sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Cartas a Legba: um texto encontrado, de Susan Willis (org.)

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-113-0

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 306

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Sinopse: Um misterioso pacote de cartas entregue à escritora Susan Willis é o ponto de partida deste livro que, por meio da reprodução dessas cartas, conta a história de um relacionamento amoroso. Susan se apaixonou pela prosa da Bela Adormecida – pseudônimo utilizado pela autora das cartas, cuja identidade é desconhecida – e mergulhou fundo em seus múltiplos significados. O resultado desse arrebatamento é o surpreendente Cartas a Legba.

Carregadas de desejo, as cartas desenvolvem em tom de fábula a trajetória do amor entre Bela e Legba, seu amante e destinatário. Ousadas e provocativas, as cartas desafiam o receptor, o censuram e o elogiam, terminando sempre com um convidativo ‘a seguir’, que instiga a leitura da carta seguinte. Bela registra os acontecimentos de sua vida, entremeando-os com relatos de seus sentimentos. Dessa forma, não se furta a dividir com o amante aspectos de seu cotidiano, como o trabalho e as mudanças de estação. A aparente simplicidade de sua fábula encobre a complexidade de sentimentos e subjetividades presentes nas cartas. A autora se apresenta como uma mulher multifacetada, capaz de encarnar vários papéis e nada inocente.

O posfácio do livro, escrito por Maria Elisa Cevasco, traduz os sentimentos de Bela e gera uma identificação imediata com o público leitor, especialmente o feminino. Quem nunca tentou dar sentido à experiência do amor, entendê-la, recontá-la? Para Maria Elisa, além da história, sobressai nas cartas ‘a dor enorme de dizer e, ao dizer, limitar e negar’. A coragem de Bela está em assumir de forma escancarada seus desejos. Nesse sentido, Cartas a Legba cumpre um papel emancipador. Sua beleza está, nas palavras de Maria Elisa, em empreender a ‘tarefa necessária e impossível de tentar explicar o que se recusa a ser contido por palavras’.



“A origem destas cartas está envolta em mistério. Basta dizer que uma pessoa amiga entregou-as a mim. É possível que soubesse de minhas tendências anacrônicas: não uso correio eletrônico: portanto, era fatal que essas cartas, escritas à mão e estruturadas como poemas, me fascinariam.

De fato, adoro cartas – que chamo de correio real –, pois elas transformam a correspondência em algo concreto. A página dobrada em um envelope e enviada para longe – para ser aberta, manuseada, lida, talvez guardada para sempre –, a carta estabelece uma ligação física entre duas pessoas. Inscrita de imediato em um sistema real de troca que diminui a distância a separar quem escreve de quem lê, uma carta é também um veículo de troca simbólica, que, em um passe de mágica, faz desaparecer o tempo que separa a escrita e a leitura, o envio e o recebimento. Enquanto a carta eletrônica dilui a dor da separação, deslocando tempo e distância para o espaço virtual, a carta física enlaça a dor e a alegria, justamente porque ela é o talismã contraditório de uma separação e da sua negação.

Uma carta apresenta-se como prova tangível, incontroversa, dos sentimentos e dos pensamentos de quem a escreve. Mas é também testemunho de enorme reserva de ideias e de desejos, que vão morrer com quem escreve, sem deixar nenhum traço. A brevidade de uma carta funciona como um criptograma de tudo o que é pensado, mas jamais escrito. Assim, a materialidade da carta fala de silêncios e ausências. Penso, por exemplo, no pacote de cartas que encontrei, escritas por minha mãe ao homem que viria a ser seu marido. Suas palavras eram esparsas e eficientes, excluindo qualquer tipo de sentimento. E, no entanto, meu pai as guardou e mais tarde as devolveu a minha mãe, como testemunhos de um amor que permanece não dito.

Não se trata de afirmar que as cartas necessariamente dizem verdades. Muitas veiculam significados parciais, ou mesmo distorcidos, evidenciando todas as emoções contraditórias e mal resolvidas que afloraram em nossas melhores tentativas de expressão. Ao escrever, encontramos modos de desviar do que é difícil de se evitar, ou de se dizer. A solução mais rasteira para uma verdade de mau jeito é uma mentira deslavada. Aposto que algumas cartas utilizam o caráter de evidência da escrita para cobrir com uma pátina de verdade a falsidade. Mas a maioria das cartas escritas sob o peso de uma bagagem de emoções trata de lidar com a verdade de forma muito mais complicada, na qual a escritora torna-se uma forma de apagamento. O que é escrito pode não mentir, mas oculta a verdade. Como nos sonhos, nossas cartas podem fazer referência oblíqua a verdades que deveriam permanecer não ditas.

As cartas podem também ser mal entendidas, uma prova da bagagem emocional que o receptor adiciona à carta. Na verdade, ler uma carta é muito mais complicado do que escrevê-la. Cada palavra nos leva a evocar um silêncio. As frases convidam a negociar apagamentos. Ao ler, construímos significados consistentes com nossas próprias esperanças e medos, em especial com aqueles que mal percebemos. Uma carta jamais é o que parece e sempre é mais do que é.” (Prefácio de Susan Willis)

 

 

“Toda carta é um risco, tanto em termos factuais quanto de seu significado. Será que a carta que escrevi será enviada (ou ficará guardada na minha gaveta)? Chegará a seu destino (ou ficará perdida, ou será interceptada no acaso do trânsito)? Será aberta (ou será jogada no lixo por um receptor enraivecido ou mesmo indiferente)? Minha carta será guardada? E se for, será como um tesouro ou meramente arquivada? E, aí, o jogo fatal: minha carta será encontrada? E se for, por quem? Quais serão, então, as consequências? Tenho certeza de que não sou a única esposa que, procurando selos na escrivaninha do marido, acabou encontrando uma carta de amor. Como foi divertido encontrá-la, que deliciosa a enorme curiosidade de ler, como me senti superior ao ver as linhas patéticas, cheias de carinho. Certamente eu poderia redigir algo mil vezes melhor, embora escrever cartas de amor para o marido seja algo que as esposas nunca fazem. Um amor feito de certezas não se confessa.

Ainda que seja um objeto, a carta guarda a característica especial de não ser uma mercadoria, a menos que tenha o azar de ter sido escrita por uma pessoa famosa e, depois, vendida em leilão. As cartas apresentam a matéria-prima do pensamento trabalhada em uma forma física, e enviada a outra pessoa, em um processo no qual a produção e a troca não geram lucro. O capitalismo não é a economia das cartas. Falta-lhe o ofuscamento da mediação e da abstração, sua economia é muito mais brutal e direta. Trata-se de uma forma econômica semelhante à dos jogos de azar, que nos pede que arrisquemos uma parte de nós mesmos cada vez que escrevemos. Apostamos nosso futuro no resultado de nossas palavras. Uma carta pode não gerar lucros, mas seu custo pode ser muito alto.

Quando recebemos uma carta, fazemos o jogo de sua economia. Ler uma carta é confiscar significados. Só os leitores simplistas aceitam as palavras pelo seu valor nominal. Assim, negociamos o custo da escrita da carta pelo preço da nossa interpretação. (Prefácio de Susan Willis)

 

 

dia cinzento, monótono

aqui em paris retomo minha história

ainda no momento em que a Bela lê o texto de Legba

 

Gata mimada,

a Bela tem prazer com o texto de Legba

mais instintual

que intelectual

ela esquadrinha as páginas

fareja as palavras

e condescende em saborear as mais belas de todas

 

Horas depois

enrosca-se

e adormece com o livro

contente de respirar

os levíssimos traços

do feiticeiro impregnados nas páginas

 

Ao despertar

retoma o livro

 

Mas dessa vez ela começa a refletir sobre as palavras

abre o cérebro para aí gravar o sentido da escrita

com a sagacidade inesperada

ela descobre a base da magia de seu amante

vê que ele constrói um discurso

como uma joia perfeita

uma safira

que maravilha a leitora

com uma lógica hipnótica

 

ler é entrar num sistema fechado

para ativar o poder de Legba em termos determinados

pelo próprio feiticeiro

 

Aterrorizada,

a Bela fecha o livro –

unir-se ao feiticeiro no plano da palavra é

mais perigoso

que se unir a ele no amor

 

Reencontrando seu orgulho,

a Bela olha o livro

agora como um desafio

 

Mais obstinada que corajosa,

ela abre novamente o livro

e, para expulsar os espíritos do vodu,

lê em voz alta

 

na sua própria voz ela ouve

as palavras de Legba

na sua própria voz ela escuta

a descrição do hotel em Porterville

todas as janelas abertas

todos os quartos vazios

todas as televisões ligadas

 

De súbito

a Bela se dá conta

de que já ouvira as mesmas palavras

antes que fossem escritas

ela as ouvira

sussurradas

ao ouvido

nas noites de amor

quando Legba a tomava em seu leito

para aí misturar

o desejo com seus contos fabulosos

 

Enraivecida, transtornada,

a Bela fecha o livro

sente-se traída

 

seu amante recolheu e publicou os contos

que ela aceitara como presentes

como joias

oferecidas expressamente a ela

 

Perdida numa torrente de sentimentos

tão coléricos

quanto caóticos

a Bela luta contra sua tendência bruja

 

Para poder ainda refletir

sobre o feiticeiro

e sobre seu livro

... onde as palavras ouvidas na clandestinidade

se transformaram

em uma forma acessível

a olhos inumeráveis

 

 

“As escolhas são todas mortais.”

 

 

como o uróboro

dragão mítico que engole a própria cauda

para metaforizar a circularidade do tempo

também a sequência das cartas escritas a Legba

encerra a circularidade de um ano

 

onde o uróboro representa a unidade perfeita

a história de Legba e a Bela envolve complexidade

na qual o fio de Ariadne

que revela a linearidade no labirinto

transforma-se em teia de aranha

onde os fios designam a simultaneidade

em que tudo é possível

 

assim, a conclusão em seguida das cartas

oferece eventualidades múltiplas

todos os desenlaces são verdadeiros

nenhum é exclusivo

 

Eis o desenlace melodramático:

 

seguindo um dos fios de sua história

Legba volta à Terra Desconhecida

para encontrar a Bela completamente mudada

 

em vez de alegre

vivaz

está distraída

agitada

 

procurando sossegá-la

Legba propõe uma viagem ao interior do país

habitualmente, ela aceitaria sem pensar duas vezes

mas desta vez ela hesita

desconcertada

perturbada até a histeria

 

imagine

o desespero de Legba

contando com a magia, não consegue compreender

o que acontece à Bela

presa de sua biologia

a Bela está grávida

 

paralisada entre o rei

que pede o aborto

 

e Legba

que propõe a fuga

 

a Bela não suporta

e diz que vai embora

que se afasta

e que ninguém a encontrará

 

imagine,

o desgosto

a dor

enfim, a cólera de Legba

 

quando, três dias depois

que a Bela mentiu

que ela não partiu

com efeito, está ainda com o rei

 

Lúcifer

fogo e fumaça

Legba se enraivece

Furioso

vai-se embora como um vento tempestuoso até o deserto

lá, encontra o lugar secreto

a gruta clandestina

onde ele e a Bela fizeram o amor

 

num ato ritual

um exorcismo executado para expulsar todo traço da Bela

ele queima

todas as cartas que a Bela escreveu

e que ele guardara

 

ainda encolerizado

recolhe as cinzas

e as envia à Bela

 

imagine

a esperança que a Bela alimentava

quando recebeu a carta

escrita pela mão de seu amante

 

esperança transformada no mais profundo desespero

no momento em que a Bela abre a carta e encontra as cinzas

 

amante assassino

Legba emprega o simbólico

para matar o amor

 


Bruja, sem saber


A Bela ingere as cinzas

Feiticeira, sem ciência

 

anos mais tarde

ela começa a escrever ainda cartas a Legba

Talismãs

de seu desejo

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