Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-2566-1
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 808
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Sinopse: Ver Parte
I
“GOLPE E CONTRAGOLPE
Na
manhã do sábado de Carnaval de 1956, dois oficiais da Aeronáutica, o major
Haroldo Veloso e o capitão José Chaves Lameirão, chegaram cedo à Base Aérea dos
Afonsos, no Rio de Janeiro, passaram pelas sentinelas, renderam o oficial de
dia e arrombaram o depósito de munição. Retiraram do hangar um avião de combate
entupido de armas e explosivos, e decolaram na direção do campo de pouso de
Jacareacanga, minúscula guarnição da Força Aérea no meio da mata, no sul do
estado do Pará, perto da divisa com Mato Grosso. Os dois oficiais eram
udenistas fanáticos, veneravam Carlos Lacerda, estavam indignados com a vitória
“getulista” nas eleições presidenciais de outubro de 1955 e pretendiam levar a
cabo um plano alucinado: montar um foco de sedição no Brasil Central e dar
início à guerra civil.1
O
levante de Jacareacanga não durou vinte dias — antes do final de fevereiro a
rebelião estava liquidada. Contudo, o episódio era indicativo do alto grau de
instabilidade política do país. O presidente que os oficiais da Aeronáutica
queriam derrubar fora empossado no cargo havia menos de um mês: Juscelino
Kubitschek. JK (como ficaria conhecido) vinha de uma carreira política de
prestígio construída dentro do PSD mineiro: deputado federal, prefeito de Belo
Horizonte, governador de Minas Gerais. No entanto, apesar do currículo e de já
estar eleito, a briga para conseguir tomar posse não foi nada fácil. Passada a
comoção causada pelo suicídio de Getúlio e o impacto das manifestações
populares, a UDN voltou à ação decidida a impedir a realização das eleições
presidenciais marcadas para 3 de outubro de 1955, nas quais suas chances de
vitória, aliás, eram reduzidas.2 Os udenistas foram, porém, desarmados pela rápida recomposição da
aliança entre o PSD e o PTB, que firmou uma chapa disposta a defender o legado
de Vargas e com capilaridade nacional: Juscelino Kubitschek para presidente e
João Goulart para vice-presidente.
A
candidatura de Jango provocava arrepios na UDN, mas sem um bom casuísmo na
algibeira o partido não teve alternativa senão concorrer. Como sempre, a UDN
apostou num discurso de apelo moralista, confiou num candidato das Forças
Armadas — dessa vez proveniente do Exército, o general Juarez Távora, uma das
muitas lideranças de 1930 que romperam com Vargas às vésperas do Estado Novo —
e de novo apelou para um slogan inacreditável de tão ruim: “Vote no general
Juarez Távora, o tenente dos cabelos brancos”. Ainda assim, a campanha
eleitoral foi dura, e a vitória de Juscelino, apertada: 36% dos votos, contra
30% dados a Juarez, 26% a Ademar de Barros e 8% a Plínio Salgado, líder dos
antigos integralistas. A eleição para vice-presidente era independente, e João
Goulart deu um banho nos adversários, obtendo mais votos que Juscelino: 3591409
contra 3077411 eleitores.
Carlos
Lacerda, que dava a eleição por perdida antes mesmo da abertura das urnas, não
pretendia assistir de braços cruzados a mais uma vitória dos herdeiros de
Vargas: deflagrou a campanha para impugnar a posse dos eleitos e impor ao país,
com apoio das Forças Armadas, um governo de emergência, se possível de base
parlamentarista, capaz de “reformar a democracia para livrar o Brasil de
bandidos políticos”.3 A justificativa da UDN para tentar a impugnação era de um oportunismo
escandaloso: a vitória de Juscelino fora ilegítima, esbravejavam os udenistas,
uma vez que a candidatura não obteve a maioria absoluta dos votos. Nem a
Constituição de 1946 nem a legislação eleitoral em vigor exigiam maioria
absoluta, e a UDN queria mudar as regras do jogo depois de finalizada a
partida. Não obstante, o debate contou com ampla repercussão na imprensa,
entrou nos quartéis — e, a partir daí, a temperatura política começou a ferver.
Não se sabe quem se pôs a conspirar primeiro, se a UDN ou os militares, mas uma
coisa é certa: o golpe de Estado estava em andamento, recebia o endosso
discreto do vice-presidente Café Filho — que assumiu o governo logo após o
suicídio de Vargas — e tinha o apoio de um grupo de ministros poderosos: Prado
Kelly, da Justiça; Amorim do Vale, da Marinha; Eduardo Gomes, da Aeronáutica.
Só havia um problema: o general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott —
ministro da Guerra.4 A pedra no sapato dos golpistas era um militar com perfil estritamente
profissional, obcecado pela disciplina e que contava com a lealdade irrestrita
da tropa. O general Lott era também um legalista impecável; enquanto estivesse
no comando, não havia chance de uma conspiração golpista vingar dentro do
Exército.
No
início do mês de novembro, contudo, o quadro político sofreu uma alteração
súbita. Café Filho alegou estar doente, os médicos prescreveram repouso
absoluto e, embora algumas lideranças pessedistas, como Tancredo Neves e José
Maria Alkmin, nunca tivessem acreditado na veracidade dessa doença que
favorecia os golpistas, os procedimentos andaram: Constituição era
Constituição, e o presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz, assumiu
interinamente a Presidência da República.
Carlos
Luz não escondia sua simpatia pelos golpistas, estava certo de que conseguiria
demitir Lott sem provocar um terremoto no Exército e, nem bem se instalou na
Presidência, convocou o ministro da Guerra para comparecer ao Catete. Deu-lhe
um chá de cadeira de quase duas horas e, ao recebê-lo, informou que
desautorizara uma decisão dele — tudo para forçá-lo a entregar o cargo. Na
madrugada de 11 de novembro, com o ministro demissionário ainda de pijama,
trinta generais de guarnições do Rio de Janeiro chegaram a sua casa dispostos a
apoiá-lo, além de um grupo de sargentos. Para um golpe, golpe e meio, deve ter
concluído Lott. E decidiu dar meia-volta. Saiu de casa direto para seu
gabinete, confirmou por rádio que os quartéis do Espírito Santo, Minas Gerais,
Paraná, Mato Grosso e São Paulo continuavam alinhados com seu comando, mandou
chamar o presidente do Senado e o líder da maioria na Câmara para comunicar-lhes
o que iria fazer, e botou os tanques na rua. O contragolpe promovido por Lott
foi fulminante. As lideranças civis ficaram em polvorosa, e já havia deputado
sussurrando no ouvido do general que ele deveria se manter no poder. Mas
legalidade era legalidade, e Lott entregou ao Congresso a solução da crise.
Reunidos em sessão extraordinária, os deputados depuseram Carlos Luz — cuja
presidência durou exatos três dias e quase mergulhou o país numa guerra civil —
e nomearam para ocupar interinamente a chefia do Executivo o presidente do
Senado, Nereu Ramos. Ninguém sofreu punição e nada foi cobrado dos golpistas.
Quando
a conjuntura política parecia finalmente entrar nos eixos, Café Filho saiu do
hospital e anunciou sua disposição de reassumir a Presidência da República.
Começou tudo de novo: a UDN voltou a se assanhar, o Exército retornou com os
blindados para as ruas do Rio de Janeiro, e o Congresso se reuniu em caráter de
emergência para responder à nova crise. Dessa vez, os parlamentares se deram
conta de que não poderiam continuar numa posição condescendente: votaram a
interdição de Café Filho, reafirmaram a interinidade de Nereu Ramos,
confirmaram a posse do novo presidente eleito para 31 de janeiro de 1956 e
estenderam o estado de sítio até essa data. Juscelino e Jango suspiraram
aliviados. Já o general Lott jamais aceitou ter protagonizado um contragolpe —
segundo ele, liderara um “movimento de retorno aos quadros constitucionais
vigentes”. E o argumento do general fazia todo o sentido: afinal, bem-intencionado
ou não, ele havia se rebelado contra a autoridade legitimamente constituída.
Mas o problema não era só de indisciplina. Com a Novembrada, em 1955, o país
tomou conhecimento da existência de tendências de natureza nacionalista e até
mesmo democrática no interior das Forças Armadas.5
Começava
a aproximação dos sargentos com o trabalhismo — mais adiante, viriam os
marinheiros e os fuzileiros navais. E, nessa hora, o PTB vacilou. Em vez de
exigir uma instituição militar despolitizada, estritamente profissional e
submissa ao poder civil, os trabalhistas decidiram seguir o caminho já trilhado
pela UDN. Idealizaram um Exército intervencionista, reformista e disposto a
ecoar o interesse popular — aos moldes dos tenentes, durante a Primeira
República. Tanto à direita quanto à esquerda, as lideranças partidárias da
época cometeram erro idêntico: projetaram as Forças Armadas na política,
aceitaram sua interferência num regime legitimado pelas regras da democracia e
acentuaram seu protagonismo na cena pública. Só se enxergou a extensão do erro
quando ele não tinha mais conserto — em março de 1964.”
1 Para o levante de Jacareacanga, ver Claudio
Bojunga, JK: O artista do impossível, op. cit.
2 Para as eleições presidenciais de 1955, ver
Maria Victoria de Mesquita Benevides, A UDN e o udenismo: Ambiguidades do
liberalismo brasileiro (1945-1965); Thomas E. Skidmore, Brasil:
de Getúlio a Castello, op. cit.; Claudio Bojunga, JK: O artista do
impossível, op. cit.
3 Citado em Jorge Ferreira, João Goulart,
op. cit., p. 148.
4 Para o governo Café Filho, ver
Thomas E. Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castello, op. cit. Para o golpe
e o contragolpe, ver Jorge Ferreira, O imaginário trabalhista, op. cit.,
especialmente o cap. 4; Flávio Tavares, O dia em que Getúlio matou Allende e
outras novelas do poder (Rio de Janeiro: Record, 2004), especialmente o
cap. III.
5 Para a aproximação dos militares
de baixa patente com o trabalhismo, ver Jorge Ferreira, O imaginário
trabalhista, op. cit., especialmente o cap. 4.
“O VENDEDOR DE ESPERANÇAS
Juscelino
tomou posse como determinava a Constituição e não titubeou: confirmou Lott no
Ministério da Guerra. O general, por sua vez, se não conseguiu isolar os
quartéis do debate político, manteve as Forças Armadas sob controle. Lott
absorveu no âmbito da disciplina hierárquica o ativismo dos militares, e sua
atuação foi decisiva para garantir a estabilidade política de um governo que
começou contestado, assumiu em meio a uma atmosfera de crise, mas acabou se
fortalecendo. Juscelino, por seu lado, tratou as Forças Armadas com luvas de
pelica.6 Anistiou os oficiais envolvidos em atos
de insubordinação, como Jacareacanga, e capitalizou politicamente o resultado —
sem perceber, talvez, que acostumava os insubmissos à impunidade. E tratou de
ganhar os quartéis na lábia, pondo em evidência para o Alto-Comando os
atrativos que seu programa de desenvolvimento econômico poderia trazer para os
militares avançarem com sucesso na criação de uma indústria bélica, além de
atender às suas necessidades de modernização, reorganização e rearmamento.
Juscelino era bom de conversa e melhor ainda na prática de cooptação. Comprou para
uso do Ministério da Aeronáutica um moderno avião Viscount, com cabine
pressurizada, poltronas amplas e velocidade de cruzeiro de seiscentos
quilômetros por hora, e acalmou o almirantado com a aquisição de um
porta-aviões da Marinha britânica — que os almirantes agradecidos rebatizaram Minas
Gerais. Mas, sobretudo, Kubitschek atraiu os militares para ocuparem cada
vez mais espaço em órgãos estratégicos da administração federal e do
planejamento — em especial na Petrobras e na segurança pública.
É
certo que o presidente sabia construir a ocasião e tirar proveito dela, mas o
governo tinha também uma alavanca estratégica imbatível — o Plano de Metas ou
Programa de Metas.7 Graças a ela, Juscelino
conseguiu articular, ainda em seu primeiro ano de mandato, uma bem-sucedida
aliança entre grupos sociais de interesses muito diversos que aceitaram se unir
em torno de um grande projeto de planejamento econômico capaz de resumir as
principais linhas de sua administração. Exposto pela primeira vez numa reunião
ministerial realizada no segundo dia de governo, 1º de fevereiro de
1956, e publicado no dia seguinte no Diário Oficial, o Plano de Metas
foi o primeiro e o mais ambicioso programa de modernização já apresentado ao
país. Com ele, Juscelino dava concretude ao slogan que animara a campanha
presidencial — a promessa de que sob seu comando o Brasil cresceria “cinquenta
anos em cinco” —, e se propôs a efetuar uma mudança estrutural na capacidade
produtiva nacional. O Plano de Metas fez do governo de JK um sucesso (ver imagem 105). Atribuiu
ao Estado a tarefa de viabilizar uma agenda de crescimento econômico acelerado,
aprofundou o processo de industrialização e privilegiou o setor industrial de
bens de consumo duráveis, alterando os hábitos e o cotidiano da população, que,
deslumbrada e espantada, passou a conviver com um sem-número de novidades.
Entre outras coisas, um punhado de eletrodomésticos moderníssimos: máquina de
lavar roupa, grill automático, rádio de pilha, ventilador portátil, enceradeira
com três escovas, fogão com visor panorâmico, som estereofônico, TV com
controle remoto preso por um fio ao aparelho. Tão formidáveis quanto os
eletrodomésticos eram os produtos para casa: sabão em flocos, Detefon com
pulverizador, pilhas Eveready. Ou, ainda, os novos utensílios e as peças de
vestuário fabricados em massa com materiais sintéticos, baratos e coloridos,
alguns de nomes estranhíssimos — polímeros, náilon, raiom, banlon, courvin,
acrílico, napa, fórmica, vinil e linóleo.8
O
Plano de Metas definiu 31 objetivos com enfoque privilegiado em quatro pontos.
Na primeira prioridade, o governo previa alocar investimentos para o setor de
transportes, em especial o rodoviário, e incentivar a indústria automobilística
— as outras três prioridades canalizavam recursos em energia, indústria pesada
e alimentos. A partir de 1958, os brasileiros viram se materializar nas ruas e
estradas duas novidades: o DKW-Vemag, que, apesar de barulhento, era o primeiro
automóvel a sair da fábrica com 50% de peças nacionais, e a Rural Willys, o
primeiro carro também nacional com tração nas quatro rodas. A expansão da malha
rodoviária foi provavelmente o melhor momento do Plano de Metas. Juscelino
pavimentou 6 mil quilômetros de novas rodovias entre 1956 e 1960, num país que
até então contava apenas 4 mil quilômetros de estradas, e viabilizou uma rede
de integração territorial capaz de garantir a circulação de mercadorias entre
as áreas rurais e os principais centros industrializados, além de criar novos
mercados.9 Em janeiro de 1958, com o preço do
petróleo relativamente baixo e a entrada da indústria automobilística no país,
Juscelino avaliou que o desafio de abrir novas rodovias de terra vermelha e
asfalto valia a pena: mandou chamar ao Catete o engenheiro agrônomo Bernardo
Sayão, funcionário do Ministério da Agricultura, um tocador de obras com pinta
de galã e espírito de desbravador, e propôs cortar os cerrados do Brasil
Central, “arrombar a selva e unir o país de norte a sul”.10
A rede rodoviária Belém-Brasília matou o engenheiro no meio da mata, atingido
por um galho que despencou de uma árvore gigantesca, mas interligou por estrada
de rodagem os estados de Goiás, Maranhão e Pará, inseriu a Amazônia no mercado
brasileiro e forneceu uma nova alternativa para atenuar desequilíbrios
regionais.11
Sayão
não foi o único a colaborar com Juscelino em projetos que, aos demais, pareciam
mirabolantes. Esse era o estilo de Kubitschek: talento de negociador, astúcia
política, visão empresarial e capacidade de reconhecer as qualidades alheias —
além de um sorriso que ficou famoso.12 O
presidente seduzia, argumentava, insistia — como se dizia na época, Juscelino
voava com qualquer tempo e pousava em qualquer campo. Até mesmo Carlos Lacerda,
seu grande desafeto, não escondia uma ponta de admiração: ele era “um político
ardilosíssimo e a pessoa mais simpática do mundo”,13
concedia.
O
estilo fazia a diferença na hora de Kubitschek abordar problemas e conquistar a
máxima simpatia de cada grupo social, mas não explica tudo. A outra parte do
segredo de Juscelino está provavelmente no fato de que ele conseguiu
transformar o Plano de Metas no projeto de um Brasil possível. Seu programa de
governo dava voz a uma nova e entusiástica condição de ser brasileiro que
poderia contribuir para reparar as injustiças de uma herança histórica de
miséria e desigualdades profundas, e serviria para abrir as portas da
modernidade. A chave para construir esse novo país chamava-se
“desenvolvimentismo” e defendia a ideia de que nossa sociedade, defasada e
dependente dos países mais avançados, repartia-se em duas: uma parte do Brasil
ainda era atrasada e tradicional; a outra já seria moderna, e estava em franco
desenvolvimento. Ambas, o centro e a periferia, conviveriam no mesmo país, e
essa era uma dualidade que se devia resolver pela industrialização e pela
urbanização.14 A confiança que Juscelino
depositou nesse projeto de Brasil foi contagiosa, e não é muito difícil
entender por quê. O projeto de JK sustentava-se na crença de que a construção
de uma nova sociedade dependia da vontade do Estado e do desejo coletivo de um
povo que, enfim, teria encontrado seu lugar e destino.
PROCURA-SE
O POVO BRASILEIRO
Um
projeto com essa ambição tinha potencial de agregação — e muitos intelectuais
se sentiram atraídos por ele. O governo de Juscelino manteve sintonia com uma
franja de intelectuais de várias origens e especialidades dispostos a provar
que seria possível construir para o país alternativas de modernidade fora do
modelo norte-americano. Um dos grupos que se aproximaram de JK estava instalado
no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), órgão ligado à Casa Civil
da Presidência da República, com sede no Rio de Janeiro.15
O Iseb funcionou como um espaço ativo de socialização entre políticos,
intelectuais, artistas e estudantes, e reuniu um elenco de pensadores que
marcou época: Álvaro Vieira Pinto, Alberto Guerreiro Ramos, Nelson Werneck
Sodré, Hélio Jaguaribe. Esse grupo forneceu fundamentação teórica para projetos
do alto escalão da administração de Kubitschek, e contribuiu com uma visão
ampla do Brasil e de seu processo de industrialização. Produziu, ainda, os
argumentos de defesa para uma opção nacionalista não ortodoxa, que não
significasse rejeição ao estrangeiro e que estivesse circunscrita à definição
de qual é o interesse nacional.
O
Iseb não foi o único laboratório de ideias do governo de JK. Em 1954, o
economista Celso Furtado tinha pouco mais de trinta anos e acabava de publicar
seu primeiro livro: A economia brasileira. O trabalho de Furtado trazia
a marca das formulações elaboradas pela Comissão Econômica para a América
Latina e o Caribe (Cepal), órgão das Nações Unidas, instalada no Chile em 1949
e da qual o próprio Furtado fez parte até 1957. As análises da Cepal
contribuíram para embasar o Plano de Metas, mas o livro de Celso Furtado, além
de apresentar instrumentos para uma nova maneira de pensar o país, fornecia aos
técnicos do governo uma palavra-chave — “subdesenvolvimento” — para enquadrar
os dilemas da sociedade brasileira.16
Subdesenvolvimento significaria um momento específico de formação do
capitalismo, próprio de sociedades como a brasileira, cuja economia foi
historicamente subsidiária do sistema colonial e que, por isso mesmo, se viu
forçada a conviver com consequências que se autossustentam, apesar do avanço do
processo de industrialização: a estrutura agrária arcaica, as relações entre a
monocultura exportadora e o capitalismo internacional, a dualidade da estrutura
produtiva nacional, a profunda desigualdade nas relações de trabalho. Segundo
Furtado, para ultrapassar tal situação, dependia-se de um conjunto de reformas
básicas a serem implantadas pelo Estado — agrária, fiscal, bancária, urbana,
tributária, administrativa, universitária. A defesa dessas reformas estruturais
tornou-se uma das principais bandeiras de luta das forças nacionalistas e de
esquerda no país, e assumiu sua forma política definitiva — as reformas de base
— a partir de 1962, durante o governo de João Goulart. A palavra
“subdesenvolvimento”, por sua vez, entrou para o vocabulário da população, que
passou a utilizá-la difusa e diversamente. Mas sempre mantendo a angulação
definida por Furtado: era preciso pôr em evidência o lugar do
subdesenvolvimento para melhor enfrentá-lo.”
6 Para a relação de Juscelino com
os militares, ver Claudio Bojunga, JK: O artista do impossível, op.
cit.; Ricardo Maranhão, O governo Juscelino Kubitschek (São Paulo:
Brasiliense, 1984); Maria Victoria Benevides, O governo Kubitschek:
Desenvolvimento econômico e estabilidade política (Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1976).
7 Para o Plano de Metas, ver Maria
Victoria Benevides, O governo Kubitschek: Desenvolvimento econômico e
estabilidade política; Miriam Limoeiro Cardoso, Ideologia do
desenvolvimento: Brasil JK-JQ (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977); Clovis
de Faro e Salomão L. Quadros da Silva, “A década de 50 e o Programa de Metas”,
em Ângela de Castro Gomes (Org.), O Brasil de JK (Rio de Janeiro:
Fundação Getulio Vargas, 1991).
8 Para o cotidiano dos anos 1950,
ver Joaquim Ferreira dos Santos, 1958: O ano que não devia terminar (Rio
de Janeiro: Record, 1997).
9 Para estradas pavimentadas, ver
Claudio Bojunga, JK: O artista do impossível, op. cit., p. 407.
11 Para a construção da
Belém-Brasília, ver Claudio Bojunga, JK: O artista do impossível, op.
cit.
12 Para o estilo de fazer política
de JK, ver Claudio Bojunga, JK: O artista do impossível, op. cit.;
Thomas E. Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castello, op. cit.
13 Para a observação de Lacerda,
ver Rodrigo Lacerda, A República das abelhas.
14 Para o desenvolvimentismo, ver
Miriam Limoeiro Cardoso, Ideologia do desenvolvimento: Brasil JK-JQ;
Celso Furtado, Desenvolvimento e subdesenvolvimento (Rio de Janeiro:
Fundo de Cultura, 1961); Francisco de Oliveira, A economia brasileira:
Crítica à razão dualista (Petrópolis: Vozes, 1981).
15 Para o Iseb, ver Caio Navarro de
Toledo (Org.), Intelectuais e política no Brasil: A experiência do Iseb
(Rio de Janeiro: Revan, 2005).
16 Para subdesenvolvimento, ver
Celso Furtado, Desenvolvimento e subdesenvolvimento; Maria da Conceição
Tavares (Org.), Celso Furtado e o Brasil (São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2001); Francisco de Oliveira, A economia brasileira: Crítica à razão
dualista; Marcelo Ridenti, Brasilidade revolucionária (São Paulo:
Ed. Unesp, 2010).
“O SEMEADOR DE VENTO
A
nova capital federal foi inaugurada em 21 de abril de 1960. Nove meses depois,
Juscelino deu posse ao novo presidente eleito, Jânio Quadros, sem saber que
estava realizando uma façanha e tanto: apenas em 2003 um presidente civil,
eleito pelo voto popular, tornaria a entregar a faixa ao seu sucessor. JK
viajou para a Europa, de férias, convencido de que estaria de volta a Brasília
e a seu cargo em 1965. A Constituição de 1946 vedava a possibilidade de
reeleição e sua campanha presidencial começou ali mesmo, na despedida do cargo:
a cidade estava coberta de faixas e cartazes com o slogan “JK-65”, e, no
aeroporto, uma multidão aguardava por ele para dizer-lhe até breve. Juscelino
passou o último ano de seu mandato com um olho posto na urgência de construir
Brasília e o outro espiando as condições favoráveis de retorno ao poder. E
maquinou uma estratégia para seu partido perder a eleição.44
A situação financeira do país era grave, o governo não tinha controle sobre os
gastos, e seu sucessor precisaria adotar um programa rigoroso de austeridade
econômica. O segundo passo era mais longo: como transferir esse ônus para a
oposição. A estratégia seria fazer a UDN vencer as eleições, gastar o mandato
levando nas costas uma política impopular de combate à inflação para que, no
final, JK retornasse, em 1965, com um novo programa de crescimento.
Juscelino
estava manobrando em causa própria e com uma boa dose de onipotência:
dificilmente a UDN iria apoiar um candidato indicado por ele. Ainda assim, a
manobra podia dar certo. JK era mestre da política dos bastidores e do
conchavo, encerrava o mandato com popularidade de sobra, sua estratégia poderia
produzir uma ampla coalizão de centro-direita capaz de contrabalançar a força
crescente das esquerdas, sobretudo do PTB, e, para facilitar a situação, o PSD
não tinha um bom nome apto a sucedê-lo. Juscelino só não considerou na sua
estratégia a intromissão dos paulistas. São Paulo foi o grande beneficiário do
seu governo: o estado concentrou o crescimento industrial, os empresários
receberam crédito fácil, e a velocidade da expansão urbana indicava que São
Paulo caminhava em ritmo acelerado para se tornar a maior e mais importante
capital do país. Mas, no cenário político nacional, não havia meio de São Paulo
alinhar-se: nem o PSD, nem a UDN, nem o PTB chegavam a ter força expressiva no
estado, e quem disputava o poder ainda eram partidos minúsculos com abrangência
regional que atuavam como ferramentas e porta-vozes políticos de lideranças
locais — o caso mais famoso, o Partido Social Progressista (PSP) de Ademar de
Barros.
Em
maio de 1959, um punhado desses pequenos partidos articulou-se com a UDN,
atropelou a estratégia de JK e apostou na candidatura de Jânio Quadros para a
Presidência da República — um personagem politicamente incontrolável para os
propósitos de Juscelino.45 Desde que assumiu o
primeiro mandato de vereador, em 1948, Jânio vinha numa escalada vertiginosa,
tendo sido eleito sucessivamente deputado estadual, prefeito e governador —
venceu três eleições em cinco anos, atuando sempre em São Paulo. Tinha a fama
de administrador honesto e competente, não possuía vínculos com o legado de
Vargas — mas tampouco carregava a pecha de antigetulista — e o tom de sua
campanha era música para os ouvidos da UDN: ataques à corrupção, à inflação, à
alta do custo de vida, ao desperdício de dinheiro com as obras monumentais de
Brasília, acompanhados de promessas de crescimento econômico, austeridade
pública e contenção de gastos. Jânio jamais explicou de maneira convincente
como iria superar os limites do governo de Kubitschek ou atacar os problemas
fundamentais ao desenvolvimento brasileiro. Sua mensagem era antipolítica. Ele
se apresentava como um candidato acima dos partidos, e expressava profundo
desdém pelos políticos tradicionais e por seu estilo de atuação. Só insistia
num ponto: que o povo lhe delegasse sua confiança e acreditasse nele,
pessoalmente. E, repetia, era o único candidato independente e dedicado à
atividade política por vocação cívica e paixão pelo serviço público — o nome,
portanto, capaz de oferecer algo novo e dar rumo ao país.
Carlos
Lacerda foi um dos primeiros a perceber que, com ou sem os udenistas, a
candidatura de Jânio era irresistível, e carregou para a campanha janista o
apoio da UDN. Lacerda entendeu certo. Em torno de Jânio se cristalizavam
impulsos de esperança e de adesão vindos de todas as camadas sociais — e, em
especial, do eleitor de classe média, atormentado pelos efeitos da inflação,
que enxergava no candidato a encarnação do gestor enérgico e capaz de comandar
com eficiência os solavancos de uma economia em crescimento. Essa era uma
candidatura incomum, e a velocidade com que se afirmou deveria ter acionado um
sinal de alerta: havia um vácuo por onde um intruso esperto poderia crescer. A
candidatura de Jânio sublinhava o descontentamento da sociedade com a alta do
custo de vida e com a queda nos salários, indicava um aumento da capacidade
reivindicatória da população e sugeria certo cansaço da estrutura partidária,
com dificuldades para se adaptar e absorver as novas demandas populares.
Mas o
apelo do candidato não estava apenas no que ele dizia. Jânio tinha o senso do
espetáculo na política.46 Não hesitava, num
comício, em simular desmaios de fome, tomar injeção para recuperar forças,
vestir terno velho, de ombros estrategicamente salpicados por um pó que dizia
ser caspa, usar gravata torta, sentar no meio-fio para comer sanduíche de
mortadela e bananas — queria ser percebido visualmente como parte da população
pobre, trabalhadora, sofrida. Subia nos palanques, magro, colérico e
desleixado, gesticulando muito, brandindo uma vassoura nas mãos e, modulando o
tom de voz, propunha uma varredura moral e administrativa no Brasil. Usava de
uma linguagem empolada, cheia de termos em desuso, escandia as sílabas das
palavras, e deixava a multidão boquiaberta com sua grandiloquência professoral
e pernóstica — às vezes ninguém entendia nada, mas Jânio sabia a ocasião exata
em que dizia o que todos queriam ouvir. Seus comícios aconteciam nas ruas, nas
fábricas, nas favelas e periferias das cidades, e atraíam milhares de pessoas
com vassouras nas mãos, dispostas a levar a sério o candidato e sua retórica de
campanha (ver imagem 109).
É
difícil dizer se Juscelino, em algum momento, viu com simpatia a candidatura de
Jânio — não era fácil lidar com um candidato messiânico, histriônico e
irascível. Quando afinal chegou a hora de disputar as eleições, o PSD, sem
alternativa, aceitou a indicação dos grupos nacionalistas do Congresso e lançou
o nome do marechal Lott para presidente, talvez apostando na oportunidade de
consolidar sua presença nas Forças Armadas.47 Em
seguida, o partido reeditou a aliança com o PTB e homologou, mais uma vez, a
candidatura de João Goulart para vice da chapa. Lott saiu candidato e jogou um
balde de água fria nas pretensões eleitorais do PSD. Ele era um nome com grande
prestígio político, respeitado entre os militares, admirado por sua postura
legalista e democrática, mas como candidato não entusiasmava ninguém. E, no
momento em que ficou evidente para os pessedistas que Lott estava mesmo fadado
a perder, as lideranças do partido trataram de cristianizar o candidato e,
junto com o PTB — e com o apoio do próprio Jânio —, estimularam os eleitores a
votar numa chapa extra, chamada, meio por gozação, de “Jan-Jan” — Jânio na
Presidência e Jango para vice.
O
resultado das urnas deixou ileso o PSD, fortaleceu o PTB e confirmou a força
eleitoral da dupla. Jânio recebeu a maior votação até então registrada no país:
5636623 votos contra 3846825 dados a Lott. Jango, de novo eleito, obteve
4547010 votos, número superior ao de eleitores de Lott.48
O resultado também indicava que havia novidades no cenário nacional. A
primeira: o vice-presidente eleito era da chapa adversária à do presidente. A
segunda sublinhava o impacto da candidatura janista no crescimento eleitoral da
UDN, que conquistou o governo em seis estados, entre onze que realizaram
eleições, incluindo Minas Gerais, com Magalhães Pinto, e levou Carlos Lacerda a
se eleger o primeiro governador da Guanabara — a cidade-estado criada por
Juscelino para compensar os cariocas pela transferência da capital para
Brasília.
Quem
votou em Jânio, porém, iria descobrir logo que o novo presidente se saía melhor
disputando votos do que administrando o país. É certo que ele obteve êxito em
renegociar as dívidas internacionais e lançou o mais completo programa de
combate à inflação já experimentado desde Vargas. É certo também que, com a
colaboração do ministro das Relações Exteriores, Afonso Arinos de Melo Franco,
da UDN mineira, Jânio se deu bem na condução de uma política externa
independente. O Brasil reformulou o alinhamento com os interesses
norte-americanos, estabeleceu vínculos diplomáticos e/ou comerciais com os
países socialistas, negociou sua dívida com a Europa, Estados Unidos e o bloco
soviético, e se aproximou do Terceiro Mundo.49
Mas
Jânio era político de província. Conhecia mal as lideranças partidárias
nacionais, e desdenhou da possibilidade de montar uma base parlamentar própria,
embora seu governo não tivesse maioria no Congresso.50
Tampouco estava preocupado em negociar com o campo oposicionista; foi um mestre
em exacerbar o atrito. Bateu de frente com o Congresso, com a imprensa, com o
funcionalismo, com o vice-presidente da República. E acabou rompendo com a
própria UDN, injuriada com os rumos da política externa — que, em tempos de
Guerra Fria, o partido entendia como uma guinada do governo para a esquerda. Em
alguns meses, Jânio Quadros conseguiu confundir o ambiente político nacional,
subestimar seus aliados e se isolar na Presidência. Sem planejamento de longo
prazo, com uma visão estreita do país e moralista na vida pública, um perfil
autoritário e alma de burocrata, governava a República como quem chefia uma
repartição. Centralizava decisões, controlava miudezas, disparava aos ministros
e auxiliares bilhetinhos com instruções telegráficas, sempre urgentes, nos
quais os assuntos se misturavam sem diferenciações. Logo após a posse, abriu
temporada de caça aos corruptos, através da instalação de comissões de
sindicância com instruções para realizar devassas em órgãos públicos, e cujos
resultados, mesmo sem provas, o presidente mandava divulgar com estardalhaço.
Os bilhetinhos se perdiam na imensidão da máquina administrativa, o governo
andava em zigue-zague, e Jânio continuava a se meter em tudo. Aboliu o uso da
gravata no dia a dia do palácio e criou uniforme para o funcionalismo público,
no estilo safári, inspirado nos slacks utilizados pelos ingleses na Índia — a
seu ver, um traje mais adequado a um país tropical. E, para eliminar dúvidas,
mandou publicar os moldes para confecção do vestuário masculino e feminino no Diário
Oficial, especificando: “Tecido: Linho nacional. Cor: Bege” — sarcástica, a
imprensa apelidou aquilo de “pijânio”.51 Em menos
de sete meses de governo, Jânio assinou uma série inacreditável de decretos: vetou
corridas de cavalos nos dias úteis e rinhas de galo todos os dias; proibiu o
uso de lança-perfume nos bailes de Carnaval e de biquíni nas praias;
regulamentou o comprimento dos maiôs nos desfiles televisionados dos concursos
de misses. E, para arrematar, instalou dois jumentos nordestinos pastando a
grama verde do imenso jardim do Palácio da Alvorada — não satisfeito, mandou
botar chapéus de palha nos animais por conta do sol forte do cerrado e subir
uma imensa grade de ferro para cercar o palácio e proteger os burricos.52
Jânio
era mesmo um intruso político à frente de um governo que não se definia, mas
pretendia governar o país em seus próprios termos. E, em sua opinião, isso era
inviável com a Constituição de 1946 em vigor e um Congresso renitente e desconfiado.
Não era verdade; ou, pelo menos, não era toda a verdade. Jânio não tinha
compromisso com as instituições democráticas, sentia-se tolhido pelos limites
constitucionais, e cultivou artificialmente o impasse entre os poderes da
República. Com isso, acirrou suas contradições com o Congresso e se isolou cada
vez mais. O campo oposicionista crescia, sobretudo pela ação dos trabalhistas,
que, com o aval dos movimentos populares e em rota de aproximação com os
comunistas, repudiavam sua política econômica, que desvalorizou a moeda, dobrou
o preço do pão, aumentou as tarifas de ônibus, restringiu o crédito e congelou
salários. Ainda assim, não havia obstáculos intransponíveis — nada que não
pudesse ser contornado pela negociação e o impedisse de governar.
No
fim do mês de julho de 1961, Jânio mandou convidar o vice-presidente João
Goulart para chefiar a primeira missão comercial brasileira em viagem à
República Popular da China. A relação entre os dois estava perto da ruptura —
Jango foi um dos primeiros alvos das comissões de sindicância e viu o convite
com desconfiança. Mas não tinha como recusar, e acabou embarcando. Enquanto
Jango negociava acordos em Pequim, Jânio, em Brasília, provocava um escândalo
político, ao conceder, em 19 de agosto, a Grã-Cruz da Ordem do Cruzeiro do Sul,
a mais alta condecoração do Brasil, a Ernesto Che Guevara, ministro da Economia
de Cuba. A Revolução Cubana dividia as opiniões, o gesto do presidente inflava
os temores norte-americanos com o rumo pró-Cuba da política externa brasileira,
a UDN reagiu indignada, e os militares que já haviam recebido a condecoração
ameaçaram devolver o colar.53 Jânio tinha motivos
práticos para estreitar relações com o governo cubano: existia a possibilidade
de empresas brasileiras estabelecerem comércio de bens e maquinaria com os
países do bloco socialista, através de Cuba. Carlos Lacerda, porém, avaliou
que, dessa vez, o governo fora longe demais e tomou um avião para Brasília,
disposto a botar tudo em pratos limpos. São muitas as versões do seu encontro
com o presidente. Mas, de volta ao Rio de Janeiro, Lacerda virou a mesa: atacou
o governo em rede de rádio e televisão, chamou Jânio de irresponsável e acusou
o ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, de tramar um golpe de Estado e
convidá-lo a participar. A temperatura política do país ferveu.
Em 25
de agosto, Dia do Soldado, uma sexta-feira, Jânio compareceu, pela manhã, ao
desfile militar na Esplanada dos Ministérios, passou a tropa em revista, ouviu
a leitura da ordem do dia, saudou a bandeira — tudo como manda o figurino.
Voltou para o palácio, mandou chamar os ministros militares e comunicou
oficialmente que estava abandonando o cargo. Diante dos militares atônitos,
enfatizou: “Com este Congresso não posso governar. Organizem uma junta e
dirijam o país”.54 Assinou a carta de renúncia,
determinou ao ministro da Justiça que a encaminhasse ao Congresso apenas às
quinze horas, e às onze embarcou no avião da Presidência rumo à Base Aérea de
São Paulo, em Cumbica — na saída de Brasília instruiu o ajudante de ordens que
o acompanhava a levar consigo a faixa presidencial.”
44 Para a estratégia de JK, ver
Sheldon Maran, “Juscelino Kubitschek e a política presidencial”, em Ângela de
Castro Gomes (Org.), O Brasil de JK, op. cit.
45 Para a candidatura de Jânio
Quadros, a campanha e o apoio da UDN, ver Maria Victoria de Mesquita Benevides,
A UDN e o udenismo: Ambiguidades do liberalismo brasileiro (1945-1965);
Thomas E. Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castello, op. cit.; Otávio
Soares Dulci, A UDN e o antipopulismo no Brasil.
46 Para Jânio Quadros, ver Ricardo
Arnt, Jânio Quadros: O Prometeu de Vila Maria (Rio de Janeiro: Ediouro,
2004); Flávio Tavares, O dia em que Getúlio matou Allende e outras histórias,
especialmente o cap. IV.
47 Para a candidatura do marechal
Lott, ver Lúcia Hippolito, PSD: De raposas e reformistas; Jorge
Ferreira, João Goulart, op. cit.
48 Para o resultado eleitoral, ver
Thomas E. Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castello, op. cit., p. 233;
Jorge Ferreira, João Goulart, op. cit., p. 213.
49 Para política externa, ver Brás
José de Araújo, A política externa do governo Jânio Quadros (Rio de
Janeiro: Graal, 1981).
50 Para a presidência de Jânio, ver
Thomas E. Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castello, op. cit.; Jorge
Ferreira, João Goulart, op. cit.
51 Ver Ricardo Arnt, Jânio
Quadros: O Prometeu de Vila Maria, p. 154.
52 Ver Flávio Tavares, O dia em
que Getúlio matou Allende e outras histórias, p. 167.
53 Para a viagem de Jango e os
atritos com Jânio, ver Jorge Ferreira, João Goulart, op. cit. Para a
condecoração a Che Guevara, ver Paulo Markun e Duda Hamilton, 1961: O Brasil
entre a ditadura e a guerra civil, especialmente o cap. 4.
54 Citado em Amir Labaki, 1961:
A crise da renúncia e a solução parlamentarista (São Paulo: Brasiliense,
1986, p. 47). Para a renúncia, ver também Ricardo Arnt, Jânio Quadros: O
Prometeu de Vila Maria; Thomas E. Skidmore, Brasil: de Getúlio a
Castello, op. cit.
“NOS PORÕES DO PALÁCIO PIRATINI
O que
Jânio pretendia com a renúncia, ele nunca explicou bem aos brasileiros. Mas há
acordo entre os historiadores: seu gesto intencionava causar uma comoção
nacional que o trouxesse de volta triunfalmente ao cargo com os poderes
presidenciais aumentados — e, de preferência, sem o Congresso para incomodá-lo.
Renunciar era uma forma de sair do palco para não se desgastar, e diversas
vezes em sua carreira política ele usara da figura da renúncia como uma arma —
sempre brandida com sucesso. A manobra poderia funcionar de novo: o nome de
Goulart tinha forte rejeição entre os militares; além disso, ele estava longe,
sem condições de articular sua posse. O Congresso só examinaria sua renúncia
após o fim de semana, e o povo defenderia seu mandato nas ruas, talvez
mobilizado numa espécie de novo queremismo. “Atrás de mim não fica ninguém”,
Jânio teria dito ainda na Base Aérea de Cumbica. E completaria: “Não farei nada
para voltar, mas considero minha volta inevitável”.55
Se o
plano era esse, deu tudo errado. O povo não se mexeu, os governadores não se
manifestaram, o Congresso aceitou a renúncia duas horas depois de receber a
carta de Jânio e considerou que se tratava de um ato unilateral. Os deputados
estavam fartos de um governo que acusavam de tentar desmoralizar o Legislativo,
ninguém se dispôs a defendê-lo e o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri
Mazzilli, assumiu interinamente a Presidência da República até o regresso de
Jango. No dia 28 de agosto, Jânio mandou devolver a faixa presidencial e, do
porto de Santos, embarcou para a Europa. Sobraram, no tabuleiro, os ministros
militares. Uma questão era a renúncia, ratificada por eles sem discussão.
Outra, muito diferente, era a sucessão. E foi aí que os militares fizeram suas
próprias contas e decidiram intervir. No mesmo 28 de agosto, três dias após a
renúncia de Jânio, Mazzilli informou ao Congresso que os ministros militares
não aceitavam o retorno de João Goulart ao país para ser empossado na
Presidência. Diziam mais: se Jango desembarcasse no Brasil, seria preso. Os ministros
não se comportavam como militares; jogavam uma cartada política. Apostavam numa
espécie de golpe constitucional, de baixo custo para as Forças Armadas: estavam
intimidando o Congresso para que os parlamentares declarassem o impedimento de
Goulart.56 Nem a UDN concordou. Estava aberta a
crise política, os resultados eram imprevisíveis, e o país iria caminhar
perigosamente próximo de uma guerra civil.
Mas a
história ainda tinha enredo. No Rio de Janeiro, o marechal Lott expressou a
divisão nas Forças Armadas e lançou um manifesto à nação, pela defesa da ordem
constitucional. E então, no Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola
decidiu que era hora de agir. Sua intenção era trazer Goulart a Porto Alegre e
garantir a posse a todo custo.57 Brizola era a
principal liderança da ala mais à esquerda do PTB, além de cunhado de Jango.
Havia assumido o governo em 1959 e seu nome começava a se tornar conhecido no
país, sobretudo graças a um decreto ousado que encampou os serviços e bens da
Companhia Telefônica Nacional, filial da International Telephone &
Telegraph (IT&T). Até o final de seu governo, Brizola iria implementar pelo
menos duas outras medidas ainda mais ousadas: a desapropriação de fazendas para
distribuição das terras aos agricultores organizados no Movimento dos
Agricultores sem Terra (Master) e a estatização da Companhia de Energia
Elétrica Rio-Grandense, subsidiária da American & Foreign Power, grupo
ligado à Electric Bond & Share.58
Silenciar
Lott foi tarefa relativamente fácil — o ministro da Guerra mandou prendê-lo na
fortaleza da Lage, uma ilha na entrada da baía de Guanabara, entre o morro Cara
de Cão, no Rio de Janeiro, e a fortaleza de Santa Cruz, em Niterói. Silenciar
Brizola era outra conversa. O governador pôs em ação a poderosa Brigada Militar
gaúcha e determinou a transferência dos estúdios da Rádio Guaíba para o subsolo
do Palácio Piratini. Ato contínuo, postou um destacamento da Guarda de Choque
com três metralhadoras pesadas protegendo a antena transmissora e a torre, na
ilha da Pintada, a doze quilômetros de Porto Alegre. Fez o teste e mandou o
locutor anunciar: “Esta é a Rádio da Legalidade, transmitindo dos porões do
Palácio Piratini, na capital do Rio Grande do Sul”. Com o microfone na mão,
Brizola sublevou o estado e mobilizou o resto do país a agir em defesa da
Constituição. A Rádio da Legalidade transmitia 24 horas, por ondas curtas,
centralizava as transmissões de aproximadamente 150 outras rádios, e era ouvida
em todo o Brasil e no exterior.59
Brizola
sabia bem o risco que estava correndo. Armou a população para a resistência,
convocou uma multidão a ocupar a praça da Matriz, defronte ao palácio, e
simulou a interdição da barra do porto do Rio Grande. Instalou ninhos de
metralhadoras no alto do Piratini e na torre da catedral metropolitana, ainda
em construção, e subiu barricadas feitas com sacos de areia, bancos arrancados
da praça, carros e caminhões amontoados em volta do palácio. Distribuiu armas
aos funcionários, andava para cima e para baixo com uma metralhadora a
tiracolo, e não exagerava: os ministros militares enviaram uma força-tarefa da
Marinha para o Rio Grande do Sul e deram ordem de decolagem aos aviões da Base
Aérea de Canoas para bombardeio do palácio — os sargentos da base, sublevados,
esvaziaram os pneus, desarmaram os aviões e impediram os oficiais aviadores de
decolar. No dia 28 de agosto, a correlação de forças começou a mudar. O
comandante do III Exército, general José Machado Lopes, acompanhado de seu
Estado-Maior, entrou no Piratini e, contrariando previsões, declarou ao
governador estar decidido a defender a posse de João Goulart. Na divisão
administrativa da força terrestre, o III Exército, sediado no Rio Grande do
Sul, era o mais poderoso. Ao lado de Brizola havia, a partir de então, 40 mil
soldados, 13 mil homens da Brigada Militar e cerca de 30 mil voluntários. Ele
se tornou a primeira liderança civil a resistir abertamente a um golpe militar,
e não podia mais ser subestimado.
Os
ministros militares compreenderam, então, que não seria fácil impedir a posse
de Goulart. Em Goiás, o governador Mauro Borges decidiu acompanhar Brizola na
resistência.60 Declarou a capital rebelada,
mandou a Polícia Militar ocupar os pontos estratégicos da cidade, instituiu o
“Exército da Legalidade”, formado por voluntários, e avisou: caso Goulart
desejasse desembarcar no estado, teria toda a segurança para transitar de
Goiânia a Brasília. No resto do país eclodiram greves, a Ordem dos Advogados do
Brasil e a União Nacional dos Estudantes — cuja diretoria se transferiu para
Porto Alegre — exigiram o respeito à ordem constitucional, e manifestações a
favor da legalidade pipocaram nos estados. Contra a posse de Jango e
declaradamente favorável ao veto dos ministros militares, só o jornal O
Estado de S. Paulo e o governador da Guanabara, Carlos Lacerda.
Os
ministros sabiam que suas escolhas tinham se estreitado: ou partiam para a
guerra civil, ou negociavam uma alternativa. O Congresso encontrou uma saída conciliatória:
a adoção, às pressas, do regime parlamentarista. A solução era postiça e iria
funcionar mal, mas resolvia a crise: Jango tomaria posse com os poderes
amputados. Faltava a sua concordância, e Tancredo Neves, que havia sido
ministro de Vargas, foi encarregado de levar a proposta até ele. Goulart fora
informado em Cingapura da renúncia de Jânio e tinha feito uma longa viagem de
volta até Montevidéu, onde esperava notícias do Brasil. Tancredo não teve uma
conversa fácil, mas convenceu Jango. Na noite de 1º de setembro,
este desembarcou em Porto Alegre com a emenda instituindo o parlamentarismo
prestes a ser aprovada — o que iria acontecer durante a madrugada de 2 de
setembro. Brizola, indignado, resistia ao acordo — para ele, Jango deveria
seguir por terra, até Brasília, à frente do III Exército e, sem restrições aos
seus poderes presidenciais, assumir o governo (ver imagem 110).
É
difícil saber as razões que levaram Goulart a aceitar a mudança de regime e
acatar a fórmula parlamentarista. Existia um temor genuíno de uma guerra civil,
e não há motivo para duvidar que Jango quisesse evitá-la. Também não há dúvida
de que ele tinha os olhos postos em Brasília e não queria perder a oportunidade
de assumir a Presidência. Talvez seus planos fossem outros: assumir o governo e
num curto período desarmar seus opositores, ampliar sua base política
conquistando o apoio do PSD, sabotar o parlamentarismo e recuperar os poderes
presidenciais — o que iria efetivamente acontecer em 1963. E ele sabia que não
poderia marchar sobre Brasília. A rebelião popular que tomava conta do Rio
Grande do Sul e se alastrava pelo país era a seu favor, mas nada estava sob seu
comando; mesmo vitorioso nesse caso, quem teria de fato o poder seria Brizola.61 Seja como for, naquela noite Jango fez suas
escolhas: foi até a sacada do Piratini, acenou para a multidão e não disse uma
palavra. Três dias depois, embarcou para Brasília.
Não
sabia o que o aguardava.”
55 Citado em Amir Labaki, 1961:
A crise da renúncia e a solução parlamentarista, pp. 51-2.
56 O argumento é de Argelina
Figueiredo. Ver Argelina Cheibub Figueiredo, Democracia ou reformas?:
Alternativas democráticas à crise política — 1941-1964 (São Paulo:
Paz e Terra, 1993).
57 Para a crise política e o
movimento de resistência ao golpe, ver Argelina Cheibub Figueiredo, Democracia
ou reformas?, op. cit.; Amir Labaki, 1961: A crise da renúncia e a
solução parlamentarista; Paulo Markun e Duda Hamilton, 1961: O Brasil
entre a ditadura e a guerra civil; Jorge Ferreira, João Goulart, op.
cit.; Flávio Tavares, 1961: O golpe derrotado — Luzes e sombras do Movimento
da Legalidade (Porto Alegre: L&PM, 2011).
58 Para Brizola, ver F. C. Leite
Filho, El caudillo: Leonel Brizola — Um perfil biográfico (São Paulo:
Aquariana, 2008).
59 Para a Rede da Legalidade, ver
Flávio Tavares, 1961: O golpe derrotado — Luzes e sombras do Movimento da
Legalidade; Juremir Machado da Silva, Vozes da legalidade: Política e
imaginário na era do rádio (Porto Alegre: Sulina, 2011); Aloysio Castelo de
Carvalho, A rede da democracia: O Globo, O Jornal e Jornal
do Brasil na queda do governo Goulart (1961-1964) (Niterói: Ed.
da UFF, 2010).
60 Para Goiás, ver Maria Dulce
Loyola Teixeira, Mauro Borges e a crise político-militar de 1961: Movimento
da legalidade (Brasília: Senado Federal, 1994).
61 Para Jango, ver Jorge Ferreira, João
Goulart, op. cit., especialmente o cap. 6.
“Varre, varre, varre, varre, varre, varre, vassourinha!/ Varre, varre a bandalheira!/ Que o povo já está cansado/ de sofrer dessa maneira.” O símbolo da campanha de Jânio Quadros para presidente, em 1960, era uma vassoura, utensílio que ele empunhava em seus comícios, propondo-se a realizar uma varredura moral e administrativa no Brasil.
110. Palácio Piratini, fotografia de autor desconhecido, s.d. Correio da Manhã e AN
Na sacada do Palácio Piratini, em Porto Alegre, João Goulart acena em silêncio para a multidão. Três dias depois, embarcaria para Brasília a fim de assumir a Presidência da República, no regime parlamentarista. Na nota divulgada à imprensa, Jango fazia um apelo: “Que Deus me ilumine. Que o povo me ajude e que as armas não falem”. Ao lado de Jango, à esq., Leonel Brizola.
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