domingo, 22 de dezembro de 2013

Deus e o Estado – Mikhail Bakunin

Editora: Domínio Público

Opinião: ★★☆☆☆

Tradução: Plínio Augusto Coelho

Páginas: 132

Sinopse: O que é a autoridade? É a força inevitável das leis naturais que se manifestam no encadeamento e na sucessão fatal dos fenômenos do mundo físico e do mundo social? Efetivamente, contra estas leis, a revolta é não somente proibida, é também impossível. Podemos conhecê-las mal, ou ainda não conhecê-las, mas não podemos desobedecê-las porque elas constituem a base e as próprias condições de nossa existência: elas nos envolvem, nos penetram, regulam todos os nossos movimentos, pensamentos e atos; mesmo quando pensamos desobedecê-las, não fazemos outra coisa que manifestar sua onipotência.



 

“Ouvi dizer que a necessidade de ar, como sensação irresistível, é mais intensa que a sede de água. Só por alguns minutos, garanto. Passados esses minutos, a gente morre e o desconforto da asfixia desaparece. Ao passo que a sede é um negócio demorado. Veja bem: o Cristo na Cruz morreu sufocado, mas a única coisa de que Ele se queixou foi de sede. Se a sede pode ser tão insuportável a ponto de o próprio Deus encarnado se queixar dela, imagine o efeito que exerce sobre um ser humano comum.”

 

 

“Os fatos têm primazia sobre as ideias.”

 

 

“A Bíblia, que é um livro muito interessante, e aqui e ali muito profundo, quando o consideramos como uma das mais antigas manifestações da sabedoria e da fantasia humanas, exprime esta verdade, de maneira muito ingénua, em seu mito do pecado original. Jeová, que, de todos os bons deuses adorados pelos homens, foi certamente o mais ciumento, o mais vaidoso, o mais feroz, o mais injusto, o mais sanguinário, o mais despótico e o maior inimigo da dignidade e da liberdade humanas, Jeová acabava de criar Adão e Eva, não se sabe por qual capricho, talvez para ter novos escravos. Ele pôs generosamente à disposição deles toda a terra, com todos os seus frutos e todos os seus animais, e impôs um único limite a este completo gozo: proibiu-os expressamente de tocar os frutos da árvore de ciência. Ele queria, pois, que o homem, privado de toda consciência de si mesmo, permanecesse um eterno animal, sempre de quatro patas diante do Deus “vivo”, seu criador e seu senhor. Mas eis que chega Satã, o eterno revoltado, o primeiro livre-pensador e o emancipador dos mundos! Ele faz o homem se envergonhar de sua ignorância e de sua obediência bestiais; ele o emancipa, imprime em sua fronte a marca da liberdade e da humanidade, levando-o a desobedecer e a provar do fruto da ciência.

Conhece-se o resto. O bom Deus, cuja presciência, constituindo uma das divinas faculdades, deveria tê-lo advertido do que aconteceria, pôs-se em terrível e ridículo furor: amaldiçoou Satã, o homem e o mundo criados por ele próprio, ferindo-se, por assim dizer, em sua própria criação, como fazem as crianças quando se põem em cólera; e não contente em atingir nossos ancestrais, naquele momento ele os amaldiçoou em todas as suas gerações futuras, inocentes do crime cometido por seus ancestrais. Nossos teólogos católicos e protestantes acham isto muito profundo e justo, precisamente porque é monstruosamente iníquo e absurdo. Depois, lembrando-se de que ele não era somente um Deus de vingança e cólera, mais ainda, um Deus de amor, após ter atormentado a existência de alguns bilhões de pobres seres humanos e tê-los condenado a um eterno inferno, sentiu piedade e para salvá-los, para reconciliar seu amor eterno e divino com sua cólera eterna e divina, sempre ávida de vítimas e de sangue, ele enviou ao mundo, como uma vítima expiatória, seu filho único, a fim de que ele fosse morto pelos homens. Isto é denominado mistério da Redenção, base de todas as religiões cristãs.”

 

 

“Esmagado por seu trabalho quotidiano, privado de lazer, de comércio intelectual, de leitura, enfim, de quase todos os meios e de uma boa parte dos estímulos que desenvolvem a reflexão nos homens, o povo aceita, na maioria das vezes, sem crítica e em bloco, as tradições religiosas.”

 

 

“Deus sendo tudo, o mundo real e o homem não são nada. Deus sendo a verdade, a justiça, o bem, o belo, a força e a vida, o homem é a mentira, a iniquidade, o mal, a feiura, a impotência e a morte. Deus sendo o senhor, o homem é o escravo. (...)

Eles dizem de uma só vez: Deus é a liberdade do homem, Deus é a dignidade, a justiça, a igualdade, a fraternidade, a prosperidade dos homens, sem se preocupar com a lógica fatal, em virtude da qual, se Deus existe, ele é necessariamente o senhor eterno, supremo, absoluto, e se este senhor existe, o homem é escravo; se ele é escravo, não há justiça, nem igualdade, nem fraternidade, nem prosperidade possível. De nada adiantará, contrariamente ao bom senso e a todas as experiências da história, eles representarem seu Deus animado do mais doce amor pela liberdade humana: um senhor, por mais que ele faça e por mais liberal que queira se mostrar, jamais deixa de ser, por isso, um senhor. Sua existência implica necessariamente a escravidão de tudo o que se encontra debaixo dele. Assim, se Deus existisse, só haveria para ele um único meio de servir à liberdade humana; seria o de cessar de existir.”

 

 

“Amoroso e ciumento da liberdade humana e considerando-a como a condição absoluta de tudo o que adoramos e respeitamos na humanidade, inverto a frase de Voltaire* e digo que, se Deus existisse, seria preciso aboli-lo.”

*: “Se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo”.

 

 

“Numa palavra, rejeitamos toda legislação, toda autoridade e toda influência privilegiada, titulada, oficial e legal, mesmo emanada do sufrágio universal, convencido de que ela só poderia existir em proveito de uma minoria dominante e exploradora, contra os interesses da imensa maioria subjugada.

Eis o sentido no qual somos realmente anarquistas.”

 

 

“Proclamar como divino tudo o que se encontra de grande, de justo, de real, de belo, na humanidade, é reconhecer implicitamente que a humanidade, por si própria, teria sido incapaz de produzi-lo; isto significa dizer que abandonada a si própria, sua própria natureza é miserável, iníqua, vil e feia. Eis-nos de volta à essência de toda religião, isto é, à difamação da humanidade pela maior glória da divindade.”

 

 

“O Estado não se chamará mais monarquia, chamar-se-á república, mas nem por isso deixará de ser Estado, isto é, uma tutela oficial e regularmente estabelecida por uma minoria de homens competentes, gênios, homens de talento ou de virtude, que vigiarão e dirigirão a conduta desta grande, incorrigível e terrível criança, o povo. Os professores da Escola e os funcionários do Estado chamar-se-ão republicanos; mas não deixarão de ser menos tutores, pastores, e o povo permanecerá o que foi eternamente até agora: um rebanho. Os tosquiados que se cuidem, pois onde há rebanho há necessariamente pastores para tosquiá-lo e comê-lo.

O povo, neste sistema, será eterno estudante e pupilo. Apesar de sua soberania totalmente fictícia, ele continuará a servir de instrumento a pensamentos e vontades, e consequentemente também a interesses que não serão os seus. Entre esta situação e o que chamamos de liberdade, a única verdadeira liberdade, há um abismo. Será sob novas formas, a antiga opressão e a antiga escravidão; e onde há escravidão, há miséria, embrutecimento, a verdadeira materialização da sociedade, tanto das classes privilegiadas quanto das massas.”

 

 

“A força do sentimento coletivo ou do espírito público já é muito séria hoje. Os homens com maior tendência a cometer crimes raramente ousam desafiá-la, enfrentá-la abertamente. Eles procurarão enganá-la, mas evitarão ofendê-la, a menos que se sintam apoiados por uma minoria qualquer. Nenhum homem, por mais possante que se imagine, jamais terá força para suportar o desprezo unânime da sociedade, ninguém poderia viver sem sentir-se apoiado pelo consentimento e pela estima, ao menos por certa parte desta sociedade. É preciso que um homem seja levado por uma imensa e bem sincera convicção, para que encontre coragem de opinar e de marchar contra todos, e nunca um homem egoísta, depravado e covarde terá esta coragem.”

 

 

“Ao nos falarem de Deus, eles creem, eles querem nos educar, nos emancipar, nos enobrecer e, ao contrário, eles nos esmagam e nos aviltam. Com o nome de Deus, eles imaginam poder estabelecer a fraternidade entre os homens, e, ao contrário, criam o orgulho, o desprezo; semeiam a discórdia, o ódio, a guerra; fundam a escravidão. Isto porque, com Deus, vêm os diferentes graus de inspiração divina; a humanidade se divide em homens muito inspirados, menos inspirados, não inspirados. Todos são igualmente nulos diante de Deus, é verdade; mas comparados uns aos outros, uns são maiores do que os outros; não somente pelo fato, o que não seria nada, visto que uma desigualdade de fato se perde por si mesma na coletividade, quando ela não se pode agarrar a nenhuma ficção ou instituição legal; mas pelo direito divino da inspiração: o que constitui logo em seguida uma desigualdade fixa, constante, petrificada. Os mais inspirados devem ser escutados e obedecidos pelos menos inspirados, pelos não inspirados. Eis o princípio da autoridade bem estabelecido, e com ele as duas instituições fundamentais da escravidão: a Igreja e o Estado.”

 

 

“Até o presente momento toda a história humana nada mais foi senão uma imolação perpétua e sangrenta de milhões de pobres seres humanos a uma abstração impiedosa qualquer: Deus, Pátria, poder do Estado, honra nacional, direitos históricos, liberdade política, bem público. Tal foi até agora o movimento natural, espontâneo e fatal das sociedades humanas. Nada podemos fazer para mudar isso, devemos suportá-lo em relação ao passado, como suportamos todas as fatalidades atuais. Deve-se acreditar que esta era a única via possível para a educação da espécie humana. Não devemos nos enganar: mesmo procurando informar amplamente sobre os artifícios maquiavélicos das classes governamentais, devemos reconhecer que nenhuma minoria teria sido bastante poderosa para impor todos estes horríveis sacrifícios às massas, se não tivesse havido, nelas mesmas, um movimento vertiginoso, espontâneo, levando-as a se sacrificarem sempre, ora a uma, ora a outra destas abstrações devoradoras que, vampiros da história, sempre se nutriram de sangue humano.”

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