quarta-feira, 16 de julho de 2025

A guerra do fim do mundo (Parte II), de Mario Vargas Llosa

Editora: Alfaguara

ISBN: 978-85-60281-49-7

Opinião: ★★★★☆

Tradução: Paulina Wacht e Ari Roitman

Páginas: 608

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Sinopse: Ver Parte I



— Foi uma surpresa ver este jovem chegar com o senhor — sorriu o barão, apontando para o míope. — Ele lhe contou que já trabalhou para mim? Naquele tempo admirava Victor Hugo e queria ser dramaturgo. Falava muito mal do jornalismo, na época.

— Ainda falo — disse a vozinha antipática.

— Pura mentira! — exclamou o barão. — Na verdade, sua vocação é a bisbilhotice, a influência, a calúnia, o ataque rasteiro. Era protegido meu, e quando passou para o jornal do meu adversário, transformou-se no mais vil dos meus críticos. Tome cuidado, coronel. É perigoso.

O jornalista míope estava radiante, como se lhe tivessem feito um elogio.

— Todos os intelectuais são perigosos — concordou Moreira César. — Fracos, sentimentais e capazes de usar as melhores idéias para justificar as piores safadezas. O país precisa deles, mas deve tratá-los como os bichos fazem com estranhos.

O jornalista míope começou a rir com tanta alegria que a baronesa, o doutor e Olímpio de Castro olharam para ele. Sebastiana servia o chá. O barão pegou Moreira César pelo braço e levou-o até um armário:

— Tenho um presente para o senhor. É um costume do sertão: oferecer um presente aos hóspedes. — Tirou uma garrafa de brandy empoeirada e mostrou a etiqueta, com uma piscadela: — Já sei que o senhor quer extirpar toda influência européia no Brasil, mas imagino que seu ódio não inclui também o brandy.

Depois que se sentaram, a baronesa serviu uma xícara de chá ao coronel e pôs dois torrões de açúcar.

— Meus fuzis são franceses e meus canhões, alemães — disse Moreira César, tão sério que os outros interromperam a conversa. — Não odeio a Europa, nem o brandy. Mas como não bebo álcool, não vale a pena desperdiçar assim um presente com alguém que não pode apreciá-lo.

— Guarde de lembrança, então — interveio a baronesa.

— Odeio os latifundiários locais e os mercadores ingleses que mantiveram esta região na pré-história — prosseguiu o coronel, num tom gelado. — Odeio quem se interessa mais pelo açúcar do que pelo povo do Brasil.

A baronesa servia seus convidados, imutável. O dono da casa, em compensação, tinha parado de sorrir. Mas sua voz continuou cordial:

— Os comerciantes norte-americanos que o Sul recebe de braços abertos se interessam pelo povo, ou só pelo café? — perguntou.

Moreira César tinha a resposta pronta:

— Com eles chegam as máquinas, a técnica e o dinheiro que o Brasil necessita para progredir. Porque progresso quer dizer indústria, trabalho, capital, como os Estados Unidos da América do Norte demonstraram. — Seus olhinhos frios piscaram ao acrescentar: — Isto é uma coisa que os donos de escravos nunca hão de entender, barão de Canabrava.

No silêncio que se seguiu a estas palavras ouviram-se as colherzinhas batendo nas xícaras e os goles do jornalista míope, que parecia fazer gargarejos.

— Não foi a República, foi a monarquia que aboliu a escravidão — recordou a baronesa, risonha como se tivesse dito uma piada, enquanto oferecia biscoitos aos convidados. — A propósito, sabia que nas fazendas do meu marido os escravos foram libertados cinco anos antes da lei?

— Não sabia — replicou o coronel. — Coisa louvável, sem dúvida.

Sorriu, forçado, e bebeu um gole. O ambiente agora estava tenso e não se relaxava com os sorrisos da baronesa, o súbito interesse do doutor Souza Ferreiro pelas borboletas da coleção, ou a história do capitão Olímpio de Castro sobre um advogado do Rio assassinado pela esposa. (...)

— Agradeço a sua franqueza — murmurou o barão. Sem dar um passo, viu-o sair do gabinete e, depois, aparecer lá fora. Viu-o montar no cavalo branco que seu ordenança segurava e partir, seguido pela escolta, em meio a uma nuvem de poeira.”

 

 

“— Conheço muito bem esses pobres-diabos de Canudos — disse, sentindo que suas mãos estavam úmidas. — São ignorantes, supersticiosos, e um charlatão pode fazê-los acreditar que está chegando o fim do mundo. Mas são também uma gente corajosa, sofrida, com um instinto preciso da dignidade. Não é absurdo? Vão ser sacrificados por serem monarquistas e anglófilos, eles que confundem o imperador Pedro II com um dos apóstolos, eles que não têm ideia de onde fica a Inglaterra e esperam que o rei Dom Sebastião saia do fundo do mar para defendê-los.”

 

 

“Pensava assim, que, aqui, algo diferente da razão comandava as coisas, os homens, o tempo, a morte, algo que seria injusto chamar de loucura e excessivamente genérico chamar de fé, superstição, desde a tarde em que ouviu pela primeira vez o Conselheiro, no meio de uma multidão que, ao escutar aquela voz profunda, alta, estranhamente impessoal, optou por uma imobilidade granítica, um silêncio em que se podia tocar. Mais que pelas palavras ou o tom majestoso do homem, o jornalista sentiu-se tocado, abalado, invadido por aquela quietude e silêncio em que o escutavam. Era como... era como... Buscou desesperadamente a semelhança com algo que sabia estar lá no fundo da memória, porque, com certeza, se viesse à consciência, poderia esclarecer o que estava sentindo. Sim: o candomblé. Uma vez, naqueles humildes terreiros dos negros de Salvador, ou nos becos atrás da estação da Calçada, assistindo aos ritos frenéticos daquelas seitas que cantavam em línguas africanas já perdidas, captou uma organização da vida, um conluio entre as coisas e os homens, o tempo, o espaço e a experiência humana tão totalmente prescindente da lógica, do senso comum, da razão como este que, na noite veloz que começava a desmanchar as silhuetas, sentia agora nesses seres que recebiam consolo, forças e sentido daquela voz profunda, cavernosa, dilacerada, tão despojada das necessidades materiais, tão orgulhosamente concentrada no espírito, em tudo o que não se come nem se veste nem se usa, os pensamentos, as emoções, os sentimentos, as virtudes. Enquanto ouvia, o jornalista míope pensou intuir o porquê de Canudos e por que perdurava essa aberração que era Canudos. Mas, quando a voz silenciou e se dissolveu o êxtase das pessoas, sua confusão voltou a ser a mesma de antes.”

 

 

— Vejo que a morte desse homem, lá no Rio, deixou o senhor muito impressionado — o jornalista míope tornou a tirá-lo de suas reflexões. — Mas todas as outras, não. Porque houve outras mortes, lá em Canudos.

Em que momento o visitante tinha se levantado? Agora estava em frente às estantes de livros, inclinado, torto, um quebra-cabeça humano, olhando-o, com fúria?, por trás de seus grossos óculos.

— É mais fácil imaginar a morte de uma pessoa que a de cem ou de mil — murmurou o barão. — Multiplicado, o sofrimento fica abstrato. Não é fácil comover-se por coisas abstratas.

— A menos que se veja passar de um a dez, a cem, a mil, a vários milhares — disse o jornalista míope. — Se a morte de Gentil de Castro foi absurda, em Canudos morreu muita gente por motivos não menos absurdos.

— Quanta gente? — murmurou o barão. Ele sabia que nunca haveria resposta, sabia que, como todo o resto da história, o número de mortos seria uma informação que historiadores e políticos reduziriam e aumentariam ao compasso de suas doutrinas e do proveito que pudessem tirar. Mas não pôde deixar de perguntar:

— Tentei saber — disse o jornalista, aproximando-se do outro com seu andar dúbio e desabando na poltrona. — Não há cálculo exato.

— Três mil? Cinco mil mortos? — sussurrou o barão, procurando seus olhos.

— Entre vinte e cinco e trinta mil.

— Está contando os feridos, os doentes? — objetou o barão.

— Não incluí os mortos do Exército — disse o jornalista. — Sobre eles, sim, há estatísticas precisas. Oitocentos e vinte e três, considerando as vítimas de epidemias e acidentes.

Houve um silêncio. O barão baixou os olhos. Serviu-se um pouco de suco, que mal provou e deixou de lado, porque estava morno e parecia um caldo.

— Em Canudos não podia haver trinta mil almas — disse. — Nenhum povoado do sertão pode abrigar essa quantidade de gente.

— O cálculo é relativamente simples — disse o jornalista. — O general Oscar mandou contar as casas. Não sabia? Está nos jornais: 5.783. Quanta gente vivia em cada casa? No mínimo, cinco ou seis. Quer dizer, entre vinte e cinco e trinta mil mortos.

Houve outro silêncio, longo, só interrompido pelo zumbido das mutucas.

— Em Canudos não houve feridos — disse o jornalista. — Os chamados sobreviventes, essas mulheres e crianças que o Comitê Patriótico do seu amigo Lélis Piedades distribuiu pelo Brasil, não estavam em Canudos, mas em localidades vizinhas. Do cerco só escaparam sete pessoas.

— Como sabe disso? — o barão levantou os olhos.

— Eu era um dos sete — disse o jornalista míope. E, como se quisesse evitar uma pergunta, emendou rapidamente: — A estatística que preocupava os jagunços era outra. Quantos morreriam de bala e quantos de faca.

Ficou em silêncio por bastante tempo; espantou um inseto com a cabeça.

— É um cálculo que não há maneira de fazer, naturalmente — continuou, espremendo as mãos. — Mas uma pessoa poderia nos dar pistas. Um homem interessante, barão. Participou do regimento de Moreira César e depois voltou com a quarta expedição, no comando de uma companhia do Rio Grande do Sul. O alferes Maranhão.

O barão o fitava, quase adivinhando o que ia dizer.

— Sabia que degolar é uma especialidade gaúcha? O alferes Maranhão e seus homens eram especialistas. Nele, a destreza se aliava com o gosto pela coisa. Com a mão esquerda pegava o jagunço pelo nariz, levantava a cabeça e com a outra fazia o corte. Um talho de vinte e cinco centímetros, que abria a carótida: a cabeça caía como se fosse de um fantoche.

— Está tentando me comover? — perguntou o barão.

— Se o alferes Maranhão nos dissesse quantos ele e seus homens degolaram, poderíamos saber quantos jagunços foram para o céu e quantos para o inferno — espirrou o míope. — A degola tinha esse outro problema. Despachava a alma para o inferno, ao que parece.”

 

 

— Mas não apenas viam o que não existia — acrescentou o jornalista míope. — Ainda por cima, ninguém viu o que havia lá de verdade.

— Frenólogos? — murmurou o barão. — Anarquistas escoceses?

— Padres — disse o jornalista míope. — Ninguém os menciona. E estavam lá, espionando para os jagunços ou lutando ombro a ombro ao seu lado. Mandando informações ou levando remédios, contrabandeando salitre e enxofre para fabricar explosivos. Não é surpreendente? Não era importante?

— Tem certeza? — o barão se interessou.

— Conheci um deles, quase posso dizer que fomos amigos — confirmou o jornalista míope. — O padre Joaquim, vigário de Cumbe.

O barão examinou seu hóspede:

— Aquele padre cheio de filhos? Aquele bêbado, praticante dos sete pecados capitais, estava em Canudos?

— É um bom indício do poder de persuasão do Conselheiro — afirmou o jornalista. — Além de transformar ladrões e assassinos em santos, catequizou os padres corrompidos e simoníacos do sertão. Homem inquietante, não é mesmo?

Aquela velha história subiu à memória do barão, chegando do fundo do tempo. Ele e Estela, seguidos por um pequeno séquito de homens armados, entravam em Cumbe e se dirigiam imediatamente à igreja, obedecendo aos sinos que chamavam para a missa de domingo. O famoso padre Joaquim, apesar dos seus esforços, não conseguia esconder as marcas do que devia ter sido uma noite em claro cheia de música, cachaça e saias. Lembrou-se da contrariedade da baronesa diante dos esquecimentos e erros do padre, as náuseas que este sentiu em plena cerimônia e sua fuga precipitada para vomitar. Tornou a ver, até, o rosto da sua concubina: não era, por acaso, aquela moça que chamavam de “fazedora de chuva”, porque sabia detectar cacimbas subterrâneas? De maneira que o padre farrista também tinha virado conselheirista.

— Sim, conselheirista e, de certa forma, herói — o jornalista soltou uma gargalhada que produziu o efeito de um deslizamento de pedrinhas na sua garganta; como costumava ocorrer, dessa vez o riso também terminou em espirros.

— Era um padre pecador, mas não era burro — refletiu o barão. — Quando estava sóbrio, podia-se conversar com ele. Homem lúcido e até com leituras. Não posso acreditar que também tenha caído sob o feitiço de um charlatão, como os analfabetos do sertão...

— A cultura, a inteligência, os livros não têm nada a ver com a história do Conselheiro — disse o jornalista míope. — Mas isto é o de menos. O mais surpreendente não é que o padre Joaquim tenha virado jagunço. É que o Conselheiro fez dele um valente, logo ele, que sempre foi covarde — piscou, aturdido. — É a conversão mais difícil, a mais milagrosa. Posso afirmar. Eu sei o que é o medo. E o padre de Cumbe era um homem com imaginação suficiente para saber sentir pânico, para viver no terror. E, no entanto...

Sua voz ficou oca, sem substância, e seu rosto fez uma careta. O que lhe havia acontecido, de repente? O barão percebeu que seu hóspede lutava para se acalmar, para vencer alguma coisa que o prendia. Tentou ajudar:

— E, no entanto...? — animou-o.

— E, no entanto, passou meses, talvez anos, viajando pelos povoados, fazendas, minas, comprando pólvora, dinamite, espoletas. Inventando mentiras para justificar essas compras que deviam chamar tanto a atenção. E, quando o sertão ficou cheio de soldados, sabe como arriscava a pele? Escondendo barricas de pólvora no baú dos objetos de culto, entre o sacrário, o cálice das hóstias, o crucifixo, a casula, os paramentos. Passava nas barbas da Guarda Nacional, do Exército. Dá para imaginar o que significa agir assim sendo covarde, tremendo, suando frio? Dá para imaginar a convicção que é preciso ter?

— O catecismo está cheio de histórias parecidas, meu amigo — murmurou o barão. — Os flechados, os devorados por leões, os crucificados, os... Mas, de fato, não é fácil imaginar o padre Joaquim fazendo essas coisas pelo Conselheiro.

— É preciso ter uma convicção profunda — repetiu o jornalista míope. — Uma segurança íntima, total, uma fé que, sem dúvida, o senhor nunca sentiu. Nem eu...

Balançou outra vez a cabeça como uma galinha inquieta e se alçou com seus longos braços ossudos até a poltrona de couro. Brincou alguns segundos com as mãos, suspicaz, antes de continuar:

— A Igreja condenou formalmente o Conselheiro como herético, supersticioso, agitador e perturbador de consciências. O arcebispo da Bahia proibiu os padres de deixá-lo predicar nos púlpitos. É preciso ter uma fé absoluta para, sendo padre, desobedecer à própria Igreja, ao próprio arcebispo, e correr o risco de se condenar para ajudar o Conselheiro.

— O que o deixa tão angustiado? — perguntou o barão. — A suspeita de que o Conselheiro fosse de fato um novo Cristo, que veio pela segunda vez redimir os homens?

Disse isto sem pensar e, assim que falou, ficou constrangido. Tinha pretendido fazer uma piada? Mas nem ele nem o jornalista míope sorriam. Viu o outro negar com a cabeça, o que podia ser uma resposta ou sua maneira de afugentar uma mosca.

— Até nisso pensei — disse o jornalista míope. — Se era Deus, se Deus o enviou, se Deus existia... Não sei. Seja como for, desta vez não ficaram discípulos para propagar o mito e levar a boa-nova aos pagãos. Só restou um, que eu saiba; duvido que seja suficiente...

Deu outra gargalhada e os espirros o ocuparam por um bom tempo. Quando terminou, estava com o nariz e os olhos irritados.

— Porém, mais que na sua possível divindade, pensei no espírito solidário, fraterno, no vínculo indestrutível que ele conseguiu forjar entre aquela gente — disse o jornalista míope, num tom patético. — Assombroso, comovente. A partir de 18 de julho, só estavam abertos os caminhos de Chorrochó e de Riacho Seco. O que seria lógico? Que o povo tentasse sair de lá, fugir por esses trajetos antes que também fossem cortados, não é mesmo? Mas foi ao contrário. As pessoas queriam entrar em Canudos, continuavam chegando de todos os lados, desesperadas, apressadas, para se meter na ratoeira, no inferno, antes que os soldados fechassem o cerco. Percebe? Lá nada era normal.

— O senhor falou de padres no plural — interrompeu o barão. Aquele assunto, a solidariedade e a vontade de imolação coletiva dos jagunços, deixava-o perturbado. Tinha surgido várias vezes no diálogo, e ele sempre o evitava, como agora.

— Não conheci os outros — respondeu o jornalista, parecendo também aliviado por mudar de assunto. — Mas existiam, o padre Joaquim recebia informações e ajuda deles. E, afinal, talvez até estivessem lá, espalhados, perdidos na massa de jagunços. Alguém me falou de um tal padre Martins. Sabe quem é? O senhor o conheceu, faz anos, muitos anos. A filicida de Salvador, isso lhe recorda alguma coisa?

— A filicida de Salvador? — perguntou o barão.

— Eu assisti ao julgamento quando ainda usava calças curtas. Meu pai era defensor público, advogado de pobres, e a defendeu. Eu a reconheci, apesar de não vê-la, apesar de já terem passado vinte ou vinte e cinco anos. O senhor lia jornais, não lia? Todo o Nordeste se apaixonou pelo caso de Maria Quadrado, a filicida de Salvador. O imperador transformou sua pena de morte em prisão perpétua. Não se lembra? Pois ela também estava em Canudos. Vê como é uma história sem fim?

— Disso eu já sei — disse o barão. — Todos os que tinham contas com a justiça, com a própria consciência ou com Deus encontraram refúgio em Canudos. Era natural.

— Que se refugiassem lá, sim, mas não que se tornassem pessoas diferentes.

 

 

“— Você sabe quem é Pajeú, não é mesmo, filha? Já ouviu, certamente, as coisas que contam dele. (...) É tudo verdade, e até menos que a verdade — acrescentou, do mesmo modo desanimado. — As violências, mortes, roubos, saques, vinganças, as ferocidades gratuitas, como cortar orelhas, narizes. Uma vida de loucura e inferno. E, entretanto, aí está, ele também, como João Abade, como Taramela, Pedrão e os outros... O Conselheiro fez o milagre, transformou o lobo em ovelha, colocou-o no redil. E por transformar lobos em ovelhas, por fazer mudarem de vida pessoas que só conheciam o medo e o ódio, a fome, o crime, a pilhagem, por espiritualizar a brutalidade destas terras, mandam exércitos e exércitos atacá-los, exterminá-los. Que confusão tomou conta do Brasil, do mundo, para que se cometa uma injustiça dessas? Não seria o caso de dar razão, também nisso, ao Conselheiro e pensar que, de fato, Satanás tomou conta do Brasil, que a República é o Anticristo?

 

 

“— Mas não podemos dizer a ele de repente. Não é preciso magoá-lo. A suscetibilidade de gente como Pajeú é uma doença terrível. Outra coisa que sempre me surpreendeu é esse senso da honra tão exagerado. São uma chaga viva. Não têm nada, mas lhes sobra honra. É sua riqueza.”

 

 

— História de doidos — disse, entre os dentes. — O Conselheiro, Moreira César, Gall. Canudos enlouqueceu meio mundo. O senhor também, naturalmente.

Mas um pensamento calou a sua boca: “Não, eles já eram loucos antes. Só Estela perdeu a razão por causa de Canudos”. Precisou fazer um esforço para conter as lágrimas. Não se lembrava de ter chorado quando era criança ou rapaz. Mas, desde o que houve com a baronesa, chorava muitas vezes, em seu gabinete, durante as noites de insônia.

— Mais que de doidos, é uma história de mal-entendidos — voltou a corrigir o jornalista míope. — Quero saber uma coisa, barão. E lhe peço que me diga a verdade.

— Desde que me afastei da política, quase sempre digo a verdade — sussurrou o barão. — O que quer saber?

— Se houve contatos entre o Conselheiro e os monarquistas — respondeu o jornalista míope, espiando sua reação. — Não falo do grupinho de saudosos do Império que tinham a ingenuidade de proclamar-se publicamente, como Gentil de Castro. E sim de gente como vocês, os autonomistas, monarquistas de coração que, não obstante, ocultavam o fato. Tiveram contatos com o Conselheiro? Vocês o instigaram?

O barão, que ouvira aquilo com um ar zombeteiro, começou a rir.

— Não descobriu nesses meses em Canudos? Viu políticos baianos, paulistas, cariocas entre os jagunços?

— Já lhe disse que não vi grande coisa — respondeu a voz antipática. — Mas ouvi dizer que o senhor mandou milho, açúcar, rebanhos de Calumbi.

— Então, também deve saber que não foi por minha própria vontade, mas forçado — disse o barão. — Todos os fazendeiros da região tiveram que fazer isso, para não queimarem as fazendas. Não é a maneira certa de lidar com os bandidos do sertão? Se você não pode matá-los, tem que alugá-los. Se eu tivesse a menor influência sobre eles, não teriam destruído Calumbi e minha mulher estaria bem. Os fanáticos não eram monarquistas, nem sabiam o que era o Império. É fantástico que o senhor não tenha entendido isto, apesar de...

O jornalista míope tampouco o deixou prosseguir esta vez:

— Não sabiam, mas mesmo assim eram monarquistas, se bem que de um modo que nenhum monarquista entenderia — disse, depressa e piscando. — Eles sabiam que a monarquia aboliu a escravidão. O Conselheiro elogiava a princesa Isabel por ter dado a liberdade aos escravos. Parecia convencido de que a monarquia caiu porque aboliu a escravidão. Em Canudos todos acreditavam que a República era escravagista, que queria restaurar a escravidão.

— Acha que eu e meus amigos incutimos essas ideias no Conselheiro? — tornou a sorrir o barão. — Se alguém nos propusesse tal coisa, pensaríamos que era um imbecil.

— No entanto, isso explica muitas coisas — levantou a voz o jornalista. — Por exemplo, o ódio ao censo. Eu espremia os miolos, tentando entender, e aí está a explicação. Raça, cor, religião. Para que a República podia querer saber a raça e a cor das pessoas, a não ser para escravizar os negros novamente? E para que saber a religião, a não ser para identificar os fiéis antes da matança?

— É esse mal-entendido que explica Canudos? — disse o barão.

— Um deles — respirou com dificuldade o jornalista míope. — Eu sabia que os jagunços não tinham sido enganados por nenhum politiqueiro. Mas queria ouvir o senhor dizer.

— Pois já ouviu — disse o barão. O que diriam os meus amigos se tivessem antevisto uma maravilha dessas? Homens e mulheres humildes do sertão levantando-se em armas para atacar a República, com o nome da infanta dona Isabel nos lábios! Não, era irreal demais para que algum monarquista brasileiro pudesse cogitar isso, até mesmo em sonhos.

 

 

— É triste que as crianças tenham que matar e morrer lutando — ouviu-o murmurar. — Atanásio tem quatorze anos, Joaquinzinho ainda não fez treze. E estão há um ano matando, deixando-se matar. Não é triste?

— É — balbuciou o jornalista míope. — Sim. É sim. Eu adormeci. Como está a guerra, padre?

— Estão bloqueados na São Pedro — disse o padre de Cumbe. — A barricada que Antônio Vilanova construiu esta manhã.

— Quer dizer, aqui, dentro da cidade? — perguntou o míope.

— A trinta passos daqui.

São Pedro. A rua que cortava Canudos do rio até o cemitério, paralela à Campo Grande, uma das poucas que merecia o nome de rua. Agora era uma barricada, e lá estavam os soldados. A trinta passos. Sentiu frio. O rumor das preces subia, baixava, desaparecia, voltava, e o jornalista míope pensou que nas pausas se ouviam, lá fora, a voz rouca do Conselheiro ou a vozinha aflautada do Beatinho, respondidas, em um coro de ave-marias, pelas mulheres, os feridos, os velhos, os agonizantes, os jagunços que estavam atirando. O que os soldados pensariam dessas orações?

— Também é triste que um padre tenha que empunhar o fuzil — disse o padre Joaquim, tocando na arma que usava na altura dos joelhos à moda dos jagunços. — Eu não sabia atirar. Era como o padre Martins, nem para matar uma corça.

Seria aquele velhinho o mesmo homem que o jornalista míope tinha visto choramingar, morto de pânico, diante do coronel Moreira César?

— O padre Martins? — perguntou.

Adivinhou a desconfiança do padre Joaquim. Então havia mais religiosos em Canudos. Imaginou-os municiando a arma, apontando, atirando. Por acaso a Igreja não estava com a República? O Conselheiro não tinha sido excomungado pelo arcebispo? Não foram lidas condenações ao fanático, herético e demente de Canudos em todas as paróquias? Como podia haver padres matando pelo Conselheiro?

— Está ouvindo? Escute, escute só: Fanáticos! Sebastianistas! Canibais! Ingleses! Assassinos! Quem veio até aqui matar crianças e mulheres, degolar pessoas? Quem obrigou crianças de treze e quatorze anos a virarem guerreiros? Você está aqui, vivo, não é mesmo?

O terror o invadiu dos pés à cabeça. O padre Joaquim ia entregá-lo à vingança e ao ódio dos jagunços.

— Porque você veio com o Cortapescoços, não é mesmo? — continuou o padre. — E no entanto lhe deram teto, comida, hospitalidade. Será que os soldados também se comportariam assim com um homem de Pedrão, de Pajeú, de João Abade?

Com a voz estrangulada, balbuciou:

— Sim, sim, tem toda razão. Estou muito agradecido por ter me ajudado tanto, padre Joaquim. Eu juro, juro.

— Morrem às dezenas, às centenas — o padre de Cumbe apontou para a rua. — Por quê? Por acreditar em Deus, para adequar suas vidas à lei de Deus. A matança dos inocentes, outra vez.”

 

 

“— É preciso entender essas coisas — dizia agora o jornalista míope, com convicção, com energia, com raiva. — Eu quase não podia vê-las, naturalmente. Muito menos entendê-las.

— De que está falando? — disse o barão. — Eu me distraí, perdi o fio da meada.

— Das mulheres e dos párvulos — resmungou o jornalista míope. — Eram chamados assim. Párvulos. Quando os soldados tomaram as aguadas, eles iam com as mulheres, à noite, roubar umas latas de água, para que os jagunços pudessem continuar lutando. Eles, só eles. E faziam o mesmo, também, com aqueles restos imundos que chamavam de comida. Ouviu bem?

— Devo me assombrar? — disse o barão. — Ficar admirado?

— Deve tentar entender — murmurou o jornalista míope. — Quem dava essas ordens? O Conselheiro? João Abade? Antônio Vilanova? Quem decidiu que só as mulheres e crianças se arrastariam até a Fazenda Velha para roubar água, sabendo que os soldados estavam esperando nas aguadas para brincar de tiro ao alvo, sabendo que de cada dez só voltariam um ou dois? Quem decidiu que os combatentes não deviam tentar esse suicídio menor, pois se reservavam para a forma superior de suicídio que era morrer lutando? — O barão viu-o, de novo, buscando os seus olhos com angústia. — Imagino que não foi o Conselheiro, nem os chefes. Eram decisões espontâneas, simultâneas, anônimas. De outro modo, não as teriam respeitado, não teriam ido para o matadouro com tanta convicção.

— Eram fanáticos — disse o barão, consciente do desprezo que havia em sua voz. — O fanatismo faz as pessoas agirem assim. Nem sempre são motivos elevados, sublimes, que explicam o heroísmo. Também o preconceito, a estreiteza mental, as ideias mais estúpidas.”

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