sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Em busca do tempo perdido: A Prisioneira, de Marcel Proust

Editora: Ediouro

ISBN: 978-85-0002-555-6

Tradução: Fernando Py

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 312

Sinopse: Ver primeiro livro




“A realidade, mesmo se necessária, não é inteiramente previsível. Aqueles que chegam a conhecer algum pormenor exato sobre a vida de outra pessoa, logo tiram dali consequências que o não são, vendo no fato recém-descoberto, a explicação de coisas que precisamente não têm nenhuma relação com ele.”

 

 

“As coisas brilhantes em geral só são feitas de modo imprevisto. Mas as vidas insensatas, em que o próprio maníaco se priva de todos os prazeres e se inflige os maiores males, estas vidas são as que menos mudam. A cada dez anos, caso tivéssemos curiosidade para tanto, voltaríamos a encontrar o desgraçado dormindo às horas em que poderia viver, saindo às horas em que não há quase outra coisa a fazer senão deixar-se assassinar nas ruas, bebendo gelados quando está com calor, sempre se curando de uma gripe. Bastaria um pequeno movimento de energia, um único dia, para mudar isto de uma vez por todas. Porém justamente essas vidas são de hábito o apanágio de seres incapazes de energia. Os vícios são um outro aspecto dessas existências monótonas, que a força de vontade bastaria para tornar menos atrozes.”

 

 

“Uma objeção mais grave, se tivesse fundamento, seria dizer que tudo isso nos é estranho e que é preciso extrair poesia da verdade bem próxima. A arte extraída do real mais familiar existe de fato e seu domínio é talvez o maior. Mas não é menos verdade que um grande interesse, por vezes a beleza, pode nascer de ações decorrentes de uma forma de espírito de tal modo distanciada de tudo o que sentimos, de tudo em que acreditamos, que nem sequer podemos chegar a compreendê-las, e elas se apresentam diante de nós como um espetáculo sem motivo. Que existe de mais poético do que Xerxes, filho de Dário, mandando açoitar as águas que haviam engolido seus barcos?”.

 

 

“Lembrava-me, havia conhecido uma primeira Albertine; depois, bruscamente, ela se mudara numa outra, a atual. E pela mudança não podia eu responsabilizar a ninguém, só a mim mesmo. Tudo o que ela teria logo me confessado facilmente, de bom grado, quando éramos bons camaradas, deixara de expandir-se desde que julgara que eu a amava, ou talvez sem pronunciar o nome do Amor, adivinhara um sentimento inquisitorial que pretende saber, entretanto sofre ao saber, e procura saber ainda mais. Desde aquele dia ela me ocultara tudo.”

 

 

“(...) enfim, dias aos quais se podem comparar aqueles em que ocorre, na nossa vida, uma crise excepcional e da qual o que nunca fez nada pensa que vai extrair, se tudo termina bem, hábitos de trabalho: por exemplo, a manhã em que ele sai para um duelo que vai se dar em condições especialmente perigosas; então lhe aparece, de súbito, no momento em que talvez lhe vá ser tirada, o preço de uma existência de que poderia ter aproveitado para iniciar uma obra ou simplesmente desfrutar prazeres, e da qual não soube gozar nada. “Se pudesse escapar com vida” pensa ele, “como começaria logo a trabalhar e também como haveria de me divertir!”. De fato, a vida assumiu de repente, a seus olhos, um valor bem maior, pois ele põe nela tudo o que lhe parece que ela pode lhe oferecer, e não o pouco que ele lhe faz dar habitualmente. Vê-a segundo o seu desejo, não como sua experiência lhe ensinou que ele sabia torná-la, isto é, tão medíocre. Num instante, sua vida se encheu de labores, de viagens, de excursões a montanhas, de todas as belas coisas que ele imagina poderão ficar impossíveis com o desfecho funesto desse duelo, sem pensar que já o eram antes que se tratasse do duelo, devido aos maus hábitos que, mesmo sem duelo, teriam permanecido. Ele volta para casa sem sequer ter sofrido um ferimento. Mas encontra os mesmos obstáculos aos prazeres, às excursões, às viagens, a tudo de que há pouco receara por um momento ficar despojado para sempre pela morte; basta para isso a vida. Quanto ao trabalho – tendo as circunstâncias excepcionais por efeito exaltar o que de antemão existia no homem, no trabalhador o trabalho e no preguiçoso a preguiça –, resolve tirar férias.”

 

 

“E no mesmo instante, lembrei-me que Albertine recusara-me, de manhã, um prazer que de fato poderia tê-la cansado. Seria então para reservá-lo para outrem, talvez naquela tarde? A quem? Assim é que é interminável o ciúme, pois mesmo que o ser amado, por exemplo estando morto, não pode mais provocá-lo com seus atos, ocorre que as lembranças, posteriormente a todo acontecimento, comportam-se de repente em nossa memória como outros tantos acontecimentos, lembranças que não tínhamos esclarecido até então, que nos tinham parecido insignificantes, e às quais basta a nossa própria reflexão sobre elas, sem nenhum fato exterior, para conferir um sentido novo e terrível. Não precisamos ser dois, basta estarmos sozinhos no quarto, pensando, para que se produzam novas traições de nossa amante, mesmo que esteja morta. Assim, não se deve temer no amor, como na vida comum, apenas o futuro, mas também o passado, que muitas vezes só se realiza para nós depois do futuro; e não falamos somente do passado de que ficamos sabendo muito tarde, mas daquele que conservamos desde longo tempo em nós e que de súbito aprendemos a decifrar.”

 

 

“Na maioria das vezes, o amor não tem por objeto um corpo, a não ser quando nele se fundem uma emoção, o medo de perdê-lo, a incerteza de reencontrá-lo. Ora, esse tipo de ansiedade tem muita afinidade pelos corpos. Ela acrescenta-lhes uma qualidade que ultrapassa a própria beleza, o que é um dos motivos por que vemos homens, indiferentes às mulheres mais belas, amarem apaixonadamente algumas que nos parecem feias. A essas criaturas, a essas criaturas de fuga, sua natureza e a nossa inquietação emprestam asas. E até junto a nós o seu olhar parece dizer que vão alçar vôo. A prova dessa beleza, que excede a beleza acrescentada pelas asas, é que, muitas vezes, para nós, uma mesma criatura é sucessivamente alada e sem asas. Basta recearmos perdê-la para esquecermos todas as outras. Certos de conservá-la, comparamo-la a essas outras, que logo preferimos a ela. E, como essas emoções e certezas podem alternar-se de uma semana para outra, uma criatura pode, numa semana, ver sacrificarem-lhe tudo o que lhe agradava, na semana seguinte ser sacrificada, e assim por diante durante muito tempo. O que seria incompreensível, se não soubéssemos pela experiência que todo homem tem de ter em sua vida, ao menos uma vez, deixado de amar, esquecido uma mulher, o pouco em si mesma que é uma criatura quando já não o é mais, ou não é ainda permeável às nossas emoções.”

 

 

“O amor, tanto na ansiedade dolorosa como no desejo feliz, é a exigência de um todo. Ele só nasce, só subsiste se resta uma parte a conquistar. Só se ama aquilo que não se possui completamente.”

 

 

“Se as próprias meretrizes (desde que as saibamos meretrizes) nos atraem tão pouco, não é que sejam menos bonitas que as outras, é que elas estão inteiramente a nosso dispor; é que o que se busca exatamente atingir elas já no-lo ofertam; é que não são conquistas. O afastamento aí é mínimo. Uma prostituta já nos sorri na rua como o fará junto a nós. Somos escultores. Queremos obter de uma mulher uma estátua inteiramente diversa da que ela nos apresentou. Vimos uma jovem indiferente, mal-educada, à beira-mar; vimos uma caixeira ativa e séria, no seu balcão, que nos responderá com secura, ainda que seja apenas para não se tornar objeto das zombarias das companheiras, uma vendedora de frutas que mal nos responde. Pois bem, não sossegamos enquanto não pudermos experimentar se a jovem altiva de beira-mar, se a caixeira que pouco se importa com o que dizem dela, se a distraída vendedora de frutas não são suscetíveis, depois de manobras sagazes de nossa parte, de concordarem dobrar sua atitude retilínea, de rodear-nos o pescoço com esses braços que trazem frutas, de inclinar sobre nossa boca, num sorriso que consente, os olhos até então glaciais ou distraídos – ó beleza dos olhos severos nas horas de trabalho, em que a operária receava tanto a maledicência das companheiras, olhos que se furtavam aos nossos olhares obsessivos e que agora, que estamos a sós, baixam as pupilas ao peso ensolarado do riso quando falamos de fazer amor! (...) Assim, passamos toda a nossa vida em inquietas manobras, incessantemente renovadas, junto às jovens sérias e cujo mister parece afastá-las de nós. Uma vez em nossos braços, elas já não são o que eram, está suprimida a distância que sonhávamos franquear. Porém recomeçamos com outras mulheres, com tais empreendimentos gastamos todo o tempo de que dispomos, todo o dinheiro, todas as forças, explodimos de raiva contra o cocheiro demasiado lento que talvez nos faça perder o primeiro encontro, temos febre. Esse primeiro encontro, sabemos todavia que acarretará o desvanecimento de uma ilusão. Não importa; enquanto durar a ilusão, queremos ver se podemos mudá-la em realidade, e então pensamos na lavadeira em cuja frieza reparamos. A curiosidade amorosa (...) sempre decepcionada, renasce e permanece sempre insaciável.”

 

 

“O ciúme, que traz uma venda nos olhos, não é só impotente para descobrir alguma coisa nas trevas que o cercam; é também um dos suplícios em que a tarefa é recomeçar sem descanso, como a das Danaides, como a de Íxion.”

 

 

“Infelizmente, com os começos de uma mentira de nossa amante ocorre o mesmo que com os começos do nosso próprio amor, ou com os começos de uma vocação. Eles se formam, conglomeram-se e passam despercebidos de nossa própria atenção. Quando queremos nos lembrar de que modo começamos a amar uma mulher, já estamos amando; dos devaneios de antes, não dizíamos: é o prelúdio de um amor, estejamos atentos; e eles avançavam de surpresa, mal notados por nós.”

 

 

“Poderia a vida consolar-me da arte, haveria na arte uma realidade mais profunda em que nossa personalidade verdadeira encontrasse uma expressão que não lhe conferem as ações da vida? Todo grande artista parece de fato de tal modo diverso dos outros, e tanto nos dá aquela sensação de individualidade que em vão buscamos na existência cotidiana!”

 

 

“A gente acha inocente desejar outras pessoas, mas atroz que nossa parceira o faça”.

 

 

“O fato de ter proclamado (como chefe de um partido político, como qualquer coisa) ser atroz mentir, obriga na maioria das vezes a mentir mais que os outros, sem por isso abandonar a máscara solene, nem depor a tiara augusta da sinceridade.”

 

 

“Toda criatura amada, e até, em certa medida, qualquer criatura, é para nós como o deus Jano, apresentando-nos a fronte que nos agrada, se essa criatura nos abandona; e a fronte sombria se a temos à nossa disposição permanente.”

 

 

“E que desgraça para um amante apaixonado não perceber que, ao passo que vê um belo rosto à sua frente, sua amante está vendo o dele, que, ao contrário, não fica mais belo quando se deforma pelo prazer que nele faz surgir a vista da beldade.”

 

 

“O amor, melhor dizendo, o prazer tanto entranhado na carne, auxilia no trabalho das letras porque anula outros prazeres, por exemplo, os prazeres da sociedade, que são os mesmos para todo mundo. E, mesmo se esse amor traz desilusões, ao menos agita desse modo também a superfície da alma, que sem isso se arriscaria a ficar estagnada. Assim, o desejo não é inútil para o escritor, pois primeiro o afasta dos outros homens e o conforma a eles; e em seguida restitui algum movimento a uma máquina espiritual que depois de certa idade, tende a se imobilizar. Não se chega a ser feliz, mas assinalam-se as razões que impedem de sê-lo e que nos ficariam invisíveis sem essas fendas bruscamente abertas pela decepção. E os sonhos, é claro, não são realizáveis, bem sabemos; não os conceberíamos talvez sem o desejo, e é útil concebê-los para os ver fracassarem e para que seu fracasso nos sirva de lição.”

 

 

“São tantas as mortes quantas as pessoas.”

 

 

“A mentira é o pasto de todas as conversas.”

 

 

“‘Um cortesão devoto sob um príncipe devoto teria sido ateu sob um príncipe ateu’, disse La Bruyere”.

 

 

“O leão deixa os tigres sossegados”

 

 

“Se possuíssemos apenas membros, como as pernas e os braços, a vida seria suportável. Infelizmente trazemos em nós esse pequeno órgão a que chamamos coração, o qual está sujeito a certas enfermidades em cujo decorrer ele se torna infinitamente impressionável a tudo que se refere à vida de uma certa pessoa, e assim uma mentira – essa coisa tão inofensiva e no meio da qual vivemos tão alegremente, quer seja dita por nós ou pelos outros – vinda dessa pessoa, dá a esse coraçãozinho, que deveria poder ser extraído cirurgicamente, crises intoleráveis. Nem falemos do cérebro, pois nosso pensamento, por mais que raciocinemos sem parar no decurso dessas crises, não as modifica em nada, assim como a nossa atenção não alivia uma dor de dentes. É certo que tal pessoa é culpada de nos haver mentido, pois tinha jurado dizer-nos sempre a verdade. Mas sabemos por nós próprios, pelos outros, o que valem tais juramentos. E desejáramos crer neles quando provinham dela, que tinha justamente todo o interesse em nos mentir, e, por outro lado, não fora por nós escolhida por suas virtudes. É verdade que posteriormente ela quase já não teria necessidade de nos mentir justamente quando o coração se tornasse indiferente à mentira porque não nos interessaremos mais pela sua vida. Sabemos disto e contudo sacrificamos de bom grado a nossa, ou porque nos matamos por essa pessoa, ou porque nos fazemos condenar à morte ao assassiná-la, ou simplesmente porque gastamos em poucos anos toda a nossa fortuna com ela, o que em seguida nos obriga ao suicídio, pois não temos mais nada. Aliás, por mais tranquilos que nos julguemos ao amar, sempre trazemos o amor no coração em estado de equilíbrio instável. Uma coisinha de nada basta para colocá-lo em posição de felicidade, ficamos radiantes, cobrimos de carinho não aquela a quem amamos, mas todos aqueles que nos fizeram valer a seus olhos, que a resguardaram contra qualquer tentação moral; julgamo-nos tranquilos e basta uma frase (desfavorável) para que se aniquile toda a felicidade preparada a que nos lançávamos, para que o sol se esconda, para que gire a rosa-dos-ventos e se desencadeie a tempestade interior a que um dia já não seremos capazes de resistir.”

 

 

“Mas nós afiguramos o futuro como um reflexo do presente projetado no espaço vazio, ao passo que ele é com frequência o resultado bem próximo de causas que na maioria nos escapam.”

 

 

“E, no amor, é mais fácil renunciar a um sentimento do que perder um hábito.”

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