Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-2170-0
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 738
“Em tempos de guerra, mentira é como terra.”
“Um dos mais populares bolcheviques, Nikolai Bukhárin
definiu a Rússia soviética como “o primeiro gigantesco laboratório onde se forma
o futuro da humanidade”.”
“O PCB interpretou o confronto de 1932 como uma
escaramuça da elite sem mocinhos.”
“Os comunistas ostentavam a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, arrancada do atraso secular e dos destroços da guerra civil,
como exemplo do que o planejamento estatal da economia poderia produzir – mais tarde
ficaria claro o custo humano da coletivização forçada do campo e da industrialização
acelerada. Contavam histórias de heroísmo: em agosto de 1931, o estivador Herculano
de Souza fora baleado pela polícia em um comício do Socorro Vermelho na cidade portuária
de Santos, no litoral paulista.
Homenageavam os operários Sacco e Vanzetti, executados
na cadeira elétrica dos Estados Unidos. Ferido, Herculano caiu nos braços da escritora
e militante comunista Patrícia Galvão. Antes de morrer, ele exclamou:
“Continue o comício! Continue o comício!”
O comício continuou, e Pagu pediu aos presentes
para cantar A Internacional. A cavalaria invadiu a praça e a prendeu.”
“Os comícios que preocupavam Marighella em 1934
atraíam cada vez mais gente. O “foguetão extremista” foi arremessado sobre um deles,
da Ação Integralista Brasileira (AIB), versão nacional do fascismo assentada em
1932. Seu líder, Plínio Salgado, deslumbrara-se com o fascio ao visitar a
Itália. O chefe das milícias, o germanófilo Gustavo Barroso, apregoava vulgaridades
antissemitas. Eles vestiram camisas verdes (os fascistas, pretas) e adotaram a letra
grega sigma como emblema (os nazistas, a suástica). Saudavam com o tupi “anauê”
(na Alemanha, “heil, Hitler”) e estendiam o braço para o alto (na Itália,
à romana, na horizontal). Ultranacionalistas, adotaram a divisa “Deus, Pátria e
Família”.
Enxergavam em comunistas e judeus uma coalizão
perversa. Extasiaram-se quando o governo brasileiro deportou, em outubro de 1935,
a tecelã judia Genny Gleiser, nascida na Bessarábia. Portuários franceses a resgataram
e a salvaram do terror. Antiliberais, os integralistas se identificavam com o liberalismo
na defesa da propriedade privada. Compartilhavam com o governo a aversão ao comunismo.
Mobilizaram 400 mil aderentes em 1.123 núcleos. A posteridade os lembraria como
fanfarrões, janotas envaidecidos com suas paradas burlescas. Para a geração do moço
Marighella, aparentava uma ameaça do naipe de Hitler e Mussolini.”
“Afiançado pelas Forças Armadas, Getúlio Vargas
deu um golpe e instaurou o Estado Novo. Um colégio eleitoral restrito promulgou
a Constituição de 1934 – em 1933, votaram privilegiados 3% dos brasileiros. Os constituintes
transformaram o chefe do governo provisório em presidente constitucional sem o submeter
ao sufrágio popular. Seria ainda pior: em 1937, as eleições foram canceladas e a
Justiça Eleitoral, extinta. A Carta de 1934 foi substituída pela Polaca, assim apelidada
porque se inspirava na Constituição do falecido ditador polonês Jósef Pilsudski.
Getúlio se fez ditador sem Legislativo, com o
Judiciário manietado pelas cartas marcadas do TSM, partidos banidos, interventores
nos estados, polícia sem limites, greves proibidas e sindicatos atrelados ao Ministério
do Trabalho. O pretexto para a farra, o “Plano Cohen”, não passara de falsificação.
Tratava-se de um estudo datilografado na serie da AIB pelo chefe do seu serviço
secreto Olímpio Mourão Filho – que se descrevia como uma “vaca fardada”.”
“A controvérsia sobre o caráter ideológico de
Getúlio, um pragmático, viveria mais que o século. Em 1929, ele interpretou sua
diretriz no governo do Rio Grande do Sul: “Assemelha-se ao direito corporativo ou
organização das classes promovido pelo regime fascista no período de renovação criadora
que a Itália atravessa”. Em junho de 1940, reverenciou os alemães ao argumentar
que os povos “fortes têm direito a buscar um lugar ao sol”. Um ano mais tarde, telegrafou
a Hitler cumprimentando-o pelo aniversário.
O PCB festejou o fiasco do ataque integralista
ao palácio Guanabara em maio de 1938, no Rio. A política de aliança exprimia a determinação
da Internacional de despejar a munição no nazifascismo, suando para impedir que
o Eixo cooptasse Getúlio. A orientação das sessões nacionais se subordinava à prioridade
de defesa da União Soviética, mesmo que isso implicasse compor com uma ditadura
anticomunista. O cerco contra o único Estado socialista do planeta apertou. Alemanha
e Japão brindaram, em 1936, a um pacto anti-Komintern, ao qual a Itália se uniu.
Em setembro de 1938, Hitler, Mussolini, o britânico Neville Chamberlain e o francês
Edouard Daladier se acertaram em Monique. As duas maiores democracias liberais europeias
aceitaram entregar territórios da Tchecoslováquia aos nazistas, que já haviam abocanhado
a Áustria. Os soviéticos se inquietaram.”
“A engrenagem do anticomunismo se mantinha robusta,
e o seu motor era a Igreja. Em Salvador, levaram a imagem do Senhor do Bonfim para
uma concentração contra o partido. Uma publicação católica asseverava que os vermelhos
se regozijavam currando freiras. No município pernambucano de Triunfo, o padre avistou
uma caravana comunista e ordenou que os sinos da matriz dobrassem finados. Em Catende,
no mesmo estado, uma procissão com uma boiada à frente atravessou de propósito uma
manifestação do PCB. O ex-sargento Gregório Bezerra berrou do palanque:
“Tenham calma, companheiros! Abram alas e deixem
passar a Idade Média”.”
“No capítulo inicial, a 16 de março de 1946, a
Tribuna Popular publicou a reportagem “Prestes em sabatina com funcionários
da justiça”. Indagaram o senador “sobre qual a posição dos comunistas se o Brasil
acompanhasse qualquer nação imperialista que declarasse guerra à União Soviética”.
O secretário-geral não hesitou:
Faríamos como o povo da Resistência francesa,
o povo italiano, que se ergueram contra Pétain e Mussolini. Combateríamos uma guerra
imperialista contra a União Soviética e empunharíamos armas para fazer a resistência
em nossa pátria contra um governo desses, retrógrados, que quisesse a volta do fascismo.
Mas acredito que nenhum governo tentará levar o povo brasileiro contra o povo soviético,
que luta pelo progresso e bem-estar dos povos. Se algum governo cometesse este crime,
nós comunistas lutaríamos pela transformação da guerra imperialista em guerra de
libertação nacional.”
“Nem com o reforço dos comunistas Juscelino atraiu
muito mais de um terço dos votos: 36%. Para sua sorte, a regra estabelecia turno
único. JK somou 466.956 eleitores a mais que Juarez Távora, da UDN, com 30%. Como
o pleito não batia chapa contra chapa, era possível escolher para vice um antagonista
do chefe do Executivo. Não foi o que ocorreu em 1955, quando Jango sobrepujou o
udenista Milton Campos por 203.670 votos. As diferenças estreitas animaram nova
ofensiva golpista. Carlos Lacerda já tentara adiar a eleição. O mais anticomunistas
dos ex-comunistas divulgou uma carta de um legislador argentino, Antonio Brandi,
a João Goulart. Entre outros desvarios, prescrevia a formação de brigadas de choque
operárias. A tal Carta Brandi não passava de falsificação, como julgaram os tribunais.
A seguir, os golpistas buscaram impugnar os candidatos. Alegaram que JK e Jango
incorriam em crime por ter ao lado uma agremiação proibida (comunista). A justiça
autorizou as inscrições, porém vetou o Movimento Nacional Popular Trabalhista, a
fachada dos comunistas na campanha. Depois de 3 de outubro, os derrotados voltaram
à carga, sustentando que o PCB determinara o resultado, que por isso seria ilegítimo.
Em 1945, com um colégio eleitoral menor, contaram-se
569 mil cédulas, ou 10% para o partido. É provável que, em 1955, enfraquecido, o
PCB não tenha decidido o embate presidencial, mas tenha sacramentado o triunfo de
Goulart. Como a manobra não prosperou, os udenistas reivindicaram a anulação porque
os vitoriosos não tinham obtido maioria absoluta, desempenho que a lei não requeria.
Com outro insucesso, apelaram ao recurso empregado no Brasil desde a proclamação
da República em 1989, o golpe militar.
No dia 1º de novembro, o coronel Jurandir de Bizarria
Mamede discursou no enterro do general Canrobert Pereira da Costa. Sugeriu cancelar
a posse de JK, marcada para janeiro de 1956. Café Filho sofreu uma crise cardíaca,
e o presidente da Câmara, Carlos Luz, ocupou seu lugar. O ministro da Guerra, Henrique
Teixeira Lott, quis punir Bizarria Mamede por indisciplina, porém, o presidente
em exercício não aceitou. A recusa implicava a queda do general Lott, passo final
para bloquear Juscelino. Em 11 de novembro de 1955, o ministro colocou os blindados
nas ruas do Rio, depôs Carlos Luz, e a Câmara aprovou a entrega provisória do governo
ao vice-presidente do Senado, Nereu Ramos. Marighella se defrontara com o senador
catarinense na Constituinte de 1946, mas em 1955 se aliara pela submissão às urnas.
Lott comandou um golpe sui generis para os padrões
nacionais, com conteúdo de contragolpe legalista para que prevalecesse a vontade
dos eleitores.”
“Khruschóv arrematou:
“Quando falamos em luta armada, falamos de luta
de grandes massas, e não de ações sectárias de alguns comunistas. Porque isto seria
uma aventura. A luta armada só de comunistas é sempre uma aventura. Realizar o trabalho
de massas é a melhor forma de preparar a insurreição. Não se chega à luta armada
sem se passar pelas lutas de massas”.”
“Enquanto o PCB se entretinha com as idas e vindas
do inquilino do Planalto, quem aspirava despejá-lo perseverava. Os militares que
malograram em 1954, 1955 e 1961 ensaiavam novo coup de main. Em março de
1963, o general Olímpio Mourão Filho, arraigado integralista, já traçara no papel
um roteiro de golpe. Em setembro e outubro daquele ano, foram descobertos ao menos
três arsenais de opositores, um deles com dez metralhadoras Thompson, munição para
12 mil tiros e cinquenta granadas. Também se movimentavam conspiradores mais graúdos.
No dia 30 de julho de 1962, dois homens haviam conversado no salão da Casa Branca
sobre o destino no Brasil. O presidente John Kennedy e seu embaixador no Rio de
Janeiro, Lincoln Gordon, trataram do financiamento oculto de 8 milhões de dólares
a candidatos que em outubro enfrentariam nas urnas os correligionários de Jango.
A dinheirama, ao lado da qual o ouro de Moscou configurava ninharia, cooperou para
manter Goulart minoritário – seu PTB saltou de 66 para 104 deputados federais, mas
UDN e PSD amealharam 54% das cadeiras. Philip Agee, agente da CIA, estimou que o
agrado a candidatos pode ter alcançado 20 milhões de dólares – 149 milhões em 2012,
muito mais do que todos os gastos oficiais da campanha vitoriosa à presidência em
2010.”
“O descontrole dos preços vitaminava demonstrações
como a da praça da Sé, mas a popularidade de Jango não era anêmica. Foi o que constatou
pesquisa de opinião em oito capitais, de 9 a 26 de março de 1964. Seis em cada dez
entrevistados pelo Ibope concordaram com a desapropriação de terras às margens de
rodovias, contra a reprovação de 1,9%. Porém, 76% rejeitaram a legalização do PCB
– o anticomunismo não pelejara em vão. À indagação sobre se votariam em Jango se
ele concorresse, a maioria respondeu positivo em Fortaleza, Recife, Salvador, Rio
de Janeiro e Porto Alegre. O sim perdeu, mas oscilou de 39 a 41% em Belho Horizonte
e Curitiba. Contribuíram para o desempenho viçoso novidades como o 13º salário,
instituído em 1962, coroando a campanha na qual o deputado Marighella se batera.
Sem reeleição, entre sete opções, Juscelino Kubitschek venceu em quatro capitais
e nas outras foi segundo. Só no Rio Carlos Lacerda passou dos 20%. O governador
mineiro, Magalhães Pinto, mal beirou os 6% em Belo Horizonte.”
“Consumava-se a humilhação suprema de Prestes
e do PCB. Em 1924, o capitão tinha 26 anos, havia troteado sua coluna e estabelecera
sua legenda; em 1935, aos 37, comandara uma tentativa de revolução; aos 66, em 1964,
implorava para resistirem. No levante comunista, o partido “vanguarda da classe
operária” fora esmagado, mas pelejara – agora, nem isso; em 1961, a crise encontrou-o
perplexo, contudo o desvario janista surpreendera; três anos depois, a gestão do
coup de force saltou à vista, e mesmo assim o PCB se prostrou.”
“Nos estertores da quarta-feira, João Goulart
já se conformara com a queda. Com seu governo desenganado, ele viajou de Brasília
para Porto Alegre, onde o Avro da FAB pousou pelas três e meia da madrugada de 2
de abril. Disposto a reeditar 1961, Brizola reivindicou sua nomeação para o Ministério
da Justiça e a do general Ladário Telles, removido na véspera para o comando do
III Exército, para a pasta da Guerra – em vez de envergar o uniforme de campanha,
o ministro Jair Dantas Ribeiro, internado no Rio, não tirava o pijama de enfermo.
Goulart não atendeu ao cunhado. E foi abordado pelo general Ladário, que um dia
antes se mostrara desesperançoso aos sargentos na Vila Militar carioca. Ajudante-de-ordens
do presidente, o capitão Ernani Corrêa de Azambuja testemunhou o diálogo dramático:
“Se nós iniciarmos a reação, isso se alastra,
e o Rio Grande do Sul se torna uma nova legalidade”, vaticinou Ladário.
Jango se precaveu: “Uma pergunta só: vai correr
sangue?”.
“Ah, vai!”, disse o general com sinceridade.
“Então eu não concordo”, encerrou Goulart.
A Câmara acabara de encenar uma pantomina, declarando
vaga a presidência e empossando no cargo o deputado Ranieri Mazzilli. Eram golpistas
e motivos demais: militares contrariados com a indisciplina nos quartéis; latifundiários
com a reforma agrária; empresários com a contestação dos assalariados e o espectro
de uma “república sindicalista”; o capital estrangeiro com as restrições à remessa
de lucros para o exterior; e os Estados Unidos com a ameaça de uma nova China. O
comunismo configurava uma obsessão, porém, o putsch focou no presidente e seu PTB.
A despeito do ódio de certos oligarcas, Goulart
seria renegado na posteridade também por segmentos da esquerda. Brizola diria que,
em 1964, seu comportamento foi o de quem renunciou. Marighella escreveu: “Estávamos
confiados em que o governo resistiria. Nem ao menos denunciamos insistentemente
o golpe de direita”. Mário Alves comentou: “Como já ocorrera em 1964 e 1961, o setor
nacionalista da burguesia não se dispôs a enfrentar uma eventualidade de uma guerra
civil, temendo que ela se convertesse em uma revolução popular”. A leitura marxista
podia ter fundamento, mas o coração de Jango influiu: ele não admitia irmão sangrando
irmão.”
“A obsessão com o espectro subversivo estimulou
um burocrata de Brasília a interditar o consumo de vodca (o Leste Europeu destilava
as supimpas) e o Dops carioca a interrogar sobre o grego Sófocles, tomando-o como
um dramaturgo vivo, e não falecido quatro séculos antes de Cristo.”
“Para gáudio da Casa Branca, Castelo Branco amenizou
as restrições à remessa de lucros ao exterior e anulou a encampação das refinarias
particulares de petróleo, cancelando medidas de Jango. Com reajustes salariais que
esqueciam a inflação, o governo desenvolveu o que os seus economistas difundiam
como austeridade e a oposição criticava como arrocho. A Voz Operária, órgão
clandestino do PCB calculou: com o salário mínimo de 1964, trabalhavam-se sete horas
para comprar um quilo de manteiga; em setembro de 1965, onze horas. Nem por isso
pululavam greves: com a intervenção oficial em 433 entidades, o movimento sindical
hibernava.”
“Em “Rondó da liberdade”, poema político publicado
em 1966, Marighella conclamou:
É preciso não ter medo
é preciso ter a coragem de dizer.
Há os que têm vocação para escravo,
mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.
Foi o formato em versos para sua prosa inflamável
de Por que resisti à prisão, livro de 1965: “Os brasileiros estão diante de uma
alternativa. Ou resistem à situação criada com o golpe de 1º de abril ou se conformam
com ela. O conformismo é a morte”.”
“Marighella vaticinou: “A ditadura surgiu da violência
empregada pelos golpistas contra a nação, e não pode esperar menos do que a violência
por parte do povo”.”
“O Agrupamento divulgou seus princípios: “São
três: o primeiro é que o dever de todo o revolucionário é fazer a revolução; o segundo
é que não pedimos licença para praticar atos revolucionários; e o terceiro é que
só temos compromisso com a revolução”. Marighella simplificou: “O conceito teórico
pelo qual nos guiamos é o de que a ação faz a vanguarda”. E encerrou a conversa:
“A mesa das discussões hoje em dia já não une os revolucionários. O que une os revolucionários
brasileiros é desencadear a ação, e a ação é a guerrilha”.”
“No opúsculo A crise brasileira, de 1966,
Marighella estimulou “a aliança com os católicos”. Ele acompanhara a pregação do
frei Carlos Josaphat, editor do jornal Brasil Urgente. Em 1963, o dominicano
escrevera no periódico que “a concentração das riquezas [...], lei inexorável do
capitalismo, [...] é abominável e diabólica”. Agora, Marighella aprendia que a encíclica
Populorum progressio, emitida pelo papa Paulo VI em março de 1967, admitia
a “insurreição revolucionária”, “em caso de tirania evidente e prolongada, que ofendesse
gravemente os direitos fundamentais da pessoa”. São Tomás de Aquino, teólogo dominicano
do século XII, legitimara o direito de resistir ao governante injusto. Os sacerdotes
já tinham um mártir: o padre Camilo Torres, que aderiu à guerrilha socialista na
Colômbia em nome do amor ao próximo e morreu combatendo em 1966.
Pouco importava a Marighella que os frades não
referendassem as súmulas do socialismo científico. “Nós levávamos muito mais a sério
Marx que muita gente do Partido Comunista, porque pelo menos nos dávamos ao trabalho
de ler”, cutucou frei Oswaldo. “Descobria-se que não era necessário ser marxista.
Poderia ser um bom católico e estar a favor da revolução social.” Que virada em
relação à Inquisição medieval, encabeçadas por dominicanos, os “cães do Senhor”
em latim, entre os quais o inquisidor-geral, Tomás Torquemada. Marighella pensava
na Igreja contemporânea, não nas fogueiras do passado.”
“Se a proibição imposta pelo governo impediu certos
órgãos jornalísticos de cumprir o dever de informar a ação da ALN contra a vinda
do governador de Nova York, Nelson Rockefeller ao Brasil, muitos veículos nem chiaram,
e outros, mesmo sem o veto, omitiriam o episódio por iniciativa própria, tal seu
fervor bajulatório pela ditadura.”
“Marighella advertiria: “Na luta revolucionária
devemos evitar a distorção dessa finalidade política, impedindo que a guerrilha
urbana ou rural se transforme em instrumento de banditismo e que nos juntemos aos
bandidos ou empreguemos seus métodos. (...) Os atos terroristas revolucionários
e a sabotagem não visam inquietar, amedrontar ou matar o povo. Eles devem ser utilizados
como tática para combater a ditadura. (...) Ao terrorismo que a ditadura emprega
contra o povo nós contrapomos o terrorismo revolucionário”. E prossegue em seu Minimanual
do guerrilheiro urbano: “Quanto ao sistema de transporte e comunicações do inimigo
(...) o único cuidado (ao fulminá-lo) é não causar mortes e danos fatais aos passageiros”.”
“Com o pretexto de debelar a herança inflacionária,
o governo corroera a remuneração pelos trabalhadores. O poder de compra do salário
mínimo despencou 27% de 1964 para 1969. Além de anêmicos pela intervenção oficial,
os sindicatos murcharam em número. Nenhum operário se arriscava a abrir faixa de
protesto, para não ser demitido pelo patrão, processado pelo Estado, surrado pela
polícia e, como aconteceu, torturado e morto. O arrocho tabelava com a pobreza:
a mortalidade infantil estacionou, oscilando de 116 por mil bebês nascidos vivos,
em 1965, para 115 em 1970. Até que a economia entorpecida despertou: de 1969 a 1973,
vitaminou-se ao fabuloso ritmo médio anual de 11,4%. No dito “milagre econômico”,
o bolo cresceria, mas poucos devorariam as fatias maiores. Ainda assim, a ditadura
capitalizou as novas oportunidades de emprego e renda.”
“Em dezembro de 1979, ainda sob as nuvens da ditadura,
os restos mortais de Marighella foram transferidos para Salvador. No cemitério Quinta
dos Lázaros, centenas de velhos companheiros e camaradas se despediram. O arquiteto
Oscar Niemeyer desenhou-o na lápide com um braço erguido, cinco balas no peito e
a inscrição “Não tive tempo para ter medo”. O deputado cassado Fernando Sant’Anna
leu uma mensagem de Jorge Amado:
Atravessaste a interminável noite da mentira e
do medo, da desrazão e da infâmia e desembarcas na aurora da Bahia, trazido em mãos
de amor e de amizade. Aqui estas e todos te reconhecem como foste e serás para sempre:
incorruptível brasileiro, um moço baiano de riso jovial e coração ardente. Aqui
estas entre teus amigos e entre os que são tua carne e teu sangue.
Muitos haviam ficado pelo caminho.”
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