quarta-feira, 12 de março de 2025

Brasil: uma biografia (Parte I), Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-2566-1

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 808

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Sinopse: Aliando texto acessível e agradável, vasta documentação original e rica iconografia, Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Starling propõem uma nova (e pouco convencional) história do Brasil.

Nessa travessia de mais de quinhentos anos, se debruçam não somente sobre a “grande história” mas também sobre o cotidiano, a expressão artística e a cultura, as minorias, os ciclos econômicos e os conflitos sociais (muitas vezes subvertendo as datas e os eventos consagrados pela tradição). No fundo da cena, mantêm ainda diálogo constante com aqueles autores que, antes delas, se lançaram na difícil empreitada de tentar interpretar ou, pelo menos, entender o Brasil.

A história que surge dessas páginas é a de um longo processo de embates e avanços sociais inconclusos, em que a construção falhada da cidadania, a herança contraditória da mestiçagem e a violência aparecem como traços persistentes.

Esta edição inclui novo pós-escrito das autoras, que joga luz sobre a situação recente do país: a democracia posta em xeque, os desdobramentos das manifestações populares e o impeachment de Dilma Rousseff, entre outros acontecimentos marcantes dos últimos anos.



Era bom saber que a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição de 1888, foi geral pelo país. Havia de ser, porque já tinha entrado na convivência de todos a sua [da escravidão] injustiça originária. Quando eu fui para o colégio, um colégio público, à rua do Rezende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos tinha tomado. A professora, D. Tereza Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de crianças, só uma coisa me ficou: livre! livre! Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos progressistas da nossa fantasia. Mas como estamos ainda longe disso! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis! […] São boas essas recordações; elas têm um perfume de saudade e fazem com que sintamos a eternidade do tempo. O tempo inflexível, o tempo que, como o moço é irmão da Morte, vai matando aspirações, tirando perempções, trazendo desalento, e só nos deixa na alma essa saudade do passado, às vezes composto de fúteis acontecimentos, mas que é bom sempre relembrar.1

O autor desse relato é Lima Barreto. Jornalista, ensaísta, cronista da cidade do Rio de Janeiro, ele foi um dos poucos escritores brasileiros a se definir como negro — a si e à sua literatura —, isso a despeito de viver num país cujos dados censitários indicavam a existência de uma ampla maioria negra e mestiça. O relato não parece ter sido escrito para ser lembrado ou legado à posteridade. Ao contrário, o desabafo foi deixado nas costas de um papel avulso do Ministério da Guerra, instituição em que Lima trabalhava como amanuense — funcionário público de posição não muito elevada na hierarquia do Estado.”

1. Lima Barreto, O traidor. [S.l.: s.n.], [19--]. Orig. Ms. 10 f. FBN/Mss I-06,35,0964.

 

 

“Canibalizar costumes, desafiar convenções, enviesar supostos, é ainda uma característica local, um ritual de insubordinação e de não conformismo que, quiçá, nos distingue ou, ao menos, mantém acesa a boa utopia, que é sempre bom admirar e guardar.

Tem sido assim desde a chegada das caravelas de Cabral: para uns, breve paraíso; para outros, inferno sem fim; para outros, ainda, espécie de purgatório na Terra, essa história continua atual, apesar de inscrita e desenhada no passado. Afinal, já nos idos de 1630, frei Vicente do Salvador, um franciscano que se tornou provavelmente nosso primeiro historiador, escreveu um belo opúsculo ao qual chamou de História do Brazil. O nome do país nem ao menos se escrevia com “s”, e o frade já concluía: “Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”.

Desde o início dessa curta história de cinco séculos e uns quebrados, já era patente, na exploração das terras que depois viriam a se constituir no Brasil, um difícil processo de construção de formas compartilhadas de poder e zelo pelo bem comum. Ao contrário do que supunha frei Vicente, no entanto, há virtude republicana entre nós. Criar percursos imaginosos de construção de vida pública, este é um remédio tipicamente brasileiro para enfrentar ou, melhor dizendo, para driblar o impasse gerado no interior de uma sociedade que se vale de muitos encontros e vários desencontros.

Por isso o país se desenvolveu, e, como veremos, a partir de ambivalências e contrastes. O Brasil é, ao mesmo tempo, uma nação marcada por altos gaps sociais e índices elevados de analfabetismo, mas também por um sistema dos mais modernos e confiáveis de aferição de votos. É aquele que introduz de maneira veloz, em seu parque industrial, as benesses da modernidade ocidental, e o segundo em acessos ao Facebook, mas que mantém congeladas no tempo áreas inteiras do território nacional, sobretudo na Região Norte, onde só se trafega na base das pequenas jangadas a remo (ver imagem 5). Que possui uma Constituição avançada — a qual impede qualquer forma de discriminação — mas pratica um preconceito silencioso e perverso, como já se disse, duradouro e enraizado no cotidiano. No país, o tradicional convive com o cosmopolita; o urbano com o rural; o exótico com o civilizado — e o mais arcaico e o mais moderno coincidem, um persistindo no outro, como uma interrogação.”

5. Rua da Liberdade, São Paulo, fotografia de Claude Lévi-Strauss, c. 1937. IMS O Brasil é um país de ambiguidades em que o arcaico se prolonga no moderno: é avançado e retrógrado, urbano e rural, rico e pobre; contempla conflito e brandura, casa-grande e senzala. O etnólogo francês Claude Lévi-Strauss, que aqui esteve de 1935 a 1939, captou nesta foto a tensão entre extremos. O bonde lotado de senhores de terno convive com o gado que lentamente anda pela rua apressada da cidade, numa combinação de temporalidades e diferentes perspectivas de modernidade.

 

 

“O Brasil, por exemplo, que nessa época não existia nos mapas dos grandes cosmógrafos e não havia entrado na história ocidental, já estava incluído no pacote: a linha do tratado cercava o país nas proximidades de onde, hoje, se encontram Belém (no Pará) e Laguna (no atual estado de Santa Catarina). Mas Portugal parecia pouco interessado em explorar esse seu mapa imaginário, ao menos naquele momento, até porque com as riquezas e lucros obtidos no Oriente as contas já fechavam. Mesmo assim nova expedição foi organizada em 1500; dessa vez sob o comando do capitão-mor Pedro Álvares de Gouveia — membro da pequena nobreza, e que levava o nome de família da mãe, d. Isabel de Gouveia. O navegador assumiu depois o nome de seu pai — Fernão Cabral, alcaide da cidade de Belmonte —, sendo a partir de então conhecido como Pedro Álvares Cabral. Dele pouco se sabe, aliás, como de boa parte dos navegadores. Enviado à corte de d. Afonso V em 1479 quando tinha doze anos, Cabral educou-se em Lisboa, estudou humanidades e foi formado para pegar em armas pela pátria.

Com cerca de dezessete anos, em 30 de junho de 1484 Cabral era nomeado moço-fidalgo do primeiro grau da nobreza da casa de d. João II — título sem maior relevância e geralmente concedido a jovens nobres —, e recebeu uma tença (um favor real em reconhecimento por serviços prestados) no valor de 26 mil-réis. De fidalgo da casa real teria chegado a cavaleiro da Ordem de Cristo em 1494: a mais importante ordem de cavalaria de Portugal. Recebeu, ainda, um subsídio anual de 40 mil-réis, valor que deve ter sido estipulado por conta das viagens empreendidas por Cabral, a exemplo de outros jovens nobres, ao Norte da África. Apesar de não ter restado nenhuma imagem detalhada do navegador, sabe-se que era forte e tinha a altura de seu pai: um metro e noventa. Relatos também o descrevem como culto, cortês, tolerante com os inimigos e bastante vaidoso, como era próprio dos fidalgos que chegavam a essas posições. De toda maneira, era considerado “homem avisado”, “de bom saber”, e, apesar de não ser muito “experiente”, foi colocado no comando da maior frota que já zarpara de Portugal, rumo a lugares tão longínquos quanto desconhecidos.

Restaram, porém, poucos documentos acerca dos critérios utilizados pelo governo português para escolher o navegador como comandante da expedição à Índia. No decreto que o nomeia capitão-mor, menciona-se apenas “mérito e serviços”. Sabe-se também que o rei conhecia bem sua corte, além de ser famosa a lealdade da família de Cabral à Coroa portuguesa. Por outro lado, o fidalgo fazia parte do conselho do soberano, o que pode ter ajudado a desempatar uma parada feita de muita intriga política. Há quem diga ainda que essa teria sido uma manobra deliberada no sentido de equilibrar facções nobres, uma vez que, a despeito das qualidades pessoais de Cabral, ele não possuía grande experiência no comando desse tipo de expedição. Afinal, é bom lembrar que, para a mesma viagem, navegadores mais experientes — como Bartolomeu Dias, Diogo Dias e Nicolau Coelho — foram selecionados somente como capitães de navios, e velejaram sob a liderança do fidalgo.

Tal hierarquia era determinada também por critérios econômicos. O maior salário era o do capitão-mor: Cabral recebeu 10 mil cruzados (antiga moeda portuguesa que equivalia a 35 quilos de ouro), e o direito de comprar trinta toneladas de pimenta e mais dez caixas de qualquer outra especiaria, às próprias custas, e revendê-las na Europa, livre de impostos. Assim, embora a viagem trouxesse muitos perigos, ela poderia garantir que Cabral, após o retorno, se tornasse um homem verdadeiramente rico, já que as especiarias, apesar de muito demandadas, eram extremamente raras.5 Os capitães de cada nau receberam mil cruzados sobre cada cem tonéis de arqueação de seu navio, assim como “seis caixas forras e cinquenta quintais de pimenta”.6 Um marinheiro ganhava dez cruzados por mês e dez quintais de pimenta, cada grumete a metade disso, e ao pajem pagava-se um terço. Além deles, havia o contramestre e o guardião, que recebiam como “um marinheiro e meio”. Ainda embarcavam padres — que, no alto-mar, cumpriam tanto o papel de orientadores espirituais quanto o de médicos — e prostitutas, muitas vezes levadas escondidas em meio à tripulação. Masculino por excelência, esse mundo não abria mão das “mulheres sospeitosas”, que por vezes engravidavam e tinham seus filhos em pleno mar.

O empreendimento contava com uma tripulação composta de cerca de mil homens, sendo setecentos designados como soldados, embora não passassem de plebeus comuns, filhos de camponeses, muitas vezes apanhados à força e sem maior treinamento. E, nessa verdadeira cidadela flutuante, problemas não faltavam. Dentre eles, um dos mais graves era a escassez de comida. O padre Fernando Oliveira, que costumava acompanhar viagens como essa, aconselhava, previdente: “No mar não há vendas, nem boas pousadas nas terras do inimigo, por isso cada um vá provido de sua casa”.7 O capitão era o único que tinha o privilégio de embarcar galinhas — quase sempre usadas para alimentar doentes —, além de cabritos, porcos e por vezes vacas. Mas esse tipo de bagagem não era partilhado com a tripulação, que, em geral, passava fome.

Numa viagem sem incidentes a comida embarcada mal satisfazia as necessidades básicas dos marinheiros. O cenário piorava muito diante de calmarias ou de imperícias dos pilotos, que provocavam alongamentos indesejáveis e inesperados, ocasionando uma carestia geral no navio. O principal alimento era o biscoito seco, cuja história, aliás, confunde-se com a da navegação. O vinho era também presença obrigatória, sendo a ração diária calculada em uma cana (um quarto de litro), na mesma proporção que a água potável, usada para beber e cozinhar. Esta era, porém, acumulada em tonéis nem sempre apropriados, que estimulavam a proliferação de bactérias, causando infecções e diarreias na tripulação. A carne era controlada e distribuída a cada dois dias. Na ausência dela oferecia-se queijo ou peixe e arroz, quando disponível. Outro problema frequente era a armazenagem. Como o grosso dos alimentos embarcava junto com a tripulação, no início da viagem era comum ocorrerem infestações de ratos, baratas e besouros, que disputavam a comida com igual voracidade. Não havia banheiros nesses navios — pequenos assentos eram pendurados sobre a amurada, o que deixava um fedor permanente no convés.

Com tantos problemas de higiene, as doenças garantiam presença durante as travessias. Escorbuto — mais tarde também chamado de mal de luanda ou mal de gengivas —, provocado pela carência de vitamina C, e enfermidades pleuropulmonares eram as mais frequentes. Em vista das mortes praticamente diárias, a única saída era estender os cadáveres no convés, até que um religioso fizesse uma breve oração e por fim os corpos fossem atirados na água.

No caminho desses mares desconhecidos também não faltaram cenas de violência, roubos e toda sorte de corrupção. Quanto maior a incerteza, maior o número de crimes, agressões e atritos. Para lidar com tamanha insegurança, restavam poucas diversões: jogos de carta, teatros coletivos, a leitura de livros religiosos e profanos, e procissões em torno do convés.

A exploração marítima era uma atividade, no limite, privada, mas totalmente financiada pela família real e supervisionada de perto pelo próprio rei. Implicava investimentos vultosos e representava enorme risco pessoal que precisava ser bem recompensado para valer a pena. Em troca, a monarquia se reservava o direito de controlar qualquer conquista, distribuir terras e ter monopólio dos ganhos. Por tudo isso, uma partida como essa também precisava ser ritualmente comemorada.

E a armada que saiu do Tejo em 9 de março de 1500, ao meio-dia, era de monta — contava com treze navios, provavelmente dez naus e três caravelas. O ano era de data redonda, prometendo bons augúrios, e a estação, adequada para a travessia no Atlântico Sul, que ainda surpreendia os desavisados com muitos e desagradáveis acontecimentos. No dia anterior a tripulação recebera uma despedida pública, que incluiu celebrações e uma missa com a presença do rei. Desde que o navegador português Bartolomeu Dias dobrara o extremo sul do continente africano, em 1488, e o denominara de cabo das Tormentas — uma homenagem ao revés, aludindo ao “mal de são Cosme”, cujas chuvas fétidas manchavam as roupas e provocavam abscessos na pele dos marinheiros —, e, sobretudo, depois de a notícia correr o mundo e chegar aos ouvidos do rei João II, que mudou o nome do acidente geográfico para cabo da Boa Esperança, os lusos julgavam-se senhores dos mares e bafejados pela sorte.

Afinal, qualquer que fosse o nome, esse cabo era o caminho certo que ligava o oceano Atlântico ao oceano Índico, e o mundo nunca parecera aos portugueses tão navegável; pequeno até. Mas oceanos continuavam a esconder mistérios, monstros, tormentas, mares que terminavam em imensas cachoeiras, e todo tipo de perigo. O Atlântico era “um incógnito mar”, como descreveu Valentim Fernandes em ato notarial de 20 de maio de 1503.8 Durante os dez anos entre a passagem de Bartolomeu Dias pelo Sul da África e a partida da armada de Vasco da Gama, em 1497, o oceano funcionara como um laboratório de experimentação. Não obstante, se não existiam certezas, também não havia absoluto acaso. Por isso a esquadra de Cabral navegou direto para o arquipélago do Cabo Verde, evitando a costa africana para fugir das temidas calmarias equatoriais. Tudo indica precisão e a noção de que o comando seguia roteiro conhecido.

A frota passou por Grã Canária na manhã de 14 de março, e seguiu rumo a Cabo Verde, colônia portuguesa no Oeste da África, local onde aportaram em 22 de março. No dia seguinte, uma nau pertencente à mesma expedição, com 150 homens e comandada pelo experiente Vasco de Ataíde, desapareceu sem deixar vestígio. Maus presságios se abateram sobre a tripulação, temerosa com esse mar novo e pouco navegado. Em geral a tripulação não era muito avisada acerca dos objetivos da empreitada. E, diante da falta de notícias a respeito daquelas partes do mundo, o desconhecimento e as dúvidas só podiam ser compensados por uma sobrecarga de visões fantasiosas, que abarcavam tesouros e montanhas de ouro disponíveis para os exploradores, mas também monstros — e qualquer peixe maior já fazia esse papel — e toda sorte de perigo ignorado.

Nesse caso, porém, a imaginação era respaldada pela realidade. Naufrágios e acidentes não eram exceções: muito pelo contrário. De acordo com dados da Coroa, de 1497 a 1612, dos 620 navios que largaram do Tejo, 381 não regressaram a Portugal; desses, 285 ficaram no Oriente, 66 naufragaram, vinte arribaram, seis incendiaram-se e quatro foram tomados por inimigos.9 Tempestades, sobrecarga, más condições de navegação, má qualidade das madeiras das caravelas — que em geral aguentavam só uma longa viagem marítima —, cumpriam papel decisivo nessa agenda de infortúnios.

Mas a frota portuguesa, mesmo com tantas intempéries, seguiu em frente e cruzou em 9 de abril a linha do equador, afastando-se do continente africano. Utilizaram a técnica do “volta mar”, manobra conhecida pelos portugueses que consistia em descrever um largo arco para evitar a zona central de calmaria e assim aproveitar os ventos e correntes favoráveis.

A manobra deu certo. Já em 21 de abril Caminha anotava a existência de “alguns sinais de terra”: algas marinhas e sujeiras no mar. No dia 22, a armada de Cabral, que seguia no caminho das Índias, se deparou com terra a ocidente. Primeiro, notaram-se algumas aves que foram chamadas de “fura-buxos”, depois um grande monte, muito alto e redondo, logo nomeado monte Pascoal (uma vez que aquela era a semana da Páscoa); o local, por fim, foi chamado de Terra de Vera Cruz. A reação inicial foi de encanto diante dessa “terra nova, que se ora nesta navegação achou”, mas também de vontade de posse: assim, imediatamente se criaram nomes para tudo que se “descobria”.

São duas as narrativas sobre o novo domínio, escritas entre 26 de abril e 1º de maio no atual estado da Bahia. O espanhol João Faras ou João Emeneslau, mais conhecido como Mestre João, faz a descrição inaugural do céu e das estrelas do Novo Mundo, julgando estas últimas definitivamente novas: “principalmente as da Cruz”. Essa seria a primeira observação europeia do Cruzeiro do Sul, constelação que viraria marca e símbolo do país. Pero Vaz de Caminha, o escrivão da armada de Cabral, que já tinha cerca de cinquenta anos quando foi apontado para servir naquela viagem, era homem de confiança, tendo trabalhado como cavaleiro das casas de d. Afonso V, de d. João II e de d. Manuel I. É de autoria dele a “Carta” endereçada ao rei de Portugal e hoje considerada oficialmente uma espécie de certidão de nascimento do Brasil: documento fundador e marco da origem da nossa história. Nela Caminha desenvolve longa e deslumbrada descrição. Testemunhou de maneira exultante “o achamento desta Vossa terra nova, que se ora nesta navegação achou”. Aos olhos da tripulação e de seu porta-voz, tratava-se definitivamente de um lugar novo, recém-“achado”. Como diz o ditado, “achado não é roubado”, e a ideia era logo registrar a propriedade, mesmo que não se soubesse o que se ia encontrar.”

5 Os comentários que se seguem, sobre a vida no mar na época das grandes explorações, foram retirados do livro de Paulo Miceli, O ponto onde estamos: Viagens e viajantes na história da expansão e da conquista (Campinas: Ed. da Unicamp, 2008).

6 Paulo Miceli, op. cit., p. 77.

7 Padre Fernando Oliveira, A arte da guerra do mar. Lisboa: Ministério da Marinha, 1969, p. 77.

8 Joaquim Romero de Magalhães, “Quem descobriu o Brasil”. In: Luciano Figueiredo (Org.), História do Brasil para ocupados. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.

9 Paulo Miceli, op. cit., p. 171.

 

 

Difícil entender como este local, perdido entre o paraíso e o inferno, iria aos poucos se definir como um território importante para o comércio de doçura e fazer largo uso do chamado “trato dos viventes”, também conhecido como “infame comércio de almas”. Hora de puxar o fio do começo dessa história, até porque nada na vida é só natural ou mero presente dos deuses. Aprendemos a gostar de lugares, sensações e produtos que, muitas vezes, são inventados e têm data de criação; aprendemos a identificá-los e a nos familiarizar com eles. Se empresas e sociedades coloniais foram criadas pelos europeus nas novas terras americanas — caso do Caribe e do Brasil —, o mesmo pode ser dito a respeito do açúcar. Seres humanos fazem comida com praticamente tudo que encontram, e suas escolhas e práticas alimentares revelam distinções significativas entre gerações, culturas, gêneros, classes sociais ou regiões. É por isso que o açúcar não pode ser entendido somente como um produto. Ele é, como veremos, também produtor de códigos, costumes e hábitos. Foi no século XVI que se inventou e disseminou um desejo de doçura. Não que inexistisse o consumo de frutas, ou mesmo do mel como recurso para adocicar os alimentos. Mas o gosto pelo doce, sua transformação em necessidade universal, só se dá num momento preciso da história do Ocidente. É apenas a partir de 1650 que o açúcar, em especial aquele feito de cana, converte-se de um luxo raro num produto corriqueiro e basicamente obrigatório.”

 

 

“Senzala” é um termo do quimbundo que significa “residência de serviçais em propriedades agrícolas”, ou “morada separada da casa principal”. Nas senzalas da cana residiam dezenas de escravos, que podiam chegar às centenas, com frequência presos pelos pés e braços, deitados em chão de terra e em péssimas condições de higiene — como ter numerosos escravos era sinal de prosperidade e abastança, o senhor preferia quantidade a qualidade. As circunstâncias variavam: por vezes os escravos eram alojados coletivamente; em outras situações foram achados registros de barracões distintos para homens e para mulheres, e em alguns casos até mesmo alojamentos para casais com filhos. No Nordeste, o mais normal era encontrar barracas contíguas, dispostas em filas e a certa distância da casa-grande. As senzalas eram trancadas à noite pelos feitores, a fim de evitar fugas e de estabelecer a disciplina, pois dessa maneira se determinava o horário de se recolher e de despertar. O repouso era breve e o local dos mais insalubres, uma vez que, sem luz nem janelas — para impedir evasões —, ali se vivia numa completa penumbra, além de faltar ar por conta da lotação. Em geral com paredes feitas de barro e telhado de sapé, essas construções eram bastante frágeis, e muitos viajantes comentaram sua aparência rudimentar.31 Pares opostos de uma mesma engenharia social, não havia casa-grande sem a senzala.

Por sinal, diversos elementos faziam parte da performance de senhor “aristocrata”: as roupas, a mobília, os cavalos puros-sangues, a alfabetização numa terra de iletrados, a capacidade de mando. Outro aspecto que se aprofundou na experiência brasileira, quando comparada à da metrópole, foi a convivência de várias culturas que passaram a ser reconhecidas e classificadas a partir da cor. Na medida em que eram considerados pagãos, tanto indígenas como africanos, apesar de batizados e transformados em vassalos, continuavam sem direitos. Dessa forma, as divisões entre “gentios” e “índios aldeados”, ou entre “africanos”, “boçais” (aqueles recém-chegados) e “ladinos” (aculturados), representavam gradações culturais que demarcavam hierarquias internas, as quais, no limite, implicavam maior ou menor exclusão social. Os mais de dentro e os mais de fora.

A cor logo se tornou um marcador social fundamental; as categorizações, fluidas, variavam com o tempo e com o lugar, além de delimitarem classificações sociais e de status. As populações mestiçadas recebiam diferentes nomes, os quais caracterizavam de modo geral, desde o Império português, a união de portugueses com nativos e de brancos com pretos. Mas outras subdivisões estavam presentes no cotidiano da colônia. Essas populações podiam ser denominadas simplesmente mestiças (provenientes de uniões entre escravos e seus senhores); cabras (termo que quase sempre se referia à mistura do índio com o negro); morenas (palavra que vem de “mouro” mas guarda antes o significado “de cor escura”), ou pardas: a cor parda ainda hoje consta no censo brasileiro, e mais parece um “nenhuma das anteriores”, um grande et cetera ou um coringa da classificação. Ou seja, os que não são brancos, amarelos (cor que no Brasil designa povos vindos do Oriente), vermelhos (os indígenas) ou pretos, só podem ser pardos.

Esse termo, até os nossos dias, é sujeito a muitas manipulações: depende da ocasião, do contexto social e da pessoa que classifica. A palavra teria vindo de Portugal e se originado do nome do pássaro pardal, conhecido por suas penas escuras e de cor indefinida, por um lado, e pelo fato de ser encontrado corriqueiramente, por outro.32 Os mestiços ganhavam ainda outras subdivisões étnicas e raciais: eram mamelucos (produtos da união entre índios e brancos; a denominação referia-se historicamente à elite militar egípcia, que caçava índios escravizados para os portugueses); caboclos (indígenas que falavam a língua ensinada pelos jesuítas — a língua geral); carijós (termo que originalmente qualificava os habitantes do Sul do Brasil mas em tupi designava os descendentes do homem branco com um pássaro preto de asas brancas), ou curibocas (mestiços com pele cor de cobre e cabelo liso).33

Na época da cana era essa “cartografia” de tons e subtons que reinava. As “pessoas de cor”, expressão até hoje vigente e que representa, no Brasil, uma espécie de eufemismo — pois cor é preto, enquanto branco é algo como uma não cor —, sofriam com todo tipo de discriminação. Em primeiro lugar, sua tonalidade de pele indicava a origem e o passado escravocrata — marcas pesadas nesse país em que escravidão resume a noção de trabalho manual e coercitivo. Em segundo, sinalizava condição social moralmente instável, uma vez que tais indivíduos lembravam o resultado de relações não oficiais, sendo muito raros os casos de senhores que regularizavam a situação de filhos ilegítimos. Por fim, já nesse contexto pairavam preconceitos sobre os mestiços, que eram vistos como ambiciosos, matreiros e malandros.

Com a manumissão, foi se criando um grupo heterogêneo de negros livres e categorias sociais que gravitavam em torno da casa-grande e de seu jugo. Gradação de cor era critério importante, e é sabido que, quanto mais clara a pessoa, com mais facilidade chegava à alforria, a postos específicos e mesmo a ocupações no interior da residência senhorial. Havia uma complexa combinação de considerações de cunho racial, cultural e pessoal. “Mulatos” e “crioulos” — este último termo se referia aos escravos nascidos na propriedade do senhor, isto é, não africanos — eram aqueles que mais se aproximavam do universo da casa-grande, constituindo uma espécie de elite que realizava o trabalho doméstico e especializado, apesar de muitas vezes serem descritos como indolentes; os “pardos” eram julgados aptos a aprender e dominar os ofícios da cana, e os “africanos”, tidos por “estranhos pagãos” — na melhor das explicações, recém-convertidos — e, com raras exceções, por perigosos e instáveis. Com o tempo, a escravidão ficaria mais e mais associada aos africanos e seus descendentes, e se enraizaria na América portuguesa de maneira a penetrar toda a sociedade colonial, em que cada vez mais a cor atuava como critério de status. Libertos com mais bens logo adquiriam cativos, e o mesmo ocorria com agricultores pobres. Ter escravos era símbolo de posse e de distinção, quase um cartão a avalizar prosperidade e estabilidade nessa civilização da cana.

Se o verdadeiro coração do complexo da cana-de-açúcar era formado por senhores e escravos, havia um mundo social que girava ao redor dessa constelação: agregados e lavradores de cana. Os agregados compunham um setor bastante alargado, que vivia dos favores do senhor e, se não era importante economicamente, tinha relevância política e social, pois oferecia apoio irrestrito a ele e lhe engrossava a influência em suas respectivas regiões. Eram parentes sem propriedades, políticos locais, comerciantes, homens livres, mas não possuíam autonomia econômica ou social. Por isso mesmo, tornavam-se dependentes e faziam da política de favorecimento uma espécie de moeda que alimentava o mandonismo do senhor e sua centralização econômica, bem como política e cultural.34 Já os lavradores se dividiam em dois grupos: os que arrendavam terras dos senhores, e pequenos e médios proprietários pressionados a usar o engenho para moagem de sua própria cana. Em nenhum dos casos escapavam, porém, do domínio do senhor do lugar.

Inventou-se, portanto, uma aristocracia da cana, cujo ápice absoluto era ocupado pelo senhor de escravos e seu centralismo político e social. Nos “distantes e largos Brasis”, o proprietário da região reinava quase só, raramente havendo interferência da Coroa portuguesa nesses que se consideravam negócios internos. No entanto, no dia a dia o negócio da cana não era nada glorioso. Trazia muitos riscos, e dependia da oscilação dos preços no mercado internacional, da colheita do ano, de uma administração saudável, do bom controle dos escravos, do domínio paternalista sobre vasta parentela composta de “amigos do sangue” e da convenção do mandonismo local.”

31 Stuart Schwartz, op. cit., p. 125.

32 Francisco Bethencourt, Racisms: From the Crusades to the Twentieth Century. Princeton: Princeton University Press, 2013.

33 Ibid., p. 173.

34 Para uma análise fundamental da dependência e das políticas de favor no Brasil, ver Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro (São Paulo: Duas Cidades, 1977 [5. ed. rev. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000]).

 

 

“A operação começava com o apresamento em guerra ou emboscada dos futuros escravos pelos traficantes, seguido de uma extensa viagem pelo interior africano. Os cativos eram obrigados a percorrer longas distâncias até alcançarem os portos de embarque, e muitos não resistiam ao esforço físico ou a doenças que apanhavam durante o deslocamento. Realizavam a operação os reinos africanos aliados dos portugueses; estes últimos nunca se envolveram em tais atividades internas. Com o tráfico, elites africanas tinham acesso a armas e bens de consumo que caíram no gosto local, como a aguardente e o tabaco. Nos portos, os capturados permaneciam amontoados por dias e às vezes meses, até que a carga humana completasse o navio a ela correspondente, em barracões; nesses alojamentos precários, insalubres e sem ventilação, a mortalidade era alta. Partiam então nos “tumbeiros”, como se chamavam os navios negreiros. Usualmente, antes até de entrarem nas embarcações, os escravizados eram marcados com ferro quente no peito ou nas costas, como sinal de identificação do traficante a que pertenciam, uma vez que era comum se recolherem no mesmo navio cativos de vários proprietários.

Diferentemente do que se costuma pensar, os africanos não eram apenas apreendidos. Precisavam ser trocados por tecidos, instrumentos agrícolas, barras de metal, pólvora, cachaça, rum e outras bebidas alcoólicas; produtos que se transformavam em moedas fortes nas mãos dos traficantes. Outro engano é descrever os negociantes africanos como ingênuos ou passivos na comercialização. Ao contrário, eles condicionavam as relações mercantis às circunstâncias de seus próprios mercados. Os senhores brasileiros preferiam ter trabalhadores de diversas etnias e culturas para evitar comunicação entre eles e, desse modo, impedir rebeliões. Já os traficantes locais escolhiam em geral, e por comodidade, transportar povos de uma mesma região, sendo eles que normalmente determinavam os termos da transação.

O tráfico era um negócio complexo que englobava pontos fixos, barcos que navegavam em águas costeiras, fortes litorâneos e portos. Os comerciantes africanos variavam: podiam ser meros intermediários, ou fazer parte de monopólios estatais ou de organizações mais estáveis pertencentes a nobres ou reis. Em alguns lugares o comércio era livre; em outros, controlado por governos e agentes mais intervencionistas, que impunham tarifas restritivas. Outro mito recorrente, e associado à falsa ideia do baixo preço dos escravos africanos, é o da destruição inconsequente de vidas durante a viagem. Se de fato as condições no navio eram as mais terríveis, também é claro que o negociante não tinha interesse em que a mortalidade fosse alta a ponto de comprometer os lucros. Por isso mesmo, era preciso avaliar a quantidade de cativos em relação às possibilidades de espaço dos navios. Fazia-se o cálculo a partir do menor espaço costumeiramente reservado a tropas do exército ou grupos de condenados em trânsito, mas o objetivo era levar “a carga” até seu destino. (...)

Sobraram poucos relatos acerca dos horrores desse tipo de viagem forçada. Em dezembro de 1649, frei Sorrento, um capuchinho italiano que esteve num tumbeiro, contabilizou novecentos cativos, e desabafou: “Aquele barco […] pelo intolerável fedor, pela escassez de espaço, pelos gritos contínuos e pelas infinitas misérias de tantos infelizes parecia um inferno”.10 Falando em inferno, para as populações aprisionadas o trauma da travessia estava relacionado, também, à preocupação com o destino das almas, uma vez que muitos povos advindos da região do Congo e de Angola acreditavam que deveriam morrer junto “a seus vivos” e descendentes. Morrer no mar e num navio negreiro constituía impedimento certo para que os espíritos retornassem para junto de seu povo e aldeia; essa era outra causa do sentimento que oscilava entre tristeza, inconformismo, melancolia e raiva, e que dominava o ambiente a bordo.”

10 Wlamyra R. de Albuquerque e Walter Fraga Filho, Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.

 

 

“Sobrava trabalho, faltava roupa e alimento. Em documentos de época, viajantes afirmavam que os escravos passavam fome no Brasil. Exigia-se que plantassem para seu sustento, mas somente os domingos eram reservados a tal atividade. A fome era tanta que, como ratos andavam infestando os canaviais, não raro esses animais viravam alimento nas panelas da senzala. A comida básica era a farinha de mandioca, fornecida com carne-seca e peixe — só a escravos doentes se serviam galinha e carne fresca. Até hoje, diz o dito popular, quando se come frango em casa de pobre, das duas, uma: ou o frango está doente, ou o pobre. Comentavam ainda as testemunhas que em certas regiões o “bacalhau” era “comer de negro”. Paradoxalmente, essa palavra designava também o chicote de relho que castigava e açoitava os escravos.

Altas taxas de mortalidade acompanharam esse sistema, desde sua implantação. Os cativos introduzidos na América morriam com facilidade, pois não apresentavam imunidade contra as doenças do Novo Mundo, deles desconhecidas. Além do mais, enfraquecidos física e moralmente pela travessia atlântica, ficavam suscetíveis a moléstias traiçoeiras. Por isso, o primeiro ano era o mais perigoso, e em todos os sentidos. Os escravos tinham não apenas que se acostumar ao regime pesado de trabalho, como aprender a língua e lidar com as novidades do clima. A mortalidade infantil era ainda mais alarmante: insalubridade, falta de assistência, subnutrição, levavam a altíssimas taxas de natimortos, e de crianças que não chegavam à primeira infância.

O regime de trabalho era o grande vilão, acabando com o vigor das mães e elevando a taxa de mortes de “velhos” — os trabalhadores com quarenta anos ou mais. Nos inventários de propriedades açucareiras, 6% morriam de “cansaço”: exaustão, falência do corpo. No engenho do Sergipe do Conde, no Recôncavo baiano, entre 1622 e 1653 compravam-se cerca de cinco escravos por ano para manter o grupo de aproximadamente setenta, repondo assim as mortes constantes. Há ainda o aspecto psicológico, que levava a impactos censitários notáveis. Livros de contas de engenhos do Nordeste referem-se a casos de aborto e suicídio, formas individuais de rebelião dos que se negavam a continuar aceitando aquela realidade. Com tantos dados negativos, não se confirma a imagem de uma escravidão mais benevolente no Brasil, onde a expectativa de vida dos escravos homens ficava abaixo da que se tinha nos Estados Unidos — 25 anos para 35 —, embora houvesse desproporção semelhante para a população branca.

Dado coerente com o regime de privações a que obedecia o cotidiano de trabalho dos escravos, a vestimenta a eles fornecida era exígua. Registros da época mencionam que os cativos andavam quase nus, ficando muito suscetíveis às mudanças do clima. Homens normalmente traziam o peito descoberto e portavam ceroulas que iam até abaixo dos joelhos. Para conter o suor da testa, punham faixas ou lenços na cabeça. As mulheres vestiam trajes mais completos — saia, anágua, blusa e corpete —, a despeito de hoje se achar que esse tipo de roupa era mais usado na ocasião da venda ou em festas. Em geral, as vestimentas eram feitas de “pano da serra”, um tecido grosseiro de fio cru que, com o uso diário, raspava a pele, e distribuídas no máximo duas vezes por ano: nos períodos da moagem e do corte da cana.

Os escravos do campo andavam menos bem vestidos que os domésticos. Estes, comenta-se, traziam traje completo, por vezes chapéu, colete e até guarda-chuva, o qual mantinham totalmente aberto para proteger seus senhores contra o sol. Havia ainda escravos urbanos — cujo número médio por senhor era bem menor —, que passavam parte do tempo longe da vigilância, trabalhando na rua como alugados e jornaleiros. Seu tempo era arrendado por dia ou por semana e o cativo devia entregar ao senhor ou à senhora, no final da empreitada, a soma que recebia. Eles exerciam uma infinidade de ofícios: eram pintores, pedreiros, carpinteiros, estivadores, alfaiates, ferreiros, costureiros, cocheiros, carroceiros, barbeiros, sapateiros. As mulheres eram domésticas, cozinheiras, arrumadeiras, amas, engomadeiras, lavadeiras. Escravas vendiam nas ruas mingaus, doces, bolos, caldo de cana, caruru e iguarias vindas da África. Saíam pela cidade oferecendo seus quitutes e muitas vezes levavam os filhos amarrados em panos da costa, que lhes identificavam a nação. Várias delas atuavam como mensageiras, pois, circulando pelas ruas, podiam transmitir informações e até notícias de rebeliões. Escravizadas também tiveram de exercer a prostituição nas regiões portuárias, vendendo seu corpo e entregando os ganhos aos patrões. (...)

O calor das chamas, aliado ao calor do Nordeste, a falta de alimentação, os maus-tratos, a faina do dia inteiro, faziam do trabalho no engenho uma espécie de “inferno” na Terra. Foi o mesmo Antonil quem bem definiu a colônia como “Inferno dos negros, Purgatório dos brancos”. Tudo convergia para a palavra “inferno”, a propósito, metáfora frequente nesse local. No entanto, a despeito das altas doses de sadismo, é evidente que a violência do sistema tinha um sentido econômico claro: o de conformar a disposição do escravo e obrigá-lo a trabalhar o máximo possível.

Era difícil escapar da escravidão. Aliás, no caso brasileiro ela tomou o território todo, e foi responsável pela maior importação forçada de trabalhadores africanos até hoje conhecida. E, de tão disseminada, a instituição deixou de ser privilégio de grandes senhores de engenho. Padres, militares, funcionários públicos, artesãos, taberneiros, comerciantes, pequenos lavradores, pobres e remediados, e até libertos possuíam escravos. Por essas e por outras é que a escravidão foi mais que um sistema econômico: ela moldou condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia estrita.

E há ainda outro elemento a destacar. Por aqui — e contrariando a ladainha que descreve um sistema menos severo — os escravos reagiram mais, mataram mais os seus senhores e feitores, se aquilombaram mais e, por fim, também se revoltaram mais. A provável explicação dessas reações repousa em muitas especificidades: na fragilidade das instituições policiais e jurídicas, na menor coesão da classe senhorial — dividida entre pequenos, médios e grandes proprietários, espalhados por todo o país —, mas, sobretudo, na certeza de que violência chama invariavelmente mais violência.

Além disso, diferentemente do que hoje se imagina, os escravizados não se comportavam como “coisas”, tendo sempre agenciado seu lugar e condição, lutado para conseguir suas horas de lazer, manter sua família, recriar seus costumes em terras estranhas, cultuar seus deuses e práticas, preservar seus filhos e cuidar deles.26 É conhecido o costume de africanos que pretensamente seguiam a missa e os santos católicos — e que pareciam ter se convertido à verdadeira fé — mas decerto tinham uma lista paralela de cultos que incluía seus próprios orixás.

Por meio da devoção, entramos num mundo do diálogo. Muitos africanos, ao chegarem ao Brasil, convertidos pela força do sistema, abraçaram a religião católica e seus santos, mas mudaram nomes, feições e conteúdos. Por outro lado, acrescentaram um novo panteão, na medida em que, sem abrir mão de seus reis e divindades, os cultuaram à discrição e em meio às festas em que reverenciavam as majestades portuguesas ou santos da cristandade. O mesmo se deu com práticas como a capoeira. O nome vem do mato nascido após a derrubada da mata virgem e cortado pelo escravo. Contudo, ganhou outro sentido. Originalmente uma luta, na colônia foi descrita como uma dança para a distração. Boa paródia, dança que é luta, santos que são orixás. A escravidão criou um universo de disfarces e de negociações.

Por sinal, desde o princípio os africanos fugiram e, quando puderam, se rebelaram. Quilombos existiram enquanto perdurou o escravismo, tendo sido a submissão somente um dos efeitos de muita coação. Não há escravidão boa ou má, portanto não há escravidão melhor ou pior. Sempre e em qualquer lugar ela gera o sadismo, a rotinização da violência e a perversão social. O que resta, nos EUA ou aqui, é a má consciência, a culpa da perpetuação de um sistema como esse por tanto tempo e de forma assim naturalizada. No entanto, a luta pela liberdade sempre foi um desejo e um objeto perseguido pelos escravizados. Se os senhores na maior parte das vezes manipulavam a situação recorrendo a sevícias e castigos de toda sorte, em alguns poucos momentos distribuíam incentivos positivos — prometendo dias livres ou até mesmo a manumissão. Também os escravizados negociavam, e tentavam sobrepujar as constrições do sistema. Solicitavam que as sextas-feiras e sábados fossem liberados para eles se dedicarem aos seus afazeres, exigiam escolher seus feitores e controlar o equipamento, queriam cuidar dos filhos, cultuar seus deuses e os que conheceram no Novo Mundo. Há um documento — raro entre nós — em que o escrivão registra a petição dos cativos que reivindicavam o direito de “brincar, folgar e cantar”, sem pedir autorização. A esperança era pouca e a violência muita, mas os trabalhadores vindos da África fizeram mais do que apenas sobreviver. Para fugir da condição de “peça”, os escravizados procuraram nas brechas do sistema espaços para recriar suas culturas, inventar desejos, sonhar com a liberdade e com a reação.”

26 Há vasta bibliografia sobre o tema. Entre outras obras, e para este contexto, sugerimos a leitura de Machado (O plano e o pânico, 2010), Reis (Negociação e conflito, 1989 e Rebelião escrava no Brasil, 2003), Schwartz (Segredos internos, 1988) e Slenes (“‘Malungu, Ngoma vem!’, África coberta e descoberta no Brasil, 1995 e Na senzala, uma flor, 1999”).

 

 

A Semântica das Revoltas

A Revolta da Cachaça foi a primeira, mas não seria a última: em muitas outras ocasiões colonos exasperados e ressentidos usariam a rebelião como instrumento de pressão para sustentar reivindicações, atacar abusos de autoridades locais, reagir contra a rigidez administrativa de Lisboa ou exprimir descontentamento político. A América portuguesa concentrou uma série de protestos, espalhados por todo o seu território, que no limite apresentavam sério risco para a estabilidade do Império no Atlântico.10

Os constantes surtos de insatisfação exigiram de Portugal a criação de outras formas de disciplina administrativa dirigidas à colônia, razão por que foi preciso fixar um amplo léxico para nomear as dissensões: insurreição, sedição, revolta, levante, rebelião, assuada, motim, tumulto… E, como não se inventam nomes se não existe realidade para justificá-los, nem regras se não há a intenção de burlá-las, no Brasil seguiu-se o modelo habitual: disseminaram-se “gramáticas” e medidas voltadas para o controle da população.

No vocabulário da época, o emprego do termo “insurreição” designava uma população em cólera e com objetivos concretos e imediatos, à qual por vezes se uniam escravos. “Sedição” era a palavra utilizada para definir um ajuntamento de dez ou mais colonos armados que tinham a intenção deliberada de perturbar a ordem pública. Quando esse agrupamento chegava a mobilizar 30 mil pessoas, a coisa mudava de figura: estava instaurada a “rebelião”, um tipo perigosíssimo de evento em que havia ameaça de anarquia ou de guerra civil. Uma “assuada” significava uma espécie particular de ajuntamento de colonos com o propósito de atingir a ordem pública e promover uma ofensa específica a uma autoridade. Um “motim” congregava muita gente com motivação política e toda sorte de insatisfação. “Tumulto” caracterizava a revolta do povo — e se usava o termo “povo” tanto para identificar o conjunto da população de um território quanto para classificar os estratos que formavam a base da pirâmide social da colônia: o povo miúdo, a plebe, a chusma.11 A nomenclatura podia variar, mas a natureza dos ajuntamentos era sempre política.

A eclosão cada vez mais comum dessas comoções sociais na América portuguesa indicava que a luta política envolvia questões de interesse público, contava com a participação das camadas populares, e muitas vezes incluía negros libertos ou fugidos, quando a dose de violência poderia ser ainda mais temida. Evidentemente os protagonistas das revoltas se sujeitavam a acabar muito mal. Na ótica das autoridades metropolitanas, qualquer ponto dessa escala de dissensões se encaixava num tipo penal, inscrito na legislação criminal como delito público desde a vigência das Ordenações Filipinas: o mais duradouro código legal do reino, promulgado em 1603 por Filipe I, o primeiro soberano de Portugal durante o período da União Ibérica. Quem se metia a arrostar um funcionário do rei se arriscava a ser condenado por crime de lesa-majestade — com penalidades que iam da morte até o confisco de bens, galés perpétuas e açoites.12

Ainda assim, as rebeliões continuavam a subverter a ordem pública na colônia com impressionante regularidade. As causas que levaram à irrupção da Revolta da Cachaça inauguraram a lista dos motivos pelos quais os habitantes da América portuguesa acreditaram valer a pena protestar, assumir a pecha de rebeldes e correr perigo de vida. O início de uma revolta servia principalmente para expressar o grau de desagrado dos colonos com “os desgovernos das conquistas”: o rigor de uma política metropolitana que lançava tributos intermináveis sem consulta; o abuso de poder por parte dos funcionários régios que atuavam no ultramar; a grande distância que separava o Brasil de Portugal e os colonos do rei e de seu poder de arbitragem para a resolução dos conflitos e dos problemas.13

A frequência com que os vassalos do Brasil promoviam rebeliões deixava as autoridades metropolitanas em permanente estado de alerta. Havia o risco de ataques armados aos funcionários do rei, o perigo da agregação de grupos sociais muito distintos, a ameaça de substituição de governos locais. Mas, sobretudo, havia a possibilidade de contaminação política: as sublevações aconteciam em séries sucessivas e se multiplicavam precipitadamente por todo o território da colônia. As razões de descontentamento variaram; porém, cada protesto contribuía para um adensamento da tensão na área colonial e gerava inquietação em Lisboa.”

10 Para as revoltas, ver Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, “Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na América portuguesa; Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1640-1761”, op. cit.

11 Os dois significados estão apontados na primeira edição do Dicionário de Moraes Silva. Ver Antonio de Moraes Silva, Diccionario da lingua portugueza (Lisboa: Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1789). Ver Fátima de Sá e Melo Ferreira, “Entre viejos y nuevos sentidos: ‘Pueblo’ y ‘Pueblos’ en el mundo iberoamericano entre 1750 y 1850”, em Javier Fernández Sebastián (Org.), Diccionario político y social del mundo iberoamericano: La era de las revoluciones, 1750-1850 (Madri: Fundación Carolina; Sociedad Estatal de Conmemoraciones Culturales; Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2009). Para o vocabulário da época, ver Raphael Bluteau, Vocabulario portuguez e latino (Coimbra: Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1713); Francisco Solano Constâncio, Novo diccionario crítico e etymologico da lingua portugueza (Paris: Angelo Francisco Carneiro Editor; Tipografia de Casimir, 1836).

12 Silvia Hunold Lara (Org.), Ordenações Filipinas: Livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

13 Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, “Revoltas, fiscalidade e identidade colonial na América portuguesa; Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1640-1761”, op. cit., pp. 277 ss. Para os motivos comuns a boa parte das revoltas dos colonos, ver Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, “Além de súditos: notas sobre revoltas e identidade colonial na América portuguesa” (Tempo, Niterói, v. 5, n. 10, pp. 81-95, 2000).

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