Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-359-1667-6
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 600
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Sinopse: Os castelhanos reproduziram histórias sobre o Novo Mundo
repletas de elementos fantásticos; os portugueses, por sua vez, usaram todo o
seu pragmatismo. Originalmente defendido como uma tese na Universidade de São
Paulo, em 1958, este célebre ensaio sobre o imaginário do colonizador da
América agora em edição revista e com imagens do acervo pessoal do autor.
Examinando um
período abrangente, que se inicia nos primeiros contatos realizados pelos
colonizadores portugueses e espanhóis com o continente americano, até o século
XVI, Visão do Paraíso inaugura o ensaísmo sobre o imaginário do colonizador. O
livro, editado pela primeira vez em 1959, antecipou a historiografia das
mentalidades ao estudar os mitos edênicos que acompanharam as narrativas dos
descobrimentos e da colonização da América.
Na época de seu
lançamento, predominava o cunho econômico-social dos estudos, mas Sérgio
Buarque de Holanda recompôs a concepção paradisíaca que os descobridores tinham
do Novo Mundo, desenvolvendo uma abordagem de longa duração, cujos efeitos se
fazem sentir até os dias de hoje.
O diálogo
estabelecido com a historiografia europeia, acompanhado de um domínio amplo das
fontes documentais que retratam as visões idílicas do continente americano,
permitiu ao autor realizar uma comparação particularmente original entre a
colonização portuguesa e a espanhola da América.
O autor nos
mostra como as descrições do Novo Mundo produzidas pelos conquistadores
castelhanos estão repletas de elementos fantásticos e correspondem fielmente às
temáticas edênicas, enquanto, no caso português, o pragmatismo lusitano assume
o lugar da imaginação criadora, assegurando às visões do Paraíso um espaço
limitado na América portuguesa.
Nas palavras de
Sérgio Buarque: “todo o mundo lendário nascido nas conquistas castelhanas e que
suscita eldorados, amazonas, serras de prata, lagoas mágicas, fontes de Juventa
tende antes a adelgaçar-se, descolorir-se ou ofuscar-se, desde que se penetra
na América lusitana”.
Esta nova
edição traz um caderno de imagens com reproduções de documentos e fotografias
do acervo pessoal do autor, além de posfácios inéditos dos historiadores Laura
de Mello e Souza e Ronaldo Vainfas.
“Não sem pedantismo, mas com um
bom grão de verdade, diria efetivamente que uma das missões do historiador,
desde que se interesse nas coisas do seu tempo — mas em caso contrário ainda se
pode chamar historiador? —, consiste em procurar afugentar do presente os
demônios da História. Quer isto dizer, em outras palavras, que a lúcida
inteligência das coisas idas ensina que não podemos voltar atrás e nem há como
pretender ir buscar no passado o bom remédio para as misérias do momento que
corre.”
“O resultado mais
fecundo do exame que se tentou aqui de algumas pesquisas ultimamente realizadas
acerca do quadro ideal que do Novo Mundo forjaram os europeus — ou melhor,
castelhanos e portugueses de um lado, do outro anglo-saxões — na era dos
grandes descobrimentos está em que, obedecendo geralmente a um paradigma comum
fornecido pelos motivos edênicos, esse quadro admitia, no entanto, duas
variantes consideráveis que, segundo todas as aparências, se projetariam no
ulterior desenvolvimento dos povos deste hemisfério. Assim, se os primeiros
colonos da América Inglesa vinham movidos pelo afã de construir, vencendo o
rigor do deserto e selva, uma comunidade abençoada, isenta das opressões
religiosas e civis por eles padecidas em sua terra de origem, e onde enfim se realizaria
o puro ideal evangélico, os da América Latina se deixavam atrair pela esperança
de achar em suas conquistas um paraíso feito de riqueza mundanal e beatitude
celeste, que a eles se ofereceria sem reclamar labor maior, mas sim como um dom
gratuito. Não há, neste último caso, contradição necessária entre o gosto da
pecúnia e a devoção cristã. Um e outra, em verdade, se irmanam frequentemente e
se confundem: já Cristóvão Colombo exprimira isto ao dizer que com o ouro tudo
se pode fazer neste mundo, e ainda se mandam almas ao Céu.”
“Não era essa, então, a atitude
comum entre povos navegadores. Já às primeiras notícias de Colombo sobre as
suas Índias tinham começado a desvanecer-se naquele Novo Mundo os limites do
possível. E se todas as coisas ali surgiam magnificadas para quem as viu com os
olhos da cara, apalpou com as mãos, calcou com os pés, não seria estranhável
que elas se tornassem ainda mais portentosas para os que sem maior trabalho e
só com o ouvir e o sonhar se tinham por satisfeitos. Nada parece, aliás,
quadrar melhor com certa sabedoria sedentária do que a impaciência de tudo
resolver, opinar, generalizar e decidir a qualquer preço, pois o ânimo ocioso
não raro se ajusta com a imaginação aventureira e, muitas vezes, de onde mais
minguada for a experiência, mais enfunada sairá a fantasia.”
“E um erudito
pesquisador da história literária dos descobrimentos marítimos pôde de modo
semelhante, e sem intuito, aliás, de pretender associá-la diretamente à
sobriedade de imaginativa daqueles pilotos e exploradores, apresentar como uma
das consequências de sua obra a progressiva retração da área tradicional dos
países da lenda e do sonho. “Na época de Colombo e de Pigafetta”, observa
efetivamente Leonardo Olschki, “as experiências coloniais dos portugueses
tinham arrebatado até mesmo às terras da Ásia e da África muitos dos seus
encantos. À medida em que, no século XV, prosseguiam os empreendimentos
inspirados por Henrique o Navegador ao longo da orla ocidental africana, as
representações fabulosas e monstruosas preexistentes se iam apagando dos
roteiros, dos mapas, das imaginações, deslocando-se para outros rumos. Desde
que Dinis Dias tomou posse do Cabo Branco, em 1445, e que, passado um ano,
Álvaro Fernandes se lançou até a embocadura do Rio Grande, ou que Alvise
Cadamosto [ou Alvide da Ca' da Mosto], gentil-homem veneziano, penetrou na
região do Senegal, subindo o curso do rio para lugares não sabidos, a costa
africana deixou de ser uma incógnita e, em seguida às explorações de Bartolomeu
Dias, pareceu despojar-se até de seus mistérios. E quando, mais tarde, Vasco da
Gama, dobrando o Cabo da Boa Esperança, chega, aos 20 de novembro de 1498, à
vista de Calicute, também a Índia fabulosa vai converter-se num imenso mercado
que o grande navegador, feito vizo-rei, ensinará a desfrutar em nome de seu
soberano”25.”
25 Leonardo OLSCHKI, Storia Letteraria delle Scoperte Geografiche,
págs. 34 e segs. Tornam-se inevitáveis, contudo, alguns reparos às
circunstâncias históricas que se relatam nesse trecho. Assim é que o
descobrimento e consequente posse do Cabo Branco pelos portugueses data,
segundo as melhores probabilidades, de 1441, não de 1445. E foi devido a Nuno
Tristão, não a Dinis Dias: a ação deste último anda associada ao descobrimento
do Cabo Verde, no continente, não ao do Branco. Nada autoriza a crer, além
disso, que Álvaro Fernandes tivesse atingido o Rio Grande, ou seja, o Geba
atual, célebre pelo fenômeno do macaréu. Finalmente não parece muito exato, no
caso de Vasco da Gama, relacionar-se o aproveitamento do imenso mercado
indiano, em nome do soberano português, com o fato do grande navegador ter sido
feito vizo-rei da Índia. A verdade é que o Gama só exerceu esse posto durante
os últimos três meses, mal contados, de 1524, quando pouco tempo lhe sobraria
para enfrentar a oposição dos muçulmanos do Malabar.
“MAS COLOMBO não
estava tão longe de certas concepções correntes durante a Idade Média acerca da
realidade física do Éden que descresse de sua existência em algum lugar do
globo. E nada o desprendia da ideia, verdadeiramente obsessiva em seus
escritos, de que precisamente as novas Índias, para onde o guiara a mão da Providência,
se situavam na orla do Paraíso Terreal. Se à altura do Pária chega ele a
manifestar com mais veemência essa ideia, o fato é que muito antes, e desde o
começo de suas viagens de descobrimento, a tópica das “visões do paraíso”
impregna todas as suas descrições daqueles sítios de magia e lenda.
O espetáculo que mais fortemente o impressionara no Haiti, por exemplo,
a formosura, única na terra, daquela ilha coberta de árvores de mil maneiras,
tão altas que parecem tocar o céu, e que, tudo o leva a crer, jamais perdem as
folhas (pois que as vê em novembro, quando registra o fato, tão viridentes e
viçosas como o seriam em maio na Espanha), é um traço inseparável da paisagem
edênica. Diante do Gabo Hermoso exclama, extasiado: “Y llegando yo aqui a este cabo
vino el olor tan bueno y suave de flores ó árboles de la tierra, que era la
cosa mas dulce del mundo”. O gentio de Cuba é ao seu ver um povo “de amor y sin
cudicia, y convenible para toda cosa, que certifico a Vuestras Altezas que en
el mundo creo que no hay mejor gente ni mejor tierra: ellos aman a sus prójimos
como á si mismos, y tienen una habla la mas dulce del mundo, y mansa, y siempre
con risa. Ellos andam desnudos, hombres y mujeres, como sus madres los
parieron”1. (“E quando cheguei aqui neste cabo, veio o cheiro das flores ou das
árvores da terra, tão bom e suave, que era a coisa mais doce do mundo." O
gentio de Cuba é ao seu ver um povo “de amor e sem pudicícia, e adequado para
tudo, o que certifico a Vossas Altezas que no mundo acredito que não há gente
melhor nem terra melhor: amam o próximo como se eles próprios, e têm a fala
mais doce do mundo, e mansa, e sempre rindo. Eles andam nus, homens e mulheres,
como suas mães os deram à luz”.) (…)
Nem por isso é menos exato dizer que a convenção literária dos motivos
edênicos, onde a narrativa bíblica se deixara contaminar de reminiscências
clássicas (mito da Idade de Ouro, do Jardim das Hespérides...) e também da
geografia fantástica de todas as épocas veio a afetar decisivamente aquelas
descrições. Da selva tropical apresentada por Cristóvão Colombo não parece
demasiado pretender, com efeito, que é uma espécie de réplica da “divina
foresta spessa e viva”, que o poeta, “prendendo la campagna; lento lento”,
vai penetrar para atingir finalmente o paraíso terrestre5.
Pouco importa se alguma forma descomunal ou contrafeita parece às vezes
querer perturbar o espetáculo incomparável. Não serão apenas primores e
deleites o que se há de oferecer aqui ao descobridor. Aos poucos, nesse mágico
cenário, começa ele a entrever espantos e perigos. Lado a lado com aquela gente
suave e sem malícia, povoam-no entidades misteriosas, e certamente nocivas —
cinocéfalos, monoculi, homens caudatos, sereias, amazonas —, que podem
enredar em embaraços seu caminho.
Ainda em Cuba, subjugado por uma natureza que lhe oferece todas as galas
do Paraíso — “árboles y frutas de muy maravilloso sabor [...]. Aves y pajaritos y el cantar de
grillos en toda noche con que se holgaban todos: los aires sabrosos y dulces de
toda la noche, ni frio ni caliente”6 (“árvores e frutas de sabor muito maravilhoso [...]. Os pássaros e as
aves e o canto dos grilos a noite toda com que todos se divertiam: o ar gostoso
e doce de toda a noite, nem frio nem quente”) —, recebe as primeiras notícias daqueles
horrores: “hombres de un ojo y otros con hocicos de perros que comiam hombres,
y que en tomando uno lo degollaban y le bebian su sangre y le cortaban su
natura”7. (“homens com um olho e outros com focinho de cachorro que comiam homens,
e quando pegavam um deles cortavam sua garganta e bebiam seu sangue e
eliminavam sua natureza.”)
Mais tarde dizem-lhe que em Cibao os homens nascem com rabo8. Por informações de certos
índios que tomara a bordo na Espanhola, soubera, ainda em janeiro de 1493, três
meses após o descobrimento, de uma ilha chamada Matinino, a atual Martinica, só
habitada por mulheres. Em dada época do ano lá desembarcavam os homens da Ilha
de Caribe (ou seja, de Porto Rico) e faziam com elas o que iam a fazer: desses
seus ajuntamentos, se nasciam machos, logo os mandavam à dita Ilha de Caribe.
As meninas, deixavam-nas ficar consigo9.
É interessante notar como nestes casos, não menos do que nos motivos
claramente edênicos, se mostra Colombo ainda tributário de velhas convenções
eruditas, forjadas ou desenvolvidas por inúmeros teólogos, historiadores,
poetas, viajantes, geógrafos, até cartógrafos, principalmente durante a Idade
Média. E convenções, por pouco que o pareçam, continuamente enlaçadas ao
próprio tema do Paraíso Terreal. Quase se pode dizer de todas as descrições
medievais do Éden que são inconcebíveis sem a presença de uma extraordinária
fauna mais ou menos antropomórfica. Ela pertence, a bem dizer, aos arrabaldes
daquele jardim mágico, e foi posta ali aparentemente pela própria mão de Deus.
Santo Isidoro, que acreditava piamente na existência desses seres estranhos e
chegou a dividi-los em quatro ramos distintos, os portentos, os ostentos, os
monstros e os prodígios, segundo parecessem anunciar, manifestar, mostrar
ou predizer algo futuro, rebate a afirmação dos que os imaginavam nascidos
contra a lei da Natureza, pois a verdade, diz, 6 que “foram feitos pela vontade
divina e a natureza de toda coisa criada é a vontade do Criador sobre ela”10.
Alegoricamente poderia talvez interpretar-se a sua presença nas
proximidades do paraíso como significando que não nos devemos, um só momento,
descurar de nossa salvação, e ainda que a alma não se há de encaminhar aos
prêmios imortais tão segura deles e com tal salvo-conduto que pareça ir sem
medo.
Ao genovês não custaria traduzir segundo seu gosto e certeza — a certeza
de que se achava no extremo oriente da Ásia — os gestos e mímicas dos índios
que interpelava. E assim como se convencionara situar no Oriente, onde a
tradição colocara também o Paraíso, um terreno de eleição para essa fauna
fantástica, fazia-se mister encontrá-la nas terras novamente descobertas. De
sorte que os cinocéfalos, por exemplo, a que pareceram aludir os índios de
Cuba, não deveriam ser diversos daqueles habitantes da Ilha Agama, talvez os
andamaneses de hoje, a que se referira Marco Polo: homens que tinham todos
“cabeças de cão e dentes e focinho semelhantes aos de um grande mastim”11. De homens com rabo de “mais de
um palmo de comprido” também tratara o veneziano, localizando-os no reino de
Lambri, rico em árvores de pau-brasil: “II hi a berci en grant abondance”12 ( “Ele foi embalado em grande abundância”), diz com efeito o velho texto
francês. Dessa planta preciosa foram levadas sementes a Veneza e o frio as não
deixou germinar.
O Paraíso Terrestre não se inclui no itinerário de Marco Polo; outros,
porém, que presumem tê-lo visto ou conhecido por notícias fidedignas, não
deixariam de dizer que era um jardim rodeado de figuras monstruosas, que nada
ficam a dever aos cinocéfalos e caudatos. No Ymago Mundi de Hygden,
anterior a 1360, aparece na parte oriental, ao alto, um quadrilátero destinado
ao Éden. Três rios que saem desse local para desembocar no Indo são
atravessados por uma inscrição indicando a existência ali de seres humanos que
se sustentam do simples perfume das frutas. Outras inscrições, estas à esquerda
do Paraíso, falam de homens que encanecem na mocidade e criam, na velhice,
cabelos pretos (“hic homines canescunt in iuventude et nigrescunt in
senectute”) (aqui os homens são grisalhos na juventude e negros na velhice),
de mulheres que concebem aos cinco anos de idade para perecerem aos oito, e
finalmente de hermafroditas com o peito direito de homem e o esquerdo de mulher13. Ainda em 1436, o mapa de Andréa
Bianco, provavelmente conhecido de Colombo, mostra, ao lado do Paraíso, numa
península projetada do oriente da Ásia, homens sem cabeça e com os olhos e a
boca no peito14.”
1 D. Martin Fernandez NAVARRETE,
Colección de los Viajes y Descubrimientos, I, pág. 249.
6 D. Martin Fernandez NAVARRETE,
Colección de los Viajes y Descubrimientos, I, pág. 187. A referência à amenidade perpétua
do clima “nem frio, nem quente” — non ibi frigus, non aestus —
constitui, pelo menos a partir de Santo Isidoro de Sevilha, uma constante das
visões do Paraíso.
7 NAVARRETE, Colección de los
Viajes, I, pág. 192.
8 NAVARRETE, Colección de los
Viajes, I, pág. 301.
9 NAVARRETE, Colección de los
Viajes, I, pág. 273.
10 SANTO ISIDORO DE SEVILHA, Etimologias Lib. XI, cap. III.
11 MARCO POLO, Il Milione, pág.
282.
12 MARCO POLO, Il Milione, pág. 279 e n. Segundo todas as
probabilidades, essa alusão a homens de cauda refere-se aos orangotangos, de
que o viajante poderia ter tido notícia nos lugares que percorreu.
13 Joachim LELEWEL, Géographie
du Moyen-Âge, V (Épilogue), págs. 147 e segs.
14 Joachim LELEWEL, Géographie
du Moyen-Âge, II, pág. 86.
“A ideia de que existe na Terra, com efeito,
algum sítio de bem-aventurança, só acessível aos mortais através de mil perigos
e penas, manifestos, ora sob a aparência de uma região tenebrosa, ora de
colunas ígneas que nos impedem alcançá-lo, ou então de demônios ou pavorosos
monstros, pode prevalecer, porém, independentemente das tradições clássicas ou
das escolásticas sutilezas. Na história, por exemplo, das peregrinações de São
Brandão, originária de antigas lendas celtas, a Ilha dos Santos, meta dos navegadores
irlandeses, só é atingida após dilatada viagem sobre um mar infestado de
dragões e gigantes, povoado de ilhas sagradas ou malditas, de onde se eleva, ao
cabo, uma larga muralha de trevas, espécie de “mar tenebroso”, que hão de
transpor os peregrinos quando já se achem quase à vista do lugar a que se
destinam.
Não falta sequer, na ilha de
Paulo o eremita, visitada por Brandão e seus companheiros, uma réplica da fonte
de Juventa, que aparece quase obrigatoriamente nas descrições medievais do
Paraíso Terrestre19. Segundo versão bastante generalizada entre essas descrições, é do
próprio Éden que manam suas águas para ir jorrar de sítio não muito apartado
dele, após um percurso subterrâneo. Mandeville, ainda que, muito a seu pesar,
não pudesse visitar aqueles jardins maravilhosos, cujo ingresso é vedado aos
humanos por um largo deserto povoado de feras, cortado de montanhas invencíveis
e ásperos rocheados, e também pelo tenebroso, pôde, no entanto, ver a fonte e
beber de sua água três ou quatro vezes, com o que se sentira melhor disposto e
assim contava permanecer até que o chamasse Deus desta vida mortal. Achava-se
ela situada ao sopé da montanha chamada Polumbo e o cheiro e sabor das águas,
posto que mudassem de hora em hora, lembravam toda casta de especiarias20.
No texto da célebre carta do
Preste João, precisa-se que a mesma fonte ficava situada à distância de três
dias do jardim de onde Adão fora expulso. Quem provasse por três vezes daquelas
águas, achando-se em jejum, ficaria livre de quaisquer enfermidades e passaria
a viver como se não tivesse mais de 32 anos de idade21.”
19 Journal de Bord de Saint-Brendam, pág. 189.
20 Mandeville’s Travels, II, págs.
325 e segs.: “Et dist on que celle fontaine vient de paradis, et pour ce est
elle si vatueuse. Est avec ce ceuls qui souvent en boivent semblent entre
tousjours jeunes, dont les aucuns lappellent et dient que c'est la fontaine de
iouuent, pour ce quelle fait ressembler a estre les gens iouenes.” (“E dizem que esta fonte é
proveniente do paraíso, por isso é tão bela. É por isso que aqueles que bebem dela
muitas vezes parecem sempre jovens, alguns dos quais a designam como a fonte da
alegria, por fazer as pessoas parecerem jovens”).
21 Richard HENNIG, Terrae
Incognitae, II, págs. 361 e segs.; Mandeville's
Travels, II, pág. 159.
“De que podem valer especulações
desvairadas, inquietas solicitudes e fantasias, bons ou maus agouros, afinal,
se indiferente a tudo isso, o mundo há de seguir seu curso? “Admitindo que
conheças as coisas vindouras pelos astros, de que te servirá isso? Qui iuvat?”
Assim escreveu o português Francisco Sanches em seu poema sobre o medonho
cometa de 1577, que alguns hão de ter por anúncio do fim sombrio de Dom
Sebastião. “A ninguém”, acrescenta esse filósofo, “a ninguém é dado furtar-se
ao próprio fado. Aquilo que há de vir, virá, seja qual for o teu alvitre”91. E é nesse fatalismo, tão alheio à curiosidade
universal dos humanistas, que em grande parte se nutre um pensamento onde não
faltou, contudo, quem pretendesse vislumbrar antecipações de Bruno ou de Bacon.”
91 Francisco SANCHES, “Carmen De Cometa Anui M. D. LXXVII”. Opera
Philosophica, pág. 143 e segs.
“Mas a própria hipótese, se
fundada em melhores razões, de uma inspiração da Ordem de Cristo, quando esta
se achava já empolgada pela Coroa, não pode simbolizar senão o poder de uma
realeza absorvente e disciplinadora das vontades individuais e que, por isso,
deixa pouco lugar à fantasia turbulenta dos heróis da cavalaria. No que
respeita a essa afirmação decisiva do poder monárquico não há dúvida que
Portugal amadureceu cedo: mais cedo do que o resto da península hispânica e,
quase se pode dizer, do que o resto da Europa.
Todavia, se a unificação logo
obtida e a sublevação popular e “burguesa”, que dera o poder supremo à Casa de
Avis, ajudaram largamente a mudar-lhe a fisionomia, reorganizando em sentido
moderno, isto é, no sentido de absolutismo, suas instituições políticas e
jurídicas, além de abrir caminho à expansão no Ultramar, não é menos certo que
o deixaram ainda, por muitos aspectos, preso ao passado medieval. E a própria
rapidez e prematuridade da mudança fora, de algum modo, responsável por esses
resultados.
A verdade é que tinham ascendido
novos homens, mas não ascenderam, com eles, suas virtudes ancestrais. Uma burguesia
envergonhada de si, de seu antigo abatimento social, substituíra-se à velha
nobreza, contestando-se com o acomodar-se, tanto quanto possível, aos padrões
desta. E como sucede constantemente em casos tais, aferra-se tanto mais às
aparências quanto mais lhe faltava em substância.
O resultado foi esse estranho
conluio de elementos tradicionais e expressões novas, que ainda irá distinguir
Portugal em pleno Renascimento, posto a serviço da pujança da monarquia. Melhor
se diria, forçando a comparação, que as formas modernas respeitaram ali, em
grande parte, e resguardaram, um fundo eminentemente arcaico e conservador.
Moderna é, sem dúvida, aquela avassaladora preponderância da Coroa, num tempo
em que o poder real ainda luta, cm outras terras, com maior ou menor êxito, por
sobrepujar as vontades particularistas. Aqui, ao contrário, como encontrasse
poucas resistências desse lado, a realeza lograra mobilizar em torno de si
energias ativas da população.
Tratava-se, não obstante, de uma
simples fachada que mal encobria os traços antiquados, sobretudo a forma mentis
vinculada ao passado e avessa, por isso, à especulação e à imaginação
desinteressadas do humanismo renascentista. No íntimo sempre se mostrarão os
portugueses pouco afeitos às transformações espirituais que, em muitos outros
países, se operam simultaneamente com a grande obra dos navegadores do Reino.
Seu conservantismo, nesse ponto, seria semelhante ao do ermitão de um dos
diálogos de Frei Heitor Pinto, para quem a verdadeira filosofia não consiste tanto
no saber quanto no fazer e no amar14.
E quando, já para os fins do
século XVI, mesmo esse antigo cerne se deixa corroer por todas as partes, nada
de autêntico o substituirá, desfalecidas que se acham, e como “burocratizadas”,
as energias verdadeiramente criadoras do povo. Alarmam-se, então, inutilmente,
os moralistas, ante o gosto de novas invenções, das burlas, dos fumos da
fantasia, o dar ao querer mais vela do que lastro. Em suma, ante o rápido
descaimento, no Reino, de tudo quanto parecera ter produzido sua passada
grandeza. Às vésperas mesmo da catástrofe nacional que se há de seguir à morte
del-rei Dom Sebastião, tentara ainda Diogo do Couto apontar para o exemplo
oferecido pelas nações pouco dadas a mudanças, como os chineses e os venezianos15. Não estaria nesse
conservantismo a causa principal das qualidades que os distinguiam, da grandeza
de uns e da fama de outros?
No Brasil, de qualquer forma, só
aos poucos parece ir perdendo terreno, em favor das novas fumaças, aquele
realismo repousado, quase ascético ou ineloquente, que vemos refletido, por
exemplo, nos escritos dos primeiros cronistas. Abrem exceção, mesmo antes de
Simão de Vasconcelos, algumas biografias — quase hagiografias — de um Padre
Anchieta, mas as concessões ao milagroso não são novidade nem escândalo, num
gênero que, por definição, deve abrir crédito ao sobrenatural.
É lícito pensar ainda que certas
ideias bem precisas ou até pragmáticas servissem de reforço à simples devoção
visionária sempre aberta à possibilidade de raros portentos, feitos maravilhosos,
profecias, intuições divinatórias, transes, aparições, levitações, ubiquidades,
como os que se multiplicam nas páginas desses livros, pois o que inspira muitos
de seus autores, fiéis neste ponto ao espírito da era do barroco, é sobretudo o
afã de despertar os ânimos, ocupando os olhos. E porventura alguma ambição
ainda mais definida, como seja a de ver eternamente glorificada a obra
missionária dos inacianos nesta parte do Novo Mundo, através da canonização de
um de seus maiores apóstolos, de sorte que o Brasil nada ficasse a dever às
Índias. Anchieta canarino de ascendência basca seria como a réplica americana
de São Francisco Xavier, outro basco.
Já em Vasconcelos, porém, essa
imaginação piedosa irá complicar-se através da fascinação mirífica dos segredos
e “curiosidades” da terra. E a tanto vai a fascinação que não se contenta ele
apenas com o invocar testemunhos alheios, mas procura sustentar-se, cm um ou
outro caso, nas próprias e delirantes visões. Assim é que trata de abonar com
seu depoimento pessoal os mais extravagantes fenômenos, como o é a metamorfose
de uns bichinhos brancos, nascidos à tona da água, que julga ver, com seus
olhos, fazerem-se mosquitos, estes mudarem-se em lagartixas, estas tornarem-se
borboletas e finalmente as borboletas transformarem-se em colibris16.
Ainda aqui é preciso dizer que os
olhos do cronista se deixaram simplesmente iludir pelo prestígio de uma opinião
corrente e já tradicional entre os índios da costa, que costumavam dar os colibris
por mensageiros de outra vida. Apesar de oposta à lei da natureza e ainda à
velha doutrina de que nenhum vivente se pode converter em outro sem corrupção,
a mesma crença, já registrada, ainda que mais discretamente, por Anchieta17 e Cardim18, teria em seu favor manifestas
aparências. Sabe-se, com efeito, de certas borboletas do Brasil, que são muitas
vezes vistas a esvoaçar junto aos beija-flores em busca do mesmo pasto, e
Wappaeus, que relembra essa circunstância, também alude ao caso do observador
que, em sua caça, atirava nelas cuidando ter apontado para estes pássaros19.”
14 Frei Heitor PINTO, Imagem da Vida Cristã, I, pág. 77.
15 Diogo do COUTO, O Soldado Prático, pág. 145.
16 Simão de VASCONCELOS, Vida do P. Joam de Almeida da Companhia de Jesus
na Província do Brasil, pág. 236.
17 Padre Joseph de ANCHIETA, S.J., Cartas, Informações, Fragmentos
Históricos e Sermões, pág. 124.
18 Fernão CARDIM, Tratados da Terra e Gente do Brasil, pág. 52.
19 Padre Joseph de ANCHIETA, Cartas, Informações etc., p. 140, n.
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