Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-7164-594-3
Tradução: Maria Celia Paoli
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 160
Sinopse: Em
quatro ensaios brilhantes, o historiador inglês Eric J. Hobsbawm enfrenta as
tentativas de revisão historiográfica da Revolução Francesa que tiveram grande
repercussão por ocasião do recente bicentenário da tomada da Bastilha.
Em Ecos da Marselhesa, Hobsbawm se propõe não só
defender como explicar a interpretação de inspiração marxista que hoje é alvo
da crítica revisionista. Para tanto, ele situa a Revolução Francesa na história
dos séculos XIX e XX, examinando o processo de sua recepção nestes duzentos
anos e o significado de sua herança.
As conexões teóricas e políticas da Revolução Francesa
com a Revolução Russa também são exploradas: 1917 aparece como a realização dos
ideais de 1789 e isso tem impacto na historiografia contemporânea. Ecos da
Marselhesa conclui analisando como a crise do socialismo real e do paradigma
comunista no fim do século XX acabou por atingir a tradição marxista de
interpretação da Revolução Francesa.
“A burguesia, uma nova nação, cujas maneiras
e moral são constituídas pela igualdade civil e pelo trabalho independente,
surgiu agora entre nobres e servos e, portanto, destruiu para sempre a
dualidade social original do feudalismo anterior. Seu instinto para a inovação,
sua atividade, o capital que acumulou formam uma força que reage de
mil modos contra o poder daqueles que possuíam a terra.” (Augustin Thierry)
“Qualquer que fosse a natureza da classe
média ou burguesia do século XIX, ela era formada pela combinação de vários
grupos situados entre a nobreza e o campesinato, e que antes não julgavam que
tivessem, necessariamente, muito em comum entre si, como uma classe única,
consciente de si e tratada pelos outros como tal; esse era o caso sobretudo
daqueles cuja posição estava baseada na educação. A história do século XIX é
incompreensível para qualquer um que suponha que apenas empresários eram
realmente burgueses.”
“Em alguns momentos entre o século XV e a
metade do século XX, as histórias de quase todos os Estados “desenvolvidos” –
com algumas raras exceções, como a Suécia – e de todos os grandes poderes do
mundo moderno registraram uma ou mais descontinuidades repentinas, cataclismas
ou rupturas históricas, classificadas como revolução ou moldadas na revolução.
É um abuso atribuir tal fato, simplesmente, a uma combinação de coincidências,
embora seja um tanto quanto ilegítimo e evidentemente errado inferir, do
registro histórico, que é inevitável que a mudança venha por rupturas
descontínuas em todos os casos.”
“As “classes disponíveis” do Terceiro Estado,
que assim se tomaram naturalmente modeladores da nova França, estavam no meio
em outro sentido. Elas se encontravam política e socialmente opostas tanto à
aristocracia acima quanto ao povo abaixo. O drama da Revolução Francesa para
aqueles que podemos chamar, em retrospecto, de liberais moderados – a palavra
em si mesma, como sua análise da Revolução, somente apareceu na França depois
da queda de Napoleão – foi que o apoio do povo era essencial contra a
aristocracia, o antigo regime e a contrarrevolução, enquanto esse povo e os
estratos médios tinham interesses seriamente conflitantes. Tal como foi posto,
um século depois, por A. V. Dicey, ele próprio o menos radical dos liberais: “A
confiança no apoio da multidão parisiense significava conivência com o ultraje
e com crimes que tornavam impossível estabelecer instituições livres na França.
A repressão à multidão parisiense significava reação e, muito provavelmente, a
restauração do despotismo”. Em outras palavras, sem a multidão não haveria a
nova ordem; com ela, viria o risco da revolução social, o que pareceu tornar-se
realidade por um breve período em 1793-1794. Os construtores do novo regime
precisavam de proteção contra os velhos e os novos perigos. Não surpreende que
aprendessem a se reconhecer, no curso dos acontecimentos e também
retrospectivamente, como uma classe média, e a reconhecer a Revolução como uma
luta de classes tanto contra a aristocracia quanto contra os pobres.”
“O medo de revolução é mais comum do que as
perspectivas reais dela.”
“A burguesia havia ganhado uma liberdade
genuína através da revolução, mas a liberdade do povo era apenas nominal.
Portanto, o povo precisava fazer sua revolução francesa. Observadores mais
lúcidos e radicais iam adiante e viam uma luta de classes entre a classe
dominante dos novos burgueses e o proletariado que ela explorava como o
principal conteúdo da história capitalista – assim como aquela da burguesia
contra o feudalismo nos tempos antigos.”
“Uma vez mais, lembremo-nos do protótipo
histórico derivado da Revolução Francesa. Ele consistia de seis fases: o
rebentar da Revolução, ou seja, a perda de controle pela monarquia, do curso
dos acontecimentos na primavera e no verão de 1789; o período da Assembleia
Constituinte, que terminou com a Constituição Liberal de 1791; a quebra da nova
fórmula em 1791-1792, devida a tensões internas e externas, que levaram à
segunda revolução em 10 de agosto de 1792 e à instituição da República em
1792-1793, quando a direita e a esquerda revolucionárias – a Gironda e a Montanha
– lutavam por ela na nova Convenção Nacional, e o regime lutava contra a
revolta interna e a intervenção estrangeira. Isso culminou no golpe que
conferiu poder à esquerda, em junho de 1793, o qual introduziu a nova fase: a
República Jacobina, a fase mais radical da Revolução Francesa, aliás, associada
ao terror (como o indica seu nome popular), uma sucessão de expurgos internos e
uma extraordinariamente bem-sucedida mobilização para a guerra total da
população. Quando isso salvou a França, o regime radical terminou no Nove
Termidor. Para nossos objetivos, o período que vai de julho de 1794 até o
golpe de Napoleão pode ser visto como uma fase única, a quinta, que tentou
retroceder para um regime mais viável e moderado. Essa tentativa malogrou, e no
Dezoito Brumário de 1799 o regime autoritário e armado de Bonaparte assumiu o
poder.”
“Além do Termidor e de
Bonaparte, dos jacobinos e do Terror, a Revolução Francesa sugeria mais
comparações com a Revolução Russa. Uma das primeiras coisas observadas sobre
ela foi que parecia não tanto um conjunto de decisões planejadas e ações
controladas por seres humanos, mas um fenômeno natural que não se submetia ao
controle humano, escapando de seu âmbito. Em nosso século, acostumamo-nos a
outros fenômenos que têm essa característica: as duas guerras mundiais, por
exemplo. O que realmente acontece em tais casos, como eles se desenvolvem, qual
é seu resultado, tudo isso não tem, praticamente, nada que ver com as intenções
daqueles que tomaram as decisões iniciais. Esses acontecimentos têm sua própria
dinâmica, sua própria lógica imprevisível. Na década de 1790, os
contrarrevolucionários foram provavelmente os primeiros a chamar a atenção para
essa incontrolabilidade do processo revolucionário, uma vez que isto lhes fornecia
os argumentos contra aqueles que apoiavam a Revolução. No entanto, os próprios
revolucionários também fizeram a mesma observação, comparando a Revolução a um
cataclisma natural. “A lava da revolução corre majestaticamente, nada
poupando”, escreveu o jacobino alemão Georg Forster em Paris, em outubro de
1793. A revolução, dizia, “quebrou todos os diques, venceu as barreiras
erigidas por muitos dos melhores intelectuais, aqui e em outros lugares [...]
cujos sistemas prescreviam seus limites”. A revolução era simplesmente “a
Revolução, um fenômeno natural raro demais para conhecermos suas leis
peculiares”. É claro que a metáfora de um fenômeno natural percorria ambos os
caminhos. Se sugeria uma catástrofe aos conservadores, era uma catástrofe
inevitável e que não se podia deter. Conforme os conservadores inteligentes
logo entenderam, era algo que não podia ser simplesmente suprimido, mas sim
canalizado e domesticado.”
“A Revolução Francesa deu aos povos a noção
de que a história pode ser mudada por sua ação. Deu-lhes também, a propósito, o
que até hoje permanece como a mais poderosa divisa jamais formulada para a
política da democracia e das pessoas comuns que ela inaugurou: “Liberdade,
Igualdade, Fraternidade”. (...) A Revolução francesa demonstrou o poder das
pessoas comuns de uma maneira que nenhum dos governos subsequentes jamais se
permitiu esquecer – quando menos, na forma de exércitos destreinados,
improvisados, recrutados, derrotando a coalizão das melhores e mais
experimentadas tropas dos antigos regimes.
De fato, o paradoxo do revisionismo é que
procura diminuir a significação histórica e a capacidade de transformação de
uma revolução cujo impacto extraordinário e duradouro é absolutamente óbvio, a
tal ponto que só pode ser negligenciado por uma combinação de provincianismo
intelectual e visão estreita; ou então pela miopia monográfica que é a doença
ocupacional dos pesquisadores especializados nos arquivos históricos.
O poder do povo, que não é a mesma coisa que
a versão domesticada que se expressa em eleições periódicas pelo sufrágio
universal, é visto raramente e mais raramente ainda exercido. Contudo, quando é
visto, como em muitos continentes e ocasiões no próprio ano do bicentenário da
Revolução francesa – quando transformou os países da Europa oriental –, é um
espetáculo irresistível e impressionante. Nenhuma revolução anterior a 1789 foi
tão decisiva, evidente e imediatamente eficaz. Foi o que transformou a
Revolução francesa em uma revolução.
(...) Foi isso que fez com que homens e
mulheres pensassem na Revolução francesa como “a mais terrível e crucial
sucessão de acontecimentos em toda a história”. Foi isso que fez Thomas Carlyle
escrever: “A mim parece-me que, se houvesse a História correta
(essa coisa impossível que chamo de História) da Revolução francesa, ela seria
o grande poema de nosso tempo, como se os homens que pudessem escrever
a sua verdade valessem tanto quanto todos os outros escritores
e poetas”. E é isso que faz com que seja sem sentido para o historiador pinçar
e escolher as partes desse grande levante que merecem louvor e as que devem ser
rejeitadas. A revolução que se tornou “o verdadeiro ponto de partida da
história do século XIX” não é este ou aquele episódio ocorrido entre 1789 e
1815, mas o seu todo.
Felizmente, a Revolução Francesa ainda está
viva. Pois Liberdade, Igualdade e Fraternidade e os valores da razão e do
Iluminismo – os valores que construíram a civilização moderna desde os tempos
da Revolução Americana – são mais necessários do que nunca, na medida em que o
irracionalismo, a religião fundamentalista, o obscurantismo e a barbárie estão,
mais uma vez, avançando sobre nós. É, portanto, uma boa coisa que, no ano de
seu bicentenário, tenhamos a ocasião de pensar novamente sobre os
acontecimentos históricos extraordinários que há dois séculos transformaram o
mundo. Para melhor.”
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