contra a revolta interna e a intervenção estrangeira. Isso culminou no golpe que conferiu poder à esquerda, em junho de 1793, o qual introduziu a nova fase: a República Jacobina, a fase mais radical da Revolução Francesa, aliás, associada ao terror (como o indica seu nome popular), uma sucessão de expurgos internos e uma extraordinariamente bem-sucedida mobilização para a guerra total da população. Quando isso salvou a França, o regime radical terminou no Nove Termidor. Para nossos objetivos, o período que vai de julho de 1794 até o golpe de Napoleão pode ser visto como uma fase única, a quinta, que tentou retroceder para um regime mais viável e moderado. Essa tentativa malogrou, e no Dezoito Brumário de 1799 o regime autoritário e armado de Bonaparte assumiu o poder.”


“Além do Termidor e de Bonaparte, dos jacobinos e do Terror, a Revolução Francesa sugeria mais comparações com a Revolução Russa. Uma das primeiras coisas observadas sobre ela foi que parecia não tanto um conjunto de decisões planejadas e ações controladas por seres humanos, mas um fenômeno natural que não se submetia ao controle humano, escapando de seu âmbito. Em nosso século, acostumamo-nos a outros fenômenos que têm essa característica: as duas guerras mundiais, por exemplo. O que realmente acontece em tais casos, como eles se desenvolvem, qual é seu resultado, tudo isso não tem, praticamente, nada que ver com as intenções daqueles que tomaram as decisões iniciais. Esses acontecimentos têm sua própria dinâmica, sua própria lógica imprevisível. Na década de 1790, os contrarrevolucionários foram provavelmente os primeiros a chamar a atenção para essa incontrolabilidade do processo revolucionário, uma vez que isto lhes fornecia os argumentos contra aqueles que apoiavam a Revolução. No entanto, os próprios revolucionários também fizeram a mesma observação, comparando a Revolução a um cataclisma natural. “A lava da revolução corre majestaticamente, nada poupando”, escreveu o jacobino alemão Georg Forster em Paris, em outubro de 1793. A revolução, dizia, “quebrou todos os diques, venceu as barreiras erigidas por muitos dos melhores intelectuais, aqui e em outros lugares [...] cujos sistemas prescreviam seus limites”. A revolução era simplesmente “a Revolução, um fenômeno natural raro demais para conhecermos suas leis peculiares”. É claro que a metáfora de um fenômeno natural percorria ambos os caminhos. Se sugeria uma catástrofe aos conservadores, era uma catástrofe inevitável e que não se podia deter. Conforme os conservadores inteligentes logo entenderam, era algo que não podia ser simplesmente suprimido, mas sim canalizado e domesticado.”


“A Revolução Francesa deu aos povos a noção de que a história pode ser mudada por sua ação. Deu-lhes também, a propósito, o que até hoje permanece como a mais poderosa divisa jamais formulada para a política da democracia e das pessoas comuns que ela inaugurou: “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. (...) A Revolução francesa demonstrou o poder das pessoas comuns de uma maneira que nenhum dos governos subsequentes jamais se permitiu esquecer – quando menos, na forma de exércitos destreinados, improvisados, recrutados, derrotando a coalizão das melhores e mais experimentadas tropas dos antigos regimes.
De fato, o paradoxo do revisionismo é que procura diminuir a significação histórica e a capacidade de transformação de uma revolução cujo impacto extraordinário e duradouro é absolutamente óbvio, a tal ponto que só pode ser negligenciado por uma combinação de provincianismo intelectual e visão estreita; ou então pela miopia monográfica que é a doença ocupacional dos pesquisadores especializados nos arquivos históricos.
O poder do povo, que não é a mesma coisa que a versão domesticada que se expressa em eleições periódicas pelo sufrágio universal, é visto raramente e mais raramente ainda exercido. Contudo, quando é visto, como em muitos continentes e ocasiões no próprio ano do bicentenário da Revolução francesa – quando transformou os países da Europa oriental –, é um espetáculo irresistível e impressionante. Nenhuma revolução anterior a 1789 foi tão decisiva, evidente e imediatamente eficaz. Foi o que transformou a Revolução francesa em uma revolução.
(...) Foi isso que fez com que homens e mulheres pensassem na Revolução francesa como “a mais terrível e crucial sucessão de acontecimentos em toda a história”. Foi isso que fez Thomas Carlyle escrever: “A mim parece-me que, se houvesse a História correta (essa coisa impossível que chamo de História) da Revolução francesa, ela seria o grande poema de nosso tempo, como se os homens que pudessem escrever a sua verdade valessem tanto quanto todos os outros escritores e poetas”. E é isso que faz com que seja sem sentido para o historiador pinçar e escolher as partes desse grande levante que merecem louvor e as que devem ser rejeitadas. A revolução que se tornou “o verdadeiro ponto de partida da história do século XIX” não é este ou aquele episódio ocorrido entre 1789 e 1815, mas o seu todo.
Felizmente, a Revolução Francesa ainda está viva. Pois Liberdade, Igualdade e Fraternidade e os valores da razão e do Iluminismo – os valores que construíram a civilização moderna desde os tempos da Revolução Americana – são mais necessários do que nunca, na medida em que o irracionalismo, a religião fundamentalista, o obscurantismo e a barbárie estão, mais uma vez, avançando sobre nós. É, portanto, uma boa coisa que, no ano de seu bicentenário, tenhamos a ocasião de pensar novamente sobre os acontecimentos históricos extraordinários que há dois séculos transformaram o mundo. Para melhor.”

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O País do Carnaval – Jorge Amado

Editora: Record
ISBN: 85-01-05497-6
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 194
Sinopse: Primeiro romance de Jorge Amado, O país do Carnaval faz um retrato crítico e investigativo da imagem festiva e contraditória do Brasil, a partir do olhar do personagem Paulo Rigger, um brasileiro que não se identifica com o país.
Filho de um rico produtor de cacau, Rigger volta ao Brasil depois de sete anos estudando direito em Paris. Num retorno marcado pela inquietação existencial, ele se une a um grupo de intelectuais de Salvador, com o qual passa a discutir questões sobre amor, política, religião e filosofia. Dúvidas sobre os rumos do país ocupam o grupo.
O protagonista mantém uma relação de estranhamento com o Brasil do Carnaval, acredita que a festa popular mantém o povo alienado. Os exageros e a informalidade brasileira são motivo de espanto, apesar de a proximidade com o povo durante as festas nas ruas fazer com que ele se sinta verdadeiramente brasileiro. Aturdido pelas contradições, Rigger decide voltar para a Europa.
Mestiçagem e racismo, cultura popular e atuação política são alguns dos temas de Jorge Amado que aparecem aqui em estado embrionário. Brutalidade e celebração revelam-se, neste romance de juventude, linhas de força cruciais de uma literatura que se empenhou em caracterizar e decifrar o enigma brasileiro.

“As gerações se sucedem vertiginosamente. E vêm árdegas, querendo realizar alguma coisa, manter acesa a lâmpada do espírito. Mas em pouco tempo o entusiasmo não está mais. Nenhum de nós dura tempo o suficiente para se realizar. E não deixamos nem sequer um traço da nossa passagem.”


“Só o entendimento do desespero constrói.”


“E o mundo o que é para nós senão a nossa visão dele?”


“O país em que nascemos pesa sobre nós. É bastante olhar o Brasil de hoje, no seu aspecto político por exemplo, para termos uma ideia do drama que se está passando aos nossos olhos. O caos de todos os lados. E perdidas no caos algumas ameaças terríveis. O mais é apenas inexistência e sono. A mocidade não tem um sentido, não tem uma direção, não tem uma causa. A única aspiração da nossa mocidade é a velhice. Poucos apenas nela trabalham pela nossa libertação. Poucos apenas são os que resistem procurando pensar e criar, onde naturalmente não existe nem pensamento nem criação. Você, meu amigo, é um desses marcados para essa desgraça, para essa dilaceração contínua e cuja recompensa é saber que tudo que está diante de nós não apodrece porque alguns poucos abrem as janelas do espírito de quando em vez, e são sacrificados por esse gesto.”

Prefácio – Augusto Frederico Schmid

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“Este livro narra a vida de homens céticos que, entretanto, procuram uma finalidade. Tentaram alcançá-la. Uns no amor, outros na religião. O fracasso das tentativas não é prova da sua inutilidade.”


“Porque, procurando bem, até homens inteligentes se encontram no Brasil.”


“No Brasil a questão de religião é uma questão de medo.”


“A serenidade é uma falsificação da felicidade.”


“– Se vocês fossem iguais a todos os outros, achariam a Felicidade em qualquer parte. Na religião, no amor, no trabalho, em qualquer coisa. Mas, como vocês são superiores, não a encontrarão nunca. A Felicidade pertence somente aos burros e aos cretinos. Felizmente, nós somos infelizes.”


“– Toda prostituta tem uma tragédia, Jerónimo. Quer ver?
E Pedro Ticiano chamou a mulher que passava.
– Minha filha, conte aqui para nós, para mim e para este amigo que é o “último romântico”, como você veio para esta vida, esta vida terrível que as mulheres casadas chamam de fácil...
Ela não se fez de rogada. E começou a contar, os olhos baixos amassando com os dedos a ponta do casaco, quase envergonhada. Bonitinha, aquela mulher! Dois grandes olhos espantados e uma boca pequena onde brincava um sorriso fácil de oferecimento. Nada de aristocrático. O tipo da camponesa bonita.
Tudo igual à das outras... Vivia lá em Nazaré com os pais. Cosia. Ganhava até dinheiro. Um dia, um homem rico e elegante que fora passear na cidade prometera-lhe casamento, casa bonita, automóveis. Naquele tempo ela ainda acreditava nos homens. Depois, deixara-a perdida, odiada pela família. Viera então para a Bahia. E aí estava a sua história. Igual à das outras...
– Vivendo a tragédia das prostitutas que nasceram para mães de família. Em todo caso, minha filha, você escapou de ter sofrido uma tragédia muito maior, a de ter morrido virgem...”


“– Só o estômago não tem nada a ver com as nossas tragédias. Continua a exigir comida da mesma maneira.”


“Quem não tem fome não conhece a infelicidade.”


“Dizem que foi Deus quem criou os homens. Eu acho que foram os homens que criaram Deus. De qualquer modo, homens criados por Deus ou Deus criado pelos homens, uma e outra obra são indignas de uma pessoa inteligente.”


“A experiência é feita das desilusões.”


“Toda vitória na vida é um fracasso na arte.”

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

A arte de insultar – Arthur Schopenhauer

Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-3361-803-9
Tradução: Eduardo Brandão e Karina Jannini
Organização: Franco Volpi
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 222
Sinopse: Quando nos faltam argumentos, é preciso recorrer às ofensas – sugeriu Schopenhauer, pois: “Uma só grosseria supera qualquer argumento.” O livro contém uma breve teoria e uma minuciosa prática das indiretas, das maldades e dos ataques verbais que Schopenhauer endereça com impertinência categórica a todos os destinatários possíveis: os filósofos, os escritores, as mulheres, as instituições sociais, o gênero humano, a vida – em poucas palavras: contra o mundo inteiro. Mas ele também revela a melhor maneira de se defender com êxito.



“Na maioria das vezes, os amigos da casa são chamados desse modo com razão, uma vez que são mais amigos da casa do que do dono, ou seja, assemelham-se mais aos gatos do que aos cachorros.”


“Seria bom comprar livros se, junto com eles, fosse possível comprar também o tempo para lê-los.”


“O sexo feminino exige e espera do masculino tudo, exatamente tudo o que deseja e de que necessita. O masculino exige do feminino, em primeiro lugar e imediatamente, uma única coisa. Por essa razão, foi necessário estabelecer a convenção de que o sexo masculino só pode obter do feminino aquela única coisa se, em troca, cuidar de todas as outras, além dos filhos nascidos da união. Nessa convenção baseia-se o bem-estar de todo o sexo feminino.”


“Casar-se de maneira geral significa colocar a mão dentro de um saco sem ver o que há dentro dele e esperar tirar uma enguia de um emaranhado de serpentes.
No nosso continente monogâmico, casar-se significa abdicar de metade dos direitos e duplicar os deveres.
Casar-se significa fazer o possível para sentir repugnância um do outro.
Casamentos felizes são notoriamente raros.”


“Se todo indivíduo pudesse escolher entre o seu próprio aniquilamento e o do resto do mundo, não preciso dizer para que lado, na maioria dos casos, penderia a balança.”


“O cérebro é o parasita ou o pensionista do organismo inteiro”.


“Se um deus fez este mundo, eu é que não gostaria de ser este deus: a miséria aqui presente despedaçaria meu coração.”


Minha época e eu não fomos feitos um para o outro: quanto a isso, não há dúvida. Mas qual de nós vencerá o processo diante do tribunal dos pósteros?”


“A fé e o saber não se dão bem dentro da mesma cabeça: são como o lobo e o cordeiro dentro de uma jaula; e o saber é justamente o lobo, que ameaça devorar seu vizinho.
O saber é feito de uma matéria mais dura do que a fé, de modo que, quando colidem, a última se quebra.”


“A veneração que a grande massa culta reserva ao gênio é da mesma espécie da que os crentes dedicam aos seus santos, ou seja, degenera facilmente num culto pueril às relíquias. A casa de Petrarca em Arquà; a suposta prisão de Tasso em Ferrara; a casa de Shakespeare em Stratford com sua cadeira; a casa de Goethe em Weimar com sua mobília; o velho chapéu de Kant, bem como os respectivos autógrafos, são fitados com atenção e respeito por muitos que nunca leram suas obras, do mesmo modo como milhares de cristãos veneram as relíquias de um santo cuja vida e doutrina não chegaram a conhecer, e como a religião de milhares de budistas consiste muito mais na veneração a Dahtu (dente sagrado), até mesmo a Dagoba (Stupa), que o encerra, ou ao sagrado Patra (gamela), ou ainda à pegada petrificada, à arvore sagrada que Buda semeou, do que no conhecimento profundo e no exercício fiel da sua sublime doutrina.”


“As outras partes do mundo têm macacos; a Europa tem franceses. É a mesma coisa.”


“Ler a história da filosofia em geral ou todo tipo de exposição das doutrinas dos filósofos em vez das suas obras originais é como fazer com que outra pessoa mastigue a comida por nós. É possível conhecer de fato os filósofos apenas por meio das suas obras, e de modo algum por relatos de segunda mão.”


“Às vezes converso com os homens do mesmo modo como as crianças conversam com seus bonecos: embora ela saiba que o boneco não a compreende, usando de uma ilusão agradável e consciente, consegue divertir-se com a comunicação.”


“O egoísmo é gigantesco: ele rege o mundo.”


“De um ponto de vista geral, [...] a natureza fala da seguinte forma: “O indivíduo é nada e menos de nada. Diariamente, destruo milhões de indivíduos por diversão e passatempo: abandono seu destino nas mãos do mais temperamental e caprichoso dos meus filhos, o acaso, que faz dele sua presa ao seu bel-prazer. Dou vida a milhões de novos indivíduos todos os dias, sem diminuir em nada minha força criativa, do mesmo modo como a força de um espelho não se esgota pelo número de imagens do sol que, uma após a outra, ele reflete na parede. O indivíduo é nada”.” 


“Em sensu proprio, o dogma do inferno torna-se revoltante. Pois, em virtude das penas eternas do inferno, não apenas faz expiar com infindáveis martírios os erros ou até mesmo a falta de fé, mas também faz com que essa condenação quase universal constitua na verdade o efeito de um pecado original e, portanto, o resultado inevitável da primeira transgressão do homem. No entanto, de todo modo essa transgressão deveria ter sido prevista por aquele que, em primeiro lugar, não criou os homens melhores do que são, e depois lhes preparou uma armadilha, mesmo sabendo que nela cairiam, uma vez que tudo era obra sua e nada permanecia escondido às suas vistas. Sendo assim, ele teria evocado do nada para a existência um gênero humano fraco e sujeito ao pecado, para depois condená-lo ao martírio infindável. Por fim, há que se acrescentar que Deus, que prescreve a indulgência e o perdão a toda culpa até chegar ao amor pelo inimigo, não manifesta nenhum sentimento semelhante, mas cai em sentimentos opostos; isso porque uma pena, que sucede ao fim das coisas, quando tudo já passou e se concluiu, não pode ter como objetivo nem a melhora, nem a intimidação e, portanto, não passa de uma vingança. Visto por esse ângulo, chega a parecer que, na prática, todo o gênero humano tenha sido destinado e criado expressamente para a tortura e a condenação eternas – a não ser por aquelas poucas exceções que, não se sabe porquê, foram salvas pela escolha divina. Sem levar em conta tais casos, o querido Deus parece ter criado o mundo para que o diabo o carregasse; sendo assim, ele teria feito muito melhor se tivesse deixado de criá-lo.


“O pássaro na gaiola canta não por prazer, mas de raiva.” (citação)


“A intolerância é intrínseca apenas ao monoteísmo: um deus único é, por natureza, um deus ciumento, que não tolera nenhum outro além dele mesmo.”


“Não se pode servir a dois senhores: ou se serve à razão, ou à escritura.”


“O médico vê o homem em toda a sua fraqueza; o jurista, em toda a sua perversidade; o teólogo, em toda a sua estupidez.”


“A vida da maioria das pessoas é apenas uma luta contínua pela existência, com a certeza da derrota final.”


“A vida de todo ser humano flui inteiramente entre o querer e o conseguir. O desejo, conforme sua natureza, é dor: alcançá-lo significa gerar rapidamente a saciedade. O objetivo era apenas aparente; a posse tira o encanto; o desejo e a necessidade se reapresentam com um novo aspecto. Quando isso não ocorre, seguem-se a solidão, o vazio e o tédio, contra os quais a luta atormenta tanto quanto contra a miséria.”


“Quando se observa a vida de cada indivíduo de modo geral, destacando apenas seus traços mais significativos, percebe-se que ela não passa de uma tragédia; porém, se examinada em seus detalhes, tem o caráter da comédia.”

domingo, 3 de novembro de 2013

Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo – Mário Magalhães

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-2170-0

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 738


“Em tempos de guerra, mentira é como terra.”

 

 

“Um dos mais populares bolcheviques, Nikolai Bukhárin definiu a Rússia soviética como “o primeiro gigantesco laboratório onde se forma o futuro da humanidade”.”

 

 

“O PCB interpretou o confronto de 1932 como uma escaramuça da elite sem mocinhos.”

 

 

“Os comunistas ostentavam a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, arrancada do atraso secular e dos destroços da guerra civil, como exemplo do que o planejamento estatal da economia poderia produzir – mais tarde ficaria claro o custo humano da coletivização forçada do campo e da industrialização acelerada. Contavam histórias de heroísmo: em agosto de 1931, o estivador Herculano de Souza fora baleado pela polícia em um comício do Socorro Vermelho na cidade portuária de Santos, no litoral paulista.

Homenageavam os operários Sacco e Vanzetti, executados na cadeira elétrica dos Estados Unidos. Ferido, Herculano caiu nos braços da escritora e militante comunista Patrícia Galvão. Antes de morrer, ele exclamou:

“Continue o comício! Continue o comício!”

O comício continuou, e Pagu pediu aos presentes para cantar A Internacional. A cavalaria invadiu a praça e a prendeu.”

 

 

“Os comícios que preocupavam Marighella em 1934 atraíam cada vez mais gente. O “foguetão extremista” foi arremessado sobre um deles, da Ação Integralista Brasileira (AIB), versão nacional do fascismo assentada em 1932. Seu líder, Plínio Salgado, deslumbrara-se com o fascio ao visitar a Itália. O chefe das milícias, o germanófilo Gustavo Barroso, apregoava vulgaridades antissemitas. Eles vestiram camisas verdes (os fascistas, pretas) e adotaram a letra grega sigma como emblema (os nazistas, a suástica). Saudavam com o tupi “anauê” (na Alemanha, “heil, Hitler”) e estendiam o braço para o alto (na Itália, à romana, na horizontal). Ultranacionalistas, adotaram a divisa “Deus, Pátria e Família”.

Enxergavam em comunistas e judeus uma coalizão perversa. Extasiaram-se quando o governo brasileiro deportou, em outubro de 1935, a tecelã judia Genny Gleiser, nascida na Bessarábia. Portuários franceses a resgataram e a salvaram do terror. Antiliberais, os integralistas se identificavam com o liberalismo na defesa da propriedade privada. Compartilhavam com o governo a aversão ao comunismo. Mobilizaram 400 mil aderentes em 1.123 núcleos. A posteridade os lembraria como fanfarrões, janotas envaidecidos com suas paradas burlescas. Para a geração do moço Marighella, aparentava uma ameaça do naipe de Hitler e Mussolini.”

 

 

“Afiançado pelas Forças Armadas, Getúlio Vargas deu um golpe e instaurou o Estado Novo. Um colégio eleitoral restrito promulgou a Constituição de 1934 – em 1933, votaram privilegiados 3% dos brasileiros. Os constituintes transformaram o chefe do governo provisório em presidente constitucional sem o submeter ao sufrágio popular. Seria ainda pior: em 1937, as eleições foram canceladas e a Justiça Eleitoral, extinta. A Carta de 1934 foi substituída pela Polaca, assim apelidada porque se inspirava na Constituição do falecido ditador polonês Jósef Pilsudski.

Getúlio se fez ditador sem Legislativo, com o Judiciário manietado pelas cartas marcadas do TSM, partidos banidos, interventores nos estados, polícia sem limites, greves proibidas e sindicatos atrelados ao Ministério do Trabalho. O pretexto para a farra, o “Plano Cohen”, não passara de falsificação. Tratava-se de um estudo datilografado na serie da AIB pelo chefe do seu serviço secreto Olímpio Mourão Filho – que se descrevia como uma “vaca fardada”.”

 

 

“A controvérsia sobre o caráter ideológico de Getúlio, um pragmático, viveria mais que o século. Em 1929, ele interpretou sua diretriz no governo do Rio Grande do Sul: “Assemelha-se ao direito corporativo ou organização das classes promovido pelo regime fascista no período de renovação criadora que a Itália atravessa”. Em junho de 1940, reverenciou os alemães ao argumentar que os povos “fortes têm direito a buscar um lugar ao sol”. Um ano mais tarde, telegrafou a Hitler cumprimentando-o pelo aniversário.

O PCB festejou o fiasco do ataque integralista ao palácio Guanabara em maio de 1938, no Rio. A política de aliança exprimia a determinação da Internacional de despejar a munição no nazifascismo, suando para impedir que o Eixo cooptasse Getúlio. A orientação das sessões nacionais se subordinava à prioridade de defesa da União Soviética, mesmo que isso implicasse compor com uma ditadura anticomunista. O cerco contra o único Estado socialista do planeta apertou. Alemanha e Japão brindaram, em 1936, a um pacto anti-Komintern, ao qual a Itália se uniu. Em setembro de 1938, Hitler, Mussolini, o britânico Neville Chamberlain e o francês Edouard Daladier se acertaram em Monique. As duas maiores democracias liberais europeias aceitaram entregar territórios da Tchecoslováquia aos nazistas, que já haviam abocanhado a Áustria. Os soviéticos se inquietaram.”

 

 

“A engrenagem do anticomunismo se mantinha robusta, e o seu motor era a Igreja. Em Salvador, levaram a imagem do Senhor do Bonfim para uma concentração contra o partido. Uma publicação católica asseverava que os vermelhos se regozijavam currando freiras. No município pernambucano de Triunfo, o padre avistou uma caravana comunista e ordenou que os sinos da matriz dobrassem finados. Em Catende, no mesmo estado, uma procissão com uma boiada à frente atravessou de propósito uma manifestação do PCB. O ex-sargento Gregório Bezerra berrou do palanque:

“Tenham calma, companheiros! Abram alas e deixem passar a Idade Média”.”

 

 

“No capítulo inicial, a 16 de março de 1946, a Tribuna Popular publicou a reportagem “Prestes em sabatina com funcionários da justiça”. Indagaram o senador “sobre qual a posição dos comunistas se o Brasil acompanhasse qualquer nação imperialista que declarasse guerra à União Soviética”. O secretário-geral não hesitou:

Faríamos como o povo da Resistência francesa, o povo italiano, que se ergueram contra Pétain e Mussolini. Combateríamos uma guerra imperialista contra a União Soviética e empunharíamos armas para fazer a resistência em nossa pátria contra um governo desses, retrógrados, que quisesse a volta do fascismo. Mas acredito que nenhum governo tentará levar o povo brasileiro contra o povo soviético, que luta pelo progresso e bem-estar dos povos. Se algum governo cometesse este crime, nós comunistas lutaríamos pela transformação da guerra imperialista em guerra de libertação nacional.”

 

 

“Nem com o reforço dos comunistas Juscelino atraiu muito mais de um terço dos votos: 36%. Para sua sorte, a regra estabelecia turno único. JK somou 466.956 eleitores a mais que Juarez Távora, da UDN, com 30%. Como o pleito não batia chapa contra chapa, era possível escolher para vice um antagonista do chefe do Executivo. Não foi o que ocorreu em 1955, quando Jango sobrepujou o udenista Milton Campos por 203.670 votos. As diferenças estreitas animaram nova ofensiva golpista. Carlos Lacerda já tentara adiar a eleição. O mais anticomunistas dos ex-comunistas divulgou uma carta de um legislador argentino, Antonio Brandi, a João Goulart. Entre outros desvarios, prescrevia a formação de brigadas de choque operárias. A tal Carta Brandi não passava de falsificação, como julgaram os tribunais. A seguir, os golpistas buscaram impugnar os candidatos. Alegaram que JK e Jango incorriam em crime por ter ao lado uma agremiação proibida (comunista). A justiça autorizou as inscrições, porém vetou o Movimento Nacional Popular Trabalhista, a fachada dos comunistas na campanha. Depois de 3 de outubro, os derrotados voltaram à carga, sustentando que o PCB determinara o resultado, que por isso seria ilegítimo.

Em 1945, com um colégio eleitoral menor, contaram-se 569 mil cédulas, ou 10% para o partido. É provável que, em 1955, enfraquecido, o PCB não tenha decidido o embate presidencial, mas tenha sacramentado o triunfo de Goulart. Como a manobra não prosperou, os udenistas reivindicaram a anulação porque os vitoriosos não tinham obtido maioria absoluta, desempenho que a lei não requeria. Com outro insucesso, apelaram ao recurso empregado no Brasil desde a proclamação da República em 1989, o golpe militar.

No dia 1º de novembro, o coronel Jurandir de Bizarria Mamede discursou no enterro do general Canrobert Pereira da Costa. Sugeriu cancelar a posse de JK, marcada para janeiro de 1956. Café Filho sofreu uma crise cardíaca, e o presidente da Câmara, Carlos Luz, ocupou seu lugar. O ministro da Guerra, Henrique Teixeira Lott, quis punir Bizarria Mamede por indisciplina, porém, o presidente em exercício não aceitou. A recusa implicava a queda do general Lott, passo final para bloquear Juscelino. Em 11 de novembro de 1955, o ministro colocou os blindados nas ruas do Rio, depôs Carlos Luz, e a Câmara aprovou a entrega provisória do governo ao vice-presidente do Senado, Nereu Ramos. Marighella se defrontara com o senador catarinense na Constituinte de 1946, mas em 1955 se aliara pela submissão às urnas.

Lott comandou um golpe sui generis para os padrões nacionais, com conteúdo de contragolpe legalista para que prevalecesse a vontade dos eleitores.”

 

 

“Khruschóv arrematou:

“Quando falamos em luta armada, falamos de luta de grandes massas, e não de ações sectárias de alguns comunistas. Porque isto seria uma aventura. A luta armada só de comunistas é sempre uma aventura. Realizar o trabalho de massas é a melhor forma de preparar a insurreição. Não se chega à luta armada sem se passar pelas lutas de massas”.”

 

 

“Enquanto o PCB se entretinha com as idas e vindas do inquilino do Planalto, quem aspirava despejá-lo perseverava. Os militares que malograram em 1954, 1955 e 1961 ensaiavam novo coup de main. Em março de 1963, o general Olímpio Mourão Filho, arraigado integralista, já traçara no papel um roteiro de golpe. Em setembro e outubro daquele ano, foram descobertos ao menos três arsenais de opositores, um deles com dez metralhadoras Thompson, munição para 12 mil tiros e cinquenta granadas. Também se movimentavam conspiradores mais graúdos. No dia 30 de julho de 1962, dois homens haviam conversado no salão da Casa Branca sobre o destino no Brasil. O presidente John Kennedy e seu embaixador no Rio de Janeiro, Lincoln Gordon, trataram do financiamento oculto de 8 milhões de dólares a candidatos que em outubro enfrentariam nas urnas os correligionários de Jango. A dinheirama, ao lado da qual o ouro de Moscou configurava ninharia, cooperou para manter Goulart minoritário – seu PTB saltou de 66 para 104 deputados federais, mas UDN e PSD amealharam 54% das cadeiras. Philip Agee, agente da CIA, estimou que o agrado a candidatos pode ter alcançado 20 milhões de dólares – 149 milhões em 2012, muito mais do que todos os gastos oficiais da campanha vitoriosa à presidência em 2010.”

 

 

“O descontrole dos preços vitaminava demonstrações como a da praça da Sé, mas a popularidade de Jango não era anêmica. Foi o que constatou pesquisa de opinião em oito capitais, de 9 a 26 de março de 1964. Seis em cada dez entrevistados pelo Ibope concordaram com a desapropriação de terras às margens de rodovias, contra a reprovação de 1,9%. Porém, 76% rejeitaram a legalização do PCB – o anticomunismo não pelejara em vão. À indagação sobre se votariam em Jango se ele concorresse, a maioria respondeu positivo em Fortaleza, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Porto Alegre. O sim perdeu, mas oscilou de 39 a 41% em Belho Horizonte e Curitiba. Contribuíram para o desempenho viçoso novidades como o 13º salário, instituído em 1962, coroando a campanha na qual o deputado Marighella se batera. Sem reeleição, entre sete opções, Juscelino Kubitschek venceu em quatro capitais e nas outras foi segundo. Só no Rio Carlos Lacerda passou dos 20%. O governador mineiro, Magalhães Pinto, mal beirou os 6% em Belo Horizonte.”

 

 

“Consumava-se a humilhação suprema de Prestes e do PCB. Em 1924, o capitão tinha 26 anos, havia troteado sua coluna e estabelecera sua legenda; em 1935, aos 37, comandara uma tentativa de revolução; aos 66, em 1964, implorava para resistirem. No levante comunista, o partido “vanguarda da classe operária” fora esmagado, mas pelejara – agora, nem isso; em 1961, a crise encontrou-o perplexo, contudo o desvario janista surpreendera; três anos depois, a gestão do coup de force saltou à vista, e mesmo assim o PCB se prostrou.”

 

 

“Nos estertores da quarta-feira, João Goulart já se conformara com a queda. Com seu governo desenganado, ele viajou de Brasília para Porto Alegre, onde o Avro da FAB pousou pelas três e meia da madrugada de 2 de abril. Disposto a reeditar 1961, Brizola reivindicou sua nomeação para o Ministério da Justiça e a do general Ladário Telles, removido na véspera para o comando do III Exército, para a pasta da Guerra – em vez de envergar o uniforme de campanha, o ministro Jair Dantas Ribeiro, internado no Rio, não tirava o pijama de enfermo. Goulart não atendeu ao cunhado. E foi abordado pelo general Ladário, que um dia antes se mostrara desesperançoso aos sargentos na Vila Militar carioca. Ajudante-de-ordens do presidente, o capitão Ernani Corrêa de Azambuja testemunhou o diálogo dramático:

“Se nós iniciarmos a reação, isso se alastra, e o Rio Grande do Sul se torna uma nova legalidade”, vaticinou Ladário.

Jango se precaveu: “Uma pergunta só: vai correr sangue?”.

“Ah, vai!”, disse o general com sinceridade.

“Então eu não concordo”, encerrou Goulart.

A Câmara acabara de encenar uma pantomina, declarando vaga a presidência e empossando no cargo o deputado Ranieri Mazzilli. Eram golpistas e motivos demais: militares contrariados com a indisciplina nos quartéis; latifundiários com a reforma agrária; empresários com a contestação dos assalariados e o espectro de uma “república sindicalista”; o capital estrangeiro com as restrições à remessa de lucros para o exterior; e os Estados Unidos com a ameaça de uma nova China. O comunismo configurava uma obsessão, porém, o putsch focou no presidente e seu PTB.

A despeito do ódio de certos oligarcas, Goulart seria renegado na posteridade também por segmentos da esquerda. Brizola diria que, em 1964, seu comportamento foi o de quem renunciou. Marighella escreveu: “Estávamos confiados em que o governo resistiria. Nem ao menos denunciamos insistentemente o golpe de direita”. Mário Alves comentou: “Como já ocorrera em 1964 e 1961, o setor nacionalista da burguesia não se dispôs a enfrentar uma eventualidade de uma guerra civil, temendo que ela se convertesse em uma revolução popular”. A leitura marxista podia ter fundamento, mas o coração de Jango influiu: ele não admitia irmão sangrando irmão.”

 

 

“A obsessão com o espectro subversivo estimulou um burocrata de Brasília a interditar o consumo de vodca (o Leste Europeu destilava as supimpas) e o Dops carioca a interrogar sobre o grego Sófocles, tomando-o como um dramaturgo vivo, e não falecido quatro séculos antes de Cristo.”

 

 

“Para gáudio da Casa Branca, Castelo Branco amenizou as restrições à remessa de lucros ao exterior e anulou a encampação das refinarias particulares de petróleo, cancelando medidas de Jango. Com reajustes salariais que esqueciam a inflação, o governo desenvolveu o que os seus economistas difundiam como austeridade e a oposição criticava como arrocho. A Voz Operária, órgão clandestino do PCB calculou: com o salário mínimo de 1964, trabalhavam-se sete horas para comprar um quilo de manteiga; em setembro de 1965, onze horas. Nem por isso pululavam greves: com a intervenção oficial em 433 entidades, o movimento sindical hibernava.”

 

 

“Em “Rondó da liberdade”, poema político publicado em 1966, Marighella conclamou:

É preciso não ter medo

é preciso ter a coragem de dizer.

 

Há os que têm vocação para escravo,

mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.

Foi o formato em versos para sua prosa inflamável de Por que resisti à prisão, livro de 1965: “Os brasileiros estão diante de uma alternativa. Ou resistem à situação criada com o golpe de 1º de abril ou se conformam com ela. O conformismo é a morte”.”

 

 

“Marighella vaticinou: “A ditadura surgiu da violência empregada pelos golpistas contra a nação, e não pode esperar menos do que a violência por parte do povo”.”

 

 

“O Agrupamento divulgou seus princípios: “São três: o primeiro é que o dever de todo o revolucionário é fazer a revolução; o segundo é que não pedimos licença para praticar atos revolucionários; e o terceiro é que só temos compromisso com a revolução”. Marighella simplificou: “O conceito teórico pelo qual nos guiamos é o de que a ação faz a vanguarda”. E encerrou a conversa: “A mesa das discussões hoje em dia já não une os revolucionários. O que une os revolucionários brasileiros é desencadear a ação, e a ação é a guerrilha”.”

 

 

“No opúsculo A crise brasileira, de 1966, Marighella estimulou “a aliança com os católicos”. Ele acompanhara a pregação do frei Carlos Josaphat, editor do jornal Brasil Urgente. Em 1963, o dominicano escrevera no periódico que “a concentração das riquezas [...], lei inexorável do capitalismo, [...] é abominável e diabólica”. Agora, Marighella aprendia que a encíclica Populorum progressio, emitida pelo papa Paulo VI em março de 1967, admitia a “insurreição revolucionária”, “em caso de tirania evidente e prolongada, que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa”. São Tomás de Aquino, teólogo dominicano do século XII, legitimara o direito de resistir ao governante injusto. Os sacerdotes já tinham um mártir: o padre Camilo Torres, que aderiu à guerrilha socialista na Colômbia em nome do amor ao próximo e morreu combatendo em 1966.

Pouco importava a Marighella que os frades não referendassem as súmulas do socialismo científico. “Nós levávamos muito mais a sério Marx que muita gente do Partido Comunista, porque pelo menos nos dávamos ao trabalho de ler”, cutucou frei Oswaldo. “Descobria-se que não era necessário ser marxista. Poderia ser um bom católico e estar a favor da revolução social.” Que virada em relação à Inquisição medieval, encabeçadas por dominicanos, os “cães do Senhor” em latim, entre os quais o inquisidor-geral, Tomás Torquemada. Marighella pensava na Igreja contemporânea, não nas fogueiras do passado.”

 

 

“Se a proibição imposta pelo governo impediu certos órgãos jornalísticos de cumprir o dever de informar a ação da ALN contra a vinda do governador de Nova York, Nelson Rockefeller ao Brasil, muitos veículos nem chiaram, e outros, mesmo sem o veto, omitiriam o episódio por iniciativa própria, tal seu fervor bajulatório pela ditadura.”

 

 

“Marighella advertiria: “Na luta revolucionária devemos evitar a distorção dessa finalidade política, impedindo que a guerrilha urbana ou rural se transforme em instrumento de banditismo e que nos juntemos aos bandidos ou empreguemos seus métodos. (...) Os atos terroristas revolucionários e a sabotagem não visam inquietar, amedrontar ou matar o povo. Eles devem ser utilizados como tática para combater a ditadura. (...) Ao terrorismo que a ditadura emprega contra o povo nós contrapomos o terrorismo revolucionário”. E prossegue em seu Minimanual do guerrilheiro urbano: “Quanto ao sistema de transporte e comunicações do inimigo (...) o único cuidado (ao fulminá-lo) é não causar mortes e danos fatais aos passageiros”.”

 

 

“Com o pretexto de debelar a herança inflacionária, o governo corroera a remuneração pelos trabalhadores. O poder de compra do salário mínimo despencou 27% de 1964 para 1969. Além de anêmicos pela intervenção oficial, os sindicatos murcharam em número. Nenhum operário se arriscava a abrir faixa de protesto, para não ser demitido pelo patrão, processado pelo Estado, surrado pela polícia e, como aconteceu, torturado e morto. O arrocho tabelava com a pobreza: a mortalidade infantil estacionou, oscilando de 116 por mil bebês nascidos vivos, em 1965, para 115 em 1970. Até que a economia entorpecida despertou: de 1969 a 1973, vitaminou-se ao fabuloso ritmo médio anual de 11,4%. No dito “milagre econômico”, o bolo cresceria, mas poucos devorariam as fatias maiores. Ainda assim, a ditadura capitalizou as novas oportunidades de emprego e renda.”

 

 

“Em dezembro de 1979, ainda sob as nuvens da ditadura, os restos mortais de Marighella foram transferidos para Salvador. No cemitério Quinta dos Lázaros, centenas de velhos companheiros e camaradas se despediram. O arquiteto Oscar Niemeyer desenhou-o na lápide com um braço erguido, cinco balas no peito e a inscrição “Não tive tempo para ter medo”. O deputado cassado Fernando Sant’Anna leu uma mensagem de Jorge Amado:

Atravessaste a interminável noite da mentira e do medo, da desrazão e da infâmia e desembarcas na aurora da Bahia, trazido em mãos de amor e de amizade. Aqui estas e todos te reconhecem como foste e serás para sempre: incorruptível brasileiro, um moço baiano de riso jovial e coração ardente. Aqui estas entre teus amigos e entre os que são tua carne e teu sangue.

Muitos haviam ficado pelo caminho.”