quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil (Parte II), de Sérgio Buarque de Holanda

Editora: Companhia das Letras

ISBN: 978-85-359-1667-6

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 600

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Sinopse: Ver Parte I



“NÃO SÓ O DESLUMBRAMENTO de um Colombo divisava as suas Índias e as pintava, ora segundo os modelos edênicos provindos largamente de esquemas literários, ora segundo os próprios termos que tinham servido aos poetas gregos e romanos para exaltar a idade feliz, posta no começo dos tempos, quando um solo generoso, sob constante primavera, dava de si espontaneamente os mais saborosos frutos, onde os homens, isentos da desordenada cobiça (pois tudo tinham sem esforço e de sobejo), não conheciam “ferros, nem aço, nem armas”, nem eram aptos para eles — são feitas, aliás, as próprias palavras de que se servirá o genovês ao tratar dos gentios das ilhas descobertas1 —, mas até os de mais profundo e repousado saber se inclinavam a encarar os mundos novos sob a aparência dos modelos antigos.

O historiador sueco Sverder Arnoldsson, bem familiarizado com a historiografia hispano-americana do período colonial, pôde dizer, sem exagero, em estudo recente, que, além de Colombo, numerosos cronistas da conquista se valeram usualmente, ao descreverem as Índias, e em particular os indígenas do Novo Mundo, das próprias palavras de Ovídio sobre a Idade de Ouro, copiadas, citadas e inúmeras vezes lidas durante mil e quinhentos anos2. Bem ilustrativas desse fato são as expressões de um humanista da altura de Pedro Mártir de Anghiera, que em várias ocasiões se mostra cauteloso ou cético no acolher informações dos viajantes quando se refere aos primitivos moradores da Espanola e de Cuba.

Os trechos que Arnoldsson em parte reproduz do original das Décadas do Orbe Novo, e que vão a seguir, de acordo com a versão de Temístocle Celotti, não só aludem expressamente à Idade de Ouro como chegam a ser, por vezes, um decalque literal do texto célebre das Metamorfoses. Assim é que, dos naturais da Espanola, o humanista de Anghiera, depois de observar que tinham muitos reis, cada qual mais poderoso do que o outro, “como se diz que o lendário Eneias encontrou o Lácio dividido entre Latino, Mesêncio, Turno e Tarconte”, reinando sobre minúsculos territórios, logo ajunta: “Sou de parecer, entretanto, que os nossos ilhéus da Espanola hão de ser mais afortunados do que aqueles, desde que aprendam a religião; pois que nus, sem pesos ou medidas, sem a mortífera pecúnia, vivendo na idade de ouro, sem leis, sem caluniosos juízes, sem livros, contentam-se com o estado da natureza, nada preocupados com o porvir”3. Isso está dito no segundo livro da primeira Década, que Pedro Mártir redigiu, com o subsequente, por instâncias do Cardeal Ascânio Sforza, durante o biênio de 1493-1494, quando as notícias ainda frescas do descobrimento e as esperanças a que davam lugar ainda permitiam essa visão imaculada.

Mas no próprio livro terceiro, que só se lançará em 1500, época em que já são bem notórias as malícias e tiranias dos canibais antilhanos, reafirma-se, com ênfase ainda maior, esse quadro sedutor da aurea aetas (era de ouro). Tratando ali dos habitantes de Cuba, escreve ele que “era de todos a terra, assim como o sol e a água, que o meu e o teu, germes de todos os males, não existiam para aquela gente [...]. Vivem na idade de ouro, não circundam as herdades de fossos, muros ou sebes. Moram em hortas abertas, sem leis, sem livros, sem juízes, e seguem naturalmente o bem. E têm por odioso aquele que se compraz em praticar o mal, seja contra quem for”4. E na Década III, redigida só em 1516, segundo testemunho do autor, reitera-se, no livro VIII, a mesma imagem, a propósito daqueles homens habituados a sustentar-se de frutos nascidos sem plantio: “Homines vivere aiunt [...] sylvestribus fruetibus contentos [...] ut legitur de aurea aetate” (“As pessoas dizem que vivem [...] contentes com frutas silvestres [...] enquanto lemos sobre a idade de ouro”).

Os cronistas castelhanos não duvidarão, por sua vez, em seguir tão ilustre exemplo, servindo-se das palavras textuais do poeta de Sulmona, e não só com relação a tribos primitivas, mas também a populações mais distanciadas das condições dos antigos moradores das Antilhas5. Em suas Antiguidades de la Nueva Espana, de fins do século XVI, ainda escreve, por exemplo, Francisco Hernandez que “todo lo producia espontaneamente la tierra” equivale preciso do “per se dabat omnia tellus” ovidiano. E em princípios do século imediato ainda pode rastrear-se o influxo de concepções antigas, bebidas provavelmente nas Metamorfoses, mesmo em escritos como os do índio semiculto Dom Filipe Haumán Poma de Ayala, onde subdivide toda a História humana em quatro idades distintas, a saber: a do ouro, a da prata, a do cobre e a do ferro, cada qual menos “civilizada” e também menos feliz e engenhosa do que a anterior.

Essas lembranças clássicas costumam ser postas principalmente em estreita relação com a teoria da excelência do estado natural, que já é um traço da aurea aetas dos antigos, ou com as opiniões eclesiásticas e, em verdade, cristãs, sobre o statu innocentiae, compendiadas na Suma Teológica de Santo Tomás de Aquino, que um e outras, por intermédio talvez de Montaigne e, em menor grau, de Las Casas, hão de frutificar, com o tempo, no postulado, rico em consequências, da bondade natural do homem.

O problema já tem sido objeto de muitas e sábias dissertações, e mal cabe retomá-lo aqui, senão de passagem. Contudo é fora de dúvida que, abrangido num painel maior, que compreenda os demais aspectos, por onde facilmente se irmana com os motivos edênicos, de ação direta sobre a própria atividade colonial do europeu no Novo Mundo, irá ganhar sentido mais amplo e mais rico essa exaltação da vida primitiva.

De uma parte, a polêmica dirigida contra a miséria do tempo presente, amparada no louvor e nostalgia de um passado venturoso e idílico, iria aparentemente favorecê-la. Essa polêmica sabe-se que é de todos os tempos, mas quando se torna singularmente viva é nos tempos medievais, dando causa até a fórmulas estereotípicas como a do ubi sunt (onde eles estão), de que a balada mais célebre de François Villon é exemplo ilustre, mas não único.

Por outro lado, a ideia da corrupção deste nosso mundo e da natureza, em consequência do Pecado e da Queda, acha-se implantada em todo o sentimento e pensamento cristãos, e deita claramente suas raízes nas Sagradas Escrituras. Não custaria distingui-la já no Gênesis, quando alude à maldição divina lançada sobre a própria terra, que passaria agora a dar cardos e abrolhos. E ainda, para também recorrer ao Novo Testamento, naquele passo da Epístola aos Romanos (8:22), onde está dito que toda a criação, e não somente a espécie humana, “geme e padece até hoje” por culpa do primeiro homem.

Mas esse pessimismo fundamental já não seria o ponto de partida necessário para a glorificação de outros mundos, das terras incógnitas, porventura ainda virgens e indenes dessa decadência geral, como se neles não tivesse ocorrido o Pecado e nem ficassem, deste, as marcas fatídicas? A Idade Média se achava tão afeita, com certeza, à noção de que o mundo presente é simples lugar de passagem que a esperança de nele se encontrar algum porto seguro se tornara, ao cabo, irrelevante. A ruindade ou deterioração da Natureza, a miséria da terra, resgatava-se num divino plano de salvação que, por sua vez, não deixaria de valorizar, de algum modo, os próprios males e as misérias do presente. Mesmo a obsessão da materialidade do Paraíso Terrestre, abundante em todos aqueles bens de que carece a natureza corrompida e mortal, é um modo de denunciar, com a vivacidade do contraste, esse fundo senso da transitoriedade das coisas terrenas.

Ora, sucede que o Paraíso Terrestre é, pela sua própria essência, inatingível aos homens, ou, na melhor hipótese, só pode, talvez, ser alcançado à custa de ingentes e sobre-humanos esforços. De fato, só com o declinar do mundo medieval é que a ideia da corrupção e degenerescência da Natureza poderá afetar mais vivamente aqueles para quem a salvação eterna se torna, cada vez mais, um ideal longínquo e póstumo. Ao mesmo tempo irá esbater-se pouco a pouco, embora teoricamente ainda válida, a crença de que o Céu, um Céu sempre mais distante, cuida de interferir a todo momento nos negócios profanos.

Já agora, porém, o mundo não há de ser um vale de lágrimas, apenas dulcificado pela certeza da redenção ultraterrena. Não é num futuro póstumo, ou fora do mundo, mas na própria vida de todos os dias que a condição humana há de encontrar sua razão de ser. O Humanismo, que impregnará largamente o pensamento e a atividade renascentistas, acha-se alicerçado, e desde o início, numa confiança ilimitada no homem e nas suas possibilidades criadoras quase infrenes. Em seu tratado sobre a dignidade humana, Giovanni Pico della Mirandola parte do pressuposto de que o homem, esse “grande milagre”, segundo o dito de Hermes Trismegisto, que domina o discurso, é o mais feliz, sem comparação, dos entes animados, merecedor, por isso, de todas as admirações. E ainda de que sua condição na ordem universal é invejável, não só para os brutos, mas até para os astros e os espíritos do além-mundo6.

Mas, para que aquelas possibilidades e capacidades sejam verdadeiramente eficazes, fazendo-se por sua vez realidades, é mister supor um mundo e uma natureza dóceis às ambições dos homens e solidários com elas. Natureza essa ativa e infinitamente criadora, concebida à imagem do homem novo, bem diferente da outra, inerte ou mortalmente ferida por uma calamidade de proporções cósmicas. De sorte que esse exasperado otimismo, fundado na doutrina da excelência e dignidade da condição humana, também há de admitir, necessariamente, a excelência, a dignidade, a virilidade da própria natureza.”

1 Carta ao Tesoureiro Rafael Sanches, in D. Martin Fernandez de NAVARRETE, Colección de los Viajes y Descubrimientos, I, pág. 312.

2 Sverder ARNOLDSSON, Los Momentos Históricos de América, pág. 10.

3 P. MARTIRE D’ANGHIERA. Mondo Nuovo (De Orbe Novo), pág. 120.

4 P. MARTIRE D’ANGHIERA, Mondo Nuovo, pág. 154

5 S. ARNOLDSSON, Los Momentos Históricos de América, pág. 11. Reproduz o autor a passagem de uma versão castelhana das Metamorfoses impressa em Évora, 1574, que poderia oferecer um modelo a muitos desses escritores. Diz esta o seguinte: “En aquel tiempo reynaua en la tierra verdad y justicia: los hõbres andauã seguros por todas partes, y biuiã en paz, y sossiego, sin saber que era necessáio Rey, ni alcaide, alguazil, ni escriuano, verdugo, ni pregonero: porque todos biuian en mucha hermãdad tratando verdad y justicia. En este tiepo los hombres no sabiã que ra torre ni castillo, lãça, ni espada, ames, ni otras cosas desta qualidad: porq biuiã sin aver defensores. La tierra que no era rõpida ni labrada, porq au no sabiã q era açada, teja arado: ni otro algu instrumeto de hierro y sin fatiga humana todas las cosas necessárias a la vida y sustentaciõ de los hõbres, las quaies cõ saluaticas sustãcias delos cerezos, mançanas, çarças, zoras y espinas: de cuya produciõ, y de vellotas, q del enzina arbor dedicada a Júpiter cayã, se otetauã”

(Naquela época reinava na terra verdade e justiça: os homens andavam seguros por todos os lados, em boa paz, e sossego, sem saber que era necessário Rei, nem alcaide, alguazil, nem escrivão, carrasco nem pregoeiro: todos viviam em muita irmandade lidando com a verdade e a justiça. Neste tempo os homens não sabiam o que era torre ou castelo, espada ou arnês, ou outras coisas desta qualidade: porque viviam sem ter defensores. A terra que não foi quebrada ou arada, porque você não sabia que estava arada, arado de telha: nem qualquer outro algum instrumento de ferro e sem fadiga humana todas as coisas necessárias à vida e ao sustento do lúpulo, o quais com substâncias selváticas das cerejeiras, macieiras, sarças, espinhos e espinhos: de cuja produção, e das pelotas, que do caramanchão enzina dedicado a Júpiter cayã, e otetauã). Na presente transcrição acham-se por extenso algumas das muitas palavras abreviadas no texto original reproduzido por Arnoldsson.

6 G. PICO DELLA MIRANDOLA, De Homine Dignitate. Heptaplus. De Ente et Uno, pág. 102: “[...] cur felicissimum proindeque dignum omni admiratione animal sit homo, et quae sit demum illa conditio quam in universi serie sortitus sit, non bruti modo, sed astris, sed ultramondani mentibus invidiosam”. (Sobre a Dignidade do Homem. Heptaplus Sobre Ser e Um, p. 102: “[...] por que o homem é o animal mais feliz e, portanto, digno de toda admiração, e qual a condição que lhe foi atribuída na série do universo, não à maneira de um bruto, mas do estrelas, mas invejáveis para as mentes do outro mundo”).

 

 

“A constante reiteração da ideia de uma Natureza em declínio ou francamente corrupta pelo contágio do Pecado Original pode sugerir, mesmo em obras de pura imaginação, que esse pensamento seria largamente partilhado, e tanto pelos autores como pelos leitores de tais obras. Os comentários esotéricos ao Gênese, cuja cronologia permitira esperar-se o próximo ou iminente fim do mundo, segundo notou um historiador, referindo-se de modo expresso à Inglaterra e a épocas mais tardias — mas suas observações, neste particular, também se aplicam, e talvez com maior nitidez, ao que ocorre na Itália, com o amanhecer dos tempos modernos —, tendiam a dar uma base aritmética à teoria da decadência do homem e da natureza.

A visão clássica da História, que admitia essa decadência progressiva, fazendo preceder a Idade do Ouro à da Prata, do Bronze e do Ferro, que sucessivamente e nessa ordem se substituem uma à outra, entrosava-se sem dificuldade, como ainda acentua o mesmo escritor, na doutrina cristã da Queda e fornecia mesmo uma ampla estrutura para a teoria de um mundo que se deteriora cada vez mais e em todas as suas partes. Ao lado disso, as Ideias ou Formas de Platão acham por onde inserir-se nas doutrinas relativas à catástrofe cósmica, pois, confrontado com as normas ideais existentes em algum lugar, deste ou daquele modo, o nosso mundo, em constante declínio, será uma espécie de cópia esmaecida e degradada. A concepção do mal como privatio, de acordo com Santo Agostinho, que se funda, de fato, em Aristóteles, e ainda as noções aristotélicas sobre a oposição entre elementos “contrários” (Metafísica, lib. 5, cap. 22), são eminentemente adaptáveis às mesmas doutrinas. Pois o que significa a depravação do mundo senão a privação da “virtude” que nele infundira o Senhor, em sua glória primeira e virginal? E que hipótese se revelaria mais serviçal, em suma, tendo-se em conta as mudanças do mundo e suas incessantes vicissitudes, do que uma teoria que postula a instabilidade daqueles elementos?7

Não é por acaso se justamente entre italianos, mais familiarizados, então, do que outros povos, com especulações de tal porte, tenda a desprender-se, aqui e ali, de um pessimismo adverso à tranquilidade de ânimo que propugnam os humanistas, a esperança e procura de alguma solução terrena Nem falta quem, como um Maquiavel, chegue a aceitar, sem ilusões, o mundo como é, imaginando mesmo uma ordem civil edificada sobre esse material imprestável que são os homens, de sorte que a velha ruindade venha a sujeitar-se a novas leis que a neutralizem, num verdadeiro equilíbrio de egoísmos, e que do próprio mal possa brotar o bem, com o soldar-se dos indivíduos corruptos no Estado forte. Ou quem, como Guicciardini, refute o valor dos “exemplos” grandiosos dos romanos, em que ainda se apraz seu compatriota, para abraçar um critério mais acomodatício, em que a própria depravação dos homens, ao menos segundo o retrato malevolente, mas em parte justificável, que de suas ideias nos deixou De Sanctis, parece codificar-se e erigir-se em regra de vida8.

A maior parte, no entanto, ainda prefere a essa cumplicidade desencantada com a “verdade efetiva da coisa”, a que alude Maquiavel9, isto é, com o fato reconhecido da decadência e corrupção do mundo, um ideal mais puro e imaginário, prefere, em outras palavras, palavras tiradas do próprio Príncipe, ao “como se vive” o “como se deveria viver”, ao ser um dever ser. E é bem compreensível, nestas circunstâncias, se numerosos marinheiros e exploradores que se movem, quase por necessidade de ofício, conforme os juízos dos astrólogos, tendam a fazer baixar o seu “dever ser”, os seus paraísos, daqueles mundos irreais para a realidade ainda nublada que lhes oferecem as terras incógnitas e remotas.

O espetáculo, ou a simples notícia de algum continente mal sabido e que, tal como a cera, se achasse apto a receber qualquer impressão e assumir qualquer forma, suporta assim, entre muitos deles, as idealizações mais inflamadas. Idealizações estas de que seria como um “negativo” fotográfico este nosso mundo entorpecido e incolor, e em que parecia ganhar atualidade histórica a possibilidade de remissão. Se isso é especialmente verdadeiro no caso de um Colombo, que por sinal julgava próximo o fim do mundo, precisando mesmo que se daria no ano de 1656, nem antes nem depois10, não o deixa de ser nos de outros navegantes que o antecederam ou sucederam, como Cadamosto, Vespúcio, os dois Gabotos, até Verrazzano.”

7 Ronald W. HEPBURN, “George Hakewill: The Virility of Nature”, Journal of the History of Ideas, XVI (abril de 1955), pág. 136.

8 Francesco DE SANCTIS, Storia della Letteratura Italiana, II, pág. 109. O famoso e discutido retrato das ideias de Guicciardini por De Sanctis encontra-se em “L’uomo del Guicciardini”, De Sanctis, Scritti Critici, págs. 254-274. Para uma tentativa de revisão desse retrato, que se baseia principalmente nos Ricordi do florentino, cf. Vinorio DE CAFRARIS, Francesco Guicciardini: Dalla Potitica alia Storia, Bari, 1850.

9 Niccolò MACHIAVELLI, Il Príncipe, XV (Tutte le Opere, I, pág. 48): “[...] sendo Fintento mio scrivere cosa utile a chi la intende, mi è parso più conveniente andare drieto alia verità effetuale della cosa, che alia imaginazione di essa. E molti si sono imaginate republiche e principati che non si sono mai visti né conosciuti essere in vero. Perchè egli è tanto discosto da come se vive a come si doverrebbe vivere, che colui che lascia quello che si fa per quello che si doverrebbe fare, impara puitosto la ruina che la perseverazione sua: perchè uno uomo che voglia fare in tute le parte professione di buono, conviene ruini infra tanti che non sono buoni. Onde necessário a un príncipe, volendosi mantenere, imparare a potere essere non buono, e usarlo o non l'usare secondo la necessita.” (“Mas, sendo minha intenção escrever algo de útil para quem por tal se interesse, pareceu-me mais conveniente ir em busca da verdade extraída dos fatos e não à imaginação destes, pois muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou conhecidos como tendo realmente existido. Em verdade, há tanta diferença de como se vive e como se deveria viver, que aquele que abandone o que se faz por aquilo que deveria fazer, aprenderá antes o caminho de sua ruína do que o de sua preservação, eis que um homem que queira em todas as suas palavras fazer profissão de bondade, perder-se-á em meio a tantos não são bons. Donde é necessário, a um príncipe que queira se manter, aprender a poder e usar ou não da bondade, segundo a necessidade.”)

10 No Libro de las Profecias, organizado pelo descobridor, lê-se, de fato, em apostila de 1501, conforme a reprodução de Navarrete, o seguinte: “De la creación del mundo ó de Adan, fasta el avenimiento de nuestro Senor Jesucrito son cinco mil é trecientos y cuarenta é três anos, y trecientos y diez é ocho dias, por la cuenta del Rey Don Alonso, la cual se tiene por la mas cierta, p. de a. e.a.e.e.t. et h. u sobre el verbo X, con los cuales poniendo mil y quingentos y uno imperfeito, son por todos seis mil ochocientos curante é cinco imperfectos. Segundo esta cuenta no falta sao ciento é cincuenta y cinco anos para complimiento de siete mil, en los quaies digo arriba por las autoridades dichas que habrá de fenecer el mundo.” (“Desde a criação do mundo ou de Adão, até o advento de nosso Senhor Jesus Cristo, há cinco mil trezentos e quarenta e três anos e trezentos e dezoito dias, segundo o relato do rei Don Alonso, que é considerado o mais verdadeiro, p. de a. e.a.e.e.t. et h. sobre o Verbo, com o qual colocando mil quinhentos e um imperfeitos, há para todos seis mil e oitocentos perfeitos e cinco imperfeitos. Segundo esta conta não faltam cento e cinquenta e cinco anos para completar sete mil, nos quais afirmo acima pelas referidas autoridades que o mundo vai acabar.”) D.M.F. de NAVARRETE, Colleccón de los Viajes y Descubrimientos, II, pág. 308. Há engano parcial nas iniciais contidas no primeiro parágrafo. Deveria estar p. de a.e.a.c.c.t. et h.n. correspondentes a Pierre D'Ailly, [Tructatis ehtcidarius astronomiee concordie cum theologia et [cum] histórica narratione. O “Rey Don Alonso” é Afonso X de Castela, o das Tablas alfonsinas].

 

 

“Seja como for, o quadro que a Nóbrega inspirou o primeiro contato com o Novo Mundo parece corresponder à sedução que exerciam, em toda parte, ainda em sua época, os velhos motivos edênicos. Mas é mister notar que também corresponde a uma tendência geral, entre seus conterrâneos, ao menos no século XVI, e no Brasil, para reduzi-los constantemente às dimensões do verossímil. Em outras palavras, não se pode afirmar que participassem então os portugueses, menos do que outros povos, daquela sedução universal. O provável, no entanto, é que os motivos edênicos facilmente se refrangiam entre eles, privando-se da primeira intensidade para chegarem ao que se pode chamar sua atenuação plausível. Não é talvez sem interesse o exame dessa circunstância e de tudo quanto dela resultou para o desenvolvimento da exploração e colonização do Brasil.”

 

 

“QUE A SUPOSTA longevidade dos índios fosse efeito dos bons céus, bons ares, boas águas de que desfrutavam eles, é o que a todos resulta patente: nisto, em verdade, não se parecem distinguir das opiniões mais correntes as dos cronistas lusitanos. Sem aquelas qualidades, como explicar, segundo as ideias do tempo, o fato de não grassarem aqui, antes da conquista, várias enfermidades já notórias ao europeu, as únicas, por isso mesmo, de que tinham estes uma experiência ancestral? Era coisa por demais sabida que a ausência de tais enfermidades revelava não se achar o ar corrupto nestes lugares pela ação dos miasmas gerados da umidade e podridão. E ainda que esse ar corrupto se relacionava, de acordo com os juízos dos astrólogos, a ajuntamentos de certos corpos celestiais responsáveis pelas influências malignas.

Se bem que a Astrologia, na parte em que presume terem aqueles corpos algum poder sobre as coisas deste mundo, já houvesse encontrado sérias contraditas, e entre estas, sem falar no debate aberto por Giovanni Pico della Mirandola, a do frade português Antônio de Beja, que, em opúsculo impresso em 1527, defende, dentro da tradição escolástica, a incompatibilidade da influição astral com o livre-arbítrio e a concepção cristã da Providência Divina1, a verdade é que ela resistiu longamente à pressão dos métodos experimentais e racionais. Mesmo entre aqueles que a combatiam em nome de tais métodos, já se sabe que muitos se deixaram enfeitiçar pelo exercício das estrelas.”

1 Desse opúsculo existe edição recente publicada pelo Senhor Joaquim de Carvalho: Frei Antônio de Beja, Contra os Juízos dos Astrólogos, Coimbra, 1943.

 

 

“Ainda mais: desde 1537 a própria Santa Sé havia proibido, sob pena de excomunhão, que se tolhesse a liberdade dos índios, inclusive a liberdade de se manterem fora do grêmio da Igreja. E nada prova melhor o pleno assentimento de Sua Santidade o Papa Paulo III à campanha dos que, em Casta e na Índias de Castela, se batiam por essa liberdade, do que seu ato nomeando em 1543 Frei Bartolomeu de Las Casas Bispo de Chiapa.

Pode imaginar-se que aquelas ordens e cominações fossem rigorosamente respeitadas? Não havia de faltar quem comentasse ironicamente o zelo que assim demonstrava o Santo Padre da causa dos naturais de terras tão remotas e bárbaras, quando lhe faltavam forças, ah na Itália, na própria Roma, para impedir que prosseguisse sob o seu Pontificado, e continuaria ainda depois dele, o vergonhoso tráfico e cativeiro de infiéis33. Sabe-se, por outro lado, que nas possessões ultramarinas sempre valera o “obedezea-se, pero no se cumpla”, e isso era tão verdadeiro das colônias lusitanas quanto o era, notoriamente, das castelhanas.

Os portugueses, e em particular a Coroa portuguesa, tinham outras razões mais poderosas para que não os perturbassem muito os tais decretos. Eles não feriam, de fato, os interesses da mesma Coroa, associados de longa data ao tráfico de negros africanos. O próprio Vitória não tivera dúvidas em poupar esses interesses quando, em carta a Frei Bernardino de Vique, pretendera que ao rei de Portugal assistiam razões para permitir semelhante negócio.

Assim, por exemplo, no caso em que se originasse de guerras entre as tribos, o cativeiro era perfeitamente lícito, e nem o traficante tinha a obrigação de inquirir se se tratara de guerra justa. O que não aprovava decididamente era a captura de negros com enganos, mas também não acreditava fosse, esse, um uso generalizado, porque, a sê-lo, diz, estaria comprometida a consciência do soberano português34.

Las Casas, é certo, tendo aconselhado primeiramente a introdução de negros nas Índias, caiu depois em si, vendo a injustiça com que os tomavam os portugueses. Porque, diz, “la misma razon es dellos que de los indios”35. Contudo, a Historia de las Índias, onde figura essa retratação, apesar de ter circulado logo em manuscritos, só encontraria seu primeiro impressor três séculos após a morte de Las Casas. De qualquer modo, sua denúncia do tráfico e escravidão dos negros não encontrou a larga ressonância que tivera a campanha pela liberdade dos índios.”

33 Ludwig von PASTOR, Geschichte der Püpste, V, pág. 721.

34 Cf. Sílvio ZAVALA, Filosofia de la Conquista, pág. 104.

35 Fray Bartolomé de LAS CASAS, Historia de las Índias, III, pág. 177. O afã abolicionista, segundo nota Zavala, manifesta-se pela mesma época entre numerosos tratadistas espanhóis, e não só os da Ordem dos Predicadores. É significativo o que o Arcebispo do México, Frei Alonso de Montúfar, este aliãs dominicano, como Vitória e Las Casas, escreveu ao Rei de Castela a 30 de junho de 1560: “no sabemos”, dizia a carta, “que causa haya para que los negros sean cautivos mas que los índios, pues ellos, segun dicen, de buena voluntad reciben d evangelio y no hacen guerra a los cristianos”, S. ZAVALA, Filosofia de la Conquista, pág. 105 e segs.

 

 

“É POSSÍVEL, desta excursão já demorada à volta dos mitos geográficos difundidos na era dos grandes descobrimentos marítimos, tirarem-se conclusões válidas para um relance sobre a formação brasileira, especialmente durante o período colonial? Tentou-se mostrar, ao longo destas páginas, como os descobridores, povoadores, aventureiros, o que muitas vezes vêm buscar, e não raro acabam encontrando nas ilhas e terra firme do Mar Oceano, é uma espécie de cenário ideal, feito de suas experiências, mitologias ou nostalgias ancestrais.

Os portugueses quinhentistas não formam certamente exceção a essa regra. Pode-se, porém, dizer, tendo como base sobretudo os depoimentos de seus cronistas e historiadores, quase os nossos únicos guias disponíveis para esta viagem, que é comparativamente reduzida, entre eles, no contato dos novos mundos, a sedução de tais motivos. Não os inquieta vivamente, ao menos no Brasil, a insopitável esperança de impossíveis, que tão frequentemente acompanha, entre outros povos, as empresas de descobrimento e conquista para além das raias do mundo conhecido. São razões menos especulativas, em geral, ou fantásticas, do que propriamente pragmáticas, o que incessantemente inspira aqueles cronistas, ainda quando, em face do espetáculo novo, chegam a diluir-se em êxtases enamorados.”

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