segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Tenda dos milagres (Parte I), de Jorge Amado

Editora: Record

ISBN: 978-85-01-05376-3

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 338

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Sinopse: Publicado em 1969, traduzido para dez idiomas e adaptado para o cinema e a TV, o livro Tenda dos Milagres é um grito contra o preconceito racial e religioso, um canto à miscigenação e ao sincretismo tão marcantes na obra do escritor Jorge Amado. É a história de Pedro Archanjo, um mulato de muitos amores – alguns contidos em nome da amizade –, que documentou a cultura popular e provou a ascendência negra da aristocracia baiana do início do século XX. A história de do herói pobre, boêmio e erudito, que assumiu o preço de colocar o dedo na ferida dos inimigos da mestiçagem.



As conferências (do prêmio Nobel James Levenson), seguidas de perguntas e debates inflamados, por vezes ácidos, deram lugar a violentas manifestações estudantis de apreço ao sábio e de repúdio à ditadura. De pé e durante longos minutos, por mais de uma vez, os estudantes ovacionaram em delírio. Certas frases suas caíram no gosto do público, correram o país de extremo a extremo: mais valem dez anos de intermináveis conferências internacionais do que um só dia de guerra e são mais baratos; as prisões e os policiais são idênticos e sórdidos em todos os regimes, sem exceção de nenhum; o mundo só será realmente civilizado quando as fardas forem objetos de museu.

Cercado por fotógrafos e vedetes, metido numa sunga minúscula, Levenson reservou as manhãs inteiras para a praia.

Sistemático, recusara convites de academias, institutos, grêmios, conselhos culturais, professores — tudo isso tinha de sobra em Nova Iorque e estava farto, mas aquele sol do Brasil quando voltaria a tê-lo? Nas praias jogou até futebol e foi fotografado atirando a gol, embora as mulheres fossem sem dúvida seu esporte predileto. Estabeleceu intimidade com ótimos exemplares nacionais, na praia e nas boates.

Recém-divorciado, os colunistas sociais se desmandaram em lhe atribuir casos e noivas. Desvairada macaca, noticiarista de escândalos, previu a ruína de um lar grã-fino; enganou-se: o marido honradíssimo, fez-se íntimo do sábio garanhão. Ontem, na pérgola do Copa, num biquíni de Cannes, Katy Siqueira Prado contemplava com ternura seu marido Baby e o grande James D., inseparáveis, refutara o gabaritado Zul. Certa revista de ampla circulação exibiu na capa do número daquela semana a nudez atlética do Nobel ao lado da promocional nudez de Nádia Sílvia, atriz de grande talento a ser revelado quando lhe derem no cinema ou no palco. a oportunidade que até agora inexplicavelmente lhe têm negado — e Nádia, ouvida pela reportagem, riu muito, nada confessou, tampouco negou paixão e compromisso. Levenson é a sexta celebridade mundial a perder a cabeça por Nádia Sílvia, a irresistível, noticiou um jornal, a sério, e deu a relação dos cinco anteriores: John Kennedy, Richard Burton, Aga Khan, um banqueiro suíço e um lorde inglês. Sem falar na condessa italiana, nobre, milionária e machona.

O genial Levenson ontem mais uma vez na pista do Le Bateau, in love com a glamorosa Helena von Kloster, lia-se na Crônica da Noite, de Gisa; aprendeu o samba e não aceita outro ritmo, revelava Robert Sabad em dezoito jornais e outras tantas estações de TV, dando ciência aos povos da frase de Branquinha do Val Burnier, a hostess magnífica, mesa e cama incomparáveis: Se James não fosse o Prêmio Nobel que é, poderia ganhar a vida como dançarino profissional. Jornais e revistas se esbaldaram, não lhes faltou o sábio.

Nada, porém, tão sensacional quanto a declaração sobre Pedro Archanjo, bomba a explodir no aeroporto, na hora do embarque para a Bahia. Em verdade, no primeiro contato com a imprensa, ao chegar de Nova Iorque, Levenson fizera breve referência ao baiano, citara-lhe o nome: Estou na pátria de Archanjo, sinto-me feliz. Os repórteres, no entanto, não consignaram a frase, ou por não entendê-la, ou por não lhe atribuir maior significação. Ao partir para a Bahia, porém, foi diferente, pois o desconcertante Prêmio Nobel declarou ter reservado dois dias de sua curta permanência no Brasil para ir a Salvador, conhecer a cidade e o povo que foram objeto dos estudos do fascinante Pedro Archanjo, em cujos livros a ciência é poesia, autor que elevara tão alto a cultura brasileira. Foi um deus-nos-acuda.

Quem é esse tal de Pedro Archanjo, do qual nunca se ouviu falar? — interrogavam-se os jornalistas, boquiabertos. Um deles, na esperança de uma deixa, quis saber de que maneira Levenson tomara conhecimento desse autor brasileiro. Lendo seus livros — respondeu o sábio —, seus livros imperecíveis.

A pergunta fora de Ápio Correia, um sabidório, editor do caderno de ciência, arte e literatura de um matutino, sabidíssimo e temerário picareta.

Levou seu blefe adiante: disse não ter notícias de tradução de livros de Archanjo para o inglês.

Não lera tais livros em inglês e, sim, em português, informou o terrível americano, acrescentando tê-lo podido fazer, apesar de possuir conhecimentos mínimos de nossa língua, devido ao seu domínio do espanhol e sobretudo do latim. Não foi difícil, completou, esclarecendo ter descoberto os livros de Archanjo na biblioteca da Columbia, em pesquisa recente sobre a vida dos povos tropicais. Tinha a intenção de fazer traduzir e publicar nos Estados Unidos a obra de vosso grande compatriota.

Tenho de agir rapidamente, pensou Ápio Correia, retirando-se em busca de um táxi que o levasse à Biblioteca Nacional.

Foi um corre-corre até os jornalistas descobrirem e localizarem o professor Ramos, eminente por vários títulos e agora por conhecer a obra do tal Archanjo, cujo valor mais de uma vez afirmara e exaltara em artigos nas revistas especializadas, infelizmente de quase nenhuma circulação e menor leitura.

Durante anos — contou ele — andei de editor em editor, numa via-crúcis, oferecendo os livros de Archanjo para que os reeditassem. Escrevi prefácios, notas de pé- de-página, explicações: nenhuma editora se interessou. Fui ao professor Viana, diretor da Faculdade de Filosofia, para ver se, com sua interferência, a Universidade colaboraria na publicação. Respondeu-me que eu estava perdendo tempo com as baboseiras de um negro bêbado. Bêbado e subversivo. Talvez agora se deem conta da grandeza da obra de Archanjo, já que Levenson lhe empresta a devida importância. Aliás, diga-se de passagem, ser a obra de Levenson igualmente mal conhecida no Brasil e esses que tanto o elogiam e adulam não leram sequer seus livros fundamentais, não percebem a essência de seu pensamento, são uns charlatães.

Um tanto amarga, como se nota, a entrevista do professor Ramos, mas, convenhamos: sobravam-lhe razões para sentir-se melancólico — tantos anos lutando por um lugar ao sol para o pobre Archanjo, sem nada conseguir, ouvindo recusas de editores, estultícias e ameaças de Viana Dedo-duro, enquanto, com uma única entrevista, um estrangeiro pusera em movimento toda a imprensa e a matilha dos intelectuais a farejar os livros, a fuçar a memória do ignorado baiano intelectuais de todas as tendências e correntes, sem distinção de ideologia, os festivos e os soturnos, pois Pedro Archanjo entrara em moda e quem não conhecesse e não citasse suas obras não poderia considerar-se atualizado e para a frente.”

 

 

“Uma vez por semana, às quartas-feiras, invariável, com sol ou chuva, Archanjo vinha buscá-lo em sua tenda de imagens, primeiro para as cervejotas geladíssimas no bar de Osmário, depois para o amalá no candomblé da Casa Branca. A conversa mansa, entremeada de casos, uma conversa antiga:

— Despeje o saco, meu bom, conte as peripécias.

— Não sei de nada, mestre Archanjo, de novidade nenhuma.

— Ora, se sabe... Meu bom, a toda hora acontecem coisas, coisas lindas, umas de rir, outras de chorar. Vá; desamarre a língua, camarado, que boca foi feita para falar.

Que maneira, que léria, que poder possuía ele para abrir a boca, o coração dos demais? Nem as mães de santo mais ciosas e estritas, tia Maci, dona Menininha, Mãe Senhora, do Opô Afonjá, as respeitáveis matronas, nem elas guardavam segredos para o velho, tudo lhe revelando de mão beijada — aliás os orixás assim tinham ordenado, para Ojuobá não há porta fechada.

Ojuobá, os olhos de Xangô, agora ali estirado morto junto ao passeio.

Se acabaram as cervejas, mestre Archanjo, três ou quatro garrafas; numa quarta-feira pagava o velho, na outra a despesa era do santeiro — se bem nos últimos tempos o velho andasse liso e teso, sem níquel. Valia a pena ver-se sua satisfação na semana em que obtinha uns trocados, uns escassos caraminguás — batendo com força na mesa para advertir o garçom:

— Traga a conta, meu bom...

— Deixe comigo, mestre Archanjo, guarde seu dinheirinho...

— Em que lhe ofendi para você me desconsiderar, camarado? Quando eu não tenho dinheiro, você paga, não me aflijo, que não é por minha culpa e querer. Mas se hoje estou rico, por que você há de pagar? Não me tire meu dever nem meu direito, não diminua o velho Archanjo, me deixe inteiro, meu bom.

Ria um riso de dentes brancos, conservara perfeitos todos os seus dentes, chupava roletes de cana, mastigava jabá.

— Não é dinheiro roubado, ganhei com meu suor.

Servindo de moço de recados em casa de putas, seu trabalho derradeiro, quem o visse tão alegre e satisfeito, não imaginaria nunca as limitações, os apertos, a infinita pobreza de seus últimos anos. Ainda na última quarta-feira não cabia em si de contente: na pensão de Ester conhecera um moço estudante, sócio de uma gráfica, disposto a imprimir seu livro — lera os anteriores e dissera em alto e bom som que Archanjo era um retado, desmascarara toda aquela corja de charlatães da Faculdade.

No bonde, no começo da noite de estrelas e viração do mar, no caminho do Rio Vermelho de Baixo onde se ergue na colina a Casa Branca do Engenho Velho, mestre Archanjo contara do novo livro, os olhinhos brilhando, trêfegos e maliciosos. Quanta coisa recolhera, anotara nas cadernetas, para aquela obra, um embornal de abregueces, a sabedoria do povo:

— Só o que juntei em casa de mulher-dama, meu bom, você nem se imagina. Fique sabendo, camarado, não há melhor lugar para um filósofo morar do que casa de rapariga.

— Você é mesmo um filósofo, mestre Archanjo, o maior que já vi, não tem igual para saber levar a vida com filosofia.

Iam ao candomblé para o amalá de Xangô, obrigação das quartas-feiras.

Tia Maci dava de-comer ao santo, no peji, ao som do adjá e do canto das feitas. Depois, em torno à grande mesa na sala, serviam o caruru, o abará, o acarajé, por vezes um guisado de cágado. Mestre Archanjo era bom de garfo, de garfo e copo. A conversa prolongava-se noite adentro, animada e cordial no calor da amizade; ouvir Archanjo era privilégio dos pobres.

Se acabou o livro, o amalá e a cachaça, a viagem de bonde e de imprevistos; o velho conhecia cada recanto do caminho, casas e árvores eram-lhe familiares, de uma familiaridade secular, pois sabia de agora e de antes, de quem era e de quem fora, o filho e o pai, o pai do pai e o pai do avô e com quem se misturaram. Sabia do negro vindo escravo da África, do português degredado da Corte, do cristão-novo fugido da Inquisição. Agora todo o saber se terminou, e o riso e a graça, fecharam-se os olhos dos olhos de Xangô, Ojuobá só serve para o cemitério. O santeiro desfaz-se em lágrimas, solitário e vazio.

Assim como não fica bêbado, o Major não consegue chorar, a não ser — e com que facilidade! — em júri ou em comemoração se necessário emocionar os ouvintes, ganhá-los para sua causa. Mas a dor verdadeira, essa o come por dentro, nas entranhas, não se exibe no rosto.

Mané Lima proclamou o nome e a morte do velho para o mundo inteiro, postado no meio da Ladeira do Pelourinho, lugar próprio e certo, mas na hora baça da antemanhã apenas uns ratos enormes e um cachorro magro escutaram-lhe o grito.

O Major desprende-se da visão fatal, sai rua a fora em direção à casa de Ester, o peso da notícia verga-lhe os ombros. Lá emborcará o trago forte e necessário.”

 

 

“Não chores, meu filho; não chores que a vida é luta renhida: viver é lutar.” (Gonçalves Dias)

 

 

“Ali, na Tenda dos Milagres, tudo pode acontecer e acontece.”

 

 

“(...) Definição do viver de Rosa, de seus particulares, só Majé Bassan a tem, os porquês e a consequência, tudo bem guardado nos desmedidos seios. Seios de mãe-de-santo devem ser assim, enormes, para neles caber a aflição dos filhos e filhas e de estranhos e estrangeiros. São arcas de desesperos e rancores, de esperanças e sonhos; são cofres de amor e ódio.”

 

 

Não me restando alternativa, retornei ao Jornal da Cidade, disposto a aceitar a proposta indigna, porém única, e vender por dez réis de mel coado o melhor de meu material. Com o arrojo dos desesperados, bati à porta do doutor Zezinho e o grande patrão me escutou bondosamente. Quando, porém, lhe exibi minhas notas, por pouco não fatura uma crise histérica. Isto é exatamente o que não quero: essa falta de respeito com um grande homem, com um espírito superior. Esse achincalhe, esse apequenamento da figura de Archanjo. Não admito! Se lhe compramos essas laudas de tagarelices e maledicências é exatamente para pô-las fora, para que não sejam usadas e não maculem a imagem de Pedro Archanjo. Meu caro Fausto, pense nas crianças das escolas.

Pensei nas crianças das escolas, vendi por ninharia meu silêncio. Doutor Zezinho, ainda nervoso, completou: Polígamo, que infâmia! Não era sequer casado! Meu caro poeta, aprenda esta lição: um grande homem tem de possuir integridade moral e se, por acaso, transigiu e prevaricou, cabe-nos repô-lo em sua perfeição. Os grandes homens são patrimônios da Pátria, exemplos para as novas gerações: devemos mantê-los no altar do gênio e da virtude.

Com o vale e a lição, agradeci e retirei-me, fui em busca de Ana Mercedes e de uísque, consolos caros.”

 

 

Se o Brasil concorreu com alguma coisa válida para o enriquecimento da cultura universal, foi com a miscigenação — ela marca nossa presença no acervo do humanismo, é a nossa contribuição maior para a humanidade.

 

 

“Quando iniciara o livro, a imagem pernóstica de determinados professores e o eco das teorias racistas estavam presentes a seu espírito e influíam nas frases e palavras, condicionando-as e limitando-lhes a força e a liberdade. À proporção, porém, que páginas e capítulos foram nascendo, Pedro Archanjo esqueceu professores e teorias, não mais interessado em desmenti-los numa polêmica de afirmações para a qual não tinha sequer preparo, e sim em narrar o viver baiano, as misérias e as maravilhas desse quotidiano de pobreza e confiança; em mostrar a decisão do perseguido e castigado povo da Bahia, de a tudo superar e sobreviver, conservando e ampliando os bens da dança, do canto, do metal, do ferro, da madeira, bens da cultura e da liberdade recebidos em herança nas senzalas e quilombos.”

 

 

O problema racial, camaradas, é consequência do problema de classes — explicava Ildásio, citando autores, calmo, sem exaltar-se. No Brasil, camaradas, negros e mulatos são discriminados em sua condição de proletários: branco pobre é negro sujo, mulato rico é branco puro.”

 

 

“— No julgamento dos homens, prefiro superestimar, pois quem subestima em geral mede os demais por sua própria medida.”

 

 

“— Você, mestre Pedro, é um devasso, um libertino. Nada sabe do amor, só sabe de mulheres — a ex-Princesa do Recôncavo, a ex-Rainha do Cancã suspira: — Igual a mim, sei de homens, saberei do amor?”

 

 

“— Quando se quer aplicar as teorias a ferro e fogo, elas nos queimam a mão.”

 

 

“O doutor Fraga Neto diz que não há branco nem negro, há rico e pobre tão-somente. O que é que você quer, compadre? Que o moleque estude e continue aqui na pobreza do Tabuão? Foi para isso que ele estudou? Doutor Tadeu Canhoto, genro do coronel, herdeiro de terras e de gado, bolsa na França, viagem na Europa, não há branco nem negro, no Corredor da Vitória o dinheiro embranquece, aqui miséria negra.

Cada um com sua sina, meu bom. Os moleques dessa rua, camarado, vão se dividir, cada um o seu destino. Alguns calçarão sapatos, usarão gravata, doutores de Faculdade. Outros prosseguirão aqui, com a bigorna e o malho. A divisão de branco e negro, meu bom, se acaba na mistura, em nossa mão já se acabou, compadre. A divisão agora é outra e quem vier atrás feche as cancelas.”

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