segunda-feira, 21 de julho de 2025

O Reino: a história de Edir Macedo e uma radiografia Igreja Universal (Parte I), de Gilberto Nascimento

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★☆☆

ISBN: 978-85-359-3298-0

Páginas: 384

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Sinopse: Com mais de 10 mil templos, distribuídos em todos os estados e em quase cem países, a Igreja Universal do Reino de Deus é um gigante neopentecostal. Da réplica do Templo de Salomão, Edir Macedo dirige sua igreja com autoridade inconteste, cortejado por líderes de todas as cores ideológicas. Nesse sentido, a recente unção de Jair Bolsonaro como paladino da fé cristã ― celebrada pessoalmente por Macedo ― demonstra um projeto de poder iniciado há mais de quarenta anos na primeira sede da Universal, o prédio de uma antiga funerária no subúrbio do Rio de Janeiro.

Neste minucioso e inédito trabalho de apuração jornalística, Gilberto Nascimento traça a história completa da IURD, de seu fundador e de sua vertiginosa expansão. Indispensável para compreender o Brasil de hoje, O reino examina os mecanismos internos da igreja e suas estratégias para arrebatar ― e manter ― fiéis, e explica como o bispo se tornou uma celebridade midiática, autor de best-sellers e empresário de sucesso, imune a todas as polêmicas em torno de seu império religioso.



Por pouco o bebê Edir não teve o mesmo destino de outras 26 gestações das 33 que teve dona Geninha. Nascida e criada no vilarejo do Abarracamento,4 ao longo da vida Eugênia Macedo Bezerra sofreu dezesseis abortos espontâneos e ainda perdeu mais dez filhos prematuramente. Sete sobreviveram: Eris, Elcy, Eraldo, Edir, Celso, Edna e Magdalena. A família não tinha acesso a equipamentos de saúde, assim como a população de Rio das Flores — no ano em que Edir Macedo nasceu, não havia posto de saúde no vilarejo; o mais próximo estava na vizinha Valença, maior cidade da região. Uma das razões da sobrevivência do bebê foram as habilidades obstetrícias da avó materna, Clementina Iório da Silva Macedo, parteira famosa no Vale, ela também campeã de fertilidade: deu à luz 28 filhos, dezessete homens e onze mulheres.5 O marido, Eugênio Jacinto de Macedo, ainda tinha três filhos de outros relacionamentos.6

Já aos dois anos o pequeno Edir assombrava a família. A irmã mais velha estremecia ao ver o irmão brincar com uma figura imaginária, supostamente uma menina. O garotinho falava, ria e se divertia — entretinha-se com um anjo, supunham os familiares. Anos depois Eris mudaria de opinião: o demônio é que estaria ao lado dele.7 Outro episódio que a apavorou foi quando, sozinha com o bebê, ela viu uma serpente cobra-cipó se esgueirando entre as cobertas do berço. Familiares e vizinhos acorreram com foices e enxadas e mataram o réptil.

Edir era um garoto tímido, brincava pouco.8 Uma característica fazia dele alvo de chacota das outras crianças. Didi, como era chamado, nascera com uma atrofia nos dedos: indicadores finos como lápis e polegares anormalmente maiores,9 com mobilidade reduzida. Herança da avó paterna, que tinha três dedos em cada mão.

Hoje o primo Moacyr Marins Macedo faz troça do defeito de nascença do parente mais famoso: “Aquele dedo fino é bom para contar dinheiro”.10

4. Douglas Tavolaro, O bispo, op. cit., p. 56.

5. Na época, as famílias eram bastante numerosas: cada mulher brasileira tinha em média 6,2 filhos.

6. Entrevista de Amarílio Macedo a Chico Silva, para a produção deste livro.

7. Informação de Eris Crivella em material de arquivo para a produção de trabalho jornalístico sobre os sessenta anos da TV Record.

8. Douglas Tavolaro, O bispo, op. cit., p. 59.

9. Ibid.

10. Entrevista de Moacyr Marins Macedo ao repórter Chico Silva, em 28 jan. 2018.

 

 

Logo cedo Edir desenvolveu uma característica peculiar, observada pelo tio Amarílio Macedo, irmão de dona Geninha, conhecido como Missô (corruptela de meu senhor): “Sempre que ia comer alguma coisa, se escondia. Não gostava de dividir nada com ninguém. Era muito desconfiado. E esperto também”,25 disse, lúcido aos 94 anos. O sobrinho, acostumado a observar a lida do pai no armazém, tinha com o dinheiro a mesma relação que tinha com a comida. Tirava escondido do bolso, para ninguém ver, pequenas quantias que ganhava dos familiares.”

25. Relato do ex-pastor da Igreja Universal Carlos Magno de Miranda na reportagem “‘Tenho medo dele’, diz o ex-seguidor”, Kássia Caldeira, Jornal da Tarde, 2 abr. 1991.

 

 

Na TV, o bombardeio diminuía após o fim da guerra santa e o “acordo de paz” entre a Globo e a Record, em 1996. Mas na mídia impressa, principalmente, repercutia o andamento dos inúmeros processos e inquéritos criminais movidos contra a igreja e seus líderes, por acusações de envio ilegal de recursos ao exterior, empréstimos para empresas de fachada e a utilização de fiéis como laranjas na compra de emissoras de rádio e TV. Foram várias as denúncias-crime encaminhadas à Justiça: lavagem de dinheiro, evasão de divisas, formação de quadrilha, estelionato, falsidade ideológica, sonegação fiscal, crimes contra a Fazenda Pública, crime contra a ordem tributária, charlatanismo, curandeirismo, sequestro de bens, vilipêndio, incêndio criminoso, ataque a homossexuais, racismo, incitação ao crime, preconceito religioso, calúnia e difamação. O próprio Macedo, em sua biografia, listou essas acusações. Entre 1990 e 2007, foram instauradas 21 ações e inquéritos.1

Os processos que mais causaram dor de cabeça se referiam à compra da Record e às denúncias de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, formação de quadrilha, estelionato e falsidade ideológica. A maioria prescreveu ou foi arquivada por falta de provas. Macedo não foi condenado em nenhum processo. A igreja possui uma eficiente estrutura jurídica, com advogados renomados, para se contrapor às acusações.

Entre as ações mais importantes contra o bispo, a referente a lavagem de dinheiro e outros delitos tramitou até setembro de 2019 na 2ª Vara Federal Criminal de São Paulo, quando prescreveu.2 Eram acusados no processo Edir Macedo, o bispo e ex-deputado federal João Batista Ramos da Silva, o ex-bispo Paulo Roberto Gomes da Conceição e a executiva do grupo Universal Alba Maria da Costa. Para o procurador federal Silvio Luís Martins de Oliveira, em sua denúncia, Macedo e os outros três acusados haviam formado uma quadrilha para lavar dinheiro da igreja.3 A pena máxima para o crime de lavagem é dez anos e prescreve em dezesseis. Se o acusado é maior de setenta anos — o caso de Edir Macedo —, a prescrição cai para a metade. A denúncia foi feita em 2011 e o prazo para aplicação da pena, então, se esgotou. Caso o bispo pegasse a condenação máxima, ainda estaria livre. Na avaliação do procurador, mesmo numa ação que envolva cooperação internacional, “não é razoável” a Justiça levar oito anos para dar a sentença. A ação estava pronta para ir a julgamento. “Nada justifica, é demasiado, desproporcional”, afirmou.4

1. Douglas Tavolaro, O bispo, op. cit., p. 204.

2. Denúncia do procurador federal Silvio Luís Martins de Oliveira, oferecida à 2a Vara Criminal Federal de São Paulo, 1 set. 2011.

3. Ibid.; “MPF/SP denuncia Edir Macedo e mais três por lavagem de dinheiro e evasão de divisas”, Ministério Público Federal/SP Notícias, 12 set. 2011.

4. Entrevista do procurador Silvio Luís Martins de Oliveira ao autor, em 29 ago. 2019; Flávio Ferreira, “Justiça deixa prescrever ação contra Edir Macedo pronta para julgamento”, Folha de S.Paulo, 19 out. 2019.

 

 

As doações recebidas atingem cifras milionárias. Entre 2003 e 2006, a Universal declarou ter recebido cerca de 5 bilhões de reais em doações (10 bilhões de reais, em valores corrigidos). O valor, no entanto, pode ser muito maior. Apesar de ter imunidade tributária, a Universal só declara parte do que arrecada, afirmou o MPF.10 Na denúncia, são citadas as declarações do ex-dirigente da igreja e ex-vereador do Rio Waldir Abrão, de que apenas 10% dos dízimos e doações recolhidos eram depositados na conta da igreja, enquanto o restante seguia para doleiros que remetiam o dinheiro para o exterior.11

A afirmação de Abrão encontrava respaldo em documentos reunidos nos autos, segundo o procurador Oliveira. Foi para enviar o dinheiro ao exterior que a igreja criou, entre setembro de 1991 e agosto de 1992, as duas já citadas offshores Investholding Ltd. e Cableinvest Ltd. “Os dólares vendidos pelas empresas Investholding Ltd. e Cableinvest Ltd. transformaram-se em recursos emprestados, ao menos formalmente, às pessoas que desempenhariam o papel de laranjas da Igreja Universal do Reino de Deus nas aquisições de participações societárias em empresas de radiodifusão e telecomunicação.” Para tanto, a igreja valeu-se de dezenas de contratos de mútuos (empréstimos), firmados entre as empresas offshore, na condição de mutuantes, e pessoas ligadas à Universal, denunciou Silvio Oliveira.12 Constavam como acionistas da Investholding, em documentos apresentados pela Procuradoria-Geral da República, o sobrinho de Edir Macedo e atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, e Álvaro Stievano Júnior, contador e ex-diretor do Banco de Crédito Metropolitano, instituição financeira vinculada à igreja. De acordo com essa documentação, Crivella e Stievano — ex-secretário municipal de Esportes de São Paulo na gestão de Paulo Maluf — outorgavam poderes a dois estrangeiros para representá-los no exterior em reuniões de diretoria, com direito a voto em assuntos predefinidos.13 Em um ofício atribuído à Cableinvest, Crivella também autorizara um executivo do grupo Universal a operar uma conta aberta no Union Chelsea National Bank.14

Desde 1999, seguia na Polícia Federal do Rio um inquérito para apurar suspeitas de crimes contra o sistema financeiro nacional e evasão de divisas. Eram citados Crivella e outros oito integrantes da Universal. Senador, em 2003, o sobrinho do bispo tinha foro privilegiado e, por isso, o caso foi encaminhado ao STF. Apurava-se naquele momento a entrada de 18 milhões de dólares no Brasil, via Uruguai, para a compra da TV Record do Rio e emissoras de rádio. O dinheiro vinha das duas offshores.

Em 2003, a Procuradoria-Geral da República informava não ter dúvida sobre a participação de Crivella nas empresas de paraísos fiscais. “Está documentalmente demonstrado que Marcelo Bezerra Crivella dirigia a Investholding Ltda., firma que operava nas Ilhas Cayman. Nos autos, outrossim, [há] manifestação escrita de Marcelo Crivella, como proprietário beneficiário — beneficial owner — da Cableinvest Ltd., firma que operava em outro paraíso fiscal — Jersey —, mas que foi dissolvida em 11 de outubro de 1999”, atestou o então procurador-geral Claudio Fonteles.15

Três anos depois, o novo titular da Procuradoria, Antonio Fernando de Souza, livrou Crivella da acusação. Deu outro rumo ao inquérito e pediu o arquivamento.16 O ministro do STF Ricardo Lewandowski também julgou não haver provas documentais ou testemunhais de que os investigados tenham remetido ou recebido 18 milhões de dólares das duas offshores, via Uruguai. E acolheu a manifestação do procurador. Determinou, no entanto, que fossem enviadas cópias de partes do inquérito à Procuradoria da República no Rio de Janeiro para apurar a ocorrência de crimes ou improbidade administrativa dos envolvidos.17 No final, o processo somou sete volumes, 656 folhas e oito apensos. O primeiro relator foi o ministro Carlos Velloso, que conduziu toda a tramitação até a penúltima decisão. Com sua aposentadoria, em 2006, o caso foi assumido por Lewandowski, dois meses depois de tomar posse no tribunal.

Crivella sempre negou envolvimento com empresas em paraísos fiscais. “Eu nunca fui sócio de empresas em paraísos fiscais. […] Eu nunca tive participação nessas empresas que vocês falaram. […] Tudo que foi publicado é uma mentira deslavada e covarde”, garantia. O bispo alegava que os documentos exibidos em cópias xerox eram falsos. “Nenhum tribunal aceita.” Segundo ele, as revelações sobre sua participação nas offshores teriam partido de “uma denúncia apócrifa registrada em 1993, na Folha de S. Paulo, e que tramitou durante anos em processo no STF e foi arquivada”. Crivella atribuía as denúncias ao fato de ter se tornado candidato, um ano antes, em sua primeira tentativa de chegar à prefeitura do Rio. “Em 1999, o [Geraldo] Brindeiro [então procurador-geral da República] abriu um processo e mandou me ouvir. […] Depus, e pronto. Agora, no ano passado, […] reabriu o caso. Tudo coincidiu na época com minha candidatura”, reagiu. O sobrinho de Macedo considera o caso encerrado.18

Uma decisão do desembargador Antônio Carlos Viana Santos, do TJ de São Paulo, considerando nulas as provas de movimentação bancária vindas dos Estados Unidos numa investigação sobre a Igreja Universal, também favorecia Crivella. As provas citadas eram justamente sobre as duas empresas criadas em paraísos fiscais. Promotores americanos haviam informado ao Brasil que um dos sócios das duas offshores era o sobrinho de Edir Macedo. Mas o representante do Ministério Público que requisitara a prova deveria ter pedido autorização a um juiz brasileiro, por se tratar de dados protegidos por sigilo bancário, no entender do desembargador. Ainda que obtida por meio de cooperação internacional, a prova documental de natureza bancária vinda dos Estados Unidos seria “imprestável”, visto que não observava as formalidades da lei. O MP entendia que o acordo de cooperação com os Estados Unidos dispensava o pedido de quebra de sigilo no Brasil, pois promotores americanos podem determinar essa medida sem autorização judicial.19 Como nos Estados Unidos não havia empecilhos para obter a informação, a solicitação aqui não seria necessária, concluíram.

Apesar dessa decisão da Justiça, o procurador federal Silvio Oliveira, em sua denúncia, avaliou ser importante apontar o papel da Investholding e da Cableinvest, para facilitar a compreensão e o encadeamento dos fatos. Ele apontou também a casa de câmbio paulista Diskline como intermediadora de remessas ilegais do Brasil para os Estados Unidos, entre 1993 e 2005. E relacionou outras práticas semelhantes ocorridas entre os anos de 1991 e 1993 para explicar o mecanismo utilizado. Alertou, no entanto, que esses fatos, vindos de outro processo da Justiça estadual de São Paulo, já estariam prescritos. Sobretudo aqueles que envolviam operações internacionais e a constituição de empresas offshore. Os delitos seriam “penalmente atípicos”, em razão de a lei no 9613 (sobre crimes de lavagem ou ocultação de bens e valores) ter entrado em vigor apenas em março de 1998. Assim, o procurador ofereceu denúncia em relação aos eventos ocorridos a partir desse ano, e pediu o arquivamento dos delitos registrados anteriormente.

Como ocorria a transação financeira? Recapitulando: doleiros a serviço da igreja converteriam em dólar o dinheiro arrecadado e o depositariam em contas bancárias das duas offshores em Miami, Nova York e Montevidéu. Em seguida, esses recursos eram reconvertidos em moeda nacional. Milionárias transações de vendas de dólares em contas dessas empresas eram feitas no Uruguai. Os dólares da Investholding e da Cableinvest transformavam-se em valores emprestados, ao menos formalmente, a bispos, pastores e fiéis no papel de laranjas, para formalizar participações em emissoras de rádio e TV. Para tanto, a igreja valia-se dos contratos de mútuos entre as offshores e representantes da Universal. 20

Em 1992, a Investholding “emprestou” aos laranjas 13 bilhões de cruzeiros (cerca de 8 milhões de reais atuais), enquanto a Cableinvest desovou 18,5 bilhões de cruzeiros (11,3 milhões de reais), segundo a denúncia. O dinheiro dos empréstimos nem chegaria às mãos dos supostos representantes. Vinha em cheques, utilizados diretamente na compra de emissoras.

“Assim foi que valores doados por fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, em sua maioria pessoas humildes e de escassos recursos financeiros, sofreram uma espúria engenharia financeira para, ao final, se converterem em participações societárias de integrantes da IURD em empresas de radiodifusão e telecomunicações”, constatou o Ministério Público Federal. “Certamente um destino totalmente ignorado pelos crentes e pela Receita Federal, bem como absolutamente incompatível com os objetivos de uma entidade que se apresenta como religiosa perante a sociedade e o Estado.” 21

Dessa engenharia financeira faziam parte as empresas Cremo Empreendimentos e a Unimetro Empreendimentos, ambas com sede na rua São Carlos do Pinhal, na região da avenida Paulista. Mas nunca funcionaram de fato, eram empresas-fantasmas, segundo apurou o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do MP de São Paulo, responsável pela condução do inquérito remetido à Justiça Federal. O nome Unimetro era desconhecido até dos funcionários da portaria. 22

Ao menos no papel, ali funcionava um conglomerado financeiro. O concorrido prédio também era o endereço do Banco de Crédito Metropolitano — o banco do bispo, depois transformado na Credinvest Facility —, e da Abundante Corretora, cuja lista de clientes era encabeçada pela Igreja Universal. Empresas de comunicação do grupo religioso integravam o conglomerado.

Líderes influentes da instituição religiosa compunham a direção da Cremo. Entre eles, o bispo João Batista Ramos da Silva e dois colegas, João Luiz Leite e Paulo Roberto Conceição. Ramos da Silva e Leite também apareciam nos quadros da Unimetro, ao lado de outros dirigentes e acionistas como os bispos Honorilton Gonçalves, Jerônimo Alves, Valdeir Moraes da Silva, Péricles dos Santos, Renato Maduro (já falecido) e os hoje dissidentes Marcelo Pires e Alfredo Paulo Filho.23 Flagrado num caso de infidelidade conjugal, Leite foi afastado do conselho de bispos em fevereiro de 2018. Era o responsável pela igreja em Angola.24

Também desligado da igreja por acusação de adultério, o ex-líder em Portugal Alfredo Paulo é atualmente a principal nêmese de Edir Macedo. Nos últimos anos, passou a disparar denúncias diárias contra a igreja nas redes sociais. Suas postagens, contestadas pela Igreja, têm atraído milhares de seguidores.

O ex-bispo Marcelo Pires questionou a estratégia da Universal de colocar empresas de comunicação em nome de religiosos. Duas emissoras pertencentes à igreja, as TVs Vale do Itajaí e Xanxerê, de Santa Catarina, estavam em seu nome. Segundo ex-colegas, Pires saiu da instituição mas decidiu não devolvê-las. Não só desafiou Macedo como o acusou de fraudar uma procuração para retirar de seu controle os dois veículos de comunicação. Uma pessoa se apresentou como procurador de Pires e solicitou um depósito no valor correspondente das ações para uma conta da empresa Cremo Empreendimentos, a título de amortização de empréstimo anteriormente contraído. Pires atribuiu toda a operação “a uma simulação destinada a ocultar a aquisição da TV Xanxerê pela IURD”, afirmou o procurador Silvio Oliveira. Atualmente na concorrente Igreja Mundial do Poder de Deus, Pires moveu uma ação para anular a transferência de suas cotas ao colega Honorilton Gonçalves.25

A Universal costumava recolher assinaturas de bispos e pastores em folhas em branco. Quando a cúpula decidia alterar a participação societária de alguma empresa, esses documentos eram preenchidos. A história se repetiu com Pires. O procurador Oliveira, ao citar o caso, denunciou a ocultação de bens pelos verdadeiros proprietários.26

Um dirigente da Record assumiu essa prática publicamente, em 1999. “No momento em que o pastor ou o bispo se torna acionista de uma emissora, [ele] assina um outro contrato, com a data em branco, transferindo suas cotas. Se ele morrer, ou se abandonar a igreja, ponho uma data anterior […] e transfiro as cotas para outro líder da igreja”, revelou o então superintendente da emissora Dermeval Gonçalves.27

O ex-deputado Laprovita Vieira confirmava que os bens em nome de bispos e pastores pertenciam, na verdade, à Universal. Então sócio da TV Record de Minas e da financeira Credinvest, Laprovita nem sabia informar em quais e quantas empresas ele aparecia como proprietário ou sócio. “Eles [administradores da igreja] preparam meu imposto de renda em São Paulo e eu só assino. Não esquento minha cabeça com nada. Tem coisa em meu nome que eu nem sei”, revelou.28 Marcelo Pires, ao assinar o documento dando plenos poderes a Macedo para transferir as ações, deixou em branco o espaço reservado ao nome da empresa. Assim, em 2002, Macedo preencheu a procuração com o nome das empresas TV Vale do Itajaí, Televisão Xanxerê e Rede Fênix. O documento foi utilizado na transferência da TV Vale do Itajaí para Honorilton Gonçalves e apresentado na alteração da composição societária da emissora junto ao Ministério das Comunicações. As investigações reiteraram que essa prática era comum no grupo, afirmou o procurador Marcelo da Mota. Um dos indícios que comprovariam o preenchimento posterior do documento, de acordo com o representante do Ministério Público, era a inclusão da TV Xanxerê, criada com esse nome apenas em 1998. Pires assinara a procuração dois anos antes.29

Em 2013, Macedo acabou absolvido dessa acusação de falsidade ideológica no Tribunal Regional Federal da 4o Região, em Porto Alegre. Segundo seu advogado, Arthur Lavigne, não houve delito porque a procuração fora feita seis anos antes justamente porque a intenção era de que a TV, no futuro, ficasse com o próprio bispo Macedo. Em 2017, o TRF-4 atendeu ao recurso do Ministério Público, contestou a absolvição de Macedo e mandou de volta o processo à Justiça Federal, em primeira instância.30 Pires, por outro lado, manteve suas cotas das TVs Xanxerê e Vale do Itajaí, conforme sua declaração de renda de 2016.31 Atualmente, empresas da Universal têm se tornado sócias umas das outras justamente para dificultar a perda de controle do grupo. Em casos de rompimento e saída de algum bispo ou pastor sócio, o queixoso poderia pleitear, no máximo, uma participação da empresa, mas não assumir o seu controle, como ocorreu com Pires.

Bispo influente à frente de negócios do grupo, João Batista Ramos da Silva passou por momentos complicados. Não era pouca coisa: foi diretor-presidente da Record, deputado federal, dirigente da Cremo e acionista da Unimetro. Mas como seu xará, o pregador judeu João Batista — o primo de Jesus preso e decapitado a mando de Herodes, o rei da Judeia —, ele viveu seu infortúnio. João Batista viu seu poder desmoronar em julho de 2005, no exercício de seu mandato parlamentar, depois de ser flagrado com sete malas cheias de dinheiro. Ele estava em Brasília, se preparando para decolar rumo a São Paulo, a bordo de um jato executivo — um Cessna 525 Citation. Foi detido e obrigado a dar explicações à polícia; respondeu a um inquérito conduzido pela 6o Vara Criminal Federal de São Paulo, juntado depois ao mesmo processo sobre lavagem de dinheiro e evasão de divisas, que prescreveu em 2019.32

João Batista carregava 10,2 milhões de reais em espécie. Nem o próprio parlamentar sabia quanto transportava. Era tanto dinheiro que foram necessárias dez horas para contá-lo, com o auxílio de cinco máquinas emprestadas pelo Banco do Brasil.33 O deputado bispo disse que o dinheiro fora arrecadado na campanha da Fogueira Santa, em templos do Amazonas e Pará. No momento da apreensão, ele fazia uma escala, ao retornar de Manaus rumo a São Paulo. Causou estranheza a quantidade de notas de cem e de cinquenta apreendidas. A maioria dos fiéis da Universal não costuma doar quantias altas nem carregar cédulas nesses valores.

O bispo deu uma justificativa que não convenceu o delegado da PF David Sérvulo Campos: ele alegou que os bancos não tiveram interesse em receber um depósito que seria transferido para São Paulo.34 O argumento não colou, entre outros motivos, porque havia notas com numeração sequencial, o que significava que ao menos parte da quantia saíra de uma instituição bancária. Não seriam ofertas, portanto.35

As explicações não convenceram nem o PFL, o partido político do deputado, e ele acabou expulso da legenda. Um ano depois, ele se envolveria em outro episódio: o esquema de venda superfaturada de ambulâncias — o escândalo dos sanguessugas. Foi indiciado pela Polícia Federal e desistiu de disputar a reeleição. Terminado seu mandato, passou um bom tempo no ostracismo. Reapareceu em 2012, eleito vereador em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo. Atualmente no Republicanos (o ex-PRB), está no segundo mandato.”

9. Denúncia do procurador federal Silvio Luís Martins de Oliveira, oferecida à 2a Vara Criminal Federal de São Paulo, 1 set. 2011.

10. Ibid.

11. Ibid.; Tribunal Regional Federal da 3a Região — Apelação criminal 00075066920124036181 — Inteiro teor — relator desembargador André Nekatschalow, publicado em 11 nov. 2014, e declaração de Waldir Abrão registrada no Cartório do 14o Tabelião de Notas de São Paulo, em 18 nov. 2009.

12. Denúncia do procurador federal Silvio Luís Martins de Oliveira, oferecida à 2a Vara Criminal Federal de São Paulo, 1 set. 2011.

13. Ibid.

14. Ibid.; e Tribunal Regional Federal da 3a Região — Apelação criminal 00075066920124036181 — Inteiro teor — relator desembargador André Nekatschalow, publicado em 11 nov. 2014; relatório de análise da Procuradoria da República do Distrito Federal sobre movimentações financeiras identificadas nas bases de dados do chamado “Caso Banestado”, relacionadas a parlamentares integrantes da Igreja Universal do Reino de Deus: Marcelo Crivella (então senador do PL-RJ), e deputado João Batista Ramos da Silva (então PFL-SP), em 15 jul. 2005.

15. Manifestação do então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, em inquérito remetido ao STF para apurar a responsabilidade penal dos diretores das empresas Investholding e Cableinvest, em 4 maio 2004; relatório de análise da Procuradoria da República do Distrito Federal sobre movimentações financeiras identificadas nas bases de dados do chamado “Caso Banestado”, relacionadas a parlamentares integrantes da Igreja Universal do Reino de Deus: Marcelo Crivella (então senador do PL-RJ), e deputado João Batista Ramos da Silva (então PFL-SP), em 15 jul. 2005; Elvira Lobato, “Record tem firmas em paraísos fiscais”, op. cit.; “Sobrinho de Macedo seria controlador de empresa”, op. cit.; “Fonteles pede a quebra de sigilo da Igreja Universal”, Folha de S.Paulo, 13 maio 2005; e Gilberto Nascimento, “As contas secretas da Igreja Universal”, IstoÉ, 25 maio 2005.

16. Rubens Valente, “Polícia liga Universal a doleiros do Banestado”, Folha de S.Paulo, 21 set. 2009.

17. Portal do Supremo Tribunal Federal, Inquérito 1903, São Paulo. Disponível em: <portal.stf.jus.br/processos>.

18. Gilberto Nascimento e Eduardo Hollanda, “Ministério Público unifica investigação” e “É tudo mentira”, IstoÉ, 1 jun. 2005; Rubens Valente, “Para Crivella, assunto está ‘vencido’”, Folha de S.Paulo, 21 set. 2009.

19. Mario Cesar Carvalho, “Justiça anula provas contra Igreja Universal”, Folha de S.Paulo, 25 ago. 2010.

20. Denúncia do procurador federal Silvio Luís Martins de Oliveira, oferecida à 2a Vara Criminal Federal de São Paulo, 1 set. 2011.

21. Ibid.

22. Ibid.

23. Ibid.

24. “Chefe da Igreja Universal afastado por adultério”, O País (Angola), 17 fev. 2018.

25. Denúncia do procurador federal Silvio Luís Martins de Oliveira, oferecida à 2a Vara Criminal Federal de São Paulo, 1 set. 2011; Adauri Antunes Barbosa, Flavio Freire, Ricardo Galhardo e Soraya Aggege, “Empresas de fachada compraram TVs”, O Globo, 11 ago. 2009.

26. Denúncia do procurador federal Silvio Luís Martins de Oliveira, oferecida à 2a Vara Criminal Federal de São Paulo, 1 set. 2011.

27. Elvira Lobato, “Record pretende pressionar a Globo”, Folha de S.Paulo, 20 jul. 1999.

28. Id., “Deputado nega ter feito negociação”, Folha de S.Paulo, 18 jul. 1999.

29. Id., “Plano de Igreja Universal gera disputa judicial com ex-bispos”, Folha de S.Paulo, 15 dez. 2007; Nelito Fernandes, “Novas suspeitas contra o bispo”, Época, 4 jan. 2008.

30. Reinaldo Azevedo, “Justiça manda prosseguir denúncia de crime contra Edir Macedo”, Blog de Reinaldo Azevedo, Veja, 22 set. 2017.

31. Wálter Nunes, “O bispo se complica”, Época, 15 fev. 2008; “Edir Macedo é absolvido da acusação de falsidade ideológica em venda de TV em SC”, UOL, 26 nov. 2013; “Edir Macedo será julgado por falsidade ideológica em venda de TV em SC”, O Estado, 26 nov. 2013; e Leticia Faria, “Bispo Macedo explica à Justiça Federal compra da TV Record de Xanxerê”, Tudo sobre Xanxerê, 23 ago. 2013.

32. O inquérito policial do caso João Batista tinha o número 2007.61.81.005723-9, em trâmite inicialmente na 6a Vara Criminal Federal de São Paulo.

33. Ronald Freitas, Ricardo Amorim e Matheus Machado, “No país do dinheiro vivo”, Época, 20 fev. 2009.

34. Ibid.

35. Ibid.

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