Editora: Penguin – Companhia das letras
ISBN: 978-85-63560-06-3
Tradução: Rosa Freire D’aguiar
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 616
“Na verdade, é
justo que se faça grande diferença entre os erros que vêm de nossa fraqueza e
os que vêm de nossa maldade.”
“Mas qual! Jovens
e velhos abandonam a vida da mesma maneira. Dela ninguém sai de outro jeito
senão como se tivesse entrado naquele instante, acrescentando-se a isso que não
há homem tão decrépito que não pense ainda ter vinte anos no corpo enquanto
enxergar Matusalém diante de si.”
“Eu preferiria
passar por louco ou por insensato, contanto que meus males me agradem ou ao
menos que eu não os veja, a ser sensato e enraivecer-me.” (39 Horácio,
Epístolas, II, II, 126-8).
“Entre as festas e
a alegria, tenhamos sempre esse refrão da lembrança de nossa condição, e não
nos deixemos arrastar tão fortemente pelo prazer que por vezes não nos volte à
memória de quantos modos essa nossa alegria está na mira da morte, e por
quantos golpes ela nos ameaça. Assim faziam os egípcios, que no meio de seus
festins e entre seus melhores banquetes mandavam vir a anatomia seca (uma múmia)
de um homem segura por alguém que lhes gritava: “Bebe e alegra-te, pois morto
serás como este”, para servir de advertência aos convivas.”
“Assim como
experimentei em várias outras ocasiões o que diz César, que as coisas costumam
nos parecer maiores de longe que de perto.”
“Conduzidos pela
mão da natureza, por uma suave ladeira e como que insensível, pouco a pouco, de
degrau em degrau nos envolvemos nesse estado miserável a que nos acostumamos,
assim como não sentimos nenhum abalo quando a juventude morre dentro de nós, o
que, no fundo e na verdade, é morte mais dura que a morte completa de uma vida
languescente e que a morte de velhice.”
“Nossa religião
não teve fundamento humano mais seguro que o desprezo pela vida. Não só o
argumento da razão nos convida a isso, pois por que temeríamos perder uma coisa
que, perdida, não pode ser lamentada? Mas, ademais, já que estamos ameaçados
por tantas maneiras de morte, não é melhor enfrentar uma do que temê-las todas?
Que importa quando será, já que é inevitável? Àquele que dizia a Sócrates: “Os
trinta tiranos te condenaram à morte”, ele respondeu: “E a natureza a eles”.
Que tolice nos atormentarmos no momento em que se dá a passagem à isenção de
todo tormento! Assim como nosso nascimento nos trouxe o nascimento de todas as
coisas, assim nossa morte trará a morte de todas as coisas. Por isso é
igualmente loucura chorar porque daqui a cem anos não viveremos mais, assim
como chorar porque não vivíamos há cem anos. A morte é a origem de outra vida: custou-nos
entrar nesta aqui, e choramos; da mesma forma, ao entrarmos nos despojamos de
nosso antigo véu. Nada pode ser importante se o é só uma vez. (...)
A natureza nos
força a isso. Saí, diz ela, deste mundo como nele entrastes. A mesma passagem que
fizestes da morte à vida, sem paixão e sem temor, refazei-a da vida à morte.
Vossa morte é uma das peças da ordem do universo, é uma peça da vida do mundo,
inter se mortales mutua viuunt,
Et quase cursores vitai lampada tradunt.
os mortais
partilham a vida assim como os corredores se repassam sua tocha. (Lucrécio, II, 76 e 79)
Mudarei por vós
esta bela organização das coisas? É a condição de vossa criação; a morte é uma
parte de vós: fugis de vós mesmos. A existência de que desfrutais é igualmente
dividida entre a morte e a vida. O primeiro dia de vosso nascimento vos
encaminha para morrer como para viver.
Prima, quae vitam dedit, hora, carpsit.
A primeira hora
que nos deu a vida tomou-a de nós. (Sêneca, Hércules
furioso, III, 874)
Nascentes morimur, finisque ab origine pendet.
Ao nascermos,
morremos, e o fim decorre da origem. (Manílio, IV, 16)
Tudo o que viveis
estais roubando da vida: e às expensas dela. A contínua obra de vossa vida é
construir a morte. Estais na morte enquanto estais em vida, pois estais depois
da morte quando não mais estais em vida. Ou, se assim o preferis, estais morto
depois da vida, mas durante a vida estais morrendo, e a morte toca bem mais
brutalmente o moribundo que o morto, e mais viva e mais essencialmente. Se da
vida tirastes proveito, estais saciado; ide-vos satisfeito.
Cur non ut plenus vitae conviva recedis?
Por que não te
retiras da vida qual um conviva saciado? (Lucrécio, II, 938)
Se não soubestes
usá-la, se ela vos foi inútil, que vos importa tê-la perdido? Para que ainda a
quereis?
Cur amplius
addere quaeris Rursum quod pereat male, et ingratum occidat omne?
Por que procuras
lhe acrescentar um prazo que por sua vez se perderá miseravelmente e
desaparecerá inteiro sem fruto? (Lucrécio, III,
941-2)”
“Onde quer que
vossa vida acabe, ela está toda aí. A utilidade do viver não está na duração:
está no uso que dele fizemos. Uma pessoa viveu muito tempo e pouco viveu.
Atentai para isso enquanto estais aqui. Ter vivido bastante está em vossa
vontade, não no número dos anos.”
“Por que temeis
vosso último dia? Ele não conduz à vossa morte mais que cada um dos outros. O
último passo não vos traz a lassidão: revela-a. Todos os dias levam à morte: o
último a alcança. Eis as boas advertências de nossa mãe Natureza.”
“Nessa escola de
comércio com os homens, volta e meia reparei nessa perversão de que, em vez de
aprendermos sobre os outros, só nos empenhamos em ensinar-lhes coisas sobre
nós, e preocupamo-nos bem mais em vender nossa mercadoria do que em adquirir novas.
O silêncio e a modéstia são qualidades muito úteis na conversação. Essa criança
será educada para poupar e moderar seu saber, quando o adquirir, para não se
melindrar com as tolices e fábulas que serão ditas em sua presença; pois é
descortês e inoportuno criticar tudo o que não é de nosso gosto. Que se
contente em corrigir a si mesmo. E não aparente recriminar o outro por tudo o
que se nega a fazer, nem se oponha aos costumes públicos. Licet sapere sine pompa, sine invidia¹. Pode-se ser sábio sem pompa
nem arrogância.] Que fuja dessas maneiras magistrais e indelicadas; e dessa
ambição pueril de querer parecer mais arguto para ser diferente; e como se
críticas e novidades fossem mercadoria delicada, querer usá-las para criar um
nome de valor singular.”
1: Sêneca, Cartas a Lucílio, CIII, 5
“Os embaixadores
de Samos foram ver Cleômenes, rei de Esparta, tendo preparado uma bela e longa
oração para incitá-lo à guerra contra o tirano Polícrates; ele os deixou falar
bastante e depois respondeu: “Quanto a vosso preâmbulo e exórdio, não me lembro
mais dele, nem, por conseguinte, do meio; e quanto à vossa conclusão, não quero
fazer nada disso”. Eis uma bela resposta, parece-me, e arengadores bem
atrapalhados. E que tal este outro? Os atenienses estavam a escolher entre dois
arquitetos para dirigir uma grande construção; o primeiro, mais afetado,
apresentou-se com um belo discurso preparado sobre o trabalho a ser feito, e ia
puxando a seu favor o julgamento do povo; mas o outro só retrucou com umas três
palavras: “Senhores atenienses, o que ele disse eu farei”.
“Foi o que
respondeu Menandro quando, aproximando-se o dia para o qual prometera uma
comédia em que ainda não tinha posto a mão, o criticaram: “Ela está composta e
pronta, basta acrescentar os versos”. Com o tema e a matéria arrumados na alma,
ele tinha o restante em pouca conta.”
“Não é talvez sem
razão que atribuímos à ingenuidade e à ignorância a facilidade de crer e de se
deixar convencer, pois me parece que aprendi outrora que a crença era como uma
impressão gravada em nossa alma; e à medida que ela estava mais mole e com
menor resistência, mais fácil era imprimir-lhe alguma coisa.”
“Quanto mais vazia
a alma, e sem contrapeso, mais facilmente se verga sob a carga da primeira
persuasão.”
“Receio que
tenhamos os olhos maiores que a barriga, e mais curiosidade que capacidade.
Tudo abraçamos, mas só vento agarramos.”
“A verdadeira
vitória reside no combate, não na salvação, e a honra da virtude consiste em
combater, não em abater.”
“Três (índios
trazidos da América), ignorando quanto custará um dia ao seu repouso e à sua
felicidade o conhecimento das corrupções daqui, e que desse comércio nascerá
sua ruína, como pressuponho que já esteja avançada (por terem miseravelmente se
deixado embair pelo desejo da novidade e terem largado a suavidade de seu céu
para virem ver o nosso), estiveram em Rouen na época em que o finado rei Carlos
IX lá estava. O rei falou com eles por muito tempo, fizeram-nos ver nossos
modos, nossa pompa, a forma de uma bela cidade; depois disso, alguém lhes pediu
sua opinião e quis saber o que tinham achado de mais admirável. Responderam
três coisas, e estou muito aborrecido por ter esquecido a terceira, mas ainda
tenho duas na memória. Disseram que em primeiro lugar achavam muito estranho
que tantos homens grandes usando barba, fortes e armados, que estavam em volta
do rei (é provável que falassem dos suíços de sua guarda), se sujeitassem a
obedecer a uma criança, e que não escolhessem, de preferência, alguém entre
eles para comandar. Em segundo (eles têm uma tal maneira de se expressar na sua
linguagem que chamam os homens de “metade” uns dos outros) que tinham visto que
havia entre nós homens repletos e abarrotados de toda espécie de comodidades, e
que suas metades eram mendigos às suas portas, descarnados de fome e pobreza; e
achavam estranho como essas metades daqui, necessitadas, podiam suportar tal
injustiça, que não pegassem os outros pela goela ou ateassem fogo em suas
casas. Falei com um deles por muito tempo, mas eu tinha um intérprete que me
seguia tão mal, e cuja estupidez tanto o impedia de entender minhas ideias, que
não pude tirar dessa conversa nada que prestasse. Quando lhe perguntei que
proveito tirava da superioridade que tinha entre os seus (pois era um capitão,
e nossos marinheiros o chamavam de rei), disse-me que era estar à frente dos
que marchavam para a guerra; quando perguntei de quantos homens era seguido,
mostrou-me um espaço aberto para significar que era de tantos quantos caberiam
em tal espaço, podiam ser 4 mil ou 5 mil homens; quando perguntei se fora da
guerra toda a sua autoridade estava extinta, disse que lhe restava o fato de
que, quando visitava as aldeias que dependiam dele, abriam-lhe picadas através
das moitas de seus bosques por onde pudesse passar bem confortavelmente. Tudo
isso não é tão mau assim: mas ora! eles não usam calças.”
“Por isso, diz
Platão, é bem mais fácil satisfazer as pessoas ao falar da natureza dos deuses
que da natureza dos homens, pois a ignorância dos ouvintes permite ao manejo de
tais matérias secretas uma bela e longa carreira, em absoluta liberdade.”
“Basta a um
cristão crer que todas as coisas vêm de Deus para recebê-las com o
reconhecimento de Sua divina e inescrutável sapiência; por conseguinte,
aceitá-las com gosto, sob qualquer aspecto que lhe sejam enviadas. Mas acho
errado o que vejo em prática, de procurar firmar e apoiar nossa religião na
prosperidade de nossos empreendimentos. Nossa fé tem muitos outros fundamentos
sem ser necessário legitimá-la pelos acontecimentos; pois estando o povo
acostumado com esses argumentos plausíveis e propriamente a seu gosto, há o
perigo de que isso abale sua fé quando os acontecimentos, por sua vez, se
apresentam contrários e desvantajosos.”
“Em suma, é
difícil trazer as coisas divinas para a nossa balança sem que sofram
depreciação.”
“Ora, o objetivo,
creio eu, é um só: viver mais à vontade e a gosto. Mas nem sempre procuramos
bem o caminho: volta e meia pensamos ter abandonado os negócios e apenas os
mudamos. Não há menos tormento no governo de uma família que no de um Estado
inteiro; onde quer que a alma esteja ocupada, ali está por inteiro; e por serem
os afazeres domésticos menos importantes, nem por isso são menos importunos.”
“Diziam a Sócrates
que alguém não tinha se emendado durante uma viagem: “Bem creio”, disse, “levou
a si mesmo junto consigo”.”
“Quando a cidade
de Nola foi destruída pelos bárbaros, Paulino, que era seu bispo, tendo tudo
perdido e sendo prisioneiro deles, rezava assim a Deus: “Livrai-me, Senhor, de
sentir essa perda, pois sabeis que eles ainda não tocaram em nada do que é
meu”. As riquezas que o faziam rico e os bens que o tornavam bom ainda estavam
por inteiro.”
“É preciso ter
mulheres, filhos, bens e sobretudo saúde, se possível, mas não se apegar a eles
de maneira que nossa felicidade disso dependa. É preciso reservar um canto todo
nosso, todo livre, e lá estabelecer nossa verdadeira liberdade e nosso
principal retiro e solidão. Aí devemos praticar nossa conversa habitual, de nós
para nós mesmos, e tão privada que nenhum convívio ou comunicação com as coisas
externas encontre espaço: discorrer e rir, como se sem mulher, sem filhos e sem
bens, sem séquito, sem criados, a fim de que, quando chegar o momento de sua
perda, não nos seja novidade dispensá-los. Temos uma alma capaz de recolher-se
em si mesma; ela pode se fazer companhia, tem com que atacar e com que se
defender, com que receber e com que dar: não temamos nessa solidão embotar-nos
em uma penosa ociosidade, In solis sis
tibi turba locis. Nesses locais solitários sê para ti mesmo a multidão¹]. A
virtude contenta-se consigo mesma: sem disciplina, sem palavras, sem ações.”
1: Tibulo, IV,
XIII, 12.
“Já vivemos
bastante para o outro, vivamos para nós ao menos neste fim de vida, voltemos
para nós e para nosso bem-estar nossos pensamentos e intenções: não é jogada
fácil organizar a própria retirada com segurança; ela já nos é bastante pesada
sem lhe misturarmos outros projetos. Visto que Deus nos dá tempo para cuidar de
nossa partida, preparemo-nos para ela; arrumemos as malas, façamos logo as
despedidas da companhia; desvencilhemo-nos desses laços violentos que nos
arrastam alhures e afastam-nos de nós. Há que desatar essas obrigações tão
fortes, e doravante amar isto ou aquilo mas só desposar a si mesmo; isto é, que
o restante seja nosso, mas não unido e colado de modo que não possamos soltá-lo
sem nos esfolarmos e arrancar um pedaço de nós mesmos. A maior coisa do mundo é
saber ser de si mesmo. É tempo de desligarmo-nos da sociedade, posto que nada
podemos lhe conceder. E quem não pode emprestar, que se livre de pedir
emprestado. Nossas forças estão nos faltando: retiremo-las e estreitemo-las
dentro de nós. Quem puder inverter e reunir em si os papéis da amizade e da
companhia, que o faça. Nesse declínio, que torna o homem inútil, pesado e
importuno para os outros, que ele evite ser importuno, pesado e inútil para si
mesmo. Que se louve e se afague, e sobretudo se governe, respeitando e temendo
sua razão e sua consciência, de tal modo que não possa dar um passo em falso na
presença dos outros sem se envergonhar. Rarum
est enim, ut satis se quisque vereatur¹. De fato é raro quem respeita a si
mesmo o suficiente.]”
1: Quintiliano, Instituição
oratória, X, VII, 24.
“O humor mais
contrário ao retiro é a ambição, a glória e o repouso não podem morar sob o
mesmo teto.”
“Lembrai-vos
daquele a quem se perguntava com que finalidade se esforçava tanto numa arte
que só podia chegar ao conhecimento de poucas pessoas: ‘Bastam-me poucos’,
respondeu, ‘basta-me um, basta-me nenhum’. Ele disse a verdade: vós e um
companheiro sois teatro suficiente um para o outro, ou vós para vós mesmos. Que
o público vos seja um, e um vos seja todo o público.”
“Estava
recentemente pensando de onde nos vinha esse erro de recorrer a Deus em todos
os nossos projetos e empreendimentos, e de chamá-Lo em toda sorte de
necessidade, e em qualquer lugar em que nossa fraqueza deseja ajuda, sem
considerar se a ocasião é justa ou injusta; e de invocar Seu nome e Seu poder
em qualquer situação e ação que pratiquemos, por mais pecadora que seja. Ele é
de fato nosso só e único protetor, e para ajudar-nos pode todas as coisas, mas,
conquanto se digne a honrar-nos com essa doce aliança paterna, é, porém, tão
justo como bom e poderoso. Mas usa bem mais frequentemente Sua justiça do que
Seu poder, e favorece-nos de acordo com essa justiça e não segundo nossos
pedidos.”
“A posição de um
homem que mistura a devoção com uma vida execrável parece ser bem mais
condenável que a de um homem coerente consigo mesmo e inteiramente dissoluto.”
“O Livro Sagrado
dos mistérios de nossa fé não é estudo para todo mundo: é estudo para pessoas
que a isso se dedicaram, que Deus chama para tal; os maus, os ignorantes
tornam-se piores com isso.”
“Flutuamos entre
diversas opiniões: nada queremos livremente, nada absolutamente, nada
constantemente. Em quem tivesse prescrito e estabelecido no espírito certas
leis e certo projeto, veríamos tudo, em toda a sua vida, reluzir uma
uniformidade de comportamentos, uma ordem e uma relação infalível de umas
coisas com as outras. (Empédocles observava essa deformidade entre os
agrigentinos, que se entregavam às delícias como se devessem morrer amanhã, e
construíam como se nunca devessem morrer.) Seria muito fácil dar uma explicação
a isso. Como se vê com Catão, o Moço, quem nele toca uma tecla toca todas, pois
há uma harmonia de sons muito bem afinados que ninguém pode negar. Conosco, ao
contrário, são tantas ações quantos juízos particulares. O mais seguro, a meu
ver, seria referi-las às circunstâncias próximas, sem entrar em pesquisa mais
longa e sem disso tirar outra conclusão. Durante as desordens de nosso pobre
país, contaram-me que uma moça, bem perto daqui onde me encontro, se jogara do
alto de uma janela para evitar a brutalidade do soldado pulha acampado em sua
casa; não morreu na queda e, para repetir a tentativa, quis enfiar uma faca na
garganta mas a impediram; depois de ter se ferido bastante, ela mesma confessou
que o soldado ainda não a havia pressionado a não ser com pedidos, solicitações
e presentes, mas que ela ficara com medo de que no final ele a violentasse. Daí
os gritos, a atitude e aquele sangue, prova de sua virtude, à verdadeira moda
de uma outra Lucrécia¹. Ora, eu soube que, na verdade, antes e depois ela fora
moça não tão difícil nem arisca. Como diz o conto, “por mais belo e honesto que
sejas, quando tiveres falhado em teu ataque não concluas, incontinente, por uma
castidade inviolável de tua amante: isso não quer dizer que o arreeiro não
tenha vez com ela”. Antígono, que se afeiçoara a um de seus soldados por sua
virtude e valentia, mandou seus médicos tratarem dele por uma doença longa e
interna que o atormentara muito tempo; percebendo que, depois da cura, ele
cumpria as tarefas muito mais friamente, perguntou-lhe quem o modificara assim
e o acovardara: “Vós mesmo, senhor”, respondeu-lhe, “tendo me aliviado dos
males que me faziam não levar em conta minha vida”. Um soldado de Lúculo, ao
ser roubado pelos inimigos, organizou contra eles, para se vingar, um belo
ataque. Quando se recuperou da perda, Lúculo, que o tinha em boa conta,
empregou-o em uma façanha perigosa, com todas as exortações mais belas que
podia imaginar:
Verbis quae timido quoque possent addere mentem:²
Com palavras que
poderiam dar coragem até mesmo ao covarde (Horácio, Epístolas, II, III, 39-40):
“Mandai para
isso”, ele respondeu, “algum pobre soldado roubado.”
quantumvis rusticus ibit,
Ibit eu, quo vis, qui zonam perdidit, inquit
por mais rústico que fosse, ele
respondeu: “Irá, irá aonde queres aquele que perdeu sua bolsa” (Horácio, Epístolas, II, II, 39).
e recusou-se terminantemente a ir.
Lemos que Maomé,² tendo injuriosamente maltratado Xasan, chefe dos seus
janízaros, por ver sua tropa derrotada pelos húngaros e por ter ele se portado
covardemente no combate, teve como única resposta ver Xasan precipitar-se
furioso, sozinho, no estado em que se encontrava, armas em punho, sobre o
primeiro pelotão inimigo que se apresentou, pelo qual foi repentinamente
tragado. Talvez não o tenha movido tanto o desejo de se justificar como uma
reviravolta de sentimentos; não tanto a valentia natural como um despeito. Quem
ontem vistes tão corajoso, não achais estranho vê-lo no dia seguinte tão
poltrão: ou a cólera, ou a necessidade, ou a companhia, ou o vinho, ou o som de
uma trombeta, infundiram-lhe coragem no coração; não foi o raciocínio que lhe
deu coragem, mas aquelas circunstâncias que o fortaleceram; não espanta se for
transformado em outro por outras circunstâncias contrárias. Essa variação e
essa contradição que vemos em nós, tão mutáveis, levaram alguns a imaginar que
temos duas almas, outros, duas forças que nos acompanham e atuam, cada uma à
sua maneira, uma para o bem, outra para o mal: uma diversidade tão brusca não
pode associar-se a um sujeito simples. Não só o vento dos acontecimentos me
agita conforme sua inclinação, como, além disso, eu mesmo me agito e me
atormento pela instabilidade de minha postura; e quem se observa de perto
raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um aspecto,
ora outro, segundo o lado por onde a examino. Se falo de mim de diversos modos
é porque me observo de diversos modos. Em mim encontram-se, de um jeito ou de
outro, todas as contradições: envergonhado, insolente, casto, libidinoso,
tagarela, taciturno, trabalhador, lânguido, engenhoso, tolo, triste, jovial,
mentiroso, sincero, sábio, ignorante, e generoso, e avarento e pródigo: vejo
tudo isso em mim de certa maneira, conforme eu me examino. E quem se estuda bem
atentamente encontra em si, e até em seu próprio julgamento, essa volubilidade
e essa discordância. Não tenho nada a dizer de mim, integralmente,
simplesmente, e solidamente, sem confusão e sem mistura, nem numa só palavra.”
1: Lucrécia, mulher
de Tarquínio Colatino, foi violentada por Sexto Tarquínio. Desonrada, mandou
buscar o pai e o marido, revelou o crime e matou-se na frente deles com um
punhal.
2: O sultão Maomé
II, que em 1453 acabou com o Império Bizantino e tomou Constantinopla, fez em
1479 uma expedição contra os húngaros, que terminou em fracasso.
“Nenhum vento
serve para quem não tem porto de chegada.”
“Não demonstra
entendimento experiente quem nos julga simplesmente por nossas ações externas:
cumpre sondar até o fundo e ver quais engrenagens fazem as coisas se moverem.
Mas como é tarefa elevada e arriscada, gostaria que menos pessoas nela se
intrometessem.”
“É perigoso
confundir a ordem e a importância dos pecados: os assassinos, os traidores, os
tiranos, têm muito interesse nisso; não é justo que possam aliviar suas
consciências porque um outro é ocioso, ou lascivo, ou menos assíduo na devoção.
Cada um insiste no pecado do companheiro e alivia o seu próprio.”
“Como nas façanhas
da guerra, o calor do combate costuma impelir os soldados corajosos a passar
por lugares tão arriscados que, voltando a si, são os primeiros a ficar
transidos de espanto.”
“Hesíodo corrige
assim o dito de Platão, para quem o castigo segue de bem perto o pecado, pois
diz que ele nasce no mesmo instante e junto com o pecado. Esperar pelo castigo
é sofrê-lo; merecê-lo é esperar por ele. A maldade fabrica tormentos contra si
mesma.”
“Nenhum
esconderijo serve aos maus, dizia Epicuro, porque eles não podem ter certeza de
que estão escondidos, já que a consciência os revela a si mesmos.”
“Não conseguir
absolver-se em seu foro íntimo é a primeira punição do culpado.” (Juvenal, XIII, 2)
“As torturas são
uma perigosa invenção, e parecem ser mais um ensaio de resistência humana que
de verdade. E quem consegue suportá-las esconde a verdade, tanto quanto quem
não consegue suportá-las. Pois por que a dor me fará confessar o que é verdade,
mais do que me forçará a dizer o que não é?”
“Devemos
adaptar-nos um pouco à simples autoridade da natureza, mas não nos deixar
tiranicamente levar por ela: só a razão deve governar nossas inclinações.”
“Uma verdadeira
afeição, e bem regrada, deveria nascer e aumentar com o conhecimento que nossos
filhos nos dão de si; e então, se o merecem, como a propensão natural anda a
par com a razão, podemos dedicar-lhes uma afeição verdadeiramente paternal; e,
da mesma forma, julgá-los, se forem diferentes, rendendo-nos sempre à razão,
não obstante a força da natureza. Muitas vezes é o inverso que acontece, e mais
comumente nos sentimos mais comovidos com os pulos, brincadeiras e tolices
pueris de nossos filhos do que, depois, com suas ações bem pensadas: como se os
amássemos como nosso passatempo, como macaquinhos e não como homens.”
“É loucura e
injustiça privar os filhos crescidos da familiaridade com os pais e querer
manter com eles uma arrogância austera e desdenhosa, esperando com isso
deixá-los temerosos e obedientes. Pois é uma farsa inútil que torna os pais
muito aborrecidos para os filhos, e, o que é pior, ridículos. Eles têm a
juventude e as forças nas mãos, e por conseguinte o vento e a simpatia do
mundo; e recebem com zombaria essas caras orgulhosas e tirânicas de um homem
que não tem mais sangue no coração nem nas veias: verdadeiros espantalhos de
campos de cânhamo. Mesmo se pudesse me fazer temido, gostaria mais ainda de me
fazer amado. Há tantas espécies de fraquezas na velhice, tanta impotência, ela
é tão sujeita ao desprezo, que a melhor conquista que pode fazer é a afeição e
o amor dos seus: o comando e o temor não são mais suas armas.”
“De todos os
operários o poeta é precisamente o mais apaixonado por sua obra.” (Aristóteles)
“Parece-me que a
virtude é outra coisa, e mais nobre, do que essas tendências à bondade que
nascem em nós. As almas bem autocontroladas por si mesmas e bem-nascidas seguem
o mesmo passo e representam em suas ações a mesma face que as virtuosas. Mas a
virtude soa um não sei quê de maior e mais ativo do que se deixar conduzir tranquila
e pacificamente pelo rastro da razão graças a um feliz temperamento. Quem, por
ter um caráter naturalmente fácil e suave, desprezasse as ofensas recebidas
faria coisa muito bonita e digna de elogio; mas quem, picado em carne viva e
indignado por uma ofensa, se munisse das armas da razão contra esse furioso
apetite de vingança e por fim o controlasse depois de um grande conflito faria
sem dúvida muito mais. Aquele agiria bem, e este agiria virtuosamente; uma ação
poderia se chamar bondade, a outra, virtude. Pois parece que a palavra virtude
pressupõe dificuldade e oposição, e não pode ser exercitada sem combate. É
talvez por isso que dizemos que Deus é bom, forte, e generoso e justo, mas não
o chamamos de virtuoso. Suas operações são todas naturais e sem esforço.”
“As índoles
sanguinárias em relação aos animais atestam uma propensão natural à crueldade.
Em Roma, depois que se acostumaram aos espetáculos de mortes dos animais,
chegaram aos homens e aos gladiadores. A própria natureza (temo) fixou no homem
um instinto de desumanidade. Ninguém sente prazer em ver os animais brincando
entre si e acariciando-se; e ninguém deixa de senti-lo ao vê-los se dilacerarem
e se desmembrarem.”
“Diz que não era o
gato ou o boi (por exemplo) que os egípcios adoravam; mas que adoravam nesses
bichos uma imagem das faculdades divinas: neste, a paciência e a utilidade,
naquele, a vivacidade, ou, como nossos vizinhos borguinhões e em toda a
Alemanha, a incapacidade de suportar a clausura, o que representava para eles a
liberdade que amavam e adoravam além de qualquer outra faculdade divina, e
assim por diante.”
“Em nosso século,
mais comumente as esposas preferem mostrar seus bons ofícios e a veemência de
seu amor quando os maridos já estão mortos: então, procuram pelo menos dar
prova de sua boa vontade. Tardia prova, e fora de época. Com isso, mais
demonstram que só os amam mortos. A vida é cheia de material inflamável, a
morte, de amor e cortesia. Assim como os pais escondem o amor pelos filhos para
se manterem honrados e respeitados, de bom grado elas escondem o seu pelo
marido. Esse mistério não é de meu gosto. Por mais que se descabelem e se
arranhem, vejo-me ao ouvido de uma camareira ou de um secretário: “Como eles
eram? Como viveram juntos?”. Sempre me lembro desta tirada:
jactantius moerent, quae minus dolent.
elas choram com
mais ostentação quanto menos sentem tristeza. (Tácito, Annales, II, LXXVII.)
Suas choradeiras
são odiosas para os vivos e inúteis para os mortos; permitiremos com gosto que
riam depois, contanto que riam para nós durante a vida. Não é para ressuscitar
de raiva se quem tiver me cuspido na cara enquanto eu vivia vier me esfregar os
pés quando eu não estiver mais aqui? Se existe certa honra em prantear os
maridos, esta só pertence àquelas que lhes sorriram; as que choraram durante a
vida deles, então que riam na morte, tanto por fora como por dentro.”
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