terça-feira, 30 de julho de 2024

A fé e o fuzil: Crime e religião no Brasil do século XXI (Parte II), de Bruno Paes Manso

Editora: Todavia

Opinião: ★★★☆☆

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ISBN: 978-65-5692-520-2

Páginas: 304

Sinopse: Ver Parte I



Tudo conspirava para o sucesso desse produto. Com os pentecostais, o poder divino era mais palpável, já que a alegada ação do Espírito Santo podia se revelar de forma física, no corpo dos fiéis, pela glossolalia ou pela cura de doenças, muitas delas provocadas pelos espíritos endemoniados das religiões de matrizes africanas. Os pastores podiam exorcizar o desânimo para reformatar as mentes e acender nelas uma chama capaz de impulsionar o crente a agir de acordo com os valores do meio urbano. Havia excelentes compensações para os que obedecessem aos mandamentos de Deus, inclusive benefícios materiais. O passado devia ser deixado para trás em nome do progresso moral e financeiro no presente. Dinheiro e riqueza não eram mais tabus e faziam com que os novos templos fossem autossustentáveis. De acordo com a Teologia da Prosperidade, quanto mais o fiel desse para a Igreja, mais ele receberia de Deus.

As visões teológicas podiam variar conforme as denominações. As heresias da Universal, por exemplo, com suas pregações e sacramentos sincréticos, distantes do texto bíblico, eram criticadas por religiosos de diversas correntes. Mas a aliança se reestabelecia para fazer frente ao poder do establishment praticamente hegemônico ao longo da história brasileira, que, liderado pela Igreja católica e apoiado pela elite econômica e política, era visto como persecutório. Apesar das diferenças doutrinárias, a tendência dos pentecostais era se unir contra o inimigo comum. Nesse sentido, o sucesso das novas igrejas influenciava as doutrinas tradicionais, que não queriam ficar para trás e perder fiéis. A Assembleia de Deus, por exemplo, foi se flexibilizando com o tempo, liberando gradativamente as mulheres para cortar os cabelos, usar maquiagem e vestir calças compridas, bem como tirando as restrições a ouvir rádio, assistir TV e ir ao cinema. Suas igrejas embarcaram na comunicação em massa para disputar fiéis.

A força desse produto, contudo, se revelava ainda mais intensa no chão de terra e de asfalto esburacado dos bairros pobres, lugares em que os novos templos surgiam com a mesma agilidade que os botecos e as biroscas, tornando-se presença inseparável do ambiente das favelas. As pequenas igrejas brotavam nas periferias de forma orgânica, e qualquer um que vivesse na quebrada ou no presídio podia assumir o papel de líder religioso, caso tivesse carisma suficiente para abrir uma igreja e arregimentar seguidores. Como essas autoridades religiosas estavam inseridas nas comunidades e conheciam os problemas locais, tinham mais habilidade para pensar soluções com seus fiéis e potenciais seguidores.

Esses conselhos tinham que ser práticos, motivacionais, em vez de ideológicos e críticos, como eram os padres europeus da Teologia da Libertação.

Hoje o que você tem nas favelas? Você tem os grupos religiosos, que desenvolvem um Estado de bem-estar social improvisado. Hospital, prisão, drogas, vielas, os religiosos vão estar lá. O movimento social está dizendo que o mundo está acabando, que o fascismo está tomando conta, uma série de desgraças. Mas o pessoal da favela já é doutor em desgraça, ele não precisa ouvir mais essas. Já os pastores estão lá, dizendo para o desgraçado que ele é tudo pra Jesus. Se eu estou numa situação de abandono, eu me agarro, disse o ex-presidente nacional da Central Única das Favelas (Cufa), Preto Zezé das Quadras, quando lhe perguntei sua opinião sobre o sucesso dos evangélicos entre os mais pobres e o enfraquecimento do discurso da Igreja católica e dos movimentos sociais nas periferias.5

Organizações como a Cufa são moldadas pelos valores da era pentecostal, ligados ao empreendedorismo, bem diferente das mobilizações de esquerda para pressionar o governo. As favelas e os bairros pobres brasileiros, segundo estimativas da própria Cufa, mobilizam 117 bilhões de reais em poder de consumo, valor maior do que o Produto Interno Bruto (PIB) de diversos países. Essa mistura de comunicação de massa com pregação hiperlocal, voltada para soluções do dia a dia e para o mercado, se mostraria uma estratégia vitoriosa entre os pentecostais. O movimento era duplo: pelas ondas do rádio e da televisão, pela oralidade, os pastores conclamavam a responsabilidade coletiva e a identidade de grupo. Nos territórios, pelo estímulo à leitura da Bíblia, desenvolviam a introspecção e a reflexão individual sobre os próprios desígnios e problemas.

Havia, ainda, outro diferencial relevante: montar um templo sempre foi mais simples, por exemplo, do que abrir uma igreja católica ou evangélica histórica. Em boa parte das denominações pentecostais, os templos são alugados, alguns em casas pequenas com cadeiras de plástico. Nesse esquema, os custos mensais podem ser rateados pelos participantes mediante a cobrança do dízimo, e alguns podem começar a igreja em sua própria casa, na garagem, com rodas de oração que se expandem conforme o interesse do público.

Mais do que anos de estudo em seminários ou conhecimento formal sobre teologia e filosofia, exigidos pelos católicos e pelas congregações históricas, o sucesso dos pastores pentecostais depende, sobretudo, da sua afinidade com os problemas dos vizinhos e de sua capacidade de pregar e dialogar para transformar angústia em esperança. A baixa educação formal pode ser, inclusive, um fator de proximidade com seus fiéis, com quem compartilham a linguagem, os sofrimentos e os desafios. Assim, o pastor adquire uma renda para dar continuidade a sua própria obra e uma posição de status e respeito em seu meio social.

A velocidade de abertura e a capilaridade dos templos evangélicos em território nacional foi dimensionada a partir de um levantamento feito a partir de dados da Receita Federal com o total de registros de pessoas jurídicas classificadas como organizações religiosas. Os 12,1 mil templos de 1982 se multiplicaram até alcançar a marca de 178 511 em maio de 2022,6 o que significa a abertura de onze novos templos por dia no período. Essa velocidade praticamente dobrou na última década, quando 21 igrejas foram abertas diariamente. O crescimento se acelerou conforme a visão religiosa se normalizou culturalmente, as interpretações bíblicas se diversificaram e passaram a lidar direto com os problemas reais das pessoas.

A Assembleia de Deus liderou o ranking do total de templos (43 578 unidades), seguida da Batista (19 692), Igreja Universal (7505), Evangelho Quadrangular (5586), Igreja Presbiterana (5132) e Congregação Cristã (5052). O primeiro lugar disparado, no entanto, ficou com a soma das pequenas igrejas (78 560),7 que não se enquadram em nenhuma das grandes denominações brasileiras e estão fortemente vinculadas ao carisma de seu próprio fundador. Segundo dados do Censo, existem cerca de 1,5 mil denominações evangélicas no Brasil, total que não para de crescer.8

Esse movimento foi bem diferente do vivido pela Igreja católica, que viu sua dianteira de séculos ser ameaçada. O processo de decisão da Igreja romana sempre foi mais hierárquico e burocrático, vinculado a uma cadeia de comando que passava pelos bispos e podia alcançar até o papa. Em São Paulo, por exemplo, o trabalho de expansão das CEBs e o fortalecimento das igrejas periféricas foram impulsionados pelas mudanças iniciadas pelos papados de João XXIII e Paulo VI no pós-guerra, como estratégia para enfrentar politicamente a ameaça das revoluções socialistas. Depois de 1978, quando o papa João Paulo II assumiu seu pontificado, esse movimento refluiu, principalmente depois do esfacelamento dos governos comunistas. Em 1989, a Arquidiocese de São Paulo foi dividida em cinco, fragilizando o poder de d. Paulo Evaristo Arns e fortalecendo os religiosos mais conservadores, na tentativa de reverter o crescimento do pentecostalismo. Começou a ganhar espaço o movimento da Renovação Carismática, que trazia para o centro da missa o poder do Espírito Santo, com suas curas milagrosas, êxtases, exorcismos, glossolalias e muita música. Alguns religiosos se tornaram sucesso de público, como o padre Marcelo Rossi, ligado ao bispo da nova diocese de Santo Amaro, d. Fernando Antônio Figueiredo.

Apesar do esforço dos católicos para reavivar as missas, a estrutura engessada e vertical da Igreja romana dificultou sua competitividade no mercado das crenças. Era sempre mais lento e mais caro abrir uma nova paróquia, que depende da compra do terreno, da construção de um prédio com a arquitetura imponente característica, do comando de um padre cuja formação pode levar quase uma década, da decisão estratégica do bispo e, em última instância, do nihil obstat do papa, que concede um aval moral e doutrinário para o investimento. O resultado aparece nos números. Mesmo sendo a religião de mais de 60% dos brasileiros, havia 12 013 paróquias no país em 2021, 294 catedrais, 71 basílicas, seis santuários nacionais e 21 mil padres, segundo dados da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).9 Comparar o universo católico e pentecostal é tarefa que vai muito além dos números, mas não deixa de chamar a atenção o fato de o total de templos do segundo ser catorze vezes maior do que o de igrejas do primeiro.

Existia um fenômeno grandioso por trás desse boom empresarial transcendente dos pentecostais: parte dos migrantes e de seus descendentes, que durante o processo de urbanização tinha construído suas casas e vidas nas grandes cidades, produziam um novo tipo de discurso que dava sentido para o mundo que habitavam e que lhes permitia consertar os erros passados. Pequenas igrejas eram criadas nas quebradas, sintonizadas às mensagens transmitidas pelas grandes denominações via rádio e TV, para reinterpretar a realidade e dar novos significados à miséria cotidiana. Enquanto isso, mitos, regras e valores eram restabelecidos para servir como referência, produzindo ordem num ambiente em que o caos estava sempre à espreita. Com o passar do tempo, essas referências foram impregnadas por um discurso belicoso que inflamava a busca pela prosperidade e pelo autocontrole em nome do triunfo do bem sobre o mal.

Mentes eram reformatadas e se tornavam mais adaptadas à vida urbana coletiva, principalmente entre os que compartilham as mesmas crenças. A culpa dos desvios e dos fracassos do passado podia ser atribuída ao demônio. Assim como o abandono, a miséria em sucessivas gerações, a violência diária, a revolta contra as injustiças da vida, o ódio, todos esses sentimentos podiam ir embora em um passe de mágica, com a expulsão do encosto de satanás. Era preciso apenas amar a Deus e se resignar com seus propósitos para ser abençoado. O diabo, por sua vez, podia se transfigurar nos mais diversos inimigos, que, quando identificados, bastava canalizar a energia vital para vencê-los: bebida, drogas, doença, depressão, pobreza, ignorância, falta de vontade. Bastava crer para o fogo de vida queimar e servir de motivação para essa luta celestial.

Em compensação, os discursos dessas irmandades podiam ser altamente dogmáticos e autoritários; não costumavam aceitar pensamentos e crenças diversas. A intolerância, inclusive, é uma das caraterísticas da divisão do movimento em centenas de denominações, cada qual com uma interpretação específica da palavra divina. Os católicos, ao contrário, com sua estrutura rígida e hierarquizada, são mais flexíveis nesse sentido. Em nome da unidade, precisam aceitar os desvios e as visões religiosas sincréticas, como sempre ocorreu ao longo da história brasileira.10

A demonização das religiões de matrizes africanas, pregada pelos neopentecostais e aceita por outras denominações evangélicas, era apenas um dos efeitos dessa intolerância. O estigma de endemoniado podia cair também sobre gays, feministas, bandidos e famílias fora do padrão, dependendo da leitura que a denominação fizesse da Bíblia. Já os negros e pobres, desde que fiéis, eram valorizados, o que era uma novidade. O discurso da luta contra inimigos deixava de focar na classe e na raça e voltava-se para os ateus, descrentes, progressistas e defensores de costumes libertários, o que incluía também brancos e ricos. Esse redirecionamento deu uma nova unidade a um movimento fragmentado, inventando um discurso ao mesmo tempo popular e conservador, e foi apoiado por ricos e pobres conservadores, angustiados com a velocidade das mudanças nos costumes. Por consequência, a mensagem rapidamente foi adotada por políticos em busca de seus objetivos eleitorais.

A conquista de cargos nos parlamentos e no Poder Executivo pelos pentecostais cresceu a partir da volta da democracia e do anúncio de uma nova Constituição em 1988. Dois anos antes, eles reproduziram a estratégia iniciada por Manoel de Mello nos anos 1960 e entraram com tudo na disputa pelos interesses de suas denominações. A Assembleia de Deus e outras igrejas orientaram seus fiéis a votar nos candidatos próprios,11 e a ideia de que crente não se envolvia em política ficou definitivamente no passado para dar lugar ao compromisso de que “irmão vota em irmão”.12

As lentes da religiosidade pentecostal iriam mudar a forma de enxergar a luta por poder e levariam para o Parlamento o compromisso com o sagrado. A verdade factual, objetiva, que pode ser checada e que deveria servir de base para as decisões, perderia prestígio para os temas transcendentais. A doutrina da batalha espiritual daria o ar da graça e redefiniria a lógica da luta política. Conforme essa nova leitura, a transformação social duradoura não viria, prioritariamente, das reformas do Estado ou dos debates técnicos sobre políticas públicas.

Os problemas sociais como pobreza, corrupção e violência tinham um fundo espiritual que afetava diretamente o plano material, e a eleição de pentecostais intercederia nesse cenário dominado pelos demônios responsáveis pela opressão ao povo brasileiro.13 Seria fundamental, portanto, preservar os valores cristãos pregados na Bíblia votando em pessoas que defendessem as leis divinas no Parlamento. Os deputados e os políticos, de uma forma geral, seriam os soldados na guerra do bem contra o mal.

Barganhar com governos vantagens para as igrejas e seus membros se tornou uma prática tolerada e relevante, já que significava obter benefícios para a causa de Jesus Cristo. Dessa forma, os políticos evangélicos, espalhados em partidos da base de apoio dos governos, foram decisivos para dar mais densidade ao centrão, com o pragmatismo que se tornaria a marca dos pentecostais. Eles integravam partidos que apoiavam os governos da vez, em troca de vantagens para suas igrejas e grupos. Os evangélicos não estavam na política para revolucionar o sistema ou ser oposição. Afinal, conforme a interpretação de diversos pastores, deviam seguir a Bíblia e obedecer às autoridades.”

5. Pergunta feita no encontro virtual organizado pelo grupo República do Amanhã com Preto Zezé mediado por Eugênio Bucci, “Preto Zezé (Cufa): combate ao racismo, ativismo social e enfrentamento da desigualdade”. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=yTFqwSWnYQE&t=898s>. Acesso em: 11 jun. 2023.

6. O balanço foi feito com base em dados da Receita Federal e publicado em O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2022/noticia/2022/09/salto-evangelico-21-igrejas-sao-abertas-por-dia-no-brasil-segmento-e-alvo-de-lula-e-bolsonaro.ghtml>. Acesso em: 26 jun. 2023.

7. Ibid.

8. Entrevista concedida por Christina Vital a Andrea Dip no livro Em nome de quem?: A bancada evangélica e seu projeto de poder (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018).

9. Silvio da Silva, “Os números da Igreja católica do Brasil”. CNBB Regional Oeste 1, 16 jun. 2021. Disponível em: <https://cnbboeste1.org.br/os-numeros-da-igreja-catolica-do-brasil>. Acesso em: 11 jun. 2023.

10. Adroaldo José Silva Almeida. Pelo Senhor, marchamos: Os evangélicos e a ditadura militar no Brasil (1964-1985). São Luís: Edufma, 2020.

11. Saulo Batista, Pentecostais e neopentecostais na política brasileira: Um estudo sobre cultura política, Estado e atores coletivos e religiosos no Brasil. São Paulo: Annablume, Instituto Metodista Izabela Hendrix, 2009.

12. Ricardo Mariano, Neopentecostais, sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

13. Ibid.

 

 

“Em 2003, já chegavam novas regras das prisões de São Paulo e, então, para matar, era preciso apresentar justificativas e ter autorização do PCC. A facção vinha ganhando fama e respeito após a primeira megarrebelião nos presídios em fevereiro de 2001. Depois de controlar o sistema penitenciário, consolidava seu poder do lado de fora com a ajuda dos telefones celulares, que tornavam mais fluida a comunicação entre os integrantes da irmandade de criminosos. (...)

O controle dos homicídios no Jardim Ângela continuou a ocorrer nos anos seguintes. Demorei para compreender que estava sendo construído um novo pacto para regulamentar o comportamento dos criminosos, uma força invisível começava a fazer efeito. Eu não acreditava, e consequentemente nem prestava atenção, na capacidade do mercado ilegal de determinar comportamentos. Até então, meu foco estava voltado exclusivamente para as políticas de segurança, sociais, de justiça, e para a pressão da sociedade civil organizada como potenciais apaziguadoras daquele contexto. O padre Jaime Crowe fazia as caminhadas com a comunidade do Jardim Ângela até o cemitério São Luís desde 1996. Poderia essa mobilização, associada ao trabalho da polícia civil para prender matadores, explicar a queda?

Em 2001 passei a frequentar Diadema acompanhando as discussões sobre a nova lei de fechamento de bares. A medida, levada pela Câmara Municipal em diálogo com a prefeitura, proibia que esses estabelecimentos funcionassem depois das 23 horas e seria aprovada em 2002. A situação da violência na cidade era dramática. Em 1999, o município havia alcançado a taxa de 103 homicídios por 100 mil habitantes, que o levou a ser apontado como o lugar mais arriscado do mundo. Depois da entrada em vigor da lei dos bares, os casos imediatamente começaram a cair. Seria o resultado da nova legislação?1

Eu vinha pesquisando sobre violência na universidade, e os casos do Jardim Ângela e de Diadema eram interessantes e merecedores de atenção, mas uma coisa começou a me intrigar: a queda das taxas não se restringia a eles, era generalizada em todo o estado paulista. Depois de quarenta anos quase ininterruptos de crescimento, nos anos 2000 São Paulo passou a testemunhar uma queda contínua do número de assassinatos. Ano após ano essa redução seguiria firme e depois de duas décadas alcançaria mais de 80%, transformando a taxa de homicídios paulista na menor do Brasil.

Era um movimento imprevisível e fantástico, as curvas revelavam mudanças de comportamento que eu imaginava impossíveis a curto prazo. Os números simplificam a dimensão dos acontecimentos, que mexiam com questões profundas: era como se, de repente, pessoas incontroláveis, malvadas, perversas e cruéis fossem contagiadas pelo vírus do bom senso. Homens jovens, que se matavam e se vingavam de seus mortos, mudaram a forma de agir, passavam a pensar duas vezes, ponderar, como se tivessem trocado as lentes através das quais enxergavam a realidade. O comportamento foi melhorando ano a ano, as práticas já não eram tão selvagens como no passado recente, a vida alheia não era menosprezada como antes.

Como numa metanoia gradual, o pensamento dos matadores ia sendo desconstruído, ficando para trás, tornando-se ultrapassado. Em seu lugar era formada uma nova consciência e consolidada uma nova ética no mundo do crime. Em vez de matar, os potenciais assassinos tomavam atitudes alternativas, deixavam de ser divinos, de decidir sobre vida e morte, para se submeter a normas e obedecer a autoridades que antes não existiam. Era inacreditável.

Mesmo sem querer, testemunhei o processo dessa transformação mais de perto do que a maioria das pessoas. Além de estar fisicamente próximo, circulando por prisões e bairros violentos aos quais tinha acesso na medida do possível, eu estava sintonizado com o discurso deles, com suas narrativas sobre homicídios merecidos, sobre a lógica interminável das vinganças. Eu estava em contato constante com esse pensamento, que provocava ciclos intermináveis de violência e sugava inocentes como Paulo Enoc para dentro da engrenagem.

O mais surpreendente é que a solução emergiu exatamente do contexto em que os conflitos eram gerados. Homens presos e moradores de bairros violentos passaram a promover, em seu cotidiano, outra forma de existência das suas masculinidades ameaçadas. Uma nova ética do crime prevalecia sobre a honra pessoal dos matadores, que começaram a ser tachados de covardes, opressores e egoístas. Os homicidas e os vingadores, obcecados pelo próprio umbigo, não conseguiam se afastar e se colocar no lugar das mães das vítimas, raciocinar economicamente ou pensar na coletividade. Agiam como bichos acuados. E de onde só se esperava perversão e crueldade, surgiram as ideias para solucionar os desafios desse mundo caótico, dentre elas uma nova máxima: “É preciso estar do lado certo, mesmo numa vida errada”.

Uma construção mental coletiva desse tipo não surge da noite para o dia. Ela foi sendo moldada em diversas frentes até deslanchar na geração urbana nascida em São Paulo descendentes dos migrantes rurais, que temia morrer cedo, antes dos 25 anos. Ao longo dos anos 1970 e 1980 eles não tinham rumo, estavam perdidos, renegavam a cultura rural dos pais, mas não colocavam outra no lugar, restando um vazio limitante. Essa falta de perspectiva era mais evidente entre os homens, que então canalizavam suas forças para evitar ser esmagados pelo sistema, trilhando o caminho violento e suicida do crime. Como resultado, essa geração de homens-bombas era perseguida pelos justiceiros de seus bairros e pela polícia, que defendia os moradores dos bairros mais ricos.”

1. Bruno Paes Manso, Maryluci de Araújo Faria e Norman Gall, “Democracia 3: Do faroeste para a vida civilizada na periferia de São Paulo: Diadema”. Braudel Papers, São Paulo: Faap, n. 37, 2005. Disponível em: <docplayer.com.br/51643288-Democracia-3-do-faroeste-para-a-vida-civilizada-na-periferia-de-sao-paulo-diadema.html>. Acesso em: 12 jun. 2023.

 

 

“Diferentemente do que aconteceu no Rio, o movimento de dominação do PCC nos presídios paulistas foi consistente porque o projeto se propunha a beneficiar a coletividade criminal, e não apenas o interesse privado da facção e de seus membros. Mais do que um cartel empresarial, ao estilo dos grupos mexicanos e colombianos, o papel principal do grupo era atuar como uma agência reguladora do mercado do crime, para criar ordem e previsibilidade em um mundo violento e sem governo.

Eles elaboraram regras, divulgadas em estatutos, cartilhas e salves, e montaram uma estrutura eficiente para punir os desviantes, dentro e fora do sistema penitenciário. A autoridade do grupo não se impunha somente pela ameaça da violência física aos que desobedecessem às regras; ela era abraçada porque seu discurso fazia sentido, dialogava com os antigos e os novos valores do crime, o que era a chave de seu sucesso. Para melhorar, a nova ordem proporcionava ganhos reais: reduzia a imprevisibilidade dos negócios ilegais na mesma medida em que ampliava as oportunidades e as margens de lucro.

Os criminosos precisavam acreditar que as leis da facção os beneficiavam, caso contrário, não as obedeceriam. Afinal, eles já haviam se rebelado contra as leis ao se tornarem bandidos. O principal objetivo do primeiro estatuto do PCC, com dezesseis artigos, era organizar as relações entre os presos para reduzir a dor no cumprimento de pena e na vida no crime, que já era enorme. Mais do que imposições, o estatuto trazia normas que compunham uma ética que já existia, mas que não costumava ser respeitada porque as relações eram mediadas por armas e por um espírito competitivo letal que gerava desconfiança.

Uma das referências para a criação dessas regras foram os Dez Mandamentos.3 A pesquisadora Karina Biondi cita alguns paralelos entre as leis do crime e as leis sagradas: o terceiro mandamento, “Não usarás o nome do Senhor em vão”, serviu de inspiração ao sexto item do estatuto, em que o PCC proibia o uso do nome do partido para objetivos pessoais; o rigor com os “talaricos”, que flertam com as mulheres de outros presos, foi inspirado no décimo mandamento “Não cobiçarás a mulher do próximo”; e o segundo e o quinto itens do estatuto “Lealdade, respeito e solidariedade acima de tudo ao Partido […] para que não haja conflitos internos” eram uma referência ao primeiro mandamento: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”.

As leis buscavam produzir a comunhão entre os integrantes da irmandade e, portanto, outros paralelos religiosos se faziam presentes. Assim como um convertido, o novo filiado da facção precisava ser batizado. O ingresso no PCC não era como um cargo qualquer, nem um novo emprego. Envolvia compromissos transcendentes, a adesão a uma nova consciência. No batismo, o novo integrante assumia a defesa da instituição e das leis do crime, que constavam no estatuto e eram compartilhadas por salves. Era uma espécie de renascimento, já que a partir de então o indivíduo deixaria de agir exclusivamente de acordo com suas próprias vontades e objetivos e se sujeitaria aos propósitos do grupo; sua própria vida poderia ser colocada em risco em nome da causa. Para se certificar de que o novo irmão compreendia a seriedade da aliança, ele devia ser indicado por padrinhos, integrantes mais antigos que se responsabilizavam por seu proceder e que o ensinavam a caminhar “pelo certo” na vida errada. Era uma inovação que diferenciava o PCC do CV, em que o ingresso se assemelhava a uma admissão em um emprego no tráfico vinculado ao território.

Era preciso ter o tal do “procedimento”, que significava seguir os costumes e a ética do crime. As novas regras, contudo, não seriam respeitadas se as pessoas não as conhecessem ou se os desobedientes não fossem punidos, e elas precisavam pegar para invadir o cotidiano e de fato alterar os costumes. Com esse objetivo, o PCC criou um sistema de comunicação eficiente para disseminar suas leis, aparelhado com uma máquina azeitada de punição. O papel central da comunicação e da punição é perceptível pela escolha dos nomes das funções mais importantes na hierarquia da facção, como “torres”, “sintonias” e “disciplinas”. Os torres usavam telefones para ditar as regras aos sintonias, espalhados pelos presídios e quebradas. Os sintonias transcreviam as regras e ditavam pessoalmente ou por telefone a outros irmãos, que as copiavam e repassavam sucessivamente, multiplicando a mensagem de forma veloz. Era um grande sistema de rádio em operação para todos ficarem sincronizados com as normas coletivas.

Já os disciplinas deviam cobrar dos criminosos presos e soltos, in loco, o cumprimento da ética criminal. Os debates ajudavam a mediar conflitos nos territórios e prisões, simulando um sistema informal de justiça com espaço para acusação, defesa, análise dos indícios e provas e prolação de sentenças. Em vez de pena, na linguagem do crime, quem errava tinha que assumir as “consequências”, que podiam consistir até em assassinato, em ocorrências muito graves. Os sintonias e os disciplinas formavam as células do PCC espalhadas pelas novas unidades penitenciárias construídas depois de 1995, durante a gestão do governador Mário Covas.

O governador tinha se comprometido a criar um novo modelo penitenciário em substituição ao Complexo do Carandiru, e, para isso, investiu na construção de pequenos presídios espalhados pelo estado, cada um com lotação máxima de oitocentas pessoas e tecnologias que diminuíam o contato entre os presos e os carcereiros. Parecia razoável. As cerca de trinta unidades penitenciárias que existiam até então se multiplicaram em mais de 180 em três décadas. Os presídios, contudo, continuaram superlotados e em péssimas condições, além de distantes das famílias dos detentos. O PCC soube aproveitar as deficiências do sistema para infiltrar sua ideologia em nove de cada dez unidades, promovendo a autogestão para impor suas regras e diminuir o sofrimento e o conflito entre os presos. Também ajudava no transporte dos familiares, em viagens de ônibus que podiam durar oito horas. “Crescer nas brechas do sistema” era o lema.

A ponte ligando a facção dentro das prisões às ruas terminou de ser construída no fim dos anos 1990, com os telefones celulares e o crescimento acelerado da população carcerária. Entre os anos de 1990 e 2020, mais de 1 milhão de pessoas passaram por uma de suas unidades. Quanto maior a quantidade de presos, mais crescia o tamanho da massa de manobra à disposição dos chefes e o volume de conexões entre as prisões e as ruas. O discurso pregando o bom senso e o fim da competição selvagem entre bandidos foi gradualmente se espalhando.

Sem que eu tivesse planejado, acompanhei a chegada de uma célula do PCC ao Grajaú, bairro pobre do extremo sul de São Paulo. A história envolveu alguns dos matadores que eu tinha entrevistado em 1999, Wolverine, o ex-humano, e seus aliados Zé Botinho e Baixinho — apelidos que eles mesmo sugeriram para serem identificados nas entrevistas que me concederam. Eles foram assassinados em 2006 pelos irmãos do PCC que chegavam no território. A execução, nesse caso, não foi precedida por um debate. Meus entrevistados faziam parte do grupo de matadores que estabeleciam ordem no bairro, e, por isso, estavam sempre envolvidos em conflitos com os vizinhos. Eles foram chamados para negociar com o disciplina da quebrada, mas tratava-se de uma armadilha. Ao chegar ao local, foram amarrados, mortos, e os corpos foram colocados dentro de um carro que acabou incendiado. Eu soube disso porque tive acesso aos depoimentos que Flamarion, outro integrante do grupo de matadores, deu à polícia na condição de testemunha protegida. Flamarion, por sua vez, foi executado em 2007 na rua de casa e morreu em frente ao filho de sete anos.

A morte de Flamarion e de seus amigos tinha o objetivo de eliminar os focos de resistência e as velhas rivalidades entre bancas e indivíduos das quebradas violentas, assim como a memória de tantas vinganças. Para imperar a igualdade e a justiça no crime, as divindades matadoras não podiam mais existir. A legitimidade do PCC também advinha da percepção de que o florescimento dos novos valores exigia certos sacrifícios. A presença dessas células da irmandade, que já dominavam os presídios, foi se tornando cada vez mais natural nos bairros, assim como os debates para mediar conflitos. Ninguém estava acima das leis do crime. O PCC inovava na gestão do cotidiano ao exercer o papel de uma agência reguladora do mercado, atuando diretamente nas prisões e nas quebradas. Mesmo ilegais, agora havia regras ditadas por uma estrutura inteligente e durável que não estava ligada a nomes ou pessoas, mas a funções. A vã tentativa de impor a lei não dependia mais da vontade de matadores nem de seus preconceitos, idiossincrasias e prepotência.

Como a estrutura não dependia de indivíduos, o isolamento ou a morte de um sintonia ou disciplina não afetava seu funcionamento, já que outro irmão podia ser colocado no lugar para cumprir a mesma tarefa. Além de atuar para que as leis fossem cumpridas, os sintonias podiam ter missões específicas e atividades referentes ao varejo do tráfico de drogas (a arrecadação de dinheiro para bancar a estrutura burocrática da facção), à gestão dos novos filiados, à relação com criminosos de outros estados ou países, à obtenção de transporte para a visita de familiares a presídios, à contratação de advogados, entre outros trabalhos. A estabilidade estrutural e a produção de obediência fizeram com que o mercado criminal se tornasse previsível e que seus participantes progredissem. A competição entre os empreendedores ilegais não era mais disputada a balas. A irmandade assumiu o uso da força ampliando as oportunidades de negócios e o networking da nova rede criminal.”

3. Karina Biondi, “Tecendo as ramas do significado: As facções prisionais enquanto organizações fundantes de padrões sociais”. In: Miriam Pillar Grossi, Maria Luiza Heilborn, Lia Zanotta Machado. Antropologia e direitos humanos. Florianópolis: Nova Letra, 2006.

A fé e o fuzil: Crime e religião no Brasil do século XXI (Parte I), de Bruno Paes Manso

Editora: Todavia

Opinião: ★★★☆☆

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ISBN: 978-65-5692-520-2

Páginas: 304

Sinopse: Depois de esmiuçar o mundo do crime no Rio de Janeiro em A república das milícias, Bruno Paes Manso volta com um mergulho em outra dimensão da criminalidade no Brasil. A partir de depoimentos de ex-criminosos que tiveram a vida transformada pelo contato com a religião, o autor desconstrói estigmas associados às novas denominações evangélicas e mostra como o crescimento desses grupos responde a anseios profundos de uma população exposta a todo tipo de violência.



“(...) Os religiosos chamam essa mudança de “metanoia”, termo que não fazia parte do meu vocabulário, mas que passei a ouvir com relativa frequência entre os evangélicos, assim como tantas outras palavras. O vocábulo tem origem grega e aparece no Novo Testamento, sendo normalmente traduzido como arrependimento. Essa adaptação, porém, é imprecisa e não contempla o significado em toda sua abrangência. A metanoia representa uma mudança de consciência e de comportamento que não acontece por ameaça de punição, nem por mera pressão social, mas por convicção pessoal, em decorrência de uma nova crença que faz o sujeito passar a enxergar o mundo de outra forma e a agir conforme ela. Depois da metanoia, é como se o indivíduo nascesse novamente ao acreditar em uma outra verdade e viver de acordo com ela. O processo é radical e quase sempre envolve uma religião. Para ocorrer, a pessoa deve ser capaz de abandonar as crenças que a definiam até então e seguir em direção a um novo futuro, modulado por outro programa mental. É como se um espírito diferente assumisse o controle do corpo convertido, mudando os comandos sobre seu raciocínio, sentimentos e ações. (...)

Havia um mecanismo mental sofisticado que permitia a viabilidade daquelas transformações, apoiado por um aparato discursivo, institucional e metafísico criado para legitimá-las. Envolvia arrependimento das pessoas em apuros, abandonadas, sozinhas, e a compreensão verdadeira de que sua postura inadequada diante da vida era uma das causas do seu infortúnio. As igrejas pentecostais abriam as portas para essas pessoas se integrarem a uma nova rede, ofereciam verdades para transformar os desencaixados em cidadãos de bem. Para os agraciados com o dom de acreditar nessas verdades, havia a chance de se reinventar de modo a seguir as regras e as expectativas da sociedade. A mudança, no entanto, não podia ser meramente cosmética. Dependia de um arrependimento verdadeiro que devia se transformar em ações concretas, como pedir perdão a Deus, aos que foram prejudicados pelos erros passados e perdoar a si mesmo. A veracidade desse sentimento era a garantia de que os erros não se repetiriam. Do ponto de vista formal, o perdão também servia para anistiar os pecados acumulados, aliviando assim a consciência e fortalecendo o amor-próprio. (...)

Acreditar, contudo, não é algo automático. Mesmo quando queremos, muitas vezes simplesmente não conseguimos. Em compensação, quando o contrário acontece, a realidade pode vir a ser enxergada de outra forma, como se a pessoa colocasse uma nova lente sobre os olhos e a partir de então processasse as informações em uma outra consciência. Na metanoia, a pessoa renasce e torna a viver uma encarnação no mesmo corpo, sem precisar morrer.”

 

 

“No geral, eu via todas essas mudanças com bons olhos. Quase sempre os convertidos se tornavam pessoas melhores, porque conseguiam diminuir a voracidade de seu ego para pensar no próximo. No mercado de crenças havia excelentes pacotes de conversões para reduzir o sofrimento e as angústias da vida. Essas transformações dependiam da capacidade das pessoas de acreditar cegamente na verdade sagrada: elas se libertavam da identidade que as fazia sofrer, mas se aprisionavam em outra. Uma das características dessas mudanças, contudo, era o foco nos indivíduos e a falta de atenção aos mecanismos do sistema que não paravam de produzir pecadores. Como se as engrenagens não demandassem reparos, o mundo não precisasse de reformas, apenas de conversões em massa. As mudanças deveriam acontecer na consciência de cada um, para que conseguissem suportar os inevitáveis dissabores da vida.

Por causa disso, os temas morais é que tinham destaque, para os quais as leituras da Bíblia indicavam o caminho, e não os debates técnicos sobre políticas públicas e os rumos do país. É claro que existem diferentes abordagens, conforme a denominação e seu histórico, mas a chegada dos pentecostais transformou o debate, que passou a girar em torno das pautas de costumes que, em tese, numa república democrática, deveriam ficar restritas ao universo privado. Nesse sentido, o que aconteceria se os evangélicos pentecostais se tornassem a maioria do eleitorado? A crença em tantas verdades absolutas poderia criar uma cisão entre eles e as pessoas que não professam a mesma fé? Eles poderiam ser manipulados por religiosos que levassem para o debate político temas morais explorando a ideia de uma guerra santa?”

 

 

“Autoridade, ordem, propósito, redes de apoio; de repente, uma nova forma de poder definia a direção do futuro do Brasil. Quanto mais popular e abrangente, mais a mensagem se normaliza e passa a fazer parte da cultura. Pode ser vista no show sertanejo ou na final do campeonato de futebol, na celebração dos gols e das vitórias mais importantes, quando o crente aponta os dedos indicadores para cima, como se compartilhasse com Deus os sucessos de sua vida.”

 

 

“Eu achava que as discussões morais que brotavam a partir da Bíblia eram razoáveis. Os princípios gerais de amor ao próximo, no Antigo e no Novo Testamento, assim como os exercícios de orações e de jejum para controlar o ego e os desejos pessoais, na busca de uma vida em comunhão, me soavam um caminho seguro para a civilidade. Nas últimas décadas, contudo, houve uma invasão dessas crenças no debate público. Os dogmas passaram a ser usados para manipular e estigmatizar políticas públicas e seus defensores, interditando debates importantes, atacando a ciência e a objetividade. O debate em torno do aborto é um exemplo emblemático. Compreensivelmente, os religiosos trazem para a conversa a defesa da vida do feto e o problema da objetificação do sexo e da mulher. A escolha pelo aborto não é banal. Em compensação, não é aceitável fechar os olhos para a realidade e criminalizar as mulheres que fazem essa escolha difícil, política sustentada no Brasil pelo lobby religioso. O tabu em torno da descriminalização do aborto já vinha com os católicos, porém, a partir da popularização do pentecostalismo, o uso do sagrado se banalizou, mobilizado pelo discurso da guerra santa, demonizando adversários.

A popularização das redes sociais e a fragilização do jornalismo tiveram papel importante nesse processo. As pautas de interesse público, que costumavam ser filtradas por uma elite em tese comprometida com princípios republicanos — e na prática também com os interesses econômicos de seus financiadores —, foram esvaziadas pela diversidade de assuntos e interesses vindos de influenciadores, agrupados nas mais diversas bolhas. Havia aspectos positivos na novidade, que permitia uma comunicação mais descentralizada e democrática. O modelo de negócio dos grandes conglomerados de tecnologia, contudo, ajudou a produzir efeitos colaterais importantes e a piorar a qualidade dos debates políticos. Os discursos mais radicais, que reforçam as crenças das bolhas, mesmo sem respaldo nos fatos, tornaram-se populares, mediados por algoritmos que os impulsionam. Eles seduzem não apenas por pregar o ódio a terceiros, mas por levar os participantes do grupo a acreditar que travam uma batalha decisiva, com propósitos definidos.11 O novo contexto das redes sociais afetou o debate dos evangélicos e religiosos. Discursos alarmistas, que enxergam o demônio em todos os cantos, passaram a se sobressair às mensagens de comunhão e pacifismo de Jesus Cristo. Até pregação armamentista ganhou respaldo nos textos sagrados.”

11. O papel das redes sociais na criação de propósito de luta é debatido com riqueza no livro de Max Fisher, A máquina do caos (São Paulo: Todavia, 2023).

 

 

“As ondas subsequentes ao processo de urbanização, que investigamos neste livro, seriam decorrência da tensão provocada pela mistura do passado brasileiro com a expectativa de futuro nas cidades. Diante dos desvalidos abandonados no meio do caminho por governos frágeis e ineficientes, a própria sociedade precisou descobrir maneiras de atenuar a miséria e sobreviver. Com o passar do tempo, duas soluções foram adotadas para organizar a vida caótica das cidades: a fé e o fuzil. Quanto à primeira, o fortalecimento da autoridade religiosa é representado pela curva do crescimento dos pentecostais, a partir dos anos 1950. Com relação à segunda, pelo aumento da violência policial e dos homicídios nos bairros urbanos pobres, a partir dos anos 1980, e pela disseminação das facções de base prisional e das milícias, a partir dos anos 1990 e 2000.

A formação do primeiro tsunami, o processo caótico de urbanização do Brasil, está associada à história rural do país, uma espécie de feudalismo empobrecido que antecede a modernização capenga que viria depois. Durante as primeiras décadas da República, os donos de engenhos e casas-grandes herdadas do período colonial e escravista se reinventaram para manter a influência dos coronéis no centro da política nacional. Apoiados pelos governadores da República, eles continuaram fortes com suas milícias formadas por capangas. Travavam disputas violentas com outras parentelas, donas de fazendas vizinhas, mantendo o poder como algo a ser sustentado à base das balas. As rixas transcendiam gerações em rivalidades movidas por ciclos de vingança que se perpetuavam na defesa da honra familiar.6

Nos arredores das fazendas, uma população miserável de trabalhadores sazonais sobrevivia vagando pelas grandes propriedades como parceiros, arrendatários ou agregados. Moradores de casas de taipa ou de palha, estavam sujeitos aos favores e à boa vontade dos poderosos numa relação de dependência com eles. Os vaqueiros e tropeiros formavam a chamada “civilização do couro”, cuja renda também vinha dos donos de terra e de gado. A maioria das pessoas comia o que produzia em suas roças, como milho, mandioca e feijão. O dinheiro quase não circulava e as alternativas de trabalho eram restritas à terra. A monocultura, a elevada concentração de propriedade, as técnicas de produção ultrapassadas e o mercado incipiente tornavam a fome, a mortalidade infantil e a baixa expectativa de vida alguns dos problemas mais graves da região.

Existia, porém, um legado ainda mais cruel deixado pelo regime escravista: a deterioração do imaginário na relação entre patrão e empregado, entre classes e raças, que transformava o trabalhador braçal em mero objeto, propriedade para produzir riqueza. A cor da pele era um elemento importante na construção do estigma, assim como a baixa educação formal. O uso da violência se tornou sinônimo de autoridade nas relações de poder, como um instrumento para domesticar e criar obediência — quase sempre de pessoas pobres, parcamente alfabetizadas e negras.7

No universo agrário nordestino, o catolicismo mediava o duro convívio entre quem mandava e quem obedecia. Legitimava a autoridade dos poderosos, preservava a tradição, fortalecia os laços familiares e de vizinhança por meio dos seus sacramentos e festas. A Igreja viabilizava a caridade, aliviando a consciência dos cristãos que doavam, ao mesmo tempo que diminuía o desespero e criava um sentimento de gratidão dos que recebiam. A Igreja também ajudava o Estado, proporcionando educação nos colégios religiosos, saúde no atendimento das santas casas, ordem por meio da catequização indígena e dos registros de nascimento, batismo, casamentos e óbitos.

O poder girava em torno das paróquias e das fazendas, com os capelães se subordinando aos donos das terras, dependentes dos coronéis para realizar suas obras e festas. Os festejos católicos tinham um papel importante nessa acomodação cultural. Celebravam os santos, reunindo o povo nas praças, em procissões e novenas, como nas festas juninas de são João, são Pedro e santo Antônio, que persistiram como as mais populares do Nordeste. Os santos de devoção e as festas ainda podiam ser associados a entidades indígenas e africanas, resultado do sincretismo próprio do catolicismo nacional, como nas festas de Nosso Senhor do Bonfim e de Iemanjá, em Salvador.

Dessa forma, ao mesmo tempo que legitimava o status quo, paradoxalmente a religiosidade criava a sensação de pertencimento em uma sociedade marcada pelo abandono. Os santos e as entidades animistas tinham um papel importante na relação dos crentes com o sobrenatural. Eles e os fiéis formavam uma espécie de irmandade que se ajudava, com os primeiros prestando favores mágicos aos mais necessitados em troca de promessas, comidas, perfumes.8 Era uma relação sem cerimônia, que podia ser acessada para resolver problemas como falta de chuva, de comida, cura de doenças, questões sentimentais. As novenas para são José, por exemplo, eram associadas à garantia de chuvas e bonança na lavoura; a imagem de santo Antônio servia para as mulheres arrumarem marido; e as benzedeiras, com suas plantas e rezas, supriam o papel dos agentes de saúde diante de um Estado inexistente.

A Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, romperia com as elites agrárias e daria início ao processo de industrialização nacional. Em 1940, durante a ditadura do Estado Novo, Vargas concedeu anistia a todos os cangaceiros que se entregassem, e diversos deles baixaram as armas. O banditismo rural dos cangaceiros contra a opressão do sistema coronelista durou cerca de meio século. Diante da decadência no campo, não havia mais motivos para seguir lutando. Corisco, sobrevivente do bando de Lampião, não quis se entregar e foi executado por uma volante em uma fazenda no município de Barra do Mendes, na Bahia. Era o último da espécie. Depois de sua morte, o cangaço desapareceu do mapa para se eternizar nos livros de história e nos cordéis. Com o fim dessa era, novas ideias começavam a ser sopradas nos ouvidos dos brasileiros, que as escutavam com atenção. A violência redentora e a rebeldia do cangaço, a imobilidade do mundo agrário, o poder das oligarquias e as barreiras para a ascensão social podiam ser deixadas para trás. Outros caminhos para a vida estavam irrompendo e prometiam superação. Bastava comprar um lugar no pau de arara e enfrentar as centenas de quilômetros que separavam o campo das cidades do Sul e Sudeste do Brasil. Surgia uma janela para escapar da jaula que aprisionava os moradores pobres da zona rural a um futuro fadado a ser miserável e violento.”

6. A discussão política do período da República Velha está presente no livro Coronelismo, enxada e voto (São Paulo: Companhia das Letras, 2012), de Victor Nunes Leal.

7. O papel da escravidão e da violência na história da formação do Brasil vem sendo tratado por Jessé Souza em sua releitura de clássicos como Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda), Os donos do poder (Raymundo Faoro) e Casa-grande e senzala (Gilberto Freyre). Ver A elite do atraso (Estação Brasil, 2019) e “Elias, Weber e a singularidade cultural brasileira”. In: Leopoldo Waizbort. Dossiê Norbert Elias (São Paulo: Edusp, 1999). A relação entre o poder agrário e a religiosidade também é discutida no clássico Coronelismo, enxada e voto, de Victor Nunes Leal, op. cit.

8. Em seu diálogo intelectual com Max Weber, em Raízes do Brasil (26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995), Sérgio Buarque de Holanda contrapõe a separação entre sagrado e profano, características do protestantismo ascético dos Estados Unidos, ao catolicismo brasileiro, popular, sincrético, rico em mediações entre o homem e Deus, reproduzindo uma situação análoga à estrutura de mediação de favores do cotidiano, que definiria o éthos cordial, plástico e emocional do brasileiro. Ver também “Faces do catolicismo brasileiro contemporâneo”, de Faustino Teixeira, em Revista USP, São Paulo, n. 67, pp. 14-23, 2005.

 

 

“Nessa geração das periferias havia um vazio a ser preenchido que a colocaria em choque com a geração dos seus pais e avós. Os valores desses jovens nascidos em São Paulo não eram os mesmos dos migrantes que vieram para a capital acreditando nas oportunidades das cidades. A esperança forjada no ambiente rural não fazia mais a cabeça de Alexandre e de seus amigos, nascidos na realidade opressora e violenta das periferias. Eles negavam a cultura dos seus ancestrais. De que adiantava conhecer a terra, o clima, os ciclos das plantações, as tradições e as festas dos santos em São Paulo? Os hábitos e costumes rurais eram menosprezados, considerados anacrônicos. O estigma pesava sobre os nordestinos no Sudeste. “Baiano” e “paraíba”, respectivamente em São Paulo e no Rio, eram adjetivos associados à ignorância e ao atraso.

Os descendentes dos migrantes nordestinos, nascidos nas periferias, tinham o desafio de inventar para si uma nova identidade urbana em meio a uma sociedade violenta, implacável com quem não tinha dinheiro para sobreviver, uma verdadeira máquina de humilhação de pobres. O crime ofereceu um caminho para a criação dessa identidade masculina urbana e periférica. Permitia extravasar a raiva, responder com violência, na mesma moeda, à perversidade do sistema, e recusar ser atacado na honra e masculinidade, ainda que pagando com a vida e a liberdade. Eles morriam de cabeça erguida, ao contrário dos seus antepassados, que aceitavam as regras do jogo, sendo humilhados por pessoas que não reconheciam sequer sua humanidade.

O crime também era uma afronta ao sistema por oferecer um atalho para a aquisição de bens materiais aparentemente inacessíveis e prestígio social. Usando a violência, os criminosos podiam participar da sociedade de consumo, mesmo que por alguns instantes. Essa possibilidade se conectava aos valores hedonistas da sociedade burguesa sem religião; era um hedonismo violento, que não se preocupava com o que seus desejos podiam provocar nas vítimas de seus crimes.

A crise da religiosidade ajudava a aumentar o cinismo: se Deus não existe e o sistema pretende exterminar os pobres, por que não dar o troco? Sem as amarras religiosas, o que impediria alguém de roubar, trapacear, assaltar e se vingar da violência no mundo? Essa leitura da realidade e das leis, estimulada pelo ódio e pela cultura do crime, liberava moralmente muitos jovens para buscar o prazer em carros e motos potentes, roupas chiques, sexo e drogas, o que dificilmente conseguiriam com um emprego comum. O canto da sereia atraiu Alexandre e seus amigos. Para seguir esse caminho era preciso negar a humanidade do outro, o que era mais fácil para quem sentia a própria humanidade negada. Assim cresceram os adeptos da “vida louca”, os “bichos soltos”, sem remorso, que preferiam viver dez anos a mil em vez de mil anos a dez.

Quando o crime começou a crescer, principalmente depois da crise econômica dos anos 1980, houve um choque entre essas duas gerações: os migrantes, que chegaram do campo, e seus descendentes, nascidos nas periferias. Em São Paulo esse conflito foi representado por dois personagens: os justiceiros, que carregavam os valores dos primeiros; e os bandidos, que simbolizavam a revolta antissistema dos segundos. A absoluta maioria dos justiceiros era formada por pessoas vindas da zona rural, que diante do crescimento do crime organizaram-se para limpar seus bairros dos jovens que roubavam a vizinhança. Durante os anos 1980, segundo estimativas, os justiceiros chegaram a mais de mil, atuando em todos os cantos da metrópole. Matavam para defender o trabalhador e organizar seus bairros, varrendo quem não respeitava as regras.

Rivadávia Serafim da Silva liderou na zona norte um grupo suspeito de cometer duzentos homicídios entre 1983 e 1987. Nascido em Pena Forte, no Ceará, tinha 1,60 metro e pesava cinquenta quilos. Jonas Félix da Silva, que matava no Jardim Ângela e em outros bairros da zona sul, era de Limoeiro, em Pernambuco. Também eram pernambucanos Gilvam Brás da Silva e Francisco Alves de Souza, que atuavam em Guarulhos, e Ivanildo Gomes de Freitas, o Zoreia, que exterminava em Osasco. Francisco Vital da Silva, o Chico Pé de Pato, era de Campo Alegre de Lourdes, no sertão da Bahia. Recebeu o apelido porque andava com os pés abertos e ganhou status de herói ao dar entrevistas no programa de rádio de Afanásio Jazadji, que chegou a bater a marca de 1 milhão de ouvintes. Sua popularidade nos anos 1980 era tanta que o termo “pé de pato” se tornou sinônimo de justiceiro.

Muitas vezes havia protestos em frente aos fóruns ou delegacias quando eles eram presos, e, não raro, policiais e justiceiros faziam dobradinhas. Dizia-se que os pés de pato sabiam diferenciar os bandidos dos trabalhadores por morarem todos no mesmo bairro, o que evitava que os policiais, que associavam pobreza com a bandidagem e não sabiam diferenciar bandido de trabalhador, assassinassem inocentes. Também havia uma diferença entre a lógica de extermínio de policiais matadores e de justiceiros. Os homicídios da polícia eram em defesa de uma classe. Já os justiceiros defendiam os valores de sua geração, ligados ao trabalho duro. O inimigo de ambos, contudo, estava sintetizado no estigma do bandido.”

 

 

“As chacinas ganhavam destaque na imprensa paulista na década de 1990 e os casos eram contabilizados e investigados por uma delegacia especializada em múltiplos homicídios. Em 1994, foram registradas 34 ocorrências em toda a região metropolitana. No ano seguinte, 49, número que se manteve relativamente estável até 1998, quando saltou para 89, que se repetiu em 1999. O recorde de 95 ocorrências foi registrado no ano 2000.

Foi nessa época que comecei a investigar mais de perto os homicídios em São Paulo. Era o ano de 1999, e eu trabalhava na revista Veja, em que fui pautado para fazer uma matéria sobre chacinas. Entrevistando os matadores, compreendi que os assassinatos que eles praticavam não estavam associados meramente a ignorância, falta de autocontrole, maldade, loucura ou algum tipo de perversidade. A motivação para suas ações vinha de uma crença e um discurso que tinham sido formados no caos, na ausência de leis, no abandono institucional, no excesso de armas, e já tinham sido assumidos por pessoas que deixaram o mundo do trabalho para buscar o sustento no crime, apropriando-se de uma identidade marginal. Ademais, em um meio repleto de homicidas, matar era visto como uma ação necessária e legítima, e mesmo a vingança era entendida como uma maneira de impor respeito. Essa lógica tinha um efeito multiplicador implícito que vinha fazendo os assassinatos crescerem havia quarenta anos. Mais uma vez, foi preciso ouvi-los de igual para igual, escutá-los com atenção, levar em conta suas explicações para enxergar sua humanidade.

As longas conversas que tive com diversos matadores mostraram, para minha surpresa, que pessoas comuns, como Alexandre, Marcelinho, Edson e tantos outros, embarcavam nesses caminhos acreditando no propósito e no sentido de suas escolhas. Os autores de chacinas — alguns diziam ter perdido a conta de quantos mataram — também justificavam seus crimes a partir de uma ética local: como matadores rivais e criminosos nos arredores faziam o mesmo, não havia escapatória, eles precisavam entrar no conflito. Matar era a maneira mais eficiente de não morrer, e eles não matavam inocentes, apenas os que mereciam. A vida passava a girar em torno dessas disputas fatais das quais eles não conseguiam sair, como jovens guerreiros se autodestruindo na desordem.

Quando comecei as entrevistas, eu não esperava encontrar tamanha convicção em pessoas com tantos assassinatos nas costas. Eles acreditavam na justeza de seus atos. Numa conversa especialmente reveladora, pedi que o entrevistado informasse o apelido pelo qual gostaria de ser identificado, já que seu nome não poderia ser mencionado. Ele sugeriu “Wolverine”, o super-herói membro do grupo X-Men, criado e publicado pela Marvel, uma ficção darwinista sobre mutantes que ganham diferentes tipos de superpoderes no processo de evolução natural. O Wolverine da minha reportagem se chamava César, o que só descobri anos depois, quando ele já havia sido assassinado. Em 1999, o ano da entrevista, ele tinha 25 anos, morava no Grajaú, na periferia sul de São Paulo, e tinha iniciado sua vida de assassinatos no começo daquela década. Seus pais eram atenciosos, ele havia concluído o ensino médio e trabalhava com transporte alternativo. Era um jovem bonito, bem-vestido, vaidoso, que usava um brinco de brilhante na orelha.

César cometeu o primeiro homicídio para se vingar da morte de seu melhor amigo durante um jogo de futebol de várzea. Inconformado com a covardia no campo, acompanhou seus colegas matadores no justiçamento do assassino, mas precisou continuar no grupo para se proteger dos adversários e logo cometeu o segundo homicídio. Novas tretas e vinganças surgiram, e ele nunca mais parou. Nove anos depois, era incapaz de dizer quantos já tinha matado, inclusive em inúmeras chacinas. Com o tempo, percebi que os X-Men eram uma metáfora que ajudava a entender como esses matadores enxergavam o mundo. A disposição para matar era um superpoder que eles adquiriam, uma evolução que os tornava quase divinos. Os revólveres e as balas eram uma extensão do seu corpo, capazes de torná-los imbatíveis, como as garras e a força do Wolverine da ficção. Ao se transformar em matador, eles viravam ex-humanos, cuja vida passava a girar em torno da disputa com outros superpoderosos, também dispostos a matar. Era uma guerra entre ex-humanos mutantes.3 O resto da humanidade, os que precisavam conviver com eles em seus bairros, eram chamados de zé-povinho. (...)

Discursos e crenças homicidas como aquelas apareciam na desordem. A convicção desses guerreiros do caos surgia em um meio sem agências mediadoras capazes de garantir previsibilidade, o que costumava acontecer em um mercado ilegal, cheio de armas e altamente competitivo. Quanto à tolerância velada de parte da sociedade e das instituições a esses assassinatos, apareceram novas perguntas: Como reverter o quadro? Será que apenas o sistema de justiça e a punição dos homicidas poderia mudar essa situação? Seria possível produzir outras verdades, capazes de reprogramar as mentes e mudar os comportamentos homicidas? Por que as políticas de segurança pública e o sistema de justiça não estavam funcionando? Haveria espaço para mudar comportamentos a partir da construção de um discurso que convencesse os matadores a pararem de se matar? Um novo pacto era verdadeiramente viável ou mera ingenuidade utópica? Eu achava que essas perguntas levariam muito tempo para ser respondidas e fui para a academia, onde eu poderia pesquisar com o prazo menos apertado do que o de um jornal. Só não esperava ver as crenças mudarem e os assassinatos caírem enquanto eu pesquisava. Eu me sentia dentro de um laboratório gigante.

A transformação começou lentamente no ano 2000, com o registro das primeiras quedas nas taxas de homicídios no estado de São Paulo. Como podiam ser residuais, então era preciso aguardar mais. No ano seguinte, entrei no mestrado para estudar o crescimento da violência nos quarenta anos anteriores. Os homicídios paulistas, porém, não pararam mais de cair. Testemunhei o surgimento e o fortalecimento do PCC, que proibiu a vingança e criou formas de as regras do crime serem obedecidas. Ao mesmo tempo, assisti aos pentecostais crescerem mais do que nunca, promovendo milhares de conversões no mundo do crime. As metanoias me impressionaram justamente por apresentar novos propósitos e narrativas que eram aceitas e reproduzidas nas rádios e igrejas. A violência deixava de ser uma opção natural.

Tanto o PCC como as igrejas pentecostais são instituições criadas pelos pobres, para os pobres, que produziam novos discursos capazes de reprogramar as mentes. O novo Brasil pobre e urbano começava a inventar formas de se governar. Elas nasciam da miséria, nas ruas esburacadas das periferias, nas igrejas evangélicas e nas prisões, e eram maneiras alternativas de gerar ordem e propósito, que, nas décadas seguintes, ajudariam a definir o futuro brasileiro.”

3. Por causa dessa metáfora, dei o nome do meu primeiro livro de O homem X: Uma reportagem sobre a alma do assassino em São Paulo (Rio de Janeiro: Record, 2005).