quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Essencial (Parte II), de Padre Antônio Vieira

Editora: Companhia das Letras / Penguin Classics

ISBN: 978-85-63560-28-5

Organização e introdução: Alfredo Bosi

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Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 760

Sinopse: Ver Parte I



“Aprendamos do Céu o estilo da disposição, e também o das palavras. Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há de ser o estilo da pregação, muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo; as estrelas são muito distintas, e muito claras e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; tão claro que o entendam os que não sabem, e tão alto que tenham muito que entender nele os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para a sua lavoura, e o mareante para a sua navegação, e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico e o mareante, que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas, e o matemático que tem lido quantos escreveram não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: estrelas, que todos as veem, e muito poucos as medem.”

(Sermão da Sexagésima)

 

 

“Armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ninguém deram vitória.”

(Sermão da Sexagésima)

 

 

“As palavras de Deus pregadas no sentido em que Deus as disse, são palavra de Deus; mas pregadas no sentido que nós queremos, não são palavra de Deus, antes podem ser palavra do demônio. Tentou o demônio a Cristo a que fizesse das pedras pão. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore Dei.44 Esta sentença era tirada do capítulo oitavo do Deuteronômio. Vendo o demônio que o Senhor se defendia da tentação com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo 90, diz-lhe desta maneira: Mitte te deorsum; scriptum est enim, quia angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis.45 Deita-te daí abaixo, porque prometido está nas Sagradas Escrituras, que os anjos te tomarão nos braços para que te não faças mal. De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras são palavra de Deus; pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razão é porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido: e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do Diabo. As mesmas palavras que tomadas no sentido em que Deus as disse são defesa, tomadas no sentido em que Deus as não disse, são tentação. Eis aqui a tentação com que então quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje Lhe faz a mesma guerra do pináculo do Templo. O pináculo do Templo é o púlpito, porque é o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-O no monte, tentou-O no Templo: no deserto tentou-O com a gula, no monte tentou-O com a ambição, no Templo tentou-O com as Escrituras mal interpretadas, e essa é a tentação de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, se não a Cristo, a sua fé.”

44 Mt 4,4 [(...) “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus.”].

45 Sl 90,11-12 [“pois ele ordenou aos seus anjos que guardem você em seus caminhos. Eles o levarão nas mãos, para que seu pé não tropece numa pedra]. cf. Mt 4,5-6 [“Então o diabo o levou à Cidade Santa, colocou-o na parte mais alta do Templo. E lhe disse: “Se tu és Filho de Deus, joga-te para baixo! Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra”.”] e Lc 4,9-11 [“Depois o diabo levou Jesus a Jerusalém, colocou-o na parte mais alta do Templo. E lhe disse: «Se tu és Filho de Deus, joga-te daqui para baixo. Porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, que te guardem com cuidado’. E mais ainda: ‘Eles te levarão nas mãos, para que não tropeces em nenhuma pedra’.”].

(Sermão da Sexagésima)

 

 

“Unidas as almas aos corpos e restituídos os homens à sua antiga inteireza, os bem ressuscitados alegres, os mal ressuscitados tristes, começarão a caminhar todos para o lugar do Juízo. Será aquela a vez primeira em que o gênero humano se verá a si mesmo, porque se ajuntarão ali os que são, os que foram, os que hão de ser, e todos pararão no vale de Josafá. Se o dia não fora de tanto cuidado, muito seria para ver os homens grandes de todas as idades juntos. Mas vejo que me estão perguntando como é possível que uma multidão tão excessiva como a de todo o gênero humano, os homens que se continuaram desde o princípio até agora, e os que se irão multiplicando sucessivamente até ao fim do mundo: como é possível que aquele número inumerável, aquela multidão quase infinita de homens caiba em um vale? A dúvida é boa, queira Deus que o seja a resposta. Primeiramente digo que nisto de lugares há grande engano, cabe muito mais nos lugares do que nós cuidamos. No primeiro dia da criação criou Deus o Céu e a Terra e os elementos, e é certo em boa filosofia que não ficou nenhum vácuo no mundo, tudo estava cheio. Com isto ser assim, e parecer que não havia já lugar para caber mais nada, ao terceiro dia vieram as ervas, as plantas, e as árvores; e com serem tantas em número e tão grandes, couberam todas. Ao quarto dia veio o Sol, e sendo aquele imenso planeta cento e sessenta e seis vezes maior que a Terra, coube também o Sol: vieram no mesmo dia as estrelas tantas mil, e cada uma de tantas mil léguas, e couberam as estrelas. Ao quinto dia vieram as aves ao ar, e couberam as aves: vieram os peixes ao mar, e com haver neles tantos monstros de disforme grandeza couberam os peixes. No sexto dia vieram os animais tantos e tão grandes à Terra, e couberam os animais: finalmente veio o homem, e foi o homem o primeiro que começou a não caber; mas se não coube no Paraíso, coube fora dele.”

(Sermão da primeira dominga do Advento)

 

 

“Demais desta razão geral, que há da parte do lugar, há outras duas da parte das pessoas; uma da parte dos bons, outra da parte dos maus. Os bons poderão caber ali em muito pouco lugar, porque terão o dote da sutileza. Entre os quatro dotes gloriosos há um que se chama sutileza, o qual comunica tal propriedade aos corpos dos bem-aventurados, que todos quantos se hão de achar no Dia do Juízo podem caber neste lugar onde eu estou, sem me tirarem dele. Cá no mundo também há este dote da sutileza, mas com mui diferentes propriedades. A sutileza do Céu introduz a um sem afastar a outro; as sutilezas do mundo todo seu cuidado é afastar aos outros para se introduzir a si. Por isso não há lugar que dure, nem lugar que baste. Muito é que Jacó e Esaú não coubessem em uma casa; mais é que Lot e Abraão não coubessem em uma cidade; muito mais é que Saul e Davi não coubessem em um reino: mas o que excede toda a admiração é que Caim e Abel não coubessem em todo o mundo. E por que não cabiam dous homens em tão imenso lugar? Pior é a causa que o caso. Caim não cabia com Abel, porque Abel cabia com Deus. Em um homem cabendo com seu senhor, logo os outros não cabem com ele. Alguma vez será isto soberba dos Abéis, mas ordinariamente é inveja dos Cains. Se é certo que com a morte se acaba a inveja, facilmente caberemos todos no Dia do Juízo. Quereis caber todos? Não acrescenteis lugares, diminuí invejas. Este é o dote da sutileza dos bons.”

(Sermão da primeira dominga do Advento)

 

 

“O Dia do Juízo mostrará que a santidade não consiste no nome senão nas obras.”

(Sermão da primeira dominga do Advento)

 

 

“Sabei cristãos, sabei príncipes, sabei ministros, que se vos há de pedir estreita conta do que fizestes; mas muito mais estreita do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram, se hão de condenar muitos, pelo que não fizeram, todos. As culpas por que se condenam os reis são as que se contêm nos relatórios das sentenças: lede, agora, o relatório da sentença do Dia do Juízo e notai o que diz: Discedite a me, maledicti, in ignem aeternum:16 Ide, malditos, ao fogo eterno. E por quê? Non dedistis mihi manducare, non dedistis mihi potum, non collegistis me, non cooperuistis me, non visitastis me.17 Cinco cargos, e todos omissões: porque não destes de comer, porque não destes de beber, porque não recolhestes, porque não visitastes, porque não vestistes. Em suma, que os pecados que ultimamente hão de levar os condenados ao Inferno, são os pecados de omissão. Não se espantem os doutos de uma proposição tão universal como esta; porque assim é verdadeira em todo o rigor da teologia. O último pecado e a última disposição por que se hão de condenar os precitos, é a impenitência final; e a impenitência final é pecado de omissão. Vede que cousas são omissões, e não vos espantareis do que digo. Por uma omissão perde-se uma inspiração, por uma inspiração perde-se um auxílio, por um auxílio perde-se uma contrição, por uma contrição perde-se uma alma; dai conta a Deus de uma alma, por uma omissão.

Desçamos a exemplos mais públicos. Por uma omissão perde-se uma maré, por uma maré perde-se uma viagem, por uma viagem perde-se uma armada, por uma armada perde-se um Estado: dai conta a Deus de uma Índia, dai conta a Deus de um Brasil, por uma omissão. Por uma omissão perde-se um aviso, por um aviso perde-se uma ocasião, por uma ocasião perde-se um negócio, por um negócio perde-se um reino: dai conta a Deus de tantas casas, dai conta a Deus de tantas vidas, dai conta a Deus de tantas fazendas, dai conta a Deus de tantas honras, por uma omissão. Oh que arriscada salvação! Oh que arriscado ofício é o dos príncipes e o dos ministros! Está o príncipe, está o ministro divertido, sem fazer má obra, sem dizer má palavra, sem ter mau nem bom pensamento: e talvez naquela mesma hora, por culpa de uma omissão, está cometendo maiores danos, maiores estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores do mundo em muitos anos. O salteador na charneca com um tiro mata um homem; o príncipe e o ministro com uma omissão, matam de um golpe uma monarquia. Estes são os escrúpulos de que se não faz nenhum escrúpulo; por isso mesmo são as omissões os mais perigosos de todos os pecados.

A omissão é o pecado que com mais facilidade se comete, e com mais dificuldade se conhece; e o que facilmente se comete e dificultosamente se conhece, raramente se emenda. A omissão é um pecado que se faz não fazendo: e pecado que nunca é má obra, e algumas vezes pode ser obra boa; ainda os muito escrupulosos vivem muito arriscados em este pecado. (...)

Mas por que se perdem tantos? Os menos maus perdem-se pelo que fazem, que estes são os menos maus: os piores perdem-se pelo que deixam de fazer, que estes são os piores: por omissões, por negligências, por descuidos, por desatenções, por divertimentos, por vagares, por dilações, por eternidades. Eis aqui um pecado de que não fazem escrúpulo os ministros, e um pecado por que se perdem muitos. Mas percam-se eles embora, já que assim o querem: o mal é que se perdem a si e perdem a todos; mas de todos hão de dar conta a Deus. Uma das cousas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo os ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram o mês que vem o que se havia de fazer o passado: porque fizeram amanhã o que se havia de fazer hoje: porque fizeram depois o que se havia de fazer agora: porque fizeram logo o que se havia de fazer já. Tão delicadas como isto hão de ser as consciências dos que governam, em matérias de momentos. O ministro que não faz grande escrúpulo de momentos não anda em bom estado: a fazenda pode-se restituir, a fama, ainda que mal, também se restitui; o tempo não tem restituição alguma.”

(Sermão da primeira dominga do Advento)

16 Mt 25,41 [(...) “Afastem-se de mim, malditos. Vão para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos.”].

17 Mt 25,42-3 [“Porque eu estava com fome, e vocês não me deram de comer; eu estava com sede, e não me deram de beber; eu era estrangeiro, e vocês não me receberam em casa; eu estava sem roupa, e não me vestiram; eu estava doente e na prisão, e vocês não me foram visitar”].

 

 

“Todos ou quase todos os que governam, são causas gravemente culpáveis de graves danos, e nenhum ou quase nenhum restitui o que pode: logo nenhum ou quase nenhum dos que governam, se pode salvar. Colhe bem a consequência? Pois ainda mal, porque a segunda premissa, de que só se podia duvidar, está tão provada na experiência. Eu vi governar muitos, e vi morrer muitos: nenhum vi governar que não fosse causa culpável de muitos danos, nenhum vi morrer que restituísse o que podia: Sou obrigado, secundam praesentem justitiam, a crer que todos estão no Inferno. Assim o creio dos mortos, assim o temo dos vivos.”

(Sermão da primeira dominga do Advento)

 

 

“Quando iam saber do Batista, quem era, perguntam-lhe: Vós quem sois, e vós quem dizeis que sois; porque os homens quando testemunham de si mesmos, uma cousa é o que são, e outra cousa é o que dizem. Ninguém há neste mundo que se descreva com a sua definição: todos se enganam no gênero e também nas diferenças. Que diferentes cousas são ordinariamente o que dizeis de vós, e o que sois? E o pior é que muitas vezes não são cousas diferentes: porque o que sois é nenhuma cousa, e o que dizeis são infinitas cousas. Nesta matéria de vós quem sois, todo homem mente duas vezes; uma vez mente-se a si, e outra vez mente-nos a nós: mente-se a si, porque sempre cuida mais do que é; e mente-nos a nós, porque sempre diz mais do que cuida. Bem distinguiram logo os embaixadores o Tu quis es do Quid dicis de te ipso; e quando iam perguntar ao Batista o que era, perguntaram o que era, e o que dizia; porque ninguém há tão reto juiz de si mesmo que ou diga o que é, ou seja o que diz.”

(Sermão da terceira dominga do Advento)

 

 

“Os ditames práticos devem-se mudar todas as vezes que se mudam as circunstâncias.”

(Sermão da terceira dominga do Advento)

 

 

“Conhecem-se os verdadeiros profetas pelos olhos, porque o ver é o fundamento de profetizar. Os profetas na Escritura chamam-se videntes: os que veem. Só os que veem são profetas. Assim como a mais nobre profecia sobrenatural consiste na visão, assim a mais certa profecia natural consiste na vista. Só quem viu pode profetizar naturalmente com certeza. E a razão é muito clara. A profecia humana consiste no verdadeiro discurso; o discurso verdadeiro não se pode fazer sem todas as notícias; e todas as notícias só as pode ter quem viu com os olhos. Nenhuma cousa houve mais assentada na Antiguidade que ser inabitável a zona tórrida; e as razões com que os filósofos o provavam, eram ao parecer tão evidentes, que ninguém havia que o negasse. Descobriram, finalmente, os pilotos e marinheiros portugueses as costas da África e da América, e souberam mais e filosofaram melhor sobre um só dia de vista que todos os sábios e filósofos do mundo em cinco mil anos de especulação. Os discursos de quem não viu são discursos; os discursos de quem viu são profecias.”

(Sermão da terceira dominga do Advento)

 

 

“Cansados, finalmente, os embaixadores de lhes responder o Batista que não era Messias, nem Elias, nem profeta; pediram-lhe, finalmente, que pois eles não acertavam a perguntar, lhes dissesse ele quem era. A esta instância não pôde deixar de deferir o Batista. E que vos parece que responderia? Ego sum vox clamantis in deserto:50 Eu sou uma voz que clama no deserto. Verdadeiramente não entendo esta resposta. Se os embaixadores perguntaram ao Batista o que fazia, então estava bem respondido com a voz que clamava no deserto, porque o que o Batista fazia no deserto, era dar vozes e clamar; mas se os embaixadores perguntavam ao Batista quem era, como lhes responde ele o que fazia? Respondeu discretissimamente. Quando lhe perguntavam quem era, respondeu o que fazia; porque cada um é o que faz, e não é outra cousa. As cousas definem-se pela essência: o Batista definiu-se pelas ações; porque as ações de cada um são a sua essência. Definiu-se pelo que fazia para declarar o que era.

Daqui se entenderá uma grande dúvida, que deixamos atrás de ponderar. O Batista perguntado se era Elias respondeu que não era Elias: Non sum. E Cristo no capítulo onze de São Mateus disse, que o Batista era Elias: Joannes Baptista ipse est Elias.51 Pois se Cristo diz que o Batista era Elias, como diz o mesmo Batista que não era Elias! Nem o Batista podia enganar, nem Cristo podia enganar-Se: como se hão de concordar logo estes textos? Muito facilmente. O Batista era Elias, e não era Elias; não era Elias, porque as pessoas de Elias e do Batista eram diversas; era Elias, porque as ações de Elias e do Batista eram as mesmas. A modéstia do Batista disse que não era Elias, pela diversidade das pessoas; a verdade de Cristo afirmou que era Elias, pela uniformidade das ações. Era Elias, porque fazia ações de Elias. Quem faz ações de Elias, é Elias; quem fizer ações de Batista, será Batista; e quem as fizer de Judas, será Judas. Cada um é as suas ações, e não é outra cousa. Oh que grande doutrina esta para o lugar em que estamos! Quando vos perguntarem quem sois, não vades revolver o nobiliário de vossos avós, ide ver a matrícula de vossas ações. O que fazeis, isso sois, nada mais.

50 Jo 1,23.

51 Mt 11,14.

(Sermão da terceira dominga do Advento)

 

 

“Onde há bons e maus, há que louvar e que repreender.”

(Sermão de Santo Antônio aos peixes)

 

 

“A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto, e que mais facilmente engana os homens.”

(Sermão de Santo Antônio aos peixes)

 

 

“Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer, e o que tem.”

(Sermão de Santo Antônio aos peixes)

 

 

“Ouvi uma verdade de Sêneca, que por ser de um gentio folgo de a repetir muitas vezes. Nihil est homini se ipso vilius: Não há cousa para conosco mais vil que nós mesmos.”

(Sermão da primeira domingo da Quaresma)

 

 

“O texto de Santo Agostinho fala geralmente de todos os reinos em que são ordinárias semelhantes opressões e injustiças, e diz: que entre os tais reinos e as covas dos ladrões (a que o santo chama latrocínios) só há uma diferença. E qual é? Que os reinos são latrocínios ou ladroeiras grandes, e os latrocínios ou ladroeiras são reinos pequenos: Sublata justitia, quid sunt regna, nisi magna latrocinia? Quia et latrocinia quid sunt, nisi parva regna? É o que disse o outro pirata a Alexandre Magno. Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém ele que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: “Basta, Senhor, que eu porque roubo em uma barca sou ladrão, e vós porque roubais em uma armada, sois imperador?”. Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades, e interpretar as significações, a uns e outros, definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem, et piratam, quo regem animum latronis, et piratae habentem. Se o rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.

Quando li isto em Sêneca, não me admirei tanto de que um filósofo estoico se atrevesse a escrever uma tal sentença em Roma, reinando nela Nero; o que mais me admirou e quase envergonhou, foi que os nossos oradores evangélicos em tempo de príncipes católicos e timoratos, ou para a emenda, ou para a cautela, não preguem a mesma doutrina. Saibam estes eloquentes mudos, que mais ofendem os reis com o que calam que com o que disserem; porque a confiança com que isto se diz, é sinal que lhes não toca, e que se não podem ofender; e a cautela com que se cala, é argumento de que se ofenderão, porque lhe pode tocar. (...)

Não são só ladrões, diz o santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões, e começou a bradar: “Lá vão os ladrões grandes enforcar os pequenos”. Ditosa Grécia, que tinha tal pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul, ou ditador por ter roubado uma província! E quantos ladrões teriam enforcado estes mesmos ladrões triunfantes? De um chamado Seronato disse com discreta contraposição Sidônio Apolinar: Non cessat simul furta, vel punire, vel facere. Seronato está sempre ocupado em duas cousas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça, senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.”

(Sermão do bom ladrão)

 

 

“Por mar padecem os moradores das Conquistas a pirataria dos corsários estrangeiros, que é contingente; na terra suportam a dos naturais, que é certa e infalível. E se alguém duvida qual seja maior, note a diferença de uns a outros. O pirata do mar não rouba aos da sua república; os da terra roubam os vassalos do mesmo rei, em cujas mãos juraram homenagem: do corsário do mar posso-me defender; aos da terra não posso resistir: do corsário do mar posso fugir; dos da terra não me posso esconder: o corsário do mar depende dos ventos; os da terra sempre têm por si a monção: enfim o corsário do mar pode o que pode, os da terra podem o que querem, e por isso nenhuma presa lhes escapa. Se houvesse um ladrão onipotente, que vos parece que faria a cobiça junta com a onipotência? Pois é o que fazem estes corsários.”

(Sermão do bom ladrão)

 

 

“Ora suposto que já somos pó, e não pode deixar de ser, pois Deus o disse: perguntar-me-eis, e com muita razão, em que nos distinguimos logo os vivos dos mortos? Os mortos são pó, nós também somos pó; em que nos distinguimos uns dos outros? Distinguimo-nos os vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído; os vivos são pó que anda, os mortos são pó que jaz: Hic jacet. Estão essas praças no verão cobertas de pó: dá um pé de vento, levanta-se o pó no ar, e que faz? O que fazem os vivos, e muitos vivos. Não aquieta o pó, nem pode estar quedo; anda, corre, voa; entra por esta rua, sai por aquela; já vai adiante, já torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba, tudo toma, tudo cega, tudo penetra; em tudo e por tudo se mete, sem aquietar nem sossegar um momento, enquanto o vento dura. Acalmou o vento: cai o pó, e onde o vento parou, ali fica; ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima de um telhado, ou no mar, ou no rio, ou no monte, ou na campanha. Não é assim? Assim é. E que pó, e que vento é este? O pó somos nós: Qui pulvis es: o vento é a nossa vida: Quia ventus est vita mea.5 Deu o vento, levantou-se o pó: parou o vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado; estes são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído; estes são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a distinção, e não há outra.”

(Sermão da Quarta-feira de cinzas)

 

 

“Não há escravo no Brasil, e mais quando vejo os mais miseráveis, que não seja matéria para mim de uma profunda meditação. Comparo o presente com o futuro, o tempo com a eternidade, o que vejo com o que creio, e não posso entender que Deus que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança, como os demais, os predestinasse para dous infernos um nesta vida, outro na outra.”

(Sermão vigésimo sétimo do Rosário)

 

 

“Um pigmeu sobre um gigante pode ver mais que ele. Pigmeus nos reconhecemos em comparação daqueles gigantes que olharam antes de nós para as mesmas Escrituras. Eles sem nós viram muito mais do que nós pudéramos ver sem eles; mas nós, como viemos depois deles, e sobre eles por benefício do tempo, vemos hoje o que eles viram, e um pouco mais. O último degrau da escada não é maior que os outros, antes pode ser menor; mas basta ser o último, e estar em cima dos demais, para que dele se possa alcançar o que dos outros se não alcançava.”

(Resposta a uma objeção: mostra-se que o melhor comentador das profecias é o tempo)

 

 

“E que faz Deus, ou pode fazer, para que umas palavras tão expressas e uma profecia tão clara possa parecer escura? Atravessa uma nuvem (como dizíamos) entre a profecia e os olhos, e com este véu, ou sobre os olhos ou sobre a profecia, o claro, por claríssimo que seja, fica escuro.

Quando queremos encarecer uma cousa de muito clara, dizemos que é clara como água, porque não há cousa mais clara; e contudo essa mesma água (como discretamente advertiu Davi), com uma nuvem diante, é escura: tenebrosa aqua in nubibus aeris. Em havendo nuvem em meio, até a água é escura, e tais são as profecias, por claras e claríssimas que sejam. Por isso pedia o mesmo Davi a Deus que lhe tirasse o véu dos olhos, para que pudesse conhecer as maravilhas de seus mistérios: Revela oculos meos, et considerabo mirabilia de lege tua. Oh quantas profecias muito claras se não entendem, ou se não querem entender, porque as queremos ver por entre nuvens e com véu sobre os olhos! Peço e protesto a todos os que lerem esta História, ou que tirem primeiro o véu de sobre os olhos, ou que a não leiam. (...)

Descobrimos hoje mais, porque olhamos de mais alto; e que distinguimos melhor, porque vemos mais de perto; e que trabalhamos menos, porque achamos os impedimentos tirados. Olhamos de mais alto, porque vemos sobre os passados; vemos de mais perto, porque estamos mais chegados aos futuros; e achamos os impedimentos tirados, porque todos os que cavaram neste tesouro e varreram esta casa, foram tirando impedimentos à vista, e tudo isto por benefício do tempo, ou, para o dizer melhor, por providência do Senhor dos tempos.”

(Resposta a uma objeção: mostra-se que o melhor comentador das profecias é o tempo)

 

 

“Na verdade, o que é o mundo, senão adorar a sério as coisas vãs e as verdadeiras e celestes ridicularizar?”

(A chave dos profetas)

Essencial (Parte I), de Padre Antônio Vieira

Editora: Companhia das Letras / Penguin Classics

ISBN: 978-85-63560-28-5

Organização e introdução: Alfredo Bosi

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Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 760

Sinopse: O enfático juízo de Fernando Pessoa sobre Antônio Vieira contido num verso de Mensagem conserva sua plena validade neste início de século XXI. O perfeito domínio das sutilezas da retórica seiscentista, a impressionante erudição bíblica e literária e a inigualada capacidade de instruir, comover e deleitar simultaneamente continuam a fazer da prosa do “imperador da língua portuguesa” um clássico absoluto nas duas margens do Atlântico, mais de três séculos após sua primeira publicação. Embora o mundo monárquico, escravista e radicalmente dogmático de Vieira já tenha há muito desaparecido, sua extensa obra continua a iluminar a história e a literatura da lusofonia. Jesuíta, político e pregador, confessor de reis e profeta do Quinto Império, autor de centenas de sermões e de uma riquíssima correspondência, Vieira foi um homem de múltiplos interesses, unificados por sua fé inquebrantável e pela crença nos altos destinos de Portugal. Essencial Padre Antônio Vieira é uma generosa amostra de sua eloquente produção literária, incluindo alguns de seus melhores sermões, cartas e textos proféticos, além de uma esclarecedora introdução de Alfredo Bosi, membro da Academia Brasileira de Letras, e do texto inédito em português A chave dos profetas.


Antônio Vieira: Vida e obra — Um esboço

Alfredo Bosi

 

 

“A retórica foi definida por Aristóteles como exercício da “faculdade de observar, em qualquer situação, os meios disponíveis de persuasão” (Retórica, livro i, cap. 2). Nessa proposição estão casados os fins e os meios. Os fins são políticos, no sentido amplo da palavra, que abrange os discursos proferidos na pólis, lugar de interação social por excelência, onde não faltam ocasiões para persuadir, isto é, influir no ânimo e no comportamento dos concidadãos. Os meios são as palavras e os gestos do orador. Para os discursos, invenção, composição, elocução. Para os gestos, ação. Servindo a uns e a outros, memória.

Para alcançar os fins, é necessário que o orador conheça e reavive os sentimentos, as ideias e os valores dos ouvintes: daí a combinação de retórica e ética, que Aristóteles considera peculiar à arte de convencer:

Há, portanto, três meios de efetuar a persuasão. O homem que se propõe dominá-los deve certamente: 1) ser capaz de raciocinar logicamente, 2) compreender o caráter e a bondade humana em suas várias formas, e 3) compreender as emoções — isto é, nomeá-las e descrevê-las para conhecer as suas causas e o modo como são excitadas. Assim vê-se que a retórica é um ramo da dialética e também dos estudos éticos.

 

Haveria, pois, uma dimensão específica na atividade retórica, que envolve o estudo do comportamento humano (objeto comum à ética e à psicologia, se pensarmos nos termos das ciências modernas); e uma dimensão transversal e universal, logo formal e não específica, que interessa a todos os discursos (históricos, filosóficos, científicos), enquanto trata dos procedimentos gramaticais e estilísticos necessários à formulação dos diversos tipos de conhecimento.

A retórica, entendida filosoficamente, como fizeram Aristóteles e Isócrates, forma o cidadão justo e prestante e, ao mesmo tempo, o orador perito na arte de mover eficazmente os corações e as mentes dos ouvintes.”

 

 

“Os anos que medeiam entre a chegada de Vieira a Lisboa e a sua partida para o Maranhão (1641-52) foram marcados por uma atividade febril. O orador sacro, elevado a pregador do Paço e valido do rei, descobria em si o arquiteto da política no xadrez das potências europeias. O fato é que Portugal restaurado, mas sangrado, precisava absolutamente estreitar relações estratégicas com a França e com a própria inimiga Holanda, sob pena de regressar à sujeição castelhana e perder parte do seu império tão duramente conquistado na América, na África, na Ásia. O zelo imoderado da pátria, que Vieira confessava como sua paixão avassaladora, guiou (e não raro transviou) o embaixador de d. João IV em suas viagens à França, à Holanda e aos domínios pontifícios.

Mas esse mesmo zelo abriu-lhe o entendimento e dele fez um persistente defensor da “gente de nação”, como eram chamados os judeus e os cristãos-novos. Se nada restou das suas manobras diplomáticas, certamente a luta nunca esmorecida pela reforma dos “estilos” do Santo Ofício português em favor dos judeus perseguidos o torna credor de nossa estima, se é justo que nos arroguemos o direito de ser membros do tribunal da História.

Convém começar pelos fins últimos. A razão de ser do Vieira diplomata e conselheiro de ousados projetos econômicos e políticos, que incluíam a defesa dos judeus e cristãos-novos, era uma só: consolidar a restauração de Portugal e erguê-lo à categoria de potência colonial então ameaçada pelos Estados concorrentes, dentre os quais a Holanda era decerto o mais temível. No decênio de 1640 esses objetivos foram perseguidos mediante a procura de alianças matrimoniais do príncipe d. Teodósio, herdeiro do trono e pupilo de Vieira, com princesas ou nobres de altos títulos da França, da Áustria e até mesmo da Espanha. Tudo em vão. Foram recusadas todas as propostas mediadas por Vieira e pelos embaixadores de Portugal junto aos respectivos governos. O Estado português, assediado nas fronteiras pela Espanha e nas colônias pela Holanda, parecia não ser um bom partido para as casas reais europeias.17

Vieira percebeu sagazmente que se faziam necessários meios mais potentes para fortalecer de maneira duradoura a situação da pátria. Como familiar do monarca, propôs a criação de uma Companhia das Índias Ocidentais, a exemplo das congêneres inglesa e holandesa. O projeto carecia de fortes cabedais, que Vieira esperava obter de empréstimos dos mercadores cristãos-novos ainda residentes em Portugal ou aninhados em cidades francesas e flamengas, Rouen, Bordeaux, Nantes e Amsterdam, Haia e Antuérpia. A dificuldade maior consistia na ação antissemita da Inquisição, particularmente intensa e arbitrária em Portugal. Era no Santo Ofício e na mentalidade difusa entre nobres e clero que se entrincheiravam os maiores inimigos da empresa. O projeto, se executado, impediria a expulsão dos judeus e o confisco de seus bens.

Na Proposta feita a el-rei d. João IV, em que se lhe representava o miserável estado do Reino, e a necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa, datada de 3 de julho de 1643, Vieira começa demonstrando a condição precária em que se encontrava Portugal, havia pouco restaurado em sua soberania. Dependendo do resultado do conflito franco-espanhol, o reino não estava em nenhum caso assegurado. Vitoriosa Castela, os inimigos estariam à porta. Vitoriosa a França, não haveria por que confiar em uma nação “naturalmente inconstante, inquieta, amiga de novidades e fácil de corromper-se por dinheiro”.18 E se ambas as nações contratassem paz entre si, nem por isso Portugal ficaria livre de uma perfídia de uma ou de outra, “porque nenhum segue mais leis que as da conveniência própria. Imaginar o contrário é querer emendar o mundo, negar a experiência, e esperar impossíveis”.19 Fala aqui o jesuíta em termos que Maquiavel teria subscrito sem hesitação.”

17 As marchas e contramarchas envolvidas nas gestões diplomáticas de Vieira vêm narradas com vivacidade nas cartas que enviou de Paris ao marquês de Nisa e ao residente Antônio Moniz de Carvalho (1646-7), e nas cartas que enviou de Haia ao mesmo marquês e a Pedro Vieira da Silva (secretário de Estado), em 1647 e 1648. Essas cartas, ricas em dados históricos, incluem as tentativas de manter acordos de paz com a Holanda, ainda que vendendo Pernambuco aos invasores, projeto de Vieira constante do chamado Papel Forte, drasticamente rejeitado pelos conselheiros de d. João IV e naturalmente ignorado pelos insurretos pernambucanos. Ver o 1o volume de Cartas na edição coordenada e anotada por João Lúcio de Azevedo.

18 Proposta feita a el-rei d. João IV…, em Obras inéditas do padre Antônio Vieira. Lisboa: J. M. C. Seatra & T. Q. Antunes, 1856, v. ii, p. 30.

19 Id., ibid., p. 31.

 

 

“O lugar, a que se refere o orador, e onde se acham os ouvintes, é a capela real, com d. João IV, a nobreza e o alto clero presentes. A esses destinatários, que se creem “bem-nascidos”, dirige Vieira o discurso em que os adverte da isenção divina no dies irae [dia da ira] universal. A eles contrapõe Pedro e os apóstolos, homens de modestíssima condição que Deus fará juízes das doze tribos de Israel. A desigualdade, a “malsofrida desigualdade”, obra da natureza, é compensada pela equidade na hora da ressurreição: “Não se faz agravo na desigualdade do nascer, a quem se deu a eleição de ressuscitar. A ressurreição é um segundo nascimento com alvedrio”. Quando forem separados o trigo e o joio, de nada valerá ter nascido fidalgo. O pregador não exclui ninguém e tem a ousadia de indigitar, entre os que podem ser condenados, a reis e príncipes, papas e bispos, gente de toda casta. Tudo indica que o púlpito fosse na época uma tribuna relativamente livre de censura em uma nação vigiada por todos os lados e modos.

Fala o tomista que postula a força do livre-arbítrio, o “alvedrio”, graças ao qual o desvalido de berço, trilhando o caminho da virtude, alcançará a regeneração eterna. Decorrência dessa prometida mudança final de estado é o elogio das obras e a execração do ócio. “No nascimento somos filhos de nossos pais, na ressurreição seremos filhos de nossas obras.”

Viria da condição apenas remediada dos pais e antepassados a ambivalência do pregador em relação à nobreza, ora tratada com público respeito, ora desqualificada enquanto simples filiação? Qualquer que fosse a motivação dessa dualidade, o fato é que a exaltação do pobre estava escorada nos Evangelhos, começando pela simplicidade do lar do carpinteiro José e confirmando-se na condição de pescadores da maioria dos primeiros apóstolos. Vieira explora o tema da identidade de João Batista instado a dizer quem é pelos emissários do Templo. A resposta do profeta não se funda na substância do nome, mas na ação do verbo: Sou a voz que clama no deserto. A identidade se faz e se mostra somente pelo ato de clamar, e não mediante referência aos pais ou ascendentes (sou filho de…, da tribo de…), como era praxe antiga, e não só judaica, de autonomear-se. “Só de suas ações formou a sua definição: Ego Vox clamantis.” Daí à apologia das obras e à relativização do status herdado vai um passo. Que é dado por um dos sermões da terceira dominga da Quaresma:

Muito tempo há que tenho dous escândalos contra a nossa gramática portuguesa nos vocábulos do nobiliário. A fidalguia chamam-lhe qualidade, e chamam-lhe sangue. A qualidade é um dos dez predicamentos a que reduziram todas as cousas os filósofos. O sangue é um dos quatro humores de que se compõe o temperamento do corpo humano. Digo, pois, que a chamada fidalguia não é somente qualidade, nem somente sangue; mas é de todos os dez predicamentos, e de todos os quatro humores. Há fidalguia que é sangue, e por isso há tantos sanguinolentos; há fidalguia que é melancolia, e por isso há tantos descontentes; há fidalguia que é cólera, e por isso há tantos malsofridos e insofríveis; e há fidalguia que é fleuma, e por isso há tantos que prestam para tão pouco. De maneira que os que adoecem de fidalguia, não só lhes peca a enfermidade no sangue, senão em todos os quatro humores. […] Há fidalguia que é sustância, porque alguns não têm mais sustância que a sua fidalguia; há fidalguia que é quantidade: são fidalgos porque têm muito de seu; há fidalguia que é qualidade, porque muitos, não se pode negar, são muito qualificados; há fidalguia que é relação: são fidalgos por certos respeitos; há fidalguia que é paixão: são apaixonados de fidalguia; há fidalguia que é ubi: são fidalgos porque ocupam grandes lugares; há fidalguia que é sítio, e desta casta é a dos títulos, que estão assentados, e os outros em pé; há fidalguia que é hábito: são fidalgos porque andam mais bem-vestidos; há fidalguia que é duração: fidalgos por antiguidade. E qual destas é a verdadeira fidalguia? Nenhuma. A verdadeira fidalguia é ação. Ao predicamento da ação é que pertence a verdadeira fidalguia. Nam genus, et proavos, et quae non fecimus ipsi, vix ea nostra voco, disse o grande fundador de Lisboa [Nota de Vieira: Ulysses apud Ovidium, Metamorf. Trad.: “Pois com muito custo chamo nossos a estirpe, os antepassados e as coisas que nós próprios não fizemos”.]: As ações generosas, e não os pais ilustres, são as que fazem fidalgos. Cada um é suas ações, e não é mais nem menos, como o Batista: Ego vox clamantis in deserto.32

32 Sermão da terceira dominga do Advento. Pregado na capela real, no ano de 1642. Ver p. 425 desta edição.

 

 

“UM PUNCTUM DOLENS: VIEIRA

E A ESCRAVIZAÇÃO DOS NEGROS

Quando os escravos já não são ameríndios, mas africanos, abre-se um hiato embaraçoso entre a doutrina evangélica, o pressuposto da “natural liberdade” e as práticas coloniais. O corpus, nesse caso, são homilias pregadas sobre a devoção do rosário, bem como afirmações de Vieira esparsas em sua correspondência.

A escravidão negra é tema dos sermões décimo quarto, vigésimo e vigésimo sétimo do Rosário, cujo culto era reservado às irmandades de pretos. No Sermão décimo quarto, Vieira, então noviço e novato, entra no mundo do escravo pelo atalho mais curto e direto da descrição existencial do seu cotidiano: como vive o negro o “doce inferno” dos engenhos de açúcar? De que maneira o tratam os senhores brancos? Quais os passos do seu dia a dia desde que nasce até que morre? Ao desdobrar as questões, o orador firma um princípio de analogia na esfera dos valores, um eixo que vai norteá-lo pelo sermão adentro ministrando-lhe um esquema de apoio para toda a argumentação: a vida do escravo semelha a Paixão de Cristo.

A linguagem da identificação torna-se sobremodo forte e envolvente quando os ouvintes a quem se destina são os próprios escravos. É o que acontece nesse sermão do Rosário pregado à irmandade de pretos em um engenho baiano em 1633. Mediante o uso intensivo do símile, a narração dos trabalhos e das penas sofridas é sentida e ressentida pelos negros, seus sujeitos, e, ao mesmo tempo, deslocada e sublimada, enquanto se projeta no corpo humano de Jesus Cristo, que, assim, se torna o mesmo a quem se fala e o Outro de quem se fala.

O trânsito da imanência subjetiva à transcendência aciona-se a partir de um presente vivido e sofrido, aqui e agora, mas à luz de um passado exemplar que a palavra litúrgica faz reviver: o drama da Paixão. Estreitas correspondências asseguram a coesão interna do significado:

Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado […] porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dous madeiros, e a vossa em um engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra vez para a esponja em que Lhe deram o fel. A paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos: Cristo sem comer, e vós famintos: Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo.57

Vieira não se contenta em insistir na pena física: a sua palavra fere com rigor a divisão social que está na raiz do trabalho compulsório. Impõe-se, nessa altura, a nomeação das duas classes antagônicas, os senhores e os escravos; eles e vós:

Eles mandam, e vós servis: eles dormem, e vós velais: eles descansam, e vós trabalhais: eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que os das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como abelhas, de quem disse o poeta: Sic vos non vobis mellificatis apes. O mesmo passa nas vossas colmeias. As abelhas fabricam o mel, sim; mas não para si.58

Marx diria dois séculos depois: “Por certo o trabalho humano produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador. Ele produz palácios, mas choupanas é o que toca ao trabalhador. Ele produz a beleza, porém para o trabalhador só fealdade”.59

No sermão vigésimo sétimo do Rosário, a tônica existencial recai na perplexidade do orador diante das causas mesmas da abissal diferença de condição entre homens todos criados por Deus. A epígrafe que dá o mote do sermão fala da migração dos hebreus para a Babilônia, texto tirado da genealogia de Cristo na abertura do Evangelho de Mateus. O tema é o exílio sofrido por um povo inteiro escravizado à força. A comparação com os africanos arrancados de suas terras vem a primeiro plano:

Entra por esta barra um cardume monstruoso de baleias, salvando com tiros e fumos de água as nossas fortalezas, e cada uma pare um baleato: entra uma nau de Angola, e desova no mesmo dia quinhentos, seiscentos e talvez mil escravos. Os israelitas atravessaram o mar Vermelho, e passaram da África à Ásia, fugindo do cativeiro; estes atravessam o mar oceano na sua maior largura, e passam da mesma África à América e para viver e morrer cativos. Infelix genus hominum (disse bem deles Mafeu) et ad servitutem natum. Os outros nascem para viver, estes para servir.60

A exclamação é sinal de consciência lúcida e indignada: “Oh trato desumano, em que a mercancia são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das almas alheias, e os ricos das próprias!”. E novamente a contraposição incisiva entre senhores e escravos, “os senhores poucos, e os escravos muitos”, “os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros”, “os senhores em pé apontando para o açoute, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da servidão, e espetáculos da extrema miséria”. De um lado, homens tratados como brutos; de outro, homens tratados como deuses.

Vejamos como Vieira enfrenta e tenta desfazer a percepção de sem sentido que os olhos trouxeram ao entendimento; e como a mercancia, dita diabólica, acaba resolvendo-se, apesar da flagrante contradição, em desígnio insuspeitado, “juízos ocultos” da providência divina.

Em primeiro lugar, vêm as interrogações da mente perplexa: “Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem, como os nossos? Não respiram com o mesmo ar? Não os cobre o mesmo Céu? Não os aquenta o mesmo Sol? Que estrela é logo aquela que os domina, tão triste, tão inimiga, tão cruel?”.61

A última pergunta remete ao universo da fatalidade dominado pelos astros. Supõe o influxo de uma estrela adversa que predetermina a sorte dos escravos desigualando cruelmente o seu destino quando confrontado com o dos brancos, seus senhores. Saímos, por essa brecha, da esfera do entendimento, que ponderava as igualdades (“mesmo Adão, mesma Eva, mesmo sangue de Cristo, mesmo nascimento e morte, mesmo ar, mesmo céu, mesmo Sol”) e pasmava com as diferenças: “Não há escravo no Brasil, e mais quando vejo os mais miseráveis, que não seja matéria para mim de uma profunda meditação. Comparo o presente com o futuro, o tempo com a eternidade, o que vejo com o que creio, e não posso entender que Deus que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança, como os demais, os predestinasse para dous infernos um nesta vida, outro na outra”.

As semelhanças entre os homens, todos feitos à imagem de Deus, conduzem à intuição do absurdo: “não posso entender”. A saída do impasse, Vieira a encontra na divisão platônica e agostiniana do ser humano em corpo e alma. Só a dualidade permite separar os destinos. A carne sofrida é mortal. A alma crente é imortal; e é a sobrevivência à morte temporal que vai abrir a porta da esperança aos escravos. Os negros, desterrados filhos de Eva, esperam a transmigração final, não da África para a América, mas da América para o céu. Como corpos, são meras “peças”, palavra que Vieira ressalta como prova do seu discurso dualista, para daí inferir que os senhores compram só a parte material do escravo. Peça, isto é, mercancia, e não almas, pois estas pertencem a Deus, e não aos senhores do corpo. É preciso que os escravos cuidem da salvação da própria alma fazendo do sofrimento nos trabalhos matéria de sacrifício propiciatório que certamente os salvará. “Mas é particular providência de Deus, e sua [da Mãe do Redentor], que vivais de presente escravos e cativos, para que por meio do mesmo cativeiro temporal, consigais muito facilmente a liberdade eterna”.62

Se compararmos esses textos com a defesa coerente e sistemática que Vieira empreendeu da liberdade dos índios, não deixaremos de estranhar o que parece incongruência, para não dizer flagrante injustiça. Em relação aos negros trazidos da África, em que pese a intuição da violência senão do absurdo que o tráfico e a escravização do negro significava, vemos que Vieira se comporta como os demais jesuítas e missionários de outras ordens, que os consideravam escravos legalmente introduzidos no Brasil. Diabólica mercancia, mas, ao fim e ao cabo, necessária! Daí o caráter contraditório de suas tiradas de vibrante denúncia que, afinal, desaguam em fórmulas compensatórias pelas quais o cativeiro teria por justificativa a salvação das almas dos africanos escapos à idolatria dos seus cultos e ao império dos maometanos.”

57 Ver pp. 194-5 desta edição.

58 Ver pp. 204-5 desta edição.

59 Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Octavio Alves Velho. Rio de Janeiro: Zahar, s.d., p. 77.

60 Ver p. 532-3 desta edição.

61 Ver p. 533 desta edição.

62 Ver p. 556 desta edição. Desenvolvi a análise dos sermões do Rosário no ensaio “Antônio Vieira, profeta e missionário: Um estudo sobre a pseudomorfose e a contradição”, Estudos Avançados, São Paulo, Universidade de São Paulo, n. 65, jan./abr. 2009, pp. 247-70.

 

Fim da Introdução de Alfredo Bosi

 

 

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“Se a palavra de Deus é tão eficaz e tão poderosa, como vemos tão pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e já eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermões se convertera e emendara um homem, já o mundo fora santo.”

(Sermão da Sexagésima)

 

 

“Os ouvintes, ou são maus ou são bons: se são bons, faz neles grande fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito.”

(Sermão da Sexagésima)

 

 

“Entre o semeador e o que semeia há muita diferença: Uma cousa é o soldado, e outra cousa o que peleja; uma cousa é o governador, e outra o que governa. Da mesma maneira, uma cousa é o semeador, e outra o que semeia; uma cousa é o pregador, e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter nome de pregador, ou ser pregador de nome não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? É o conceito que de sua vida têm os ouvintes. Antigamente convertia-se o mundo, hoje por que se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obras são tiro sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de Davi derrubou ao gigante, mas não o derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus.13 As vozes da harpa de Davi lançavam fora os demônios do corpo de Saul, mas não eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam, et percutiebat manu sua.14 Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar, que é falar, faz-se com a boca; o pregar, que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram cem palavras? Não. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras! Quis Deus converter o mundo, e que fez? Mandou ao mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus enquanto Deus é palavra de Deus, não é obra de Deus: Genitum, non factum. O Filho de Deus enquanto Deus e Homem é palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est.15 De maneira que até de sua palavra desacompanhada de obras, não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do mundo. Verbo divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras ouvem-se, as obras veem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. (...)

Sabem, padres pregadores, por que fazem pouco abalo os nossos sermões? Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Por que convertia o Batista tantos pecadores? Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Batista pregavam penitência: Agite poenitentiam:18 Homens, fazei penitência; e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui está o homem que é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Batista pregavam jejum, e repreendiam os regalos e demasias da gula: e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Batista pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui está o homem vestido de peles de camelo, com as cerdas e cilício à raiz da carne. As palavras do Batista pregavam despegos e retiros do mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo clamava: Ecce homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as cidades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma cousa e veem outra, como se hão de converter? Jacó punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daqui procedia que os cordeiros nasciam manchados.19 Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão de conceber virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vão já refutadas nas minhas obras, se uma cousa é o semeador, e outra o que semeia, como se há de fazer fruto?”

13 1Sm 17,49 [“Davi enfiou a mão no bornal, pegou uma pedra, atirou-a com a funda e acertou na testa do filisteu”].

14 1Sm 16,23 [“Todas as vezes que o espírito de Deus atacava Saul, Davi pegava a harpa e tocava. Então Saul se acalmava, sentia-se melhor, e o espírito mau o deixava”].

15 Jo 1,14 [“E a Palavra se fez homem e habitou entre nós. (...)”].

18 Mt 3,2 [“Convertam-se, porque o Reino do Céu está próximo”].

19 Factumque est ut oves intuerentur virgas er parerent maculosa. (Gn 30,39) [Os animais se acasalavam diante das varas e pariam crias listradas, pintadas e malhadas.].

(Sermão da Sexagésima)