sábado, 29 de março de 2025

O contrato-social ou Princípios de Direito Político (Parte II), de Jean-Jacques Rousseau

Editora: L&PM

ISBN: 978-85-2541-665-0

Tradução: Paulo Neves

Opinião: ★★★★☆

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Páginas: 152

Sinopse: Ver Parte I



“Toda ação livre tem duas causas, que concorrem para produzi-la: uma, moral, a vontade que determina o ato, e a outra, física, o poder que a executa. Quando caminho na direção de um objeto, primeiro é necessário que eu lá queira ir; em segundo lugar, que meus pés me levem. Se um paralítico desejar correr, se um homem ágil não o quiser, ambos não sairão do lugar. O corpo político possui móbiles idênticos, nele também distinguem-se a força e a vontade, esta sob o nome de poder legislativo, a outra sob o nome de poder executivo. Sem a cooperação de ambas, nada se faz ou se deve fazer. Vimos que o poder legislativo pertence ao povo e só a ele pode pertencer. É fácil perceber pelos princípios anteriormente expostos, que o poder executivo não pode pertencer à generalidade enquanto legisladora ou soberana, porque este poder consiste apenas em atos particulares que não são de modo algum da jurisdição da lei, nem, por conseguinte, da do Soberano cujos atos não podem ser senão leis. A força pública precisa, pois, de um agente próprio que a reúna e a ponha em funcionamento segundo as diretivas da vontade geral, que sirva à comunicação do Estado e do Soberano, e faça de alguma forma na pessoa pública o que a união da alma e do corpo faz no homem. Eis em que consiste no Estado a razão do governo, enganosamente confundida com o Soberano, do qual é somente o ministro. O que é então o governo? Um corpo intermediário, estabelecido entre os súditos e o Soberano, para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política.”

 

 

“Além disso, não seria possível alterar nenhum dos três termos, sem imediatamente romper a proporção. Se o soberano quiser governar, ou se o magistrado quiser legislar, ou se os súditos se recusarem a obedecer, a desordem sucederá à regra, a força e a vontade não mais agirão de acordo, e o Estado, uma vez desunido, tombará no despotismo ou na anarquia.”

 

 

“Ora, quanto menos as vontades particulares se relacionam com a vontade geral, isto é, os costumes às leis, tanto mais deve aumentar a força repressiva. Portanto, para ser bom, deve o governo ser relativamente mais forte à medida que o povo seja mais numeroso.”

 

 

“No entanto, para que o corpo do governo tenha uma existência, uma vida real que o distinga do corpo do Estado, a fim de que todos os seus membros possam agir de comum acordo e responder à finalidade para a qual foi instituído, é-lhe necessário um eu particular, uma sensibilidade comum a seus membros, uma força, uma vontade própria, tendentes à sua conservação. Tal existência particular supõe assembleias, conselhos, um poder de deliberar, de decidir, direitos, títulos, privilégios exclusivos do Príncipe, que tornam a condição do magistrado mais honorável à proporção que mais penosa. As dificuldades estão na maneira de ordenar no todo, esse todo subalterno, de forma que não altere a constituição geral ao fortalecer a sua, que distinga sempre sua força particular, destinada à própria conservação, da força pública destinada à conservação do Estado, e que, em suma, esteja sempre pronto a sacrificar o Governo ao povo, e não o povo ao Governo.”

 

 

“Quanto mais numerosos forem os magistrados, mais fraco será o governo.”

 

 

“Posto isto, ponha-se o governo por inteiro nas mãos de um só homem: eis completamente reunidas a vontade particular e a vontade do corpo, no mais alto grau de intensidade que possa existir. Ora, como é do grau da vontade que depende o uso da força, e como a força absoluta do Governo não varia, infere-se que o mais ativo dos governos é o exercido por uma só pessoa.”

 

 

“Não é conveniente que quem redija as leis as execute, nem que o corpo do povo desvie a atenção das ideias gerais para se concentrar nos objetos particulares. Nada é mais perigoso que a influência dos interesses privados nos negócios públicos; e o abuso das leis por parte do Governo constitui um mal menor que a corrupção por parte do legislador, consequência infalível dos propósitos particulares. Sendo o Estado então alterado em sua substância, toda reforma torna-se impossível. Um povo que nunca abusasse do governo, também jamais abusaria da independência; um povo que sempre governasse bem, não teria necessidade de ser governado.”

 

 

“Tomando o termo no rigor da acepção, nunca existiu e nunca existirá verdadeira democracia. Contraria a ordem natural que a maioria governe e que a minoria seja governada. É impossível admitir que esteja o povo incessantemente reunido em assembleias para ocupar-se dos assuntos públicos; e percebe-se facilmente que ele não poderia estabelecer para isso comissões, sem mudar a forma da administração. (...) Aliás, quantas coisas difíceis de reunir esse Governo supõe! Primeiramente, um Estado muito pequeno, em que seja fácil congregar o povo, e onde cada cidadão possa facilmente conhecer todos os outros. Em segundo lugar, uma grande simplicidade de costumes, que evite o acúmulo de questões e as discussões espinhosas; em seguida, bastante igualdade nas condições e nas fortunas, sem o que a igualdade não poderia subsistir muito tempo nos direitos e na autoridade. Enfim, pouco ou nenhum luxo, pois o luxo ou é o efeito das riquezas, ou as torna necessárias, já que corrompe ao mesmo tempo ricos e pobres, uns pela posse, outros pela cobiça, vende a pátria à lassidão e à vaidade, e afasta do Estado todos os cidadãos para escravizá-los uns aos outros, e todos à opinião.”

 

 

“Acrescentemos que não há governo tão sujeito às guerras civis e às agitações intestinas quanto o democrático ou popular, pois que não há nenhum outro que tenda tão frequente e continuamente a mudar de forma, nem que demande mais vigilância e coragem para se manter na sua. É sobretudo nessa constituição de governo que o cidadão se deve armar de força e de constância, e dizer em cada dia de sua vida, no fundo do coração, o que dizia um virtuoso palatino* na dieta da Polônia: Malo periculosam libertatem quam quietum servitium**. Se houvesse um povo de deuses, ele se governaria democraticamente. Tão perfeito governo não convém a homens.”

* O palatigo (governante) da Posmânia, pai do rei da Polônia, duque de Lorena.

** É preferível uma liberdade agitada a uma servidão tranquila.

 

 

“Contudo, à medida que a desigualdade de instituição sobrepujou a desigualdade natural, a riqueza ou o poder foram preferidos à idade, e a aristocracia tornou-se eletiva. Finalmente, sendo o poder transmitido juntamente com os bens dos pais aos filhos, enobrecendo as famílias, torna o governo hereditário, e viram-se então senadores de apenas vinte anos. Portanto, há três espécies de aristocracia: natural, eletiva e hereditária. A primeira só convém a povos simples; a terceira é o pior de todos os governos; a segunda é a melhor: é a aristocracia propriamente dita. Afora a vantagem da distinção dos dois poderes, ela possui a da escolha de seus membros, pois no governo popular, todos os cidadãos nascem magistrados, enquanto o aristocrático os limita a um pequeno número, o qual é escolhido através de eleição, meio pelo qual a probidade, as luzes, a experiência, e todas as demais razões de preferência e de estima públicas, constituem outras tantas novas garantias de que seremos sabiamente governados. Além disso, as assembleias se fazem mais comodamente, os negócios são mais bem discutidos, são expeditas com maior ordem e diligência; o crédito do Estado é mais bem sustentado no estrangeiro por veneráveis senadores que por uma multidão desconhecida e menosprezada. Numa palavra, a ordem mais justa e natural é a em que os mais sábios governem a multidão, quando estamos seguros de que a governarão em benefício dela, e não em benefício próprio. Não convém multiplicar em vão as instâncias, nem fazer com vinte mil homens o que cem homens escolhidos podem fazer ainda melhor. Deve-se, porém, observar que o interesse do corpo começa aqui a dirigir com menos eficiência a força do público no que tange à vontade geral, e que outra tendência inevitável subtrai das leis uma parte do poder executivo.”

 

 

“Contudo, se a aristocracia exige algumas virtudes a menos que o governo popular, ela requer também, em troca, outras que lhe são próprias, tais como a moderação por parte dos ricos, e o contentamento por parte dos pobres; pois uma igualdade rigorosa parece estar aí deslocada: nem mesmo Esparta a observou. De resto, se esta forma de governo comporta certa desigualdade de riqueza, é em geral para que a administração dos assuntos públicos seja confiada aos que podem dedicar-lhes todo o seu tempo, mas não, como pretendia Aristóteles, por serem os ricos sempre os preferidos. Ao contrário, convém que uma escolha oposta ensine por vezes ao povo que no mérito dos homens há razões de preferência mais importantes do que a riqueza.”

 

 

“Contudo, se não há governo mais vigoroso que a monarquia, não há outro em que a vontade particular tenha mais preponderância e mais facilmente domine as outras; tudo se dirige para o mesmo objetivo, é verdade, mas esse objetivo não é o da felicidade pública; e a própria força da administração não cessa de prejudicar o Estado. Os reis desejam ser absolutos, e há muito lhes dizem que a melhor maneira de o serem consiste em se fazerem amar por seus povos. Esta máxima é muito bela e inclusive verdadeira em certos aspectos. Infelizmente, sempre zombarão dela nas cortes. O poder oriundo do amor dos povos é sem dúvida o maior, mas é precário e condicional; os Príncipes jamais se contentarão com ele. Os melhores reis desejam ser malvados quando lhes aprouver, sem cessarem de ser os senhores. Por mais que se esforce um orador político em adverti-los de que a força do povo é a sua própria e de que seu maior interesse deve consistir em que o povo seja florescente, numeroso, temível, eles sabem perfeitamente que tal coisa não é verdade. O interesse pessoal dos reis é, primeiramente, que o povo seja fraco, miserável, e que jamais possa resistir-lhes. Admito que, imaginando os súditos perfeitamente submissos, o interesse do Príncipe seria então de que o povo fosse poderoso, a fim de que esse poder, sendo o dele, o tornasse temível a seus vizinhos; porém, como tal interesse é secundário e subordinado, e como as duas suposições são incompatíveis, é natural que os Príncipes sempre deem preferência à preferência máxima que lhes é mais imediatamente útil; é o que Samuel mostrou com vigor aos hebreus; é o que Maquiavel demonstrou com evidência. Fingindo dar lições aos reis, ele deu grandes lições aos povos. O Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos.”

 

 

“É mais fácil conquistar do que governar. Com uma alavanca adequada, pode-se com um dedo abalar o mundo, mas sustentá-lo requer ombros de Hércules.”

 

 

“Tudo concorre para privar de justiça e de razão um homem educado para comandar os outros. Dá muito trabalho, segundo se diz, ensinar aos jovens príncipes a arte de reinar; e não me parece que tal educação lhes seja proveitosa. Fariam melhor em ensinar-lhes a arte de obedecer. Os maiores reis que a história celebrou não foram de modo algum educados para reinar. É esta uma ciência que sempre se possui menos depois de tê-la aprendido, e que melhor se adquire obedecendo que dirigindo. Nam utilissimus idem ac brevissimus bonarum malarumque rerum delectus, cogitare quid aut nolueris sub alio principe, aut volueris*.”

* O meio mais cômodo e mais rápido de discernir o bem do mal é perguntar-te o que terias ou não terias desejado se um outro, que não tu, tivesse sido rei.” (Tácito).

 

 

“Sabemos bem que é preciso suportar um mau governo quando o temos; a questão seria encontrar um bom.”

 

 

“Por outro lado, nem todos os governos possuem a mesma natureza; há os dotados de maior ou menor voracidade, e as diferenças estão baseadas no princípio segundo o qual, quanto mais as contribuições públicas se distanciam de sua fonte, tanto mais elas se tornam onerosas. Não é pela quantidade de tributos que se deve medir essa carga, mas pelo caminho a ser feito por elas a fim de regressarem às mãos das quais saíram. Quando essa circulação é realizada e bem estabelecida, pague-se pouco ou muito, o povo é sempre rico e as finanças caminham sempre a contento. Quando, ao contrário, mesmo que o povo pouco contribua, se esse pouco não lhe retorna, ele logo se esgota continuando a dar: o Estado jamais será rico, e o povo será sempre necessitado.”

 

 

“Enfim, ao invés de governar os súditos para fazê-los felizes, o despotismo os faz miseráveis para governá-los.”

 

 

“Os lugares ingratos e estéreis, onde o produto não vale o trabalho, devem permanecer incultos e desertos, ou povoados unicamente por selvagens. Os lugares onde o trabalho dos homens rende exatamente o necessário devem ser habitados pelos povos bárbaros, pois qualquer politia aí seria impossível. As regiões em que o excesso do produto sobre o trabalho é medíocre convém aos povos livres; e aquelas, cujo solo fértil e abundante fornece grande quantidade de produtos em troca de pouco trabalho, devem ser governadas monarquicamente, para que o luxo do príncipe consuma o excesso do supérfluo dos súditos; pois é melhor que esse excesso seja absorvido pelo governo do que ser dissipado pelos particulares. Há exceções, eu o sei; mas justamente essas exceções confirmam a regra, nisso em que, cedo ou tarde, produzem revoluções, as quais reconduzem as coisas à ordem natural.”

 

 

“Os países menos povoados são assim os mais expostos à tirania: os animais ferozes reinam apenas nos desertos.”

 

 

“O granizo por vezes desola alguns cantões, mas raramente provoca a penúria. As rebeliões, as guerras civis, muito assustam os chefes, mas não são responsáveis pelas verdadeiras desgraças dos povos, que podem inclusive ter algum sossego enquanto disputam quem irá tiranizá-los. É de seu estado permanente que nascem suas prosperidades ou suas reais calamidades; quando tudo é esmagado pelo despotismo, tudo então perece; e os chefes, ao destruir os povos à vontade, ubi solitudinem faciunt pacem appellant (fazem a solidão e chamam isso de paz).”

 

 

“Um pouco de agitação dá energia às almas, e o que faz realmente prosperar a espécie é menos a paz do que a liberdade.”

 

 

“A aristocracia hereditária é a pior das administrações.”

 

 

“(...) Pois as palavras não influem sobre as coisas, e, quando o povo tem chefes que governam por ele, não importa o nome usado por esses chefes, é sempre de aristocracia que se trata.”

 

 

“Quando o Estado se dissolve, seja qual for o abuso do governo, recebe o nome de anarquia. Distinguindo: a Democracia degenera em oclocracia (governo da plebe), a Aristocracia em oligarquia: Posso ainda acrescentar que a Realeza degenera em tirania; mas este último termo é equívoco e requer explicação. No sentido vulgar do termo, o tirano é um rei que governa com violência e sem respeito à justiça e às leis. No sentido preciso, um tirano é um indivíduo que se arroga a autoridade real sem a ela ter direito. É assim que os gregos entendiam o termo tirano: davam-no indiferentemente aos bons ou maus príncipes cuja autoridade não era legítima. Assim sendo, tirano e usurpador são dois termos perfeitamente sinônimos. Para dar diferentes nomes a diferentes coisas, chamo tirano o usurpador da autoridade real, e déspota o usurpador do poder soberano. Tirano é quem se intromete, contra as leis, a governar segundo as leis; déspota é quem se coloca acima das próprias leis. Assim, o tirano pode não ser déspota, mas o déspota é sempre tirano.”

 

 

“O princípio da vida política está na autoridade soberana. O poder legislativo é o coração do Estado; o poder executivo é o cérebro que põe em movimento todas as partes. O cérebro pode ser atingido pela paralisia e o indivíduo continuar a viver ainda. Um homem fica imbecil e sobrevive: mas, assim que o coração cessa suas funções, o animal morre.”

 

 

“Os limites do possível nas coisas morais são menos estreitos do que nós supomos. São nossas fraquezas, nossos vícios, nossos preconceitos que os retraem. As almas mesquinhas não acreditam nos grandes homens: os vis escravos sorriem com um ar de troça à palavra liberdade.”

 

 

“A cada palácio que vejo erguerem na capital, acredito ver espoliado todo um país.”

 

 

“Esses intervalos de suspensão em que o príncipe reconhece ou deve reconhecer um superior atual, sempre lhe foram temíveis, e as assembleias do povo, que são a égide do corpo político e o freio do Governo, foram em todas as épocas o horror dos chefes: portanto, eles nunca poupam cuidados, nem objeções, nem dificuldades, nem promessas, a fim de desanimarem os cidadãos. Quando estes são avaros, covardes, pusilânimes, mais amantes do repouso que da liberdade, não resistem por muito tempo aos redobrados esforços do governo; assim, aumentando sem cessar a força da resistência [do Governo], a autoridade soberana por fim se dissipa, e a maior parte das cidades tomba e perece antes do tempo.”

 

 

“Assim que o serviço público cessa de ser a principal preocupação dos cidadãos, e eles preferem servir com a sua bolsa e não com sua pessoa, o Estado já se encontra próximo da ruína. É preciso marchar em combate? Eles pagam as tropas e permanecem em casa. É preciso ir à assembleia? Eles nomeiam os deputados e continuam em casa. À força de dinheiro e preguiça, dispõem finalmente de soldados para escravizar a pátria e de representantes para a venderem. É a balbúrdia do comércio e das artes, é o ávido interesse de lucro, é a lassidão e o amor às comodidades que transformam os serviços pessoais em dinheiro. Cede-se uma parte do lucro para aumentá-los a bel-prazer. Deem dinheiro: logo terão grilhões. A palavra finança é um termo de escravo; ela é desconhecida na cidade. Num Estado verdadeiramente livre, os cidadãos fazem tudo com seus próprios braços, e nada com o dinheiro; longe de pagarem para se isentar de tais serviços, pagarão para executá-los pessoalmente. Estou bem distante das ideias comuns, pois acho as corveias menos contrárias à liberdade do que os impostos. Quanto melhor estiver o Estado constituído, tanto mais os negócios públicos prevalecerão sobre os particulares no espírito dos cidadãos. Há inclusive muito menos negócios privados, pois, a soma de felicidade comum fornece uma porção mais considerável à de cada indivíduo, de modo que resta-lhe menos a procurar em suas ocupações particulares. Numa Cidade bem dirigida, todos votam nas assembleias; sob um mau Governo, ninguém aprecia dar um passo para isso fazer, porque ninguém se toma de interesse pelo que lá se faz, prevendo que a vontade geral não prevalecerá, e porque, enfim, os cuidados particulares tudo absorvem. As boas leis fazem surgir outras melhores; as más conduzem às piores. Tão logo diga alguém, referindo-se aos assuntos do Estado “que me importa?”, pode-se ter a certeza de que o Estado está perdido.”

 

 

“Os deputados do povo, portanto, não são nem podem ser seus representantes; são quando muito seus comissários e nada podem concluir definitivamente. São nulas todas as leis que o povo não tenha ratificado; deixam de ser leis. O povo inglês pensa ser livre, mas está completamente iludido; apenas o é durante a eleição dos membros do Parlamento; tão logo estes são eleitos, é de novo escravo, não é nada. Nos curtos momentos em que lhe é dado desfrutar sua liberdade, o uso que faz dela mostra bem que merece perdê-la.”

 

 

“A ideia de Representantes é moderna: ela nos vem do governo feudal, desse iníquo e absurdo governo, no qual a espécie humana se degrada e o termo homem é desonrado. Nas antigas repúblicas, e mesmo nas monarquias, jamais o Povo teve representantes: não se conhecia sequer essa palavra. É bastante singular o fato de que, em Roma, onde os tribunos eram tão sagrados, ninguém tenha imaginado que eles pudessem usurpar as funções do povo, e que, em meio de uma tão grande multidão, nunca terem tentado passar um só decreto oriundo de sua própria cabeça.”

 

 

“Onde o direito e a liberdade tudo representam, os inconvenientes nada são. No seio desse povo sábio, tudo estava posto em sua justa medida; ele permitia aos lictores* fazerem o que os tribunos não teriam ousado, pois não receava dos lictores a veleidade de os representar.”

* Guardas que precediam nas ruas os magistrados romanos.

 

 

“Suponho, aqui, o que acredito haver já demonstrado: que não existe no Estado nenhuma lei fundamental que não possa ser revogada, nem mesmo o pacto social; porque, se todos os cidadãos se reunissem com o fim de romper esse pacto, ninguém poderia duvidar de que tal rompimento não fosse legítimo. Grotius chega mesmo a pensar que cada qual tem o direito de renunciar ao Estado de que é membro e retomar sua liberdade natural e seus bens, retirando-se do país*. Ora, seria absurdo não poderem decidir os cidadãos reunidos o que pode cada um deles separadamente.”

* Obviamente, não se abandona o país para furtar-se ao dever e deixar de servir a Pátria no momento em que ela tem necessidade de nós. A fuga seria então criminosa e punível; isso não seria retirada; mas deserção.

 

 

“A paz, a união e a igualdade são inimigas das sutilezas políticas. Os homens corretos e simples são difíceis de enganar, justamente em virtude de sua simplicidade; os engodos, os pretextos refinados, não os iludem de modo algum; não são sequer bastante finos para serem tolos. Quando vemos, entre o povo mais feliz do mundo*, grupos de camponeses resolver as questões do Estado à sombra de um carvalho, e se conduzirem sempre com sabedoria, podemos evitar o menosprezo dos refinamentos das outras nações, que se tornam ilustres e miseráveis com tantos artifícios e mistérios? Um Estado assim governado necessita de bem poucas leis; à medida que se torne necessário promulgar outras novas, todos percebem tal necessidade. O primeiro que as propõe não faz senão dizer o que todos já sentiram, e não haverá problemas de disputas nem de eloquência para transformar em lei o que cada qual, individualmente, já tinha resolvido fazer, certo de que os demais o farão como ele.”

* Rousseau alude aos cantões rurais da Suíça.

 

 

“Porém, quando o vínculo social começa a afrouxar e o Estado a enfraquecer, quando os interesses particulares principiam a fazer-se sentir e as pequenas sociedades a prevalecer sobre a grande, o interesse comum perde-se e encontra opositores; a unanimidade não reina mais nos votos; a vontade geral deixa de ser a vontade de todos; erguem-se contradições, debates, e a melhor opinião não é aceita sem disputas. Enfim, quando o Estado, próximo de sua ruína, apenas subsiste através de uma forma vã e ilusória, quando o laço social se rompe em todos os corações, e o mais vil interesse se adorna afrontosamente com o nome sagrado do bem público, então a vontade geral emudece; todos, guiados por motivos secretos, deixam de opinar como cidadãos, como se o Estado jamais houvesse existido, e são aprovados falsamente, a título de leis, decretos iníquos cujo único fim é o interesse particular.”

 

 

“Quanto maior a harmonia reinante nas assembleias, isto é, quanto mais as opiniões se aproximam da unanimidade, tanto mais a vontade geral se revela dominante; já os longos debates, as dissensões, o tumulto, anunciam o crescimento dos interesses particulares e o declínio do Estado.”

 

 

“Há uma única lei que, por sua natureza, exige um consentimento unânime: é o pacto social; pois a associação civil é o mais voluntário de todos os atos do mundo; uma vez que todo homem nasceu livre e senhor de si mesmo, não há quem possa, sob qualquer pretexto, sujeitá-lo, sem seu consentimento. Decidir que o filho de um escravo nasce escravo é decidir que ele não nasce homem.”

 

 

“Conhecemos o gosto dos primeiros romanos pela vida campestre. Vinha-lhes esse gosto do sábio instituidor que uniu à liberdade os trabalhos rústicos e militares, e, por assim dizer, relegando à cidade as artes, os ofícios, a intriga, a fortuna e a escravidão à cidade.”

 

 

“Os deuses dos pagãos não eram deuses ciumentos; eles partilhavam entre si o império do mundo.”

 

 

“De início, os homens não tiveram outros reis senão os deuses, nem outro governo, senão o teocrático. Raciocinaram então como Calígula*, e seu raciocínio era justo. Fez-se necessária uma longa alteração de sentimentos e ideias a fim de que se pudesse aceitar o semelhante por senhor e iludir-se admitindo que o fato constituía um bem. Do simples fato de colocar-se Deus à frente de cada sociedade política, resultou a existência de tantos deuses quantos povos havia. Dois povos estranhos um ao outro, e quase sempre inimigos, não puderam, durante longo tempo, reconhecer um senhor comum; tal como dois exércitos empenhados em combate não saberiam obedecer ao mesmo chefe. Assim, das divisões nacionais originou-se o politeísmo, e do politeísmo a intolerância teológica e civil, que naturalmente é a mesma, como o direi mais adiante.”

*Que se dizia de natureza superior a seus súditos.

 

 

“Portanto, estando cada religião circunscrita unicamente às leis do Estado que as prescrevia, não havia outra maneira de converter um povo senão submetendo-o, nem havia outros missionários além dos conquistadores; e, consistindo a lei dos vencidos na obrigação de mudar de culto, fazia-se preciso começar por vencer antes de pregar. Não quer isto dizer que os homens combatessem pelos deuses; ao contrário, eram os deuses, como em Homero, que combatiam pelos homens. Cada qual pedia a seu deus a vitória e a pagava erigindo-lhe novos altares. Os romanos, antes de tomarem um lugar, intimavam os deuses locais a abandoná-la; e quando deixavam aos tarentinos seus deuses irritados, faziam-no porque consideravam então esses deuses como submetidos aos deles, romanos, forçados aqueles a prestar homenagens a estes. Permitiam que os vencidos conservassem os seus deuses, assim como lhes permitiam reger-se por suas próprias leis. Em geral, uma coroa ao Júpiter do Capitólio era o único tributo imposto aos vencidos.”

 

 

“Tudo o que rompe a unidade social é sem valor. Todas as instituições que põem o homem em contradição consigo mesmo nada valem.”

 

 

“Resta, pois, a religião do homem ou o cristianismo, não o de nossos dias, mas o dos Evangelhos, que é completamente diferente. Por essa religião sagrada, sublime, verdadeira, os homens, filhos do mesmo Deus, se reconhecem todos como irmãos, e a sociedade que os une não se dissolve, nem mesmo na morte.”

 

 

“Contudo, engano-me quando me refiro a uma república cristã: ambos os termos se excluem mutuamente. O cristianismo prega unicamente servidão e dependência. Seu espírito é bastante favorável à tirania, para que esta se não sirva com frequência dele. Os verdadeiros cristãos são feitos para escravos; e eles o sabem e em hipótese nenhuma se amotinam; esta vida breve tem muito pouco valor aos seus olhos.”

 

 

“Na República, diz o marquês D’Argenson, cada um é perfeitamente livre naquilo que não prejudica os outros. Eis aí o limite do invariável; não se pode estabelecê-lo com mais exatidão.”

 

 

“Em minha opinião, enganam-se os que distinguem a intolerância civil da intolerância teológica. Essas duas intolerâncias são inseparáveis. É impossível viver em paz com pessoas que acreditamos condenadas; amá-las seria odiar a Deus, que as castiga; é absolutamente necessário convertê-las ou martirizá-las. Onde quer que a intolerância teológica seja admitida, toma-se impossível que não haja algum efeito civil; e tão logo este apareça, deixa o Soberano de ser Soberano, mesmo em relação ao poder temporal: a partir de então, os sacerdotes passam a ser os verdadeiros senhores, sendo os reis apenas seus funcionários. Agora que não há mais nem pode haver religião nacional exclusiva, devemos tolerar todas as que se mostram tolerantes com as outras, desde que seus dogmas nada tenham de contrário aos deveres dos cidadãos. Contudo, quem quer que ouse dizer: “fora da Igreja não há salvação”, deve ser banido do Estado, a menos que o Estado não seja a Igreja e o Príncipe não seja o Pontífice. Tal dogma só pode ser bom sob um governo teocrático; sob qualquer outro, é pernicioso. O motivo pelo qual Henrique IV* abraçou a religião romana deveria fazer todo homem honesto abandoná-la, sobretudo a todo Príncipe que soubesse raciocinar.”

* N.T: Henrique IV teve de abjurar o protestantismo para tornar-se o rei da França (1589-1610).

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