Editora: Record
ISBN: 978-85-01-05376-3
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 338
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Sinopse: Publicado
em 1969, traduzido para dez idiomas e adaptado para o cinema e a TV, o livro Tenda dos Milagres é um grito contra o
preconceito racial e religioso, um canto à miscigenação e ao sincretismo tão
marcantes na obra do escritor Jorge Amado. É a história de Pedro Archanjo, um
mulato de muitos amores – alguns contidos em nome da amizade –, que documentou
a cultura popular e provou a ascendência negra da aristocracia baiana do início
do século XX. A história de do herói pobre, boêmio e erudito, que assumiu o
preço de colocar o dedo na ferida dos inimigos da mestiçagem.
“As conferências (do prêmio Nobel James Levenson), seguidas de perguntas
e debates inflamados, por vezes ácidos, deram lugar a violentas manifestações
estudantis de apreço ao sábio e de repúdio à ditadura. De pé e durante longos
minutos, por mais de uma vez, os estudantes ovacionaram em delírio. Certas
frases suas caíram no gosto do público, correram o país de extremo a extremo: mais valem dez anos de intermináveis conferências
internacionais do que um só dia de guerra e são mais baratos; as prisões e os
policiais são idênticos e sórdidos em todos os regimes, sem exceção de nenhum;
o mundo só será realmente civilizado quando as fardas forem objetos de museu.
Cercado
por fotógrafos e vedetes, metido numa sunga minúscula, Levenson reservou as
manhãs inteiras para a praia.
Sistemático,
recusara convites de academias, institutos, grêmios, conselhos culturais,
professores — tudo isso tinha de sobra em Nova Iorque e estava farto, mas
aquele sol do Brasil quando voltaria a tê-lo? Nas praias jogou até futebol e
foi fotografado atirando a gol, embora as mulheres fossem sem dúvida seu
esporte predileto. Estabeleceu intimidade com ótimos exemplares nacionais, na
praia e nas boates.
Recém-divorciado,
os colunistas sociais se desmandaram em lhe atribuir casos e noivas. Desvairada
macaca, noticiarista de escândalos, previu a ruína de um lar grã-fino;
enganou-se: o marido honradíssimo, fez-se íntimo do sábio garanhão. Ontem, na pérgola do Copa, num biquíni de
Cannes, Katy Siqueira Prado contemplava com ternura seu marido Baby e o grande
James D., inseparáveis, refutara o gabaritado Zul. Certa revista de ampla
circulação exibiu na capa do número daquela semana a nudez atlética do Nobel ao
lado da promocional nudez de Nádia Sílvia, atriz de grande talento a ser
revelado quando lhe derem no cinema ou no palco. a oportunidade que até agora
inexplicavelmente lhe têm negado — e Nádia, ouvida pela reportagem, riu muito,
nada confessou, tampouco negou paixão e compromisso. Levenson é a sexta celebridade mundial a perder a cabeça por Nádia Sílvia,
a irresistível, noticiou um jornal, a sério, e deu a relação dos cinco
anteriores: John Kennedy, Richard Burton, Aga Khan, um banqueiro suíço e um
lorde inglês. Sem falar na condessa italiana, nobre, milionária e machona.
O genial Levenson ontem mais uma vez na pista do
Le Bateau, in love com a glamorosa Helena von Kloster, lia-se na Crônica
da Noite, de Gisa; aprendeu o samba e
não aceita outro ritmo, revelava Robert Sabad em dezoito jornais e outras
tantas estações de TV, dando ciência aos povos da frase de Branquinha do Val
Burnier, a hostess magnífica, mesa e cama incomparáveis: Se James não fosse o Prêmio Nobel que é, poderia ganhar a vida como
dançarino profissional. Jornais e revistas se esbaldaram, não lhes faltou o
sábio.
Nada,
porém, tão sensacional quanto a declaração sobre Pedro Archanjo, bomba a
explodir no aeroporto, na hora do embarque para a Bahia. Em verdade, no
primeiro contato com a imprensa, ao chegar de Nova Iorque, Levenson fizera
breve referência ao baiano, citara-lhe o nome: Estou na pátria de Archanjo, sinto-me feliz. Os repórteres, no
entanto, não consignaram a frase, ou por não entendê-la, ou por não lhe
atribuir maior significação. Ao partir para a Bahia, porém, foi diferente, pois
o desconcertante Prêmio Nobel declarou ter reservado dois dias de sua curta
permanência no Brasil para ir a Salvador, conhecer
a cidade e o povo que foram objeto dos estudos do fascinante Pedro Archanjo, em
cujos livros a ciência é poesia, autor que elevara tão alto a cultura
brasileira. Foi um deus-nos-acuda.
Quem
é esse tal de Pedro Archanjo, do qual nunca se ouviu falar? — interrogavam-se
os jornalistas, boquiabertos. Um deles, na esperança de uma deixa, quis saber
de que maneira Levenson tomara conhecimento desse autor brasileiro. Lendo seus livros — respondeu o sábio —, seus livros imperecíveis.
A
pergunta fora de Ápio Correia, um sabidório, editor do caderno de ciência, arte
e literatura de um matutino, sabidíssimo e temerário picareta.
Levou
seu blefe adiante: disse não ter notícias de tradução de livros de Archanjo
para o inglês.
Não
lera tais livros em inglês e, sim, em português, informou o terrível americano,
acrescentando tê-lo podido fazer, apesar de possuir conhecimentos mínimos de
nossa língua, devido ao seu domínio do espanhol e sobretudo do latim. Não foi difícil, completou, esclarecendo
ter descoberto os livros de Archanjo na biblioteca da Columbia, em pesquisa
recente sobre a vida dos povos tropicais. Tinha a intenção de fazer traduzir e
publicar nos Estados Unidos a obra de
vosso grande compatriota.
Tenho de agir rapidamente, pensou Ápio Correia,
retirando-se em busca de um táxi que o levasse à Biblioteca Nacional.
Foi
um corre-corre até os jornalistas descobrirem e localizarem o professor Ramos,
eminente por vários títulos e agora por conhecer a obra do tal Archanjo, cujo
valor mais de uma vez afirmara e exaltara em artigos nas revistas
especializadas, infelizmente de quase nenhuma circulação e menor leitura.
Durante anos — contou ele — andei de editor em editor, numa via-crúcis, oferecendo os livros de
Archanjo para que os reeditassem. Escrevi prefácios, notas de pé- de-página,
explicações: nenhuma editora se interessou. Fui ao professor Viana, diretor da
Faculdade de Filosofia, para ver se, com sua interferência, a Universidade
colaboraria na publicação.
Respondeu-me que eu estava perdendo tempo com as baboseiras de um negro
bêbado. Bêbado e subversivo. Talvez agora
se deem conta da grandeza da obra de Archanjo, já que Levenson lhe empresta a
devida importância. Aliás, diga-se de passagem, ser a obra de Levenson
igualmente mal conhecida no Brasil e esses que tanto o elogiam e adulam não
leram sequer seus livros fundamentais, não percebem a essência de seu
pensamento, são uns charlatães.
Um
tanto amarga, como se nota, a entrevista do professor Ramos, mas, convenhamos:
sobravam-lhe razões para sentir-se melancólico — tantos anos lutando por um
lugar ao sol para o pobre Archanjo, sem nada conseguir, ouvindo recusas de
editores, estultícias e ameaças de Viana Dedo-duro, enquanto, com uma única
entrevista, um estrangeiro pusera em movimento toda a imprensa e a matilha dos
intelectuais a farejar os livros, a fuçar a memória do ignorado baiano
intelectuais de todas as tendências e correntes, sem distinção de ideologia, os
festivos e os soturnos, pois Pedro Archanjo entrara em moda e quem não
conhecesse e não citasse suas obras não poderia considerar-se atualizado e para
a frente.”
“Uma
vez por semana, às quartas-feiras, invariável, com sol ou chuva, Archanjo vinha
buscá-lo em sua tenda de imagens, primeiro para as cervejotas geladíssimas no
bar de Osmário, depois para o amalá no candomblé da Casa Branca. A conversa
mansa, entremeada de casos, uma conversa antiga:
—
Despeje o saco, meu bom, conte as peripécias.
—
Não sei de nada, mestre Archanjo, de novidade nenhuma.
—
Ora, se sabe... Meu bom, a toda hora acontecem coisas, coisas lindas, umas de
rir, outras de chorar. Vá; desamarre a língua, camarado, que boca foi feita
para falar.
Que
maneira, que léria, que poder possuía ele para abrir a boca, o coração dos
demais? Nem as mães de santo mais ciosas e estritas, tia Maci, dona Menininha,
Mãe Senhora, do Opô Afonjá, as respeitáveis matronas, nem elas guardavam
segredos para o velho, tudo lhe revelando de mão beijada — aliás os orixás
assim tinham ordenado, para Ojuobá não há
porta fechada.
Ojuobá,
os olhos de Xangô, agora ali estirado morto junto ao passeio.
Se
acabaram as cervejas, mestre Archanjo, três ou quatro garrafas; numa
quarta-feira pagava o velho, na outra a despesa era do santeiro — se bem nos
últimos tempos o velho andasse liso e teso, sem níquel. Valia a pena ver-se sua
satisfação na semana em que obtinha uns trocados, uns escassos caraminguás —
batendo com força na mesa para advertir o garçom:
—
Traga a conta, meu bom...
—
Deixe comigo, mestre Archanjo, guarde seu dinheirinho...
—
Em que lhe ofendi para você me desconsiderar, camarado? Quando eu não tenho
dinheiro, você paga, não me aflijo, que não é por minha culpa e querer. Mas se
hoje estou rico, por que você há de pagar? Não me tire meu dever nem meu
direito, não diminua o velho Archanjo, me deixe inteiro, meu bom.
Ria
um riso de dentes brancos, conservara perfeitos todos os seus dentes, chupava
roletes de cana, mastigava jabá.
—
Não é dinheiro roubado, ganhei com meu suor.
Servindo
de moço de recados em casa de putas, seu trabalho derradeiro, quem o visse tão
alegre e satisfeito, não imaginaria nunca as limitações, os apertos, a infinita
pobreza de seus últimos anos. Ainda na última quarta-feira não cabia em si de
contente: na pensão de Ester conhecera um moço estudante, sócio de uma gráfica,
disposto a imprimir seu livro — lera os anteriores e dissera em alto e bom som
que Archanjo era um retado, desmascarara
toda aquela corja de charlatães da Faculdade.
No
bonde, no começo da noite de estrelas e viração do mar, no caminho do Rio
Vermelho de Baixo onde se ergue na colina a Casa Branca do Engenho Velho,
mestre Archanjo contara do novo livro, os olhinhos brilhando, trêfegos e
maliciosos. Quanta coisa recolhera, anotara nas cadernetas, para aquela obra, um embornal de abregueces, a sabedoria
do povo:
—
Só o que juntei em casa de mulher-dama, meu bom, você nem se imagina. Fique sabendo,
camarado, não há melhor lugar para um filósofo morar do que casa de rapariga.
—
Você é mesmo um filósofo, mestre Archanjo, o maior que já vi, não tem igual
para saber levar a vida com filosofia.
Iam
ao candomblé para o amalá de Xangô, obrigação das quartas-feiras.
Tia
Maci dava de-comer ao santo, no peji, ao som do adjá e do canto das feitas.
Depois, em torno à grande mesa na sala, serviam o caruru, o abará, o acarajé,
por vezes um guisado de cágado. Mestre Archanjo era bom de garfo, de garfo e copo.
A conversa prolongava-se noite adentro, animada e cordial no calor da amizade;
ouvir Archanjo era privilégio dos pobres.
Se
acabou o livro, o amalá e a cachaça, a viagem de bonde e de imprevistos; o
velho conhecia cada recanto do caminho, casas e árvores eram-lhe familiares, de
uma familiaridade secular, pois sabia de agora e de antes, de quem era e de
quem fora, o filho e o pai, o pai do pai e o pai do avô e com quem se
misturaram. Sabia do negro vindo escravo da África, do português degredado da
Corte, do cristão-novo fugido da Inquisição. Agora todo o saber se terminou, e
o riso e a graça, fecharam-se os olhos dos olhos de Xangô, Ojuobá só serve para
o cemitério. O santeiro desfaz-se em lágrimas, solitário e vazio.
Assim
como não fica bêbado, o Major não consegue chorar, a não ser — e com que
facilidade! — em júri ou em comemoração se necessário emocionar os ouvintes,
ganhá-los para sua causa. Mas a dor verdadeira, essa o come por dentro, nas entranhas,
não se exibe no rosto.
Mané
Lima proclamou o nome e a morte do velho para o mundo inteiro, postado no meio
da Ladeira do Pelourinho, lugar próprio e certo, mas na hora baça da antemanhã
apenas uns ratos enormes e um cachorro magro escutaram-lhe o grito.
O
Major desprende-se da visão fatal, sai rua a fora em direção à casa de Ester, o
peso da notícia verga-lhe os ombros. Lá emborcará o trago forte e necessário.”
“Não
chores, meu filho; não chores que a vida é luta renhida: viver é lutar.”
(Gonçalves Dias)
“Ali, na Tenda dos Milagres, tudo pode acontecer
e acontece.”
“(...) Definição do viver de Rosa, de seus
particulares, só Majé Bassan a tem, os porquês e a consequência, tudo bem
guardado nos desmedidos seios. Seios de mãe-de-santo devem ser assim, enormes,
para neles caber a aflição dos filhos e filhas e de estranhos e estrangeiros.
São arcas de desesperos e rancores, de esperanças e sonhos; são cofres de amor
e ódio.”
“Não me restando alternativa, retornei ao Jornal da Cidade, disposto a aceitar a proposta indigna, porém única,
e vender por dez réis de mel coado o melhor de meu material. Com o arrojo dos
desesperados, bati à porta do doutor Zezinho e o grande patrão me escutou
bondosamente. Quando, porém, lhe exibi minhas notas, por pouco não fatura uma
crise histérica. Isto é exatamente o que
não quero: essa falta de respeito com um grande homem, com um espírito
superior. Esse achincalhe, esse apequenamento da figura de Archanjo. Não
admito! Se lhe compramos essas laudas de tagarelices e maledicências é
exatamente para pô-las fora, para que não sejam usadas e não maculem a imagem
de Pedro Archanjo. Meu caro Fausto, pense nas crianças das escolas.
Pensei
nas crianças das escolas, vendi por ninharia meu silêncio. Doutor Zezinho,
ainda nervoso, completou: Polígamo, que
infâmia! Não era sequer casado! Meu caro poeta, aprenda esta lição: um grande
homem tem de possuir integridade moral e se, por acaso, transigiu e prevaricou,
cabe-nos repô-lo em sua perfeição. Os grandes homens são patrimônios da Pátria,
exemplos para as novas gerações: devemos mantê-los no altar do gênio e da
virtude.
Com
o vale e a lição, agradeci e retirei-me, fui em busca de Ana Mercedes e de
uísque, consolos caros.”
“Se o Brasil concorreu com alguma
coisa válida para o enriquecimento da cultura universal, foi com a miscigenação
— ela marca nossa presença no acervo do humanismo, é a nossa contribuição maior
para a humanidade.”
“Quando
iniciara o livro, a imagem pernóstica de determinados professores e o eco das
teorias racistas estavam presentes a seu espírito e influíam nas frases e
palavras, condicionando-as e limitando-lhes a força e a liberdade. À proporção,
porém, que páginas e capítulos foram nascendo, Pedro Archanjo esqueceu
professores e teorias, não mais interessado em desmenti-los numa polêmica de
afirmações para a qual não tinha sequer preparo, e sim em narrar o viver
baiano, as misérias e as maravilhas desse quotidiano de pobreza e confiança; em
mostrar a decisão do perseguido e castigado povo da Bahia, de a tudo superar e
sobreviver, conservando e ampliando os bens da dança, do canto, do metal, do
ferro, da madeira, bens da cultura e da liberdade recebidos em herança nas
senzalas e quilombos.”
“O problema racial, camaradas, é
consequência do problema de classes — explicava Ildásio, citando autores, calmo, sem
exaltar-se. No Brasil, camaradas, negros
e mulatos são discriminados em sua condição de proletários: branco pobre é
negro sujo, mulato rico é branco puro.”
“—
No julgamento dos homens, prefiro superestimar, pois quem subestima em geral mede
os demais por sua própria medida.”
“—
Você, mestre Pedro, é um devasso, um libertino. Nada sabe do amor, só sabe de
mulheres — a ex-Princesa do Recôncavo, a ex-Rainha do Cancã suspira: — Igual a
mim, sei de homens, saberei do amor?”
“—
Quando se quer aplicar as teorias a ferro e fogo, elas nos queimam a mão.”
“O
doutor Fraga Neto diz que não há branco nem negro, há rico e pobre tão-somente.
O que é que você quer, compadre? Que o moleque estude e continue aqui na
pobreza do Tabuão? Foi para isso que ele estudou? Doutor Tadeu Canhoto, genro
do coronel, herdeiro de terras e de gado, bolsa na França, viagem na Europa,
não há branco nem negro, no Corredor da Vitória o dinheiro embranquece, aqui
miséria negra.
Cada
um com sua sina, meu bom. Os moleques dessa rua, camarado, vão se dividir, cada
um o seu destino. Alguns calçarão sapatos, usarão gravata, doutores de
Faculdade. Outros prosseguirão aqui, com a bigorna e o malho. A divisão de
branco e negro, meu bom, se acaba na mistura, em nossa mão já se acabou,
compadre. A divisão agora é outra e quem vier atrás feche as cancelas.”
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