quarta-feira, 12 de março de 2025

Brasil: uma biografia (Parte II), Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-2566-1

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 808

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Sinopse: Ver Parte I



““Revolução” é um vocábulo típico da modernidade: descreve um acontecimento ocorrido em distintos espaços da vida social — costumes, direito, religião, política, economia, nações, Estados ou continentes —, sempre enfocando uma perspectiva que inclua transformação, e com muita agitação. Por isso a palavra designa derrubada do que é considerado velho, concentração de uma experiência de aceleração do tempo e inauguração de um futuro, o qual, por suposto, seria não só melhor como até então desconhecido. Nesse caso, longe de dizerem respeito a contextos localizados, os movimentos revolucionários polarizaram a política internacional e os Estados modernos da Europa continental e atlântica: era a própria lógica da sociedade estamental — pautada em posições hierárquicas rígidas e dadas por nascimento — e o Antigo Regime que entravam em colapso.

As diversas monarquias europeias sentiram o golpe de maneiras distintas, mas dificilmente alguém teria ficado de fora. As rupturas tinham tal proporção que alteravam noções de tempo e espaço: o mundo parecia menor (porque agora atingível, por mar e por terra, de modo mais rápido), e o tempo, mais breve, já que novidades chegavam de um país a outro no mesmo continente no espaço de no máximo um dia. Era a modernidade que se desvelava, combinando em doses perversas ruptura com o passado feudal e escassez de bens, produtos e riquezas. Além disso, procurava-se sucatear o ultrapassado, criando-se forças produtivas ancoradas na mão de obra pretensamente livre porém presas a novas formas de trabalho cada vez mais alienadas e exploradas. Após a primeira leva de revoluções, o mundo ocidental se tornaria irreconhecível. A velocidade industrial modificou em definitivo a paisagem, transformou hierarquias e relações entre o campo e a cidade. A paisagem que se anunciava então, no fim do século, era de terra abatida. Decididamente, as coisas estavam mudadas: o cotidiano das pessoas andava de pernas para o ar.”

 

 

FINALMENTE… A ABOLIÇÃO

Em 10 de junho de 1887 a condessa de Barral escrevera a Isabel: “Não lhe dou parabéns da Regência que vai ter de exercer, mas fiada no seu juízo e nos bons conselhos de seu marido, espero em Deus que tudo ande bem durante essa ausência”.27 Numa carta quase premonitória, Barral — a preceptora da princesa e amiga íntima de Pedro II —, talvez inspirada pela própria situação francesa, temia pelo governo de sua protegida. Politicamente a situação se complicava com o avanço do Partido Republicano e as querelas com o Exército, mas era, sobretudo, a pressão pelo fim da escravidão que captava o grosso das atenções. A partir da década de 1880, e dividido em duas grandes correntes — moderados (cujo ideólogo era Joaquim Nabuco) e radicais (entre os quais se destacavam nomes como Silva Jardim, Luís Gama, o conhecido “rábula negro” morto em 1882, José do Patrocínio e Antônio Bento) —, o abolicionismo tomava novamente as ruas e os jornais: Jornal do Commercio, A Onda, A Abolição, Oitenta e Nove, A Redenção, A Vida Semanária, Vila da Redenção, A Liberdade, O Alliot, A Gazeta da Tarde, A Terra da Redenção, O Amigo do Escravo, A Luta, O Federalista, bem como dezenas de panfletos e pasquins.

Nessa época não era incomum assistir a procissões, participar de rituais, cerimônias emocionais nos teatros da corte ou de manifestações pelo fim da escravidão, que perdia em eficácia e aceitação.28 Por mais que o governo tentasse recorrer a táticas “reformistas” — como a promulgação da Lei dos Sexagenários —, o resultado começava a ser o oposto. E os ataques vinham de todo lado, isso sem falar das rebeliões escravas que estouravam nos quatro cantos do país. “Medo” era uma palavra e um sentimento que se socializava. Medo da reescravização, medo da violência que virava moeda corrente no contexto. E não só os escravizados se amotinavam como o sistema se tornava ainda mais violento nos seus estertores. Os senhores, prevendo o fim do regime, e tendo boa parte de seu capital imobilizado em escravos, passavam a exigir uma jornada ainda mais carregada de trabalho. As consequências foram fugas constantes, ataques e assassinatos de fazendeiros e feitores, protestos de forros e populares; movimento paralelo, diga-se de passagem, ao aumento do recurso aos castigos e sevícias. Conscientes de que a escravidão perdia a legitimidade e o consenso, grupos de escravos ganhavam em ousadia e articulação, revoltando-se, fugindo, cometendo crimes, clamando por melhorias em suas condições de vida e por autonomia.29 Em todas as regiões de concentração de escravos, a rebeldia tomou proporções assustadoras. Para conter o pânico, a política atuou ao lado dos senhores, prendendo escravos considerados indisciplinados, descaracterizando denúncias de maus-tratos e reprimindo atos de abolicionistas. Mas a indisciplina tornava-se coletiva e os crimes cada vez mais violentos, rompendo-se assim um dos tabus de uma sociedade escravista: o monopólio do castigo corporal e da violência por parte dos brancos.30 A dificuldade em manter as atividades de repressão dentro do estrito cumprimento da lei acenava para uma situação de desgoverno. Escravizados revoltavam-se, fugiam na calada da noite, retiravam-se em bandos das fazendas de café, muitas vezes liderados por agentes abolicionistas. Não era raro ver grupos de cativos transitando pelas estradas e invadindo cidades.

Nas últimas décadas do século XIX, e com o apoio de abolicionistas, multiplicaram-se refúgios de escravos em torno da área urbana do Rio de Janeiro: o quilombo Camorim, na zona rural de Jacarepaguá; o quilombo Raimundo, no Engenho Novo; o quilombo Miguel Dias, no Catumbi; o quilombo Padre Ricardo, na Penha; o quilombo Clapp, na praia de São Domingos, já nos arrabaldes da cidade de Niterói. Havia ainda outra rota de fuga para longe das fazendas de café que seguia pela porção paulista do Vale do Paraíba e terminava no famoso complexo Jabaquara, instalado em área vizinha à cidade portuária de Santos. No final do XIX, essa área integrava pelo menos três quilombos com lideranças próprias: o quilombo de Pai Filipe, o quilombo do Garrafão e o Jabaquara propriamente dito.31 Para o complexo do Jabaquara seguiam fugitivos das fazendas paulistas, recebendo apoio dos lendários caifases — nome que fazia alusão ao sacerdote que anunciou ser Jesus, o redentor do povo judeu. Chefiados pelo advogado Antônio Bento de Sousa e Castro, que, com a morte do poeta Luís Gama, virara uma liderança abolicionista em São Paulo, os caifases desafiavam a fúria dos senhores. A partir de 1884, o grupo encaminhou o maior número possível de escravos para o Ceará, província marginal ao centro de interesses do Império, com pequeno contingente de cativos, por onde a campanha abolicionista avançou rapidamente e onde a abolição ocorreu quatro anos antes do que no resto do país, à semelhança da província do Amazonas.32

Outro quilombo, o do Leblon, no Rio de Janeiro, embora bem menor que o de Jabaquara, também fez história. O quilombo nasceu na chácara de seu idealizador, o português José de Seixas Magalhães, um comerciante esperto, com dinheiro no bolso e ideias avançadas. Seu negócio era o fabrico e o comércio de artigos de couro, inclusive para exportação, com uso de maquinário a vapor. A casa comercial Seixas e Cia. funcionava num amplo armazém, na rua Gonçalves Dias, no coração elegante da cidade, e era ponto para encontro e prosa de abolicionistas proeminentes: o poeta Olavo Bilac, o jornalista José do Patrocínio, o jurista Rui Barbosa, o escritor Coelho Neto, e alguns intelectuais de renome, como André Rebouças, Paula Nei e Joaquim Nabuco — quase todos favoráveis a um projeto de abolição imediata e sem indenização.33

Seixas Magalhães, por sua vez, era membro ativo da Confederação Abolicionista. Criada no Rio de Janeiro por dois abolicionistas notáveis — José do Patrocínio e André Rebouças —, a Confederação reunia cerca de trinta clubes e associações antiescravistas, em praticamente todas as províncias do Império, e tinha agenda cheia: aliciou escravos, acoitou fugitivos, produziu panfletos, organizou conferências. Ela também esteve a postos para apoiar os fugitivos do Leblon, e contribuiu com as condições para a proteção, organização e manutenção do refúgio de escravos que Seixas instalou em sua chácara.

O quilombo do Leblon tornou-se famoso graças a uma particularidade: os escravos lá refugiados se dedicavam ao cultivo e ao comércio de flores, mais especificamente a produção de camélias brancas. A associação da flor com a Abolição foi uma bela jogada de propaganda executada pelo movimento abolicionista. A camélia era uma flor ainda muito rara no Brasil e, diziam os abolicionistas, em sua fragilidade assemelhava-se à liberdade que os escravos ambicionavam conquistar: necessitava de cuidados e abrigo especial, além do manejo de técnicas complexas de cultivo que dependiam, é claro, do trabalhador livre, e não da mão de obra escrava, condenada a desaparecer por criminosa e obsoleta. O simbolismo delicado das flores foi parar no centro da vida pública do Império. Portar uma camélia na botoeira do paletó ou cultivá-la no jardim de casa era gesto político: significava declarar princípios e indicava disposição para ação. Usar flor era declaração de adesão à causa da Abolição e sinal de apoio e proteção para cativos fugidos. A moda logo pegou: em São Paulo, os caifases, cada dia mais ousados, embarcavam os fugitivos das fazendas de café para a corte, com a orientação de aguardarem que alguém, usando uma camélia branca na lapela, os viesse buscar na plataforma de desembarque da Estação Central. Os abolicionistas do Recife evocavam igualmente o simbolismo da flor, e trataram de batizar de Camélia uma barcaça que levava escravos para o Ceará. O peso da legitimidade popular à causa abolicionista crescia e, pela primeira vez na história do país, esse peso materializava uma estratégia de luta política para o cativo dentro da sociedade do Império.34

Nesse momento tornavam-se mais fortes, também, outros tipos de solidariedade escrava, cimentados por laços de parentesco, casamento, apadrinhamento, ou expressos nas irmandades negras, que igualmente proliferavam no contexto. E, como as autoridades perdiam a olhos vistos instrumentos para conter a onda de insubmissão, a saída era recorrer a toda sorte de negociação. Contratos entre senhores e libertos; promessas de salário e autonomia; apostas no futuro. Tudo se convertia em filosofia e prática de gradualismo, na esperança de retardar o inevitável (ver imagens 80-1). Para o Estado, ia ficando evidente que era preciso se antecipar, até porque a abolição já se realizava à revelia dos governantes, por iniciativas particulares e dos próprios escravos. Por fim, novos heróis associados à causa surgiam, dentre eles José do Patrocínio, filho de mãe escrava, republicano e democrata, arengando plateias populares com discursos incendiários. O fato é que conviviam modalidades, muitas vezes concomitantes, de luta abolicionista: a ação dos próprios escravos, a movimentação dos abolicionistas e a batalha política em nível nacional. O abolicionismo se convertia, portanto, em outra grande causa, forjando o sentimento e a imaginação dos brasileiros.

Andava, pois, difícil contemporizar. Talvez por isso, redigido de modo simples, o texto da Lei Áurea saiu curto e direto: “É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil. Revogam-se as disposições em contrário”. O Treze de Maio redimiu 700 mil escravos que representavam, a essas alturas, um número pequeno no total da população geral, estimada em 15 milhões de pessoas. Mesmo assim, a penada da princesa não foi simples manipulação política, e de fato oficializou e acabou por encerrar o final desse sistema, ao menos nas bases mercantis, que insistia em perseverar no Brasil.

A libertação tardara demais, e representou o rompimento do último laço forte da monarquia: os cafeicultores perderam a esperança de ver seus bens “ressarcidos” e divorciaram-se, de maneira litigiosa, de seu antigo aliado. Comemorada no estrangeiro como uma vitória do governo imperial, a Lei de 13 de maio foi recebida no Brasil, após a explosão inicial de júbilo, com muita expectativa, e se constituiu no ato mais popular do Império. Joaquim Nabuco — nessa época chamado de Príncipe da Abolição — escreveu em 23 de maio de 1888: “Está feita a abolição! Ninguém podia esperar tão cedo tão grande fato e também nunca um fato nacional foi comemorado tanto entre nós. Há vinte dias vive esta cidade um delírio […]. A monarquia está mais popular do que nunca…”.35 Estava e não estava certo o famoso parlamentar. De um lado, há quem diga que a ausência de d. Pedro do país fora proposital, e que ele pretendia dar a Isabel a autoria do ato popular e pavimentar sua passagem segura para o Terceiro Reinado no Brasil. E a imagem pública de Isabel seria mesmo muito valorizada com a lei, sendo ela lembrada como “a redentora dos negros”. A própria maneira como a abolição foi apresentada oficialmente — como um presente e não como uma conquista — levou a uma percepção equivocada de todo esse processo marcado pelo envolvimento decisivo dos próprios escravizados na luta. A estratégia política implicava divulgar que eles haviam sido “contemplados” com a lei, recebido uma dádiva, e mais: precisavam mostrar apenas gratidão pelo “presente”, assim como ampliar e consolidar antigas redes de dependência. Mais uma vez, a mesma perspectiva que priorizava o ressarcimento e uma liberdade apenas gradual e progressiva se inscrevia na recepção e na interpretação da nova lei, que buscava, entre outros, reconfigurar antigas estruturas de servidão, processos complexos de troca de favores e de formas de submissão.

No entanto, a lei teria outras consequências. Mais do que as perdas materiais, a Abolição levou ao desprestígio de uma minoria muito ativa, e extremamente ligada ao Trono, que rapidamente se bandearia para o lado dos republicanos. Por mais que a monarquia tenha recompensado os proprietários rurais que se sentiam lesados com títulos de baronato, a falta de indenização selara o rompimento com o Estado. Além disso, o receio de um Terceiro Reinado nas mãos de Isabel crescia na mesma proporção que as intrigas em torno da figura do conde D’Eu; apresentado como um “francês”, um estrangeiro, e comparado à “austríaca” Maria Antonieta, nunca perdoada pelos franceses.36 Dessa forma, apesar de a versão oficial atribuir a Isabel o título de “A Redemptora”, e do clima de euforia que os órgãos oficiais procuravam capitalizar — com a emissão de moedas festivas e condecorações —, esse pareceu ser o último ato do teatro da monarquia.

Em Milão, passados dez dias da promulgação da Abolição, o imperador tomou conhecimento da nova situação. Depois de a saúde do monarca ter sido considerada satisfatória, a imperatriz resolveu ler o telegrama enviado pela princesa Isabel no próprio dia 13 de maio. Boa parte das biografias destaca a resposta “serena” do monarca, que teria apenas dito: “Graças a Deus”; o que mais parece uma peça de propaganda política do que um comentário daquele que durante pelo menos cinquenta anos teria evitado terminar com a escravidão. E começava então o regresso de d. Pedro a um Brasil diferente: após praticamente quatro séculos, um país sem escravos.

Contudo, em que pesem os maus presságios, a recepção do imperador contrariou as suspeitas iniciais. No alto do Pão de Açúcar, uma enorme bandeira com a palavra “Salve” parecia redimir receios. Agora era o imperador que inspirava cuidados: se ele já partira com uma imagem fragilizada, voltava enfermo. Mais do que isso, a representação da realeza estava doente. Apesar das simpatias que ainda angariava, o monarca era agora apenas um fantasma de si próprio: um fantasma da realeza.”

27 Pedro Calmon, História de d. Pedro II. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p. 1398. 5 v.

28 Ver Angela Alonso, Joaquim Nabuco: Os salões e as ruas (São Paulo: Companhia das Letras, 2012).

29 Ver, de Maria Helena P. T. Machado, “‘Teremos grandes desastres se não houver providências enérgicas e imediatas’” (op. cit., p. 376) e O plano e o pânico: Os movimentos sociais na década da Abolição (São Paulo: Edusp, 2010).

30 Id., “‘Teremos grandes desastres se não houver providências enérgicas e imediatas’”, op. cit., p. 380.

31 Para os quilombos abolicionistas e sua relação com o movimento abolicionista, ver Eduardo Silva, As camélias do Leblon e a abolição da escravatura: Uma investigação de história cultural (São Paulo: Companhia das Letras, 2003). Ver também: Sidney Chalhoub, Visões de liberdade, op. cit.

32 Para o Jabaquara, ver Maria Helena P. T. Machado, O plano e o pânico, op. cit., especialmente o cap. 4.

33 Para o quilombo do Leblon e a figura de seu idealizador, ver especialmente Eduardo Silva, As camélias do Leblon e a abolição da escravatura, op. cit.

34 Para os dois episódios, ver Osvaldo Orico, O tigre da Abolição (Rio de Janeiro: Olímpia, 1953, pp. 84 ss.); Eduardo Silva, As camélias do Leblon e a abolição da escravatura, op. cit.; Henrique Coelho Neto, A conquista (Rio de Janeiro: ABL, 1913).

35 Coleção Tobias Monteiro, Rio de Janeiro: Acervo Biblioteca Nacional.

36 Lidia Besouchet, Pedro II e o século XIX, op. cit., p. 495.

80. Cenas da escravidão, fotografia de Rodolpho Lindemann, 1885. CAJS 

No fim do século XIX, uma escravidão “exótica e pacífica” começou a aparecer nas fotos dos grandes estúdios que se espalhavam pelo Brasil. Famosos por criarem “tipos”, os fotógrafos profissionais viram na ama de leite uma figura emblemática, e passaram a retratá-las em álbuns de família e em cartes de visite que contribuíam para a construção da imagem romântica da condição escrava no país. Para questionar tal imagem idílica, basta lembrar que as amas eram sempre anônimas nas fotos; já os nomes das crianças, e, sobretudo, os das famílias a que pertenciam, surgiam detalhadamente descritos.


81. Escravos em terreiro de uma fazenda de café, Vale do Paraíba, fotografia de Marc Ferrez, c. 1882. IMS

O fotógrafo franco-brasileiro Marc Ferrez (1843-1923) era um mestre da técnica e preparava seus trabalhos de forma minuciosa. Neste caso, ele pretendia mostrar a organização imperante numa fazenda de café, onde o capataz dava ordens e os escravos obedeciam. Contudo, ao observar com mais cuidado, nota-se que vários detalhes fogem ao script: uma mãe que amamenta um filho; dois escravizados que cochicham; uma negra envergonhada que leva a mão ao rosto, demonstrando constrangimento.



 

A agenda republicana substituiu o Poder Moderador — a chave da organização política do Império — pelo princípio da divisão e do equilíbrio entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, garantiu a liberdade religiosa, extinguiu a vitaliciedade do Senado e aprovou o sufrágio universal, em lugar do sistema censitário até então vigente. O debate em torno da restrição do direito de voto seguiu o entendimento já praticado durante o Império: só seriam considerados eleitores os brasileiros adultos, do sexo masculino, que soubessem ler e escrever. Além do voto das mulheres, estava proibido o voto dos mendigos, dos soldados, praças e sargentos, e o dos integrantes de ordens religiosas que impunham renúncia à liberdade individual.

Contudo, certas características vindas de longa data persistiam e foram até aprimoradas. Uma delas era o perfil oligárquico da nação: novas leis eleitorais mantiveram o número reduzido de eleitores e cidadãos elegíveis para os cargos públicos.

É preciso destacar, também, o papel fundamental que desempenhou o Exército durante o novo regime. A República foi produto da ação de um grupo de oficiais social e intelectualmente antagônico à elite civil do Império, insatisfeito com a situação do país e com seu próprio status político.5 Mas esses oficiais estavam divididos internamente, e não conseguiram chegar a um acordo sobre o significado do republicanismo ou quanto aos objetivos institucionais do novo regime. Também estavam separados por rivalidades e ambições pessoais, e por visões muitas vezes opostas a respeito do futuro do Exército e do próprio país. Além disso, o grande prestígio que a República emprestava aos militares estimulava a ambição política dos oficiais e a desunião interna, aliada ao desacordo entre as elites civis acerca do papel do Exército na nova sociedade.

Ainda assim, o regime republicano sobreviveu pela força, e até 1894 o país experimentou a tutela militar a partir de seus dois primeiros governos: o marechal Deodoro da Fonseca, líder do golpe de Estado de 15 de novembro de 1889, foi também o primeiro presidente, sendo sucedido por Floriano Peixoto, seu vice. Mas o próprio marechal Deodoro não teria vida fácil. Em 1891 eclodiu a primeira Revolta da Armada, também conhecida como Revolta da Esquadra. O estopim estava ligado ao governo autoritário de Deodoro, que, em flagrante violação da Constituição daquele ano, ordenou o fechamento do Congresso. A medida era resultado, em grande parte, da inabilidade do presidente em lidar com a oposição. Esta andava cada vez mais descontente com a crise econômica dos primeiros anos de República — especulação vertiginosa, fraudes, inflação. Comandada pelo almirante Custódio de Mello, boa parte da frota fundeada na baía de Guanabara sublevou-se: a Armada — como a Marinha era chamada na época — exigia a reabertura do Congresso, do contrário bombardearia o Rio de Janeiro. Para não ter de enfrentar a provável derrota ou uma guerra civil, Deodoro renunciou em 23 de novembro.

Seu vice, o marechal Floriano Peixoto, assumiu o posto e se manteve ele próprio à frente da nação, em vez de convocar eleições, como estabelecia a Constituição. O governo de Floriano trouxe então para a cena pública um novo ingrediente político: o jacobinismo, muitas vezes chamado apropriadamente de “florianismo”. O auge do movimento aconteceu entre 1893 e 1897, no Rio de Janeiro, com expressiva participação popular.6 O florianismo foi o primeiro movimento político espontâneo da República, centrado na figura de uma liderança capaz de galvanizar setores expressivos das camadas médias urbanas e da população em geral, e de fornecer-lhes uma postulação igualitária para o novo regime, a qual, no entanto, só poderia ser implantada pelo autoritarismo militarizado do marechal.

A Marinha continuava, porém, indócil e, em setembro de 1893, um grupo de oficiais exigiu a convocação de novas eleições presidenciais: era a segunda Revolta da Armada. Com uma significativa folha de serviços prestados ao Império, a Marinha e seus oficiais sentiam-se negligenciados pela República. Já o almirante Custódio de Mello acreditava que rebelar a Armada contra o governo de Floriano era a melhor estratégia para recuperar o antigo prestígio da Força, e abriu grave crise política. Floriano, que andava enfrentando a Revolução Federalista no Sul do país, reprimiu a Armada, governou em estado de sítio, e ganhou a alcunha de Marechal de Ferro. A Revolução Federalista resultou numa sangrenta guerra civil que começou em 1893, só terminou em 1895 e contrapôs o Partido Republicano Rio-Grandense, favorável à ditadura republicana dos positivistas gaúchos, ao Partido Federalista, defensor da Constituição de 1891, da autonomia municipal e do governo federal com poder centralizado. Já o movimento dos almirantes seria contido apenas em 1894, mas deixava a ferida aberta.7

Em 1894 foram convocadas eleições, e Prudente de Morais, do Partido Repu­blicano Paulista, venceu-as. Começou o primeiro governo civil da República e a ascensão da corrente moderada e pragmática do Partido Republicano Paulista, preocupada em executar uma política de pacificação do país, garantir os interesses da elite cafeicultora de São Paulo e realizar a transição da República jacobina para a República oligárquica. Prudente de Morais faria de Campos Sales seu sucessor, em 1908, e com o novo presidente teve início o processo de rotinização da República. Criada pelo governo Campos Sales, a partir de 1898 a Política dos Governadores — ou Política dos Estados, como ele dizia — reconhecia a plena autonomia das elites regionais, fazia vista grossa aos esbulhos cometidos por essas elites para eleger as bancadas e o governo estadual, acenava com benesses do Tesouro e apresentava a fatura: as unidades da federação deveriam agir coesas e em consonância com as decisões do poder central — se conflito houvesse, estaria confinado aos estados.8

O controle do governo federal era decidido, a partir de então, apenas pelos estados de Minas Gerais e São Paulo. Numa República onde se regulava a distribuição do poder pela hierarquização da importância das unidades da federação, a força política de um estado sustentava-se no tamanho de seu eleitorado e na consequente extensão de sua presença parlamentar. Por sua vez, a estabilidade política da República estava garantida por três procedimentos principais: empenho dos governos estaduais em manter o conflito político confinado à esfera regional; reconhecimento por parte do governo federal da plena soberania dos estados no exercício da política interna; manutenção de um processo eleitoral em que, a despeito dos mecanismos políticos que tentavam controlar as disputas locais, as fraudes continuavam frequentes. Aliás, fraudes aconteciam em todas as fases do processo eleitoral — do alistamento de eleitores até o reconhecimento dos eleitos. Entretanto, alguns procedimentos ficaram famosos. A eleição de “bico de pena” vem do Império e diz respeito às diversas manipulações feitas pelas mesas eleitorais, como a falsificação de assinaturas e adulteração das cédulas eleitorais. A “degola” significava o não reconhecimento do eleito pela Comissão de Verificação da Câmara dos Deputados — procedimento que eliminava os adversários, anulando sua eleição. O “voto de cabresto” era quase uma prática político-cultural — um ato de lealdade do votante ao chefe local. Por fim, o “curral eleitoral” aludia ao barracão onde os votantes eram mantidos sob vigilância e ganhavam uma boa refeição, dali só saindo na hora de depositar o voto — que recebiam num envelope fechado — diretamente na urna.9

O voto era entendido como moeda de troca, as relações de poder se desenvolviam a partir do município, e na ponta desse relacionamento está o fenômeno do coronelismo. Coronel era o posto mais alto na hierarquia da Guarda Nacional, a instituição do Império que ligou proprietários rurais ao governo. Com a República, a Guarda perdeu sua natureza militar, mas os coronéis conservaram o poder político nos municípios onde viviam. Daí em diante, o coronelismo passou a significar um complexo sistema de negociação entre esses chefes locais e os governadores dos estados, e destes com o presidente da República. O coronel seria um dos elementos formadores da estrutura oligárquica tradicional baseada em poderes personalizados e nucleados, geralmente, nas grandes fazendas e latifúndios brasileiros.10

O coronel era, assim, parte fundamental do sistema oligárquico. Ele hipotecava seu apoio ao governo estadual na forma de votos, e, em troca, o governo garantia o poder do coronel sobre seus dependentes e rivais, especialmente através da cessão dos cargos públicos, que iam do delegado de polícia à professora primária. E desse modo se estabilizava a República brasileira no início do século XX, na base de muita troca, empréstimo, favoritismos, negociações e repressão. Visto desse ângulo, e como diziam os jornais satíricos de época, o país não passava de uma grande fazenda.”

5 Para as Forças Armadas e, em especial, o Exército, ver Frank D. McCann, Soldados da pátria: História do exército brasileiro 1889-1937 (São Paulo: Companhia das Letras, 2007); John Schulz, O Exército na política, op. cit.

6 Para Floriano e o florianismo, ver Lincoln de Abreu Penna, O progresso da ordem: O florianismo e a construção da República (Rio de Janeiro: 7Letras, 1997); Suely Robles Reis de Queiroz, Os radicais da República: Jacobinismo, ideologia e ação1893-1897 (São Paulo: Brasiliense, 1986).

7 Steven Topik, A presença do Estado na economia política do Brasil de 1889 a 1930. Rio de Janeiro: Record, 1987.

8 Para Política dos Governadores e a engenharia institucional da Primeira República, ver Renato Lessa, A invenção republicana: Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República brasileira (Rio de Janeiro: Vértice; Iuperj, 1988).

9 Para o sistema de fraudes, ver Jairo Nicolau, Eleições no Brasil, op. cit.; José Murilo de Carvalho, Cidadania no Brasil: O longo caminho (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012).

10 Para o coronelismo, ver Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto: O município e o regime representativo no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2012), José Murilo de Carvalho, “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: Uma discussão conceitual”, em José Murilo de Carvalho, Pontos e bordados: Escritos de história e política (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998), e Maria Isaura Pereira de Queiroz, O mandonismo local na vida política brasileira e outros ensaios (São Paulo: Alfa Omega, 1976).

 

 

Em Os sertões, publicado em 1902, Euclides da Cunha retomou a história da guerra contra Canudos com um enfoque mais amplo do que usara nos artigos de jornal.28 Mas manteve o tom de acusação. Responsabilizou a Igreja, a República, o governo estadual baiano e, sobretudo, o Exército pelo massacre dos habitantes de Canudos. Denunciou a guerra contra o arraial de sertanejos como fratricídio, matança entre irmãos. Projetou sobre as plantas da caatinga a tragédia de Canudos inscrita na própria natureza, com visões do desfecho da guerra: a decapitação dos prisioneiros, o calvário dos resistentes, dizimados por fome, sede, doenças e pelos projéteis do Exército. Seu livro virou monumento; é o memorial de Canudos.

Mas sobretudo a Guerra ou Campanha de Canudos — esse movimento sociorreligioso liderado por Antônio Conselheiro que durou de 1896 a 1897 — tomou a imaginação do país.29 A região fora ocupada por uma série de latifúndios decadentes, era assolada por crises cíclicas de seca e desemprego crônico, e contava com milhares de sertanejos que peregrinavam pelo sertão baiano. Em maio de 1893, Conselheiro e seus seguidores chegaram a Bom Conselho, Bahia. Ali assistiram a uma cobrança de impostos que haviam aumentado muito com o advento da República e, diante do povo reunido num dia de feira, Antônio Conselheiro arrancou os editais pregados nas paredes e os queimou. Ao saber do ocorrido, o governador do estado, Rodrigues Lima, enviou soldados para prender o beato e dissolver seu grupo. Mas os policiais foram atacados e facilmente derrotados pelos sertanejos. Esse combate levou Conselheiro a pôr fim à peregrinação e se estabelecer na fazenda de Canudos. Da data de chegada até o fim da guerra, a comunidade cresceu de 230 para cerca de 24 mil habitantes e, batizado de Belo Monte, o arraial se tornou um dos mais populosos da Bahia.

Canudos incomodou o governo da República e os grandes proprietários de terras da região por uma razão principal: era uma nova maneira de viver no sertão, à parte do sistema de poder constituído. É certo que o arraial não chegou a representar uma experiência de vida igualitária — o desenho urbano da comunidade, bem como a distribuição de tarefas e as relações sociais entre seus membros, indicava que as hierarquias sociais não foram eliminadas. Mas é certo também que se tratava de uma experiência social e política distinta daquela do governo central republicano: o trabalho no arraial baseava-se no princípio de posse e uso coletivo da terra, e na distribuição do que nela se produzia. Todos que lá chegavam recebiam gratuitamente uma porção de terra onde viver e trabalhar. Havia plantações diversas, criação de gado e animais de montaria, e fabricava-se couro curtido. O resultado da produção era dividido entre o trabalhador e a comunidade, a autoridade religiosa do Conselheiro não dependia do reconhecimento da Igreja católica, e Canudos não estava submetido nem aos proprietários de terra nem aos chefes políticos da região — representava um elemento perturbador num mundo dominado pelo latifúndio.

A República enviou a Canudos quatro expedições formadas por tropas do Exército, e o contingente de soldados aumentava a cada vez. Em março de 1897, o coronel Moreira César, comandando 1300 soldados na terceira expedição, atacou o arraial, metralhando-o por horas a fio. As tropas do governo foram, porém, derrotadas, Moreira César baleado e morto, e, ao fugirem, os soldados foram novamente atacados pelos sertanejos; centenas morreram. A repercussão da derrota foi estrondosa. No Rio de Janeiro, capital da República, os jornais divulgavam que Canudos era um reduto monarquista e tinha que ser destruído. Mesmo assim, o arraial resistia a ataques cada vez mais violentos da quarta expedição enviada pelo governo, composta de 421 oficiais e 6160 soldados, armados até os dentes. Em outubro de 1897, o Exército garantiu que quem se rendesse sobreviveria. Mas o acordo não foi cumprido, e muitos dos homens, mulheres e crianças que se entregaram foram degolados. No dia 5 do mesmo mês, por fim, o arraial foi invadido, queimado com querosene e dinamitado.

A República procurou converter Canudos num grande exemplo: um exemplo da barbárie contra a civilização; do atraso contra a modernidade. O corpo de Antônio Conselheiro também fez parte da performance. Seu crânio foi levado ao Rio de Janeiro, para que o médico Nina Rodrigues e a ciência dessem a última palavra sobre a loucura e a mestiçagem. Havia mesmo um abismo entre as diferentes partes do país, e era premente o alerta para que as elites intelectuais e políticas olhassem, finalmente, para seu interior. Talvez a melhor expressão desse descompasso esteja no desabafo de Euclides da Cunha, no final de Os sertões: “Fechemos este livro […] Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos. Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem”.30

Mais do que analisar cada movimento — e foram muitos —, o importante é destacar como, por trás de cada um deles, está a questão da posse da terra, o desejo de justiça, a imoderação religiosa, e o encontro entre revolta e mística. Digna de atenção é a peculiaridade de suas organizações, que revelam a persistência de estruturas de poder baseadas nas polaridades dispostas entre padres e fiéis; coronéis e seus dependentes; padrinhos e afilhados; beatos e seguidores; santos e devotos; coronéis e bandos armados.31 Não por acaso, nesse momento ganharam fama, ultrapassando a fronteira do sertão, chefes de bandos armados, como Antônio Silvino, Lampião e Antônio Dó; personagens ambíguos, representativos de uma alternativa às relações de poder enraizadas na posse da terra. Ao mesmo tempo que acenavam para uma vida mais justa e igualitária, terminaram reproduzindo as antigas marcas da violência e do arbítrio. Desafiando os modelos de cidadania e da igualdade jurídica, aí estavam os sertões bravios, com seus personagens inesperados, mas essenciais para se entender a jovem República brasileira.”

28 Para Os sertões, ver Euclides da Cunha, Os sertões: Campanha de Canudos (Ed. didática. Cotejo e estabelecimento do texto de Hersílio Ângelo. Coord. de Alfredo Bosi. São Paulo: Cultrix; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1973); Roberto Ventura, Euclides da Cunha: Esboço biográfico, op. cit.; Luiz Costa Lima, Terra ignota: A construção de Os sertões (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997); Walnice Nogueira Galvão, Correspondência de Euclides da Cunha (São Paulo: Edusp, 1997).

29 Para Canudos, ver Henrique Estrada Rodrigues, Bruno Pimenta Starling, Marcela Telles, “O novo continente da utopia”. In: Delsy Gonçalves de Paula, Heloisa Maria Murgel Starling e Juarez Rocha Guimarães (Orgs.), Sentimento de reforma agrária, sentimento de República (Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006); Pauliane de Carvalho Braga, Raissa Brescia dos Reis e Ana Letícia Oliveira Goulart, “Canudos”. In: Heloisa Maria Murgel Starling e Pauliane de Carvalho Braga (Orgs.), Sentimentos da terra (Belo Horizonte: PROEx; Ed. UFMG, 2013).

30 Euclides da Cunha, Os sertões, op. cit., p. 392.

31 Duglas Monteiro, “Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado”. In: Boris Fausto (Org.), História geral da civilização brasileira: O Brasil republicano, op. cit., tomo III, v. 2: Sociedade e instituições (1889-1930).

 

 

“A REPÚBLICA QUE NÃO ERA VELHA

Com a chegada do fim da década de 1920, a Primeira República ia se esgotando e seu legado parecia, mesmo em seu contexto, ambivalente. De um lado, ficaria na lembrança como o momento do boom da urbanização, da industrialização e da entrada de imigrantes. De outro, como um período de repressão, de todo tipo de falcatruas políticas, da aplicação de medidas racistas e da expulsão da pobreza para as laterais das cidades. Além do mais, com tantas ambiguidades, a República se converteu em palco do conflito, sendo os centros urbanos considerados espaços de atuação das “classes perigosas” e de movimento e reação “dos de baixo”.59

E, entre os dois lados, melhor ficar com os dois. Foi nesse cenário que se deram os primeiros passos para a institucionalização do Estado republicano e pela luta por melhores condições de trabalho. Além disso, destacar apenas o processo de exclusão social, que com certeza ocorreu, corresponderia a repetir a visão das elites dirigentes da época, que entendiam como “hordas anárquicas” o que eram antes associações dos mais variados tipos, agindo, muitas vezes, de maneira ordeira, a partir de abaixo-assinados, campanhas públicas e protestos organizados.60 Talvez por isso, o período tenha ficado conhecido como República Velha, termo pejorativo criado depois da Revolução de 1930. Há vários motivos que explicam a designação e, sobretudo, sua persistência até os dias de hoje.

De um lado existiram razões de cunho político e social que levaram a alcunha a se enraizar. De outro, é igualmente verdade que durante essa República tomou forma um processo sem volta, de democratização de nossos costumes e instituições. Foi nesse momento que os diferentes poderes ganharam uma forja definida, ensaiaram-se novos processos eleitorais e se rascunharam os primeiros passos no sentido de constituir uma sociedade cidadã com modelos de participação. Assim, se estouraram muitos conflitos no período, se não foram poucos os movimentos autoritários que asseguraram o novo regime republicano na marra, na base de muita eugenia e estado de sítio, vimos como o momento foi inaugural no sentido de transformar o espaço das cidades no lugar de uma cidadania ativa onde ocorrem as disputas próprias à vida republicana.

Não seria a primeira vez que políticos e intelectuais vinculados a um novo momento atribuiriam a si mesmos os méritos da novidade e jogariam para outro período, em geral o imediatamente anterior, a designação de “ultrapassado”. Novos momentos tendem a enxergar o passado a partir de lentes de curto alcance que deformam, e selecionam, tendo um ponto de vista ressaltado: o seu. Esse seria o caso da Revolução de 1930 e do Estado que foi logo autodesignado como “Novo”: Estado Novo. Segundo essa visão, caberia só ao futuro o estabelecimento de uma verdadeira res publica, e a introdução de uma realidade social, moral e política deveras moderna.

De todo modo, se o país começou a República encantado com a modernidade, terminou seus anos 1920 entre angustiado e ansioso para conhecer certa “brasilidade”, rever seu passado e projetar um novo futuro. Já disse o crítico Roberto Schwarz que no país tudo parece “recomeçar do zero”, e que por aqui o nacional se constrói por subtração.61 Ou seja, cada contexto cria novas formas de imaginar o país e tenta apagar o que existia até então. Contudo, parecia ter chegado a hora de buscar modelos de identidade nacional, construídos a partir do sementeiro da especificidade: a até então surrada mestiçagem que de biológica vira cultural. No Brasil que nasceu dos vários projetos modernistas do início do século figuraria um mundo de ambivalências: o passado a conviver com o presente; maxixe e lundu com música clássica; cordel com literatura acadêmica; transporte acelerado com o ritmo do lombo de burro; um país urbano ladeado pela realidade isolada dos sertões distantes; exclusão social com processos de inclusão; clientelismos combinados a processos até então desconhecidos de institucionalização política e social. Com efeito, os homens da primeira geração republicana brasileira, os homens nascidos na passagem do século XIX para o XX, conseguiram redescobrir o Brasil no sertão. Musicólogos como Mário de Andrade e Villa-Lobos, indianistas como Cândido Rondon, ensaístas, sociólogos e historiadores como Sérgio Buarque de Holanda, sanitaristas como Carlos Chagas e Belisário Pena, militares como os tenentes da Coluna Prestes, são os responsáveis por um movimento quase sempre on the road de questionamento e transformação das atitudes, concepções e sistemas políticos de conduta, movimento construído em torno da ideia de “incorporação dos sertões” e consequente encontro com o outro representado pelo homem brasileiro — um personagem invariavelmente visto como isolado, abandonado, doente, nômade, atrasado, resistente a mudanças, despossuído, mas em torno do qual ocorre um processo de redescobrimento constante do Brasil.

O antropólogo Claude Lévi-Strauss, no livro O pensamento selvagem, afirma que o homem é animal classificador: primeiro classifica e depois dá sentido e encontra utilidade. República Velha foi o nome que vingou durante bom tempo; a forma como os homens do Estado Novo viram primeiro a si mesmos e, numa operação de noves fora, definiram tudo que os antecedeu. À maneira de Narciso, acharam feio o que não era espelho. Hora de fechar esse período polêmico e ambíguo, porém igualmente afirmativo na batalha por direitos, pela construção da distinção entre as esferas pública e privada, pela luta em busca do reconhecimento da cidadania. Não por acaso a rua se converteu em local privilegiado, recebendo a moda, o footing, a vida social, mas também os jornaleiros, os grevistas, as manifestações políticas e as expressões da cultura popular. Melhor optar por Primeira República. “Primeira”, pois teve o protagonismo do início (para o bem e para o mal) e porque ensejou novas e múltiplas formas de exercício da cidadania.”

59 Maria Alice Rezende de Carvalho, Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro: 7Letras, 1994.

60 Ângela de Castro Gomes e Martha Abreu, “A nova ‘Velha’ República: Um pouco de história e historiografia”. Tempo, Niterói: UFF, v. 13, n. 26, jan. 2009.

61 Roberto Schwarz, “Nacional por subtração”. In: ______. Que horas são?. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

 

 

O GOVERNO PROVISÓRIO

Getúlio pendurou a farda, vestiu um terno, arrematou a fatiota com uma gravata escura e subiu as escadas do Palácio do Catete para tomar posse como chefe do Governo Provisório. A mudança não era só de indumentária: com sua posse, o Executivo assumia plenos poderes e passava a ter condições de promover uma radical intervenção no sistema político. O Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas Estaduais e as Assembleias Municipais foram dissolvidas, os políticos eleitos durante a Primeira República perderam seus cargos, os presidentes dos estados foram substituídos por interventores, a imprensa de oposição foi censurada — pela primeira vez, desde a Constituição de 1824, todos os postos de poder no país estavam sendo ocupados por civis e militares não eleitos.25 Eufórico com a vitória no Nordeste e recém-desembarcado no Rio de Janeiro, Juarez Távora assegurava que a forma de governo que o Brasil teria pela frente não seria nem democrática nem liberal: “Aprovo a ditadura no seu exato sentido”. E arrombou a porta: “Ditadura sem limite fixado, até que todos verifiquem por atos, não por palavras, a regeneração e a reabilitação dos costumes políticos e administrativos”.26

Vargas não pretendia pôr em risco sua própria conquista. Estava claro que, se promovesse eleições, as elites regionais, cujas estruturas de mando na esfera estadual permaneciam intactas, venceriam. Para institucionalizar a nova ordem, seria preciso transformar o sistema político e consolidar um amplo programa de reformas sociais, administrativas e políticas. O projeto era ambicioso, não podia ser executado da noite para o dia, mas nem o próprio Távora poderia prever que a ditadura que defendia, em 1930, se estenderia por quinze longos anos, com um breve interregno constitucional de 1934 a 1937. Seja como for, Vargas, já no discurso de posse, apresentou um programa reformista radical. A agenda incluía quase todos os pontos defendidos pela Aliança Liberal, e foi implementada através de uma profusão de decretos: anistia aos tenentes, remodelamento do Exército, criação dos ministérios do Trabalho, Indústria e Comércio, e da Educação e Saúde Pública, reforma do ensino e da educação pública.

Um assunto dominava a atenção de Getúlio: a política trabalhista.27 Foi nessa área que ele mostrou quem era e a que viera. Dividiu sua política em duas metades. Numa, criou as leis de proteção ao trabalhador — jornada de oito horas, regulação do trabalho da mulher e do menor, lei de férias, instituição da carteira de trabalho e do direito a pensões e à aposentadoria. Na outra, reprimiu qualquer esforço de organização dos trabalhadores fora do controle do Estado — sufocou, com particular violência, a atuação dos comunistas. Para completar, liquidou com o sindicalismo autônomo, enquadrou os sindicatos como órgãos de colaboração com o Estado e excluiu o acesso dos trabalhadores rurais aos benefícios da legislação protetora do trabalho.

O governo era provisório, e Getúlio não conversava sobre dois assuntos: a convocação de uma Assembleia Constituinte e a data para uma nova eleição presidencial. Os brasileiros não podiam votar em nenhuma instância política e para nenhum cargo executivo ou legislativo; a partir de 1932, porém, para demonstrar a bem-intencionada — mas sempre postergada — disposição constitucional de seu governo, o país passou a dispor de um novo Código Eleitoral moderno e democrático. O novo código criava a Justiça Eleitoral, adotava o voto secreto em gabinete indevassável e encerrava com o argumento — caro ao republicanismo europeu dos séculos XVII e XVIII — de que votar significava manifestar uma preferência em público.28

Com essas duas medidas, o código inviabilizou um conjunto de fraudes característico do sistema representativo da Primeira República: o voto secreto protegia o eleitor das pressões das elites regionais em meio às disputas políticas estaduais; a Justiça Eleitoral entregava a juízes profissionais a fiscalização das eleições, da apuração dos votos e o reconhecimento dos eleitos. O novo código também reconhecia uma conquista formidável das mulheres: o direito de votar e de serem votadas. Em diversos estados, os rebeldes receberam o apoio de batalhões femininos que atuaram intensamente na retaguarda do movimento armado de 1930 — o Batalhão Feminino João Pessoa, por exemplo, foi obra de uma advogada mineira de 23 anos, Elvira Komel, e alistou cerca de 8 mil mulheres distribuídas por 52 cidades.29

Apesar disso, não havia nenhuma fé democrática do país a ser restaurada por Vargas. A Aliança Liberal prometeu refundar a República, sustentou sua promessa num impressionante programa de reformas, mas as grandes forças políticas responsáveis por sua institucionalização não tinham origem nem vocação democrática. Acreditavam que o projeto democrático que animava a Constituição de 1891 definhara sob a prevalência da Política dos Governadores, e optaram por um governo forte e centralizador. A coalizão que empalmou o poder em 1930 era heterogênea, e os protagonistas divergiam sobre quase tudo — menos sobre os adversários. Desde os primeiros dias do Governo Provisório, o grupo se viu às voltas com a ambiguidade de um amplo programa de reformas cujo objetivo era mudar a República, sem, contudo, alterar as bases sobre as quais ela se constituiu.

Os tenentes propunham controlar as polícias estaduais, reequipar as Forças Armadas e garantir o impulso do país para a indústria, em especial a siderurgia. Além disso, faziam coro com os setores médios e os trabalhadores urbanos que engrossaram o apoio popular à Aliança Liberal, em favor da regulação do mercado de trabalho e da elaboração de uma legislação social; eram refratários, porém, ao alargamento democrático da República e francamente favoráveis à ascendência do Estado sobre a sociedade. As jovens lideranças civis, por sua vez, estavam ansiosas por uma maior soma pessoal de poder, enquanto as elites dissidentes de Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba pretendiam aumentar sua participação na direção dos negócios da República, com um mínimo de alteração em suas bases de mando — o que significava, sobretudo, manter inalterada a estrutura agrária do país. E todos eles aspiravam chegar à condição de força dominante no interior da coalizão no poder e assumir o controle do governo.30

Já Vargas não se deixava ver com facilidade. Ele tinha um plano de poder, pretendia continuar onde estava e, para isso, conduzia a política quase como um negócio; seguia as próprias regras e realizava combinações políticas aparentemente improváveis mas que lhe serviam para manter o mando. Seus expedientes mais comuns incluíam distribuir vantagens e compensações, procrastinar soluções definitivas até que o tempo lhe oferecesse a ocasião propícia para decidir e equilibrar-se como árbitro das disputas na coalizão de forças que sustentavam seu governo.”

25 Para as medidas do Governo Provisório, ver Dulce Pandolfi, “Os anos 1930: As incertezas do regime”, em Lucilia de Almeida Neves Delgado e Jorge Ferreira (Orgs.), O Brasil republicano: O tempo do nacional-estadismo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, v. 2: Do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo); Lira Neto, Getúlio: Dos anos de formação à conquista do poder, op. cit.

26 Citado em Lira Neto, Getúlio: Dos anos de formação à conquista do poder, op. cit., p. 520.

27 Para a política trabalhista de Vargas, ver José Murilo de Carvalho, Cidadania no Brasil, op. cit.; Ângela Maria de Castro Gomes, Cidadania e direitos do trabalho (Rio de Janeiro: Zahar, 2002).

28 Para o Código Eleitoral de 1932, ver José Murilo de Carvalho, Cidadania no Brasil, op. cit.; Jairo Nicolau, Eleições no Brasil: Do Império aos dias atuais (Rio de Janeiro: Zahar, 2012).

29 Para Elvira Komel, ver Lélia Vidal Gomes da Gama, Elvira Komel: Uma estrela riscou o céu (Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1987).

30 Para as forças políticas, ver Ângela Maria de Castro Gomes, “Confronto e compromisso no processo de constitucionalização”, em Boris Fausto (Org.), História geral da civilização brasileira: O Brasil republicano (São Paulo: Difel, 1981, tomo III, v. 3: Sociedade e política — 1930-1964).

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