segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Em busca do tempo perdido: A Fugitiva, de Marcel Proust

Editora: Ediouro

ISBN: 978-85-0002-555-6

Tradução: Fernando Py

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 214

Sinopse: Ver primeiro livro



“Mas, se, no baralho ou na guerra, onde só é importante vencer, pode-se resistir ao blefe, as condições já não são as mesmas quando se trata do amor e do ciúme, sem falar no sofrimento.”

 

 

“É espantoso como o ciúme, que passa o tempo inteiro a fazer pequeninas soluções sobre o falso, tem tão pouca imaginação quando se trata de descobrir a verdade.”

 

 

“Quanto mais se aumenta o desejo, mais se afasta a posse verdadeira.”

 

 

“E, sem dúvida, erramos ao pensarmos que a satisfação do nosso desejo tenha pouca importância, pois, desde que supomos que ele não pode se realizar, novamente nos aferramos a ele; e só admitimos que não valia a pena persegui-lo quando estamos seguros de alcançá-lo.”

 

 

“Sabia que iria esquecer Albertine mais cedo ou mais tarde, pois esquecera Gilberte e a Sra. de Guermantes, esquecera de todo a minha (falecida) avó. E o nosso mais justo e mais cruel castigo, diante do esquecimento completo, pacífico igual ao dos cemitérios, pelo qual somos desligados daqueles que não mais amamos, é que vislumbramos esse mesmo esquecimento como inevitável em relação àqueles a quem amamos ainda.”

 

 

“Uma mulher é de maior utilidade em nossa vida se constitui, em vez de um elemento de felicidade, um elemento de desgosto, e não existe uma só cuja posse mostre-se tão preciosa como a das verdades que ela nos faz descobrir ao nos fazer sofrer.”

 

 

“Ora, a partir de certa idade, os nossos amores e as nossas amantes são filhos da nossa angústia; nosso passado e as lesões físicas em que ele está inscrito determinam o nosso futuro.”

 

 

“Pois muitas vezes, para descobrir que estamos apaixonados, talvez mesmo para que o fiquemos, é preciso que chegue o dia da separação.”

 

 

“O amor, mesmo em seus mais humildes começos, é um exemplo impressionante do pouco valor que atribuímos à realidade.”

 

 

“É a mesma coisa que a eterna ameaça "você vai ver quando eu deixar de amá-lo", tão verdadeira e tão absurda, pois de fato conseguiríamos muito se já não amássemos, porém, não nos preocuparíamos em consegui-lo. É exatamente a mesma coisa. Pois, se a mulher a quem revemos quando já deixamos de a amar, nos diz tudo, é que de fato já não é mais ela, ou nós não somos nós: a criatura que amava não existe mais. Por aí também passou a morte, tornando tudo fácil e inútil. (...) pois a realidade das criaturas sobrevive para nós apenas por breve tempo após a sua morte, e depois de alguns anos são como esses deuses das religiões abolidas que a gente ofende sem medo porque deixa de crer em sua existência.”

 

 

“A mentira é essencial à humanidade. Ela desempenha entre os homens um papel tão grande talvez como a busca do prazer e, além do mais, é comandada por essa busca. As pessoas mentem para proteger seu prazer, ou sua honra, se a divulgação desse prazer é contrária à honra. Mentimos a vida inteira, e até, principalmente, e talvez apenas, às pessoas que nos amam. De fato, só estas nos fazem recear pelo nosso prazer e desejar a sua estima.”

 

 

“Em meio à mais completa cegueira, subsiste a perspicácia mesmo sob a forma da predileção e da ternura, de modo que é um erro falar em má escolha do amor, pois, desde que houve uma escolha, só pode ser má.”

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Em busca do tempo perdido: A Prisioneira, de Marcel Proust

Editora: Ediouro

ISBN: 978-85-0002-555-6

Tradução: Fernando Py

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 312

Sinopse: Ver primeiro livro




“A realidade, mesmo se necessária, não é inteiramente previsível. Aqueles que chegam a conhecer algum pormenor exato sobre a vida de outra pessoa, logo tiram dali consequências que o não são, vendo no fato recém-descoberto, a explicação de coisas que precisamente não têm nenhuma relação com ele.”

 

 

“As coisas brilhantes em geral só são feitas de modo imprevisto. Mas as vidas insensatas, em que o próprio maníaco se priva de todos os prazeres e se inflige os maiores males, estas vidas são as que menos mudam. A cada dez anos, caso tivéssemos curiosidade para tanto, voltaríamos a encontrar o desgraçado dormindo às horas em que poderia viver, saindo às horas em que não há quase outra coisa a fazer senão deixar-se assassinar nas ruas, bebendo gelados quando está com calor, sempre se curando de uma gripe. Bastaria um pequeno movimento de energia, um único dia, para mudar isto de uma vez por todas. Porém justamente essas vidas são de hábito o apanágio de seres incapazes de energia. Os vícios são um outro aspecto dessas existências monótonas, que a força de vontade bastaria para tornar menos atrozes.”

 

 

“Uma objeção mais grave, se tivesse fundamento, seria dizer que tudo isso nos é estranho e que é preciso extrair poesia da verdade bem próxima. A arte extraída do real mais familiar existe de fato e seu domínio é talvez o maior. Mas não é menos verdade que um grande interesse, por vezes a beleza, pode nascer de ações decorrentes de uma forma de espírito de tal modo distanciada de tudo o que sentimos, de tudo em que acreditamos, que nem sequer podemos chegar a compreendê-las, e elas se apresentam diante de nós como um espetáculo sem motivo. Que existe de mais poético do que Xerxes, filho de Dário, mandando açoitar as águas que haviam engolido seus barcos?”

 

 

“Lembrava-me, havia conhecido uma primeira Albertine; depois, bruscamente, ela se mudara numa outra, a atual. E pela mudança não podia eu responsabilizar a ninguém, só a mim mesmo. Tudo o que ela teria logo me confessado facilmente, de bom grado, quando éramos bons camaradas, deixara de expandir-se desde que julgara que eu a amava, ou talvez sem pronunciar o nome do Amor, adivinhara um sentimento inquisitorial que pretende saber, entretanto sofre ao saber, e procura saber ainda mais. Desde aquele dia ela me ocultara tudo.”

 

 

“(...) enfim, dias aos quais se podem comparar aqueles em que ocorre, na nossa vida, uma crise excepcional e da qual o que nunca fez nada pensa que vai extrair, se tudo termina bem, hábitos de trabalho: por exemplo, a manhã em que ele sai para um duelo que vai se dar em condições especialmente perigosas; então lhe aparece, de súbito, no momento em que talvez lhe vá ser tirada, o preço de uma existência de que poderia ter aproveitado para iniciar uma obra ou simplesmente desfrutar prazeres, e da qual não soube gozar nada. “Se pudesse escapar com vida” pensa ele, “como começaria logo a trabalhar e também como haveria de me divertir!”. De fato, a vida assumiu de repente, a seus olhos, um valor bem maior, pois ele põe nela tudo o que lhe parece que ela pode lhe oferecer, e não o pouco que ele lhe faz dar habitualmente. Vê-a segundo o seu desejo, não como sua experiência lhe ensinou que ele sabia torná-la, isto é, tão medíocre. Num instante, sua vida se encheu de labores, de viagens, de excursões a montanhas, de todas as belas coisas que ele imagina poderão ficar impossíveis com o desfecho funesto desse duelo, sem pensar que já o eram antes que se tratasse do duelo, devido aos maus hábitos que, mesmo sem duelo, teriam permanecido. Ele volta para casa sem sequer ter sofrido um ferimento. Mas encontra os mesmos obstáculos aos prazeres, às excursões, às viagens, a tudo de que há pouco receara por um momento ficar despojado para sempre pela morte; basta para isso a vida. Quanto ao trabalho – tendo as circunstâncias excepcionais por efeito exaltar o que de antemão existia no homem, no trabalhador o trabalho e no preguiçoso a preguiça –, resolve tirar férias.”

 

 

“E no mesmo instante, lembrei-me que Albertine recusara-me, de manhã, um prazer que de fato poderia tê-la cansado. Seria então para reservá-lo para outrem, talvez naquela tarde? A quem? Assim é que é interminável o ciúme, pois mesmo que o ser amado, por exemplo estando morto, não pode mais provocá-lo com seus atos, ocorre que as lembranças, posteriormente a todo acontecimento, comportam-se de repente em nossa memória como outros tantos acontecimentos, lembranças que não tínhamos esclarecido até então, que nos tinham parecido insignificantes, e às quais basta a nossa própria reflexão sobre elas, sem nenhum fato exterior, para conferir um sentido novo e terrível. Não precisamos ser dois, basta estarmos sozinhos no quarto, pensando, para que se produzam novas traições de nossa amante, mesmo que esteja morta. Assim, não se deve temer no amor, como na vida comum, apenas o futuro, mas também o passado, que muitas vezes só se realiza para nós depois do futuro; e não falamos somente do passado de que ficamos sabendo muito tarde, mas daquele que conservamos desde longo tempo em nós e que de súbito aprendemos a decifrar.”

 

 

“Na maioria das vezes, o amor não tem por objeto um corpo, a não ser quando nele se fundem uma emoção, o medo de perdê-lo, a incerteza de reencontrá-lo. Ora, esse tipo de ansiedade tem muita afinidade pelos corpos. Ela acrescenta-lhes uma qualidade que ultrapassa a própria beleza, o que é um dos motivos por que vemos homens, indiferentes às mulheres mais belas, amarem apaixonadamente algumas que nos parecem feias. A essas criaturas, a essas criaturas de fuga, sua natureza e a nossa inquietação emprestam asas. E até junto a nós o seu olhar parece dizer que vão alçar vôo. A prova dessa beleza, que excede a beleza acrescentada pelas asas, é que, muitas vezes, para nós, uma mesma criatura é sucessivamente alada e sem asas. Basta recearmos perdê-la para esquecermos todas as outras. Certos de conservá-la, comparamo-la a essas outras, que logo preferimos a ela. E, como essas emoções e certezas podem alternar-se de uma semana para outra, uma criatura pode, numa semana, ver sacrificarem-lhe tudo o que lhe agradava, na semana seguinte ser sacrificada, e assim por diante durante muito tempo. O que seria incompreensível, se não soubéssemos pela experiência que todo homem tem de ter em sua vida, ao menos uma vez, deixado de amar, esquecido uma mulher, o pouco em si mesma que é uma criatura quando já não o é mais, ou não é ainda permeável às nossas emoções.”

 

 

“O amor, tanto na ansiedade dolorosa como no desejo feliz, é a exigência de um todo. Ele só nasce, só subsiste se resta uma parte a conquistar. Só se ama aquilo que não se possui completamente.”

 

 

“Se as próprias meretrizes (desde que as saibamos meretrizes) nos atraem tão pouco, não é que sejam menos bonitas que as outras, é que elas estão inteiramente a nosso dispor; é que o que se busca exatamente atingir elas já no-lo ofertam; é que não são conquistas. O afastamento aí é mínimo. Uma prostituta já nos sorri na rua como o fará junto a nós. Somos escultores. Queremos obter de uma mulher uma estátua inteiramente diversa da que ela nos apresentou. Vimos uma jovem indiferente, mal-educada, à beira-mar; vimos uma caixeira ativa e séria, no seu balcão, que nos responderá com secura, ainda que seja apenas para não se tornar objeto das zombarias das companheiras, uma vendedora de frutas que mal nos responde. Pois bem, não sossegamos enquanto não pudermos experimentar se a jovem altiva de beira-mar, se a caixeira que pouco se importa com o que dizem dela, se a distraída vendedora de frutas não são suscetíveis, depois de manobras sagazes de nossa parte, de concordarem dobrar sua atitude retilínea, de rodear-nos o pescoço com esses braços que trazem frutas, de inclinar sobre nossa boca, num sorriso que consente, os olhos até então glaciais ou distraídos – ó beleza dos olhos severos nas horas de trabalho, em que a operária receava tanto a maledicência das companheiras, olhos que se furtavam aos nossos olhares obsessivos e que agora, que estamos a sós, baixam as pupilas ao peso ensolarado do riso quando falamos de fazer amor! (...) Assim, passamos toda a nossa vida em inquietas manobras, incessantemente renovadas, junto às jovens sérias e cujo mister parece afastá-las de nós. Uma vez em nossos braços, elas já não são o que eram, está suprimida a distância que sonhávamos franquear. Porém recomeçamos com outras mulheres, com tais empreendimentos gastamos todo o tempo de que dispomos, todo o dinheiro, todas as forças, explodimos de raiva contra o cocheiro demasiado lento que talvez nos faça perder o primeiro encontro, temos febre. Esse primeiro encontro, sabemos todavia que acarretará o desvanecimento de uma ilusão. Não importa; enquanto durar a ilusão, queremos ver se podemos mudá-la em realidade, e então pensamos na lavadeira em cuja frieza reparamos. A curiosidade amorosa (...) sempre decepcionada, renasce e permanece sempre insaciável.”

 

 

“O ciúme, que traz uma venda nos olhos, não é só impotente para descobrir alguma coisa nas trevas que o cercam; é também um dos suplícios em que a tarefa é recomeçar sem descanso, como a das Danaides, como a de Íxion.”

 

 

“Infelizmente, com os começos de uma mentira de nossa amante ocorre o mesmo que com os começos do nosso próprio amor, ou com os começos de uma vocação. Eles se formam, conglomeram-se e passam despercebidos de nossa própria atenção. Quando queremos nos lembrar de que modo começamos a amar uma mulher, já estamos amando; dos devaneios de antes, não dizíamos: é o prelúdio de um amor, estejamos atentos; e eles avançavam de surpresa, mal notados por nós.”

 

 

“Poderia a vida consolar-me da arte, haveria na arte uma realidade mais profunda em que nossa personalidade verdadeira encontrasse uma expressão que não lhe conferem as ações da vida? Todo grande artista parece de fato de tal modo diverso dos outros, e tanto nos dá aquela sensação de individualidade que em vão buscamos na existência cotidiana!”

 

 

“A gente acha inocente desejar outras pessoas, mas atroz que nossa parceira o faça”.

 

 

“O fato de ter proclamado (como chefe de um partido político, como qualquer coisa) ser atroz mentir, obriga na maioria das vezes a mentir mais que os outros, sem por isso abandonar a máscara solene, nem depor a tiara augusta da sinceridade.”

 

 

“Toda criatura amada, e até, em certa medida, qualquer criatura, é para nós como o deus Jano, apresentando-nos a fronte que nos agrada, se essa criatura nos abandona; e a fronte sombria se a temos à nossa disposição permanente.”

 

 

“E que desgraça para um amante apaixonado não perceber que, ao passo que vê um belo rosto à sua frente, sua amante está vendo o dele, que, ao contrário, não fica mais belo quando se deforma pelo prazer que nele faz surgir a vista da beldade.”

 

 

“O amor, melhor dizendo, o prazer tanto entranhado na carne, auxilia no trabalho das letras porque anula outros prazeres, por exemplo, os prazeres da sociedade, que são os mesmos para todo mundo. E, mesmo se esse amor traz desilusões, ao menos agita desse modo também a superfície da alma, que sem isso se arriscaria a ficar estagnada. Assim, o desejo não é inútil para o escritor, pois primeiro o afasta dos outros homens e o conforma a eles; e em seguida restitui algum movimento a uma máquina espiritual que depois de certa idade, tende a se imobilizar. Não se chega a ser feliz, mas assinalam-se as razões que impedem de sê-lo e que nos ficariam invisíveis sem essas fendas bruscamente abertas pela decepção. E os sonhos, é claro, não são realizáveis, bem sabemos; não os conceberíamos talvez sem o desejo, e é útil concebê-los para os ver fracassarem e para que seu fracasso nos sirva de lição.”

 

 

“São tantas as mortes quantas as pessoas.”

 

 

“A mentira é o pasto de todas as conversas.”

 

 

“‘Um cortesão devoto sob um príncipe devoto teria sido ateu sob um príncipe ateu’, disse La Bruyere”.

 

 

“O leão deixa os tigres sossegados”

 

 

“Se possuíssemos apenas membros, como as pernas e os braços, a vida seria suportável. Infelizmente trazemos em nós esse pequeno órgão a que chamamos coração, o qual está sujeito a certas enfermidades em cujo decorrer ele se torna infinitamente impressionável a tudo que se refere à vida de uma certa pessoa, e assim uma mentira – essa coisa tão inofensiva e no meio da qual vivemos tão alegremente, quer seja dita por nós ou pelos outros – vinda dessa pessoa, dá a esse coraçãozinho, que deveria poder ser extraído cirurgicamente, crises intoleráveis. Nem falemos do cérebro, pois nosso pensamento, por mais que raciocinemos sem parar no decurso dessas crises, não as modifica em nada, assim como a nossa atenção não alivia uma dor de dentes. É certo que tal pessoa é culpada de nos haver mentido, pois tinha jurado dizer-nos sempre a verdade. Mas sabemos por nós próprios, pelos outros, o que valem tais juramentos. E desejáramos crer neles quando provinham dela, que tinha justamente todo o interesse em nos mentir, e, por outro lado, não fora por nós escolhida por suas virtudes. É verdade que posteriormente ela quase já não teria necessidade de nos mentir justamente quando o coração se tornasse indiferente à mentira porque não nos interessaremos mais pela sua vida. Sabemos disto e contudo sacrificamos de bom grado a nossa, ou porque nos matamos por essa pessoa, ou porque nos fazemos condenar à morte ao assassiná-la, ou simplesmente porque gastamos em poucos anos toda a nossa fortuna com ela, o que em seguida nos obriga ao suicídio, pois não temos mais nada. Aliás, por mais tranquilos que nos julguemos ao amar, sempre trazemos o amor no coração em estado de equilíbrio instável. Uma coisinha de nada basta para colocá-lo em posição de felicidade, ficamos radiantes, cobrimos de carinho não aquela a quem amamos, mas todos aqueles que nos fizeram valer a seus olhos, que a resguardaram contra qualquer tentação moral; julgamo-nos tranquilos e basta uma frase (desfavorável) para que se aniquile toda a felicidade preparada a que nos lançávamos, para que o sol se esconda, para que gire a rosa-dos-ventos e se desencadeie a tempestade interior a que um dia já não seremos capazes de resistir.”

 

 

“Mas nós afiguramos o futuro como um reflexo do presente projetado no espaço vazio, ao passo que ele é com frequência o resultado bem próximo de causas que na maioria nos escapam.”

 

 

“E, no amor, é mais fácil renunciar a um sentimento do que perder um hábito.”

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Lobão: 50 anos a mil, de Lobão & Cláudio Tognolli

Editora: Nova Fronteira

ISBN: 978-85-209-2446-4

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 596

Sinopse: Polêmico, zangado, romântico, revolucionário. 50 anos a mil é a autobiografia de Lobão, que conta, em um volume fartamente ilustrado, a história do menino que queria ser jogador de futebol e acabou se transformando num dos grandes nomes do Rock brasileiro. As músicas, os amigos, as confusões com a polícia - o grande lobo não poupa nada nem ninguém.

 


“O espiritismo tomava conta de nossos corações e mentes. Enquanto eu devorava meus livros de Alan Kardec, Ramatis, André Luiz e companhia, mamãe e tia Janine iniciavam uma exploração mais ampla pelos centros da cidade, até que se deparam com um terreiro de umbanda. Após um breve período de adaptação, minha mãe se viu livre dos conceitos “errôneos” que fazia dessa formosa religião e passou a ser uma ardorosa frequentadora e médium, pois mamãe recebia um sem-número de entidades.

O único problema é que a nossa vida girava em torno do mundo espiritual: sempre ocorria o desagradável evento do encosto.

Vivia cheia de intervenções do além, tanto para o bem como para o mal…Vira e mexe, estávamos conversando inocentemente e, de repente, uhuuhu, misifio!, minha mãe recebia aquele influxo ectoplasmático, provocando sacudidelas, espasmos, catrancos, quando não, a própria incorporação da entidade aflita.

E pra botar fogo nessa fogueira, descobrimos que a mulher do Raul era uma médium profissa. Fazia altas jiras, desfazia altos ebós, e era cavalo de Pombajira.

No afã de se descobrir um bom galpão para a oficina, no afã de desvendar os desígnios dos acontecimentos futuros, iniciou-se uma jira particular, todas as sextas-feiras, no terraço lá de casa.

A mulher do Raul (não me lembro o nome dela), a grande estrela da parada, era especialista em receber a Maria Padilha…

Me lembro perfeitamente da primeira vez que encontrei com a Maria Padilha… Estávamos nós no terraço, pra lá da meia-noite, quando desce uma entidade nunca dantes recebida. A médium se esgarçava toda e com as mãos na cintura, um estalar de língua característico das Pombajiras, gargalhava exigindo um marafo e umas baforadas, exigência esta cumprida imediatamente por seu cambono (o Raul era cambono da própria esposa), entregando-lhe uma garrafa de cachaça e um charuto, consumido vorazmente pela entidade.

Rapaz… a pomba bebia que nem maluca! Eu ficava observando pra ver se ela cuspia aquela quantidade astronômica de cachaça, mas não! Ia tudo gogó abaixo! E logo quando acabava, vinha ela: “Marafu, Maria Padilha qué marafu!! Maria Padilha qué fudê!!!”

Pensem bem… a tendência da plateia era inquiri-la sobre os desígnios da nova sociedade, se o galpão recém-descoberto ia ficar bacana, se o locador não ia pentelhar muito durante a vigência do contrato etc., mas, para meu espanto, a coisa se desenvolveu de outra forma, o assunto descambou para outras praias… Num dado momento lá, a Maria Padilha me dá uma encarada e dispara: “Ô!! guri, tá na hora de trepá, num tá sabeno?… tu tá precisano dá uma ‘tepada’, muleque… tem uma namoradinha pra cumê? Tô veno aqui que tem, hein? E é fromosa… lorinha... que tá fim de te dá, muleque, abre os ôio! Tu fica brincando suzinho no banheiro, a lorinha acaba dano pra outro… se apruma, muleque!” Fiquei perplexo com aquele monte de meias verdades...

E continuou olhando para um tio meu: “Esse aí nem cum barbante levanta esse troço!! He-he-he-he-he-he… tá fudido esse aí…” Inconveniente, a pomba...

Enquanto a Maria metia o pé na jaca e detonava todo mundo na sala, eu meditava profundamente… É claro que eu estava me desmilinguindo de tanto tocar punheta, mas… quem seria a tal loirinha a fim de me dar?...

 

A despeito de toda a minha aflição e constrangimento em virtude daquela exibição pública sem precedentes da minha sexualidade, pesou mais o mistério de quem poderia ser…

Só sei que essas jiras começaram a mexer com os meus sentidos e acabei me apaixonando… pela Pombajira.

Passava noites e noites sozinho no terraço me concentrando e abstraindo pra ver se a Maria Padilha dava um help e aparecia, e me desse umas dicas, tipo, se eu ia continuar traumatizado com o ato da penetração, até que uma noite, em estado de conexão cósmica, por mais de meia hora, sempre pensando num rosto que elegi pra ser o dela, materializando os trejeitos que deveria fazer para me seduzir, imaginando quais seriam as feições verdadeiras daquela entidade puramente feminina…, que me deixou apaixonado, quando, de repente, ouço atrás do meu cangote um sibilo… algo do tipo: psssssiu! Me deu um arrepio na nuca e, todo encagaçado, despistei o medo com um assobio sórdido e saí correndo para baixo chamando as pessoas… “Mãe, já começou a novela? Tô indo, aê!”… “Cecília, meu macacão tá lavado pra amanhã?”…”.

 

 

“A noite é a única coisa entre todas que continuará existindo, mesmo depois da morte de todas as estrelas, mesmo com a morte de todos os universos, mesmo sem tempo nem espaço, restará, incólume, a noite… a noite nunca vai mudar...”

 

 

“– Em 4 de maio de 1986, texto de Maria Esther Martinho publicado no Jornal da Tarde diz que, em fevereiro, Lobão encontrou a polícia em sua casa, quando voltava de uma festa portando heroína, e será julgado por tráfico de entorpecentes. Apesar de nunca ter negado ser usuário de drogas, o músico disse que o papelote era presente de “um grande amigo”: o autor da denúncia.

“Vou para lá sem culpa no cartório. E vou dizer ao juiz que não sou traficante nem dependente, apenas faço experiências com a felicidade química”, afirmou Lobão à repórter.”

 

 

“A certeza da certeza faz o louco pensar que é um gênio.”

 

 

“Lobão sumiu depois do lançamento do disco O inferno é fogo. De acordo com a Bizz, ele “tomou porrada da crítica, levou lata no Rock in Rio, sofreu um grave acidente de moto e resolveu tirar o time. Cortou os cabelos, foi estudar violão clássico, descobriu a MPB e se meteu a fazer um show acústico com banquinho e violão. Resultado: ficou parecendo um professor de geografia. Se deu mal. ‘Eu fiz shows pelo Brasil todo e foi um fracasso retumbante. A média de público era de 15 pessoas. Tinha vezes que eu parava o show e convidava a plateia pra jantar”.

Além disso, houve um boato de que o músico estaria se tornando evangélico. “Logo eu? Sequer sou ateu. Se eu existo, logo Deus deve existir também. É uma gentileza que faço com um desconhecido.”

Lobão ainda declarou que adora “ficar puto. É um esporte pra mim”, e que “a cocaína virou droga de chato”, por isso abandonou a droga. “É deprimente cheirar e saber que na Bolsa de Valores todo mundo está nessa também. Não tem a menor poesia. E tem mais: cansei da paranoia do PP. Você conhece o papo de papelote? É aquela conversa em que o sujeito fica todo suado, com um odor desagradável, te cutuca o tempo todo e confessa as maiores babaquices. Quando paguei meu décimo mico, decidi que não cheirava mais.”

– Em 7 de novembro de 1995, Lobão comentou o nome do novo disco, Nostalgia da modernidade, à Folha: “Eu me irrito com a concepção de modernidade do brasileiro, que transmite uma ansiedade e uma sensação de obsolescência. Você compra um computador e acha que vai estar velho na semana que vem. Todo mundo se acha ultrapassado. Os flashbacks hoje em dia são de três meses atrás. A modernidade produz sofisticação tecnológica e simplificação do comportamento.”

 

 

“Nós vivemos num país que não suporta opinião, e qualquer coisa mais contundente que se fale é levada a ferro e fogo para o terreno pessoal; logo, um alvo susceptível a retaliações das mais rancorosas.

Sou muito duro comigo mesmo e gosto disso... Dependo disso para continuar crescendo... Portanto, não tenho muitos pruridos em ser duro com os outros ao meu redor. Pois isso é amor. Porque amor é um sentimento dinâmico; se a gente se acomoda e se sacia, ele evapora e vai embora. Amor tem muito a ver com insatisfação... É uma espécie de desequilíbrio que, só assim, nos leva à plenitude. E a felicidade não está em lugar nenhum a não ser no processo, na alma de quem consegue desfrutar dela. É a única maneira de ser feliz...”

terça-feira, 17 de julho de 2012

Tocaia Grande: A face obscura – Jorge Amado

Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1184-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 472
Sinopse: Publicado em 1984, Tocaia Grande descreve o processo de formação de uma cidade nordestina, nascida sob o signo da violência e da disputa de terras, em inícios do século XX.
Depois de liderar uma tocaia contra o oponente de seu patrão, o jagunço Natário da Fonseca recebe alguns alqueires próximos ao palco da matança, onde passa a cultivar cacau. A chegada de comerciantes, prostitutas, tropeiros e ex-escravos ao local dá vida e contornos ao arraial.
Personagens fortes, independentes e solitários – como a cafetina Jacinta Coroca; o negro Castor Abduim, conhecido como Tição Aceso, e o comerciante libanês Fadul Abdala –, encontram em Tocaia Grande um refúgio e o conforto da amizade.
Com a prosa leve e bem-humorada de sempre, Jorge Amado relata a união profunda e os laços de afeto que se desenvolvem entre os habitantes de Tocaia Grande, e que serão responsáveis pelo crescimento do povoado e por sua resistência à pressão da Igreja e do poder político-econômico para se enquadrar no sistema coronelista.



“Digo não quando dizem sim em coro uníssono. Quero descobrir e revelar a face obscura, aquela que foi varrida dos compêndios de História por infame e degradante; quero descer ao renegado começo, sentir a consistência do barro amassado com lama e sangue, capaz de enfrentar e superar a violência, a ambição, a mesquinhez, as leis do homem civilizado. Quero contar do amor impuro, quando ainda não se erguera um altar para a virtude. Digo não quando dizem sim, não tenho outro compromisso.”


“Cobiça de mulher no fim do mundo do cacau não tinha freio nem medida, pois não havia fêmea senão para uns raros felizardos; tudo que usava saia possuía encanto e serventia. Sem falar nas éguas, mulas e jumentas viciadas.”


“Novamente em paz consigo mesmo, Fadul Abdala matutava sobre a vida e seus percalços. Não sendo ainda fácil, a prebenda já fora mais difícil. Tinha certeza de que, se desistisse, em seguida se arrependeria: a graça de Deus não se destina aos homens de pouca fé.”


“Após o susto que raspara quando Janjão Fanchão ameaçou enrabá-la, a rapariga desaparecera, certamente em busca de paisagens menos adversas onde pudesse rebolar em paz o cobiçado fiofó. Palmilhou léguas de chão: ao dar-se conta viu-se novamente naquelas perigosas bandas. Constatou o crescimento do lugar: mais gente, novos barracos, menos riscos e a forja acesa.
A par dos malfeitos e das intenções dos falecidos, dos planos de Janjão, Fadul comunicou a Dalila com evidente satisfação a morte do fanchono. A rapariga já sabia: o acontecido causara alvoroço, dera o que falar; o zunzum se espalhara, fora alcançá-la em Itapira, onde ela se detivera no decurso da entressafra. Assim tão longe? Como lhe digo.
– Diz-que caparam ele, foi bem feito. Deus é grande.
Não tendo interesse em desmentir os cruéis detalhes das contraditórias versões sobre o fim dos bandidos, muito ao contrário, Fadul desviou o rumo da conversa:
– É verdade mesmo que tu é cabaço por de trás?
Dalila não se deu por achada, respondeu na bucha, categórica e enigmática: – A pulso, seu Fadu, nem na frente, quanto mais atrás.
Nada acrescentou por não ser hipócrita como tantas outras. Sentimental, quando enxodozada nada sabia recusar; quando necessitada curvava-se a polpuda oferta: a culpa era de Deus que a fizera tão bem servida. Deixou o curioso no ora-veja: a pulso, antes a morte, seu Fadu.”


“Zezinha depois chorou lágrimas deveras sentidas ao contar a morte do pai, um homem bom que não tivera sorte. Enquanto forte lavrara a terra de terceiros, terminara na cachaça quando o impaludismo montara em seu cangote. A família trabalhava a dia em plantações alheias, os homens cortavam cana nos campos do banguê. Não fosse a ajuda de Zezinha, passariam fome. Das filhas mulheres, Zezinha tinha sido a única a subir na vida, a prosperar, graças a Deus que a protegera. Fora ser puta em Itabuna.”


“A febre sem nome, a peste, aquela que no dizer do povo matava até macaco. Falavam dela em voz baixa e reverente, monstruosa divindade, flagelo endêmico e antigo sobre o país do cacau, cidades e roças, recolhendo aqui e acolá a quota que lhe era devida em sacrifício. Evitavam citá-la nas conversas, procuravam esquecê-la para ver se assim ela os esquecia e os deixava em paz.
Enquanto a maligna matava com parcimônia, sem pressa, sem esganação, iam-lhe entregando sua ração de mortos, convivendo com ela, conformados. Mas quando, aquartelada numa povoação, virava epidemia e matava a granel, o medo se transformava em pânico e em lugar do choro manso de pai e mãe, de mulher, marido e filho, subia aos céus um clamor de maldição.
Consumia o vivente em poucos dias. Queimava-lhe o corpo e o amolecia, a cabeça estalando em dor, o bestunto avariado, o mau cheiro das bufas, as entranhas desfeitas numa soltura pestilenta. Morte certa e feia, não havia jeito a dar.
Outras febres tinham nome: a terçã, a palustre, a aftosa que ataca gente e gado, a febre amarela e a febre de caroço, cada qual mais perigosa. Havia porém remédio e tratamento para todas elas, até para a bexiga negra: bosta de boi, seca, colocada em cima das borbulhas. Mas não havia remédio para a febre sem nome, simplesmente a febre, sem adjetivo a distingui-la, sem diagnóstico nem receita, o paciente na mão de Deus, o impiedoso Deus da peste. Apelavam para suadouros, cataplasmas, mezinhas, garrafadas e tisanas, beberagens feitas com raízes e folhas do mato, fórmulas passadas de pais para filhos. Tiro e queda na cura de múltiplas mazelas: as doenças feias, por exemplo, mula e cavalo, gonorreia. Mas de nenhum efeito para a febre, aquela que não tinha nome e matava até macaco. Restavam as rezas, as jaculatórias, as benzeduras, os feitiços e as promessas.
Chegava de repente, sem se fazer anunciar. Derrubava, pelava e escaldava, esvaziava as tripas e o juízo, reduzia o homem mais forte a um molambo, antes de matá-lo. Nada havia a fazer além de esperar que, tendo enchido o bucho, inesperada como viera, fosse embora cavar sepulturas em outra parte. Obedecendo a um ciclo ou por simples acidente, a esmo? Por estar farta ou por que Deus ouvira as preces? Tudo podia ser. Se nas cidades de Ilhéus e de Itabuna, doutores de anel e canudo não sabiam diagnosticá-la e combatê-la, ao povo dizimado nos confins de judas cabia apenas fugir ou aguardar que a febre decidisse partir, mudasse de quartel, levando no embornal as sentenças de morte, sem apelação. Morte dolorosa, suja e fedorenta, atroz.”


“Além de cama de casal, Carlinhos trouxe da cidade escrivaninha e estante com livros, a maioria em língua de gringo. Aos que se admiravam ao ver cama de casal em casa de solteiro, respondia amável e desbocado: solteiro, sim, punheteiro, não.”


“– Vade retro, Satanás! – Exclamou frei Zygmunt Von Gotteshammer no momento culminante, da confissão da menina Chica, não tão menina, pois ia completar quatorze anos nas vésperas de São Pedro: das noivas de maio a única em condições de usar grinalda e véu na cerimônia do casamento.
Revelando decidido pendor para os detalhes e absurda inocência a respeito do que fosse e do que não fosse pecado venial e pecado mortal, a moleca do cordão encarnado, sem ruborizar-se – o que aliás iria bem com as cores de sua ala –, relatou ao indignado frei Zygmunt as gostosas provações a que a sujeitava o namorado. Balbino tinha morado em Ilhéus e conhecia as invenções das gringas: com elas Chica se comprazira.
Nem por incruenta, foi menos insana a luta que se travou no improvisado santuário entre o santo inquisidor e a mocinha do cordão encarnado. Diante do que, prazenteira, ela lhe narrou: escabrosos lances de dedo e língua, de sodomia – ah, Sodoma rediviva! –, o frade lhe interditara véu e grinalda, os símbolos da virgindade. Mas a noiva, em obstinado preito, reivindicara seus direitos às flores de laranjeira, confeccionadas pelos dedos maneiros de dona Natalina, pois lá dentro da periquita – juro por Deus, seu padre! – Balbino nunca metera, Chica jamais deixara. O demais que tinham praticado servira exatamente para impedir que ele lhe tirasse os tampos: onde o reverendo frei ouvira dizer que tomar no cu era o mesmo que dar a maricotinha? Em Estância as moças casavam donzelas, em sua maioria, mas para aguentar a espera iam tomando nas coxas e no fíofó, que ninguém é de ferro, seu padre.
Frei Zygmunt a expulsou em latim, vade retro, Belzebu! Noutros tempos teria usado o azorrague para exorcizá-la, retirar-lhe do corpo os demônios que o habitavam: nos bons tempos da Sagrada Inquisição. Chica foi-se satisfeita, acreditando que o sacerdote a abençoava e com ela se pusera de acordo sobre o vestido de noiva. Rezou três ave-marias e um padre-nosso, pois o bom frei esquecera de lhe dar a penitência.”


“O nome, dado em homenagem ao crime, já diz tudo: eis como iniciou o Grande Inquisidor Zygmunt o seu sermão. Em resumo acusou Tocaia Grande de ser cidadela do pecado, couto de bandidos. Terra sem lei, nem a de Deus nem a dos homens, território da degradação, da luxúria, da impiedade, do sacrilégio, das imundas práticas do demônio, reino da danação de Satanás, Sodoma e Gomorra reunidas, desafiando a ira do Senhor. Um dia a cólera de Deus irromperá em fogo, castigando os infiéis, destruindo os muros da maldade e da profanação, transformando em cinzas aquele covil de escândalo e de iniquidade. Assim profetizou.
Na hora da bênção, na agonia do crepúsculo, frei Zygmunt Martelo de Deus ergueu a garra adusta, traçou no ar a cruz da excomunhão, amaldiçoou o lugar e os habitantes.”


“No deslumbre da lua cheia cravada sobre a terra violada, sobre o rio assassinado, sobre a morte desatada, na hora da meia-noite, junto ao pé de mulungu, no alto do Outeiro do Capitão, Jacinta Coroca e Natário da Fonseca, ela com a repetição, ele com o parabelo, na tocaia, usufruíam a beleza da paisagem. Lá embaixo, jazia Tocaia Grande ocupada pelos jagunços e pelos cabras da Briosa.
– O melhor de tudo – disse Coroca –, não tem nada que se compare, é aparar menino. Ver aquele peso de carne saído de um bucho de mulher, mexer na mão da gente, vivinho. Até dá vontade de chorar. No primeiro que peguei, caí no choro.
O Capitão deixou transparecer nos lábios o fio do sorriso:
– Tu pegou um bocado de menino. Tu virou uma senhora dona.
– Nós mudou e cresceu com o lugar. Tu também, Natário, não é o mesmo cabra ruim de dantes.
– Possa ser.
Houve um breve silêncio e, vinda do rio, na noite estival, a viração os envolveu numa carícia morna e espalhou no ar o perfume do jasmineiro. Na voz serena de Coroca, o calor e a brisa:
– Nunca vi ninguém gostar tanto de outra pessoa, mulher gostar tanto de um homem, como Bernarda de vancê. – Ficou pensativa por um instante, prosseguiu: – Acho que isso é o amor de que se fala. Sei como é, conheci mocinha nova. Se chamava Olavo, me comeu os tampos, era fraco do peito, morreu botando sangue pela boca. Me lembro como se fosse hoje.
Chegou até eles o tropel da comitiva dos notáveis. Vinham da desolação da Baixa dos Sapos: nas choças abandonadas pelas raparigas, os jagunços haviam-se entrincheirado, após liquidar Paulinha Marisca, única que ficara de guarda no puteiro. Aprendera a atirar em Alagoas com os vários pistoleiros da família. Na casa de madeira, nos barracos de adobe, o intendente, o Juiz, o Promotor, o Mandatário e a álacre companhia, a corte altissonante, se abrigaram, aguardando o momento da entrada triunfal.
Despontaram sob a claridade do luar, uma cavalhada de se ver e bater palmas: gordos, fortes, garbosos, bem vestidos, bem-dispostos, traziam a lei para implantá-la. Jacinta Coroca apoiou a repetição no galho da árvore. O capitão Natário da Fonseca repetiu:
– Lugar mais bonito pra viver!
– Não há igual. – Concordou Coroca.
Montando um esplendor de égua, no centro do cortejo tendo de um lado o intendente, do outro a divina Ludmila Gregorióvna, destacava-se o corpanzil do bacharel Boaventura Andrade Júnior, chefe político, mandachuva. A cara aberta em riso.
Natário firmou a pontaria, visando a testa de Venturinha. Em mais de vinte anos, não errara um tiro. Com sua licença, Coronel.”