quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Formação Econômica do Brasil (Parte I), de Celso Furtado

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★★★

ISBN: 978-85-3590-952-4

Páginas: 428

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Sinopse: Escrito quando Celso Furtado estava na universidade de Cambridge, Formação econômica do Brasil pretendia ser uma introdução à história econômica do Brasil, um afresco, como disse o autor, em que cada segmento tivesse o valor de uma sugestão. O livro foi além. Tornou-se um clássico da historiografia econômica e das ciências sociais.

A tese de doutoramento sobre a economia colonial, defendida na Sorbonne em 1948, e o primeiro ensaio sobre a economia brasileira contemporânea, escrito no ano seguinte, são o ponto de partida do livro mais conhecido de Celso Furtado, publicado em 1959: Formação econômica do Brasil. Quando o escreveu, na Inglaterra, Furtado imaginava explicar o Brasil para os estrangeiros. Acabou explicando para os brasileiros.

O livro que se tornou um marco na historiografia econômica brasileira por pouco não existiria: o manuscrito enviado de Cambridge para a editora brasileira extraviou-se. Por sorte, o microfilme feito de última hora num equipamento precário pôde ser projetado: as quase trezentas páginas escritas à mão foram datilografadas, dessa vez com cópia.

Formação econômica do Brasil apoia-se numa visão derivada tanto da história como da economia. A combinação do método histórico com a análise econômica era, na época, uma novidade. Pela primeira vez, alguém no Brasil fazia historiografia econômica tendo uma sólida formação de economista. O texto se inicia com a análise da ocupação do território brasileiro, comparada também com as colônias do hemisfério norte e das Antilhas. Seguem-se os ciclos do açúcar, da pecuária, do ouro, a ascensão da economia cafeeira, e, no século XX, a crise da cafeicultura e a industrialização, cuja especificidade o autor trata com excepcional clareza.

Em paralelo aos cinco séculos de história econômica, Celso Furtado estuda a evolução da mão-de-obra no Brasil, desde a escravidão até o trabalho assalariado, o dos imigrantes europeus e dos migrantes internos. Na conclusão, aponta os dois desafios a serem enfrentados até o fim do século XX, que guardam plena atualidade: completar a industrialização do país e deter o processo das disparidades regionais.




A ocupação econômica das terras americanas constitui um episódio da expansão comercial da Europa. Não se trata de deslocamentos de população provocados por pressão demográfica — como fora o caso da Grécia — ou de grandes movimentos de povos determinados pela ruptura de um sistema cujo equilíbrio se mantivesse pela força — caso das migrações germânicas em direção ao ocidente e ao sul da Europa. O comércio interno europeu, em intenso crescimento a partir do século XI, havia alcançado um elevado grau de desenvolvimento no século XV, quando as invasões turcas começaram a criar dificuldades crescentes às linhas orientais de abastecimento de produtos de alta qualidade, inclusive manufaturas. O restabelecimento dessas linhas, contornando o obstáculo otomano, constitui sem dúvida alguma a maior realização dos europeus na segunda metade desse século.1

A descoberta das terras americanas é, basicamente, um episódio dessa obra ingente. De início pareceu ser episódio secundário. E na verdade o foi para os portugueses durante todo um meio século. Aos espanhóis revertem em sua totalidade os primeiros frutos, que são também os mais fáceis de colher. O ouro acumulado pelas velhas civilizações da meseta mexicana e do altiplano andino é a razão de ser da América, como objetivo dos europeus, em sua primeira etapa de existência histórica. A legenda de riquezas inapreciáveis por descobrir corre a Europa e suscita um enorme interesse pelas novas terras. Esse interesse contrapõe Espanha e Portugal, “donos” dessas terras, às demais nações europeias. A partir desse momento a ocupação da América deixa de ser um problema exclusivamente comercial: intervêm nele importantes fatores políticos. A Espanha — a quem coubera um tesouro como até então não se conhecera no mundo — tratará de transformar os seus domínios numa imensa cidadela. Outros países tentarão estabelecer-se em posições fortes, seja como ponto de partida para descobertas compensatórias, seja como plataforma para atacar os espanhóis. Não fora a miragem desses tesouros, de que, nos primeiros dois séculos da história americana, somente os espanhóis desfrutaram, e muito provavelmente a exploração e ocupação do continente teriam progredido muito mais lentamente.

O início da ocupação econômica do território brasileiro é em boa medida uma consequência da pressão política exercida sobre Portugal e Espanha pelas demais nações europeias. Nestas últimas prevalecia o princípio de que espanhóis e portugueses não tinham direito senão àquelas terras que houvessem efetivamente ocupado. Dessa forma, quando, por motivos religiosos, mas com apoio governamental, os franceses organizam sua primeira expedição para criar uma colônia de povoamento nas novas terras — aliás a primeira colônia de povoamento do continente —, é para a costa setentrional do Brasil que voltam as vistas. Os portugueses acompanhavam de perto esses movimentos e até pelo suborno atuaram na corte francesa para desviar as atenções do Brasil. Contudo tornava-se cada dia mais claro que se perderiam as terras americanas a menos que fosse realizado um esforço de monta para ocupá-las permanentemente. Esse esforço significava desviar recursos de empresas muito mais produtivas no Oriente. A miragem do ouro que existia no interior das terras do Brasil — à qual não era estranha a pressão crescente dos franceses — pesou seguramente na decisão tomada de realizar um esforço relativamente grande para conservar as terras americanas. Sem embargo, os recursos de que dispunha Portugal para colocar improdutivamente no Brasil eram limitados e dificilmente teriam sido suficientes para defender as novas terras por muito tempo. A Espanha, cujos recursos eram incomparavelmente superiores, teve que ceder à pressão dos invasores em grande parte das terras que lhe cabiam pelo Tratado de Tordesilhas. Para tornar mais efetiva a defesa de seu quinhão, foi-lhe necessário reduzir o perímetro deste. Demais, fez-se indispensável criar colônias de povoamento de reduzida importância econômica — como no caso de Cuba — com fins de abastecimento e de defesa. Fora das regiões ligadas à grande empresa militar-mineira espanhola, o continente apresentava escasso interesse econômico, e defendê-lo de forma efetiva e permanente constituiria sorvedouro enorme de recursos. O comércio de peles e madeiras com os índios, que se desenvolve durante o século XVI em toda a costa oriental do continente, é de reduzido alcance e não exige mais que o estabelecimento de precárias feitorias.

Os traços de maior relevo do primeiro século da história americana estão ligados a essas lutas em torno de terras de escassa ou nenhuma utilização econômica. Espanha e Portugal se creem com direito à totalidade das novas terras, direito esse que é contestado pelas nações europeias em mais rápida expansão comercial na época: Holanda, França e Inglaterra. A Espanha recolhe de imediato pingues frutos que lhe permitem financiar a defesa de seu rico quinhão. Contudo, tão grande é este e tão inúteis lhe parecem muitas das novas terras, que decide concentrar seu sistema de defesa em torno ao eixo produtor de metais preciosos, México-Peru. Esse sistema de defesa estendia-se da Flórida à embocadura do rio da Prata. Ainda assim, e não obstante a abundância dos recursos de que dispunha, a Espanha não conseguiu evitar que seus inimigos penetrassem no centro mesmo de suas linhas de defesa, as Antilhas. Essa cunha antilhana foi de início uma operação basicamente militar.2 Contudo, nos séculos seguintes ela terá enorme importância econômica, como veremos mais adiante.

Coube a Portugal a tarefa de encontrar uma forma de utilização econômica das terras americanas que não fosse a fácil extração de metais preciosos. Somente assim seria possível cobrir os gastos de defesa dessas terras. Este problema foi discutido amplamente e em alto nível, com a interferência de gente — como Damião de Góis — que via o desenvolvimento da Europa contemporânea a partir de uma ampla perspectiva. Das medidas políticas que então foram tomadas resultou o início da exploração agrícola das terras brasileiras, acontecimento de enorme importância na história americana. De simples empresa espoliativa e extrativa — idêntica à que na mesma época estava sendo empreendida na costa da África e nas Índias Orientais —, a América passa a constituir parte integrante da economia reprodutiva europeia, cuja técnica e capitais nela se aplicam para criar de forma permanente um fluxo de bens destinados ao mercado europeu.

A exploração econômica das terras americanas deveria parecer, no século XVI, uma empresa completamente inviável. Por essa época nenhum produto agrícola era objeto de comércio em grande escala na Europa. O principal produto da terra — o trigo — dispunha de abundantes fontes de abastecimento dentro do continente. Os fretes eram de tal forma elevados — em razão da insegurança no transporte a grandes distâncias — que somente os produtos manufaturados e as chamadas especiarias do Oriente podiam comportá-los. Demais, era fácil imaginar os enormes custos que não teria de enfrentar uma empresa agrícola nas distantes terras da América. É fato universalmente conhecido que aos portugueses coube a primazia nesse empreendimento.3 Se seus esforços não tivessem sido coroados de êxito, a defesa das terras no Brasil ter-se-ia transformado em ônus demasiado grande, e — excluída a hipótese de antecipação na descoberta do ouro — dificilmente Portugal teria perdurado como grande potência colonial na América.”

1. O desenvolvimento econômico de Portugal no século XV — a exploração da costa africana, a expansão agrícola nas ilhas do Atlântico e finalmente a abertura da rota marítima das Índias Orientais — constitui um fenômeno autônomo na expansão comercial europeia, em grande parte independente das vicissitudes crescentes criadas ao comércio do Mediterrâneo oriental pela penetração otomana. A produção de açúcar na Madeira e São Tomé alcançou seus pontos altos na segunda metade do século XV, época em que os venezianos ainda conservavam intactas suas fontes de abastecimento nas ilhas do Mediterrâneo oriental. O mesmo se pode dizer do comércio das especiarias das Índias, pois a ocupação do Egito — entreposto principal — pelos turcos só ocorreu um quarto de século depois da viagem de Vasco da Gama. A imediata consequência da abertura da nova rota foi uma brusca queda dos preços das especiarias: os venezianos passaram a comprar pimenta em Lisboa pela metade do preço que pagavam aos árabes em Alexandria. Veja-se sobre este ponto FREDDY THIRIET, Histoire de Venise, Paris, 1952, p. 104. O grande feito português, eliminando os intermediários árabes, antecipando-se à ameaça turca, quebrando o monopólio dos venezianos e baixando o preço dos produtos, foi de fundamental importância para o subsequente desenvolvimento comercial da Europa. Sobre as causas do início da expansão marítima portuguesa, veja-se o lúcido estudo de ANTÓNIO SÉRGIO, A conquista de Ceuta, Ensaios, tomo I, 2a ed., Coimbra, 1949.

2. O povoamento das Antilhas pelos franceses “fut envisagé d’abord sous l’angle défense coloniale et attaque en Amérique espagnole”. [“[…] foi projetado de início sob o ângulo de defesa colonial e de ataque contra a América espanhola.”] LÉON VIGNOLES, “Les Antilles françaises sous l’ancien régime”, Revue d’Histoire Economique et Sociale, no 1, 1928, p. 34.

3. “Brazil was the first of the European settlements in America to attempt the cultivation of the soil.[“O Brasil foi o primeiro dos assentamentos europeus na América a tentar o cultivo do solo.”] The Cambridge modern history, Cambridge, 1909, vol. VI, p. 389. É sabido que os espanhóis nas Antilhas e no México tentaram empreendimentos agrícolas com anterioridade aos portugueses. Sem embargo, esses empreendimentos não passaram do estágio experimental.

 

 

Os magníficos resultados financeiros da colonização agrícola do Brasil abriram perspectivas atraentes à utilização econômica das novas terras. Sem embargo, os espanhóis continuaram concentrados em sua tarefa de extrair metais preciosos. Ao aumentar a pressão de seus adversários, limitaram-se a reforçar o cordão de isolamento em torno do seu rico quinhão. As terras onde estavam concentrados se singularizavam na América por serem densamente povoadas. Na verdade, a empresa colonial espanhola tinha como base a exploração dessa mão de obra. A Espanha não chegou a interessar-se em fomentar um intercâmbio com as colônias ou entre estas. A forma como estavam organizadas as relações entre Metrópole e colônias criava uma permanente escassez de meios de transporte; e era a causa de fretes excessivamente elevados.10 A política espanhola estava orientada no sentido de transformar as colônias em sistemas econômicos o quanto possível autossuficientes e produtores de um excedente líquido — na forma de metais preciosos — que se transferia periodicamente para a Metrópole. Esse afluxo de metais preciosos alcançou enormes proporções relativas e provocou profundas transformações estruturais na economia espanhola. O poder econômico do Estado cresceu desmesuradamente, e o enorme aumento no fluxo de renda gerado pelos gastos públicos — ou por gastos privados subsidiados pelo governo — provocou uma crônica inflação que se traduziu em persistente déficit na balança comercial. Sendo a Espanha o centro de uma inflação que chegou a propagar-se por toda a Europa, não é de estranhar que o nível geral de preços haja sido persistentemente mais elevado nesse país que em seus vizinhos, o que necessariamente teria de provocar um aumento de importações e uma diminuição de exportações.11 Em consequência, os metais preciosos que a Espanha recebia da América sob a forma de transferências unilaterais provocavam um afluxo de importação de efeitos negativos sobre a produção interna e altamente estimulante para as demais economias europeias. Por outro lado, a possibilidade de viver direta ou indiretamente de subsídios do Estado fez crescer o número de pessoas economicamente inativas, reduzindo a importância relativa na sociedade espanhola e na orientação da política estatal dos grupos dirigentes ligados às atividades produtivas.”

10. As Leis das Índias impediam rigorosamente a entrada de barcos não espanhóis nos portos americanos e limitavam o tráfego com a Espanha ao porto de Sevilha. Para esse porto partia da América anualmente apenas uma frota, na qual dificilmente se podia obter praça. Mesmo na época em que Portugal estava ligado à Espanha, os equipamentos para os engenhos açucareiros que se fabricavam em Lisboa tinham que transportar-se a Sevilha para serem embarcados a altos fretes para as colônias espanholas. Veja-se RAMIRO GUERRA Y SÁNCHEZ, Azúcar y población en las Antillas, La Habana, 1944, 3a ed., p. 50.

11. Os estudos realizados por J. HAMILTON sobre o abastecimento da frota em Sevilha puseram amplamente em evidência que o mesmo se fazia em grande parte com mercadorias importadas, seja manufaturas, seja alimentos. Veja-se, entre vários trabalhos desse autor, American treasure and the price revolution in Spain, 1501-1610, Cambridge, Mass., 1934. A luta pela conquista do mercado espanhol passou a ser um objetivo comum dos demais países europeus. COLBERT mesmo escreveu: “Plus chacun Etat a du commerce avec les Espagnols plus il a d’argent”. [“Quanto mais um Estado faz comércio com os espanhóis, mais tem dinheiro.”] Veja-se E. LEVASSEUR, Histoire du commerce de la France, Paris, 1911, tomo I, p. 413.

 

 

“É provável entretanto que as transformações da economia antilhana tivessem ocorrido muito mais lentamente, não fora a ação de um poderoso fator exógeno em fins da primeira metade do século XVII. Esse fator foi a expulsão definitiva dos holandeses da região nordeste do Brasil. Senhores da técnica de produção e muito provavelmente aparelhados para a fabricação28 de equipamentos para a indústria açucareira, os holandeses se empenharam firmemente em criar fora do Brasil um importante núcleo produtor de açúcar. É tão favorável a situação que encontram nas Antilhas francesas e inglesas que preferem colaborar com os colonos dessas regiões a ocupar novas terras e instalar por conta própria a indústria. Na Martinica, as dificuldades causadas pela baixa dos preços do fumo eram grandes, o que facilita o início de qualquer negócio tendente a restaurar a prosperidade da ilha. Nas Antilhas inglesas, as dificuldades econômicas haviam sido agravadas pela guerra civil que se prolongava nas Ilhas Britânicas. Praticamente isoladas da Metrópole, as colônias inglesas acolheram com grande entusiasmo a possibilidade de um intenso comércio com os holandeses. Estes não somente deram a necessária ajuda técnica, como também propiciaram crédito fácil para comprar equipamentos, escravos e terra.29 Em pouco tempo se constituíram nas ilhas poderosos grupos financeiros que controlavam grandes quantidades de terras e possuíam engenhos açucareiros de grandes proporções. Dessa forma, menos de um decênio depois da expulsão dos holandeses do Brasil, operava nas Antilhas uma economia açucareira de consideráveis proporções, cujos equipamentos eram totalmente novos e que se beneficiava de mais favorável posição geográfica.

As consequências dessa autêntica eclosão de um sistema econômico dentro de outro foram profundas. A população de origem europeia decresceu rapidamente, tanto nas Antilhas francesas como nas inglesas, enquanto crescia verticalmente o número de escravos africanos. Em Barbados, por exemplo, a população branca se reduziu à metade e a negra mais que decuplicou no correr de dois decênios. Nesse ínterim, a riqueza da ilha tinha aumentado quarenta vezes.30 Na França, onde o governo estava menos submetido à influência das companhias de comércio, a reação provocada pelas rápidas transformações econômico-sociais das ilhas foi maior. Inúmeras medidas foram tomadas para deter o seu abandono pela população branca e a rápida transformação das colônias de povoamento em grandes plantações de açúcar. Tratou-se inclusive — contra a orientação da política colonial da época — de introduzir nas ilhas atividades manufatureiras. Colbert tomou o assunto em suas mãos, sugeriu inúmeras soluções, enviou operários especializados em missões técnicas para estudar os recursos da ilha. Tudo inutilmente. A valorização das terras provocada pela introdução do açúcar agiu inexoravelmente, destruindo em pouco tempo esse prematuro ensaio de colonização de povoamento das regiões tropicais da América.31

Se a economia açucareira ao florescer nas Antilhas fez desaparecerem as colônias de povoamento que se havia tentado instalar nessas ilhas, por outro lado contribuiu grandemente para tornar economicamente viáveis as colônias desse tipo que os ingleses haviam estabelecido na região norte do continente. Conforme já indicamos, estas últimas estiveram longe de ser um êxito econômico para as companhias que haviam financiado sua instalação, pois os únicos produtos que na época justificavam um comércio transatlântico nelas não podiam ser produzidos. Contudo, os membros dessas colônias que sobreviveram às vicissitudes da etapa de instalação empenharam-se em criar uma economia autossuficiente, suplementada por algumas atividades comerciais que lhes permitiam atender a um mínimo indispensável de importações. Essas colônias pareciam fadadas a um lento desenvolvimento — o que aliás ocorreu com os grupos de população francesa situados no Canadá — quando o advento da economia açucareira antilhana, no começo da segunda metade do século XVII, veio abrir-lhes inesperadas perspectivas.

A penetração do açúcar nas ilhas caribenhas expeliu uma parte substancial da população branca nelas estabelecida, boa parte da qual foi instalar-se nas colônias do norte. Tratava-se, em grande parte, de pequenos proprietários que se viram na contingência de alienar suas terras e que se transferiram com algum capital. Por outro lado, o açúcar desorganizou e, em algumas partes, eliminou a produção agrícola de subsistência. As ilhas se transformaram, em pouco tempo, em grandes importadoras de alimentos, e as colônias setentrionais, que havia pouco não sabiam que fazer com seu excedente de produção de trigo, se constituíram em principal fonte de abastecimento das prósperas colônias açucareiras. Como bem observa um historiador inglês: “Starting with fish, timber and meat, the New Englander by a clever, complex system of sale and barter in which the West Indies […] formed the connecting link, drew to themselves any sort of commodity from the Old World of which they had need”.32 *

E não ficou na exportação de bens de consumo a importante corrente comercial que se formou entre os dois grupos de colônias inglesas. Não dispondo de força hidráulica para mover os engenhos, as ilhas dependiam principalmente de animais de tiro como fonte de energia. Tampouco dispunham de madeira para fabricar as caixas em que se exportava o açúcar. Do norte vinham uma e outra coisa.33 Esse importante comércio se efetuava principalmente em navios dos colonos da Nova Inglaterra, o que veio fomentar a indústria de construção naval nessa região. Essa indústria, encontrando condições excepcionalmente favoráveis em razão da abundância de madeira adequada, se desenvolveu intensamente, transformando-se em uma das principais atividades exportadoras das colônias setentrionais. Por último cabe mencionar a instalação de uma importante indústria derivada da cana: a destilação de bebidas alcoólicas. Neste caso a integração se realizou com as Antilhas francesas. Estas, estando interditadas de usar a matéria-prima de que dispunham — para evitar a concorrência às indústrias de bebidas da Metrópole —, vendiam-na a preços extremamente baixos. Os colonos do norte se prevaleciam desses baixos preços para concorrer vantajosamente com as próprias Antilhas inglesas nesse negócio altamente lucrativo.

As colônias do norte dos EUA se desenvolveram, assim, na segunda metade do século XVII e primeira do século XVIII, como parte integrante de um sistema maior no qual o elemento dinâmico são as regiões antilhanas produtoras de artigos tropicais. O fato de que as duas partes principais do sistema — a região produtora do artigo básico de exportação e a região que abastecia a primeira — hajam estado separadas é de fundamental importância para explicar o desenvolvimento subsequente de ambas. A essa separação se deve que os capitais gerados no conjunto do sistema não tenham sido canalizados exclusivamente para a atividade açucareira, que na realidade era a mais lucrativa. Essa separação, ao tornar possível o desenvolvimento de uma economia agrícola não especializada na exportação de produtos tropicais, marca o início de uma nova etapa na ocupação econômica das terras americanas. A primeira etapa consistira basicamente na exploração da mão de obra preexistente com vistas a criar um excedente líquido de produção de metais preciosos; a segunda se concretizara na produção de artigos agrícolas tropicais por meio de grandes empresas que usavam intensamente mão de obra escrava importada.

Nesta terceira etapa surgia uma economia similar à da Europa contemporânea, isto é, dirigida de dentro para fora, produzindo principalmente para o mercado interno, sem uma separação fundamental entre as atividades produtivas destinadas à exportação e aquelas ligadas ao mercado interno. Uma economia desse tipo estava em flagrante contradição com os princípios da política colonial e somente graças a um conjunto de circunstâncias favoráveis pôde desenvolver-se. Com efeito, sem o prolongado período de guerra civil por que passou a Inglaterra no século XVII, teria sido muito mais difícil aos colonos da Nova Inglaterra firmar-se tão amplamente nos mercados das prósperas ilhas antilhanas. Demais, a famosa legislação protecionista naval que no último quartel desse século excluiu os holandeses do comércio das colônias constitui outro forte aliciante não só para as exportações da Nova Inglaterra como também para sua indústria de construção de barcos. Por último, o prolongado período de guerras que a Inglaterra manteve com a França tornou precário o abastecimento das Antilhas com gêneros europeus, criando para os colonos do norte a situação favorável de abastecedores regulares das ilhas inglesas e ocasionais das francesas.34

Os esforços, quase malogrados, feitos pelos ingleses para eliminar os contatos comerciais desses colonos com as Antilhas francesas constituem a primeira etapa de um período de fricção e choque de interesses que se fez cada vez mais manifesto. Com efeito, uma vez lograda a supremacia e excluídos os franceses de suas posições principais na América, a Inglaterra pretendeu, na segunda metade do século XVIII, pôr cobro à crescente concorrência que as colônias setentrionais estavam fazendo à economia metropolitana. As medidas legislativas se sucederam, então, mas serviram apenas para aumentar a tensão e pôr à mostra o profundo desencontro de interesses, que já existia, precipitando a separação.

De um ponto de vista macroeconômico, as colônias da Nova Inglaterra (assim como Nova York e Pensilvânia) continuaram a ser, avançando o século XVIII, economias de produtividade relativamente baixa. O produto por habitante deveria ser substancialmente inferior ao das colônias agrícolas de grandes plantações. Contudo, o tipo de atividade econômica que nelas prevalecia era compatível com pequenas unidades produtivas, de base familiar, sem o compromisso de remunerar vultosos capitais. Por outro lado, a abundância de terras tornava atrativa a imigração europeia no regime de servidão temporária. Ao surgir para o pequeno proprietário a possibilidade de vender regularmente parte de sua produção agrícola, tornou-se para ele viável o financiamento da viagem de um imigrante cujo trabalho seria explorado durante quatro anos. Estima-se que pelo menos a metade da população europeia que emigrou para os EUA antes de 1700 era constituída de pessoas que haviam aceitado um ou outro regime de servidão temporária.35 A principal vantagem que esse sistema apresentava para o pequeno proprietário estava em que a imobilização de capital era muito menor que a exigida pela compra do escravo, sendo também menor o risco em caso de morte. O escravo africano constituía um negócio muito mais rentável para o grande capitalista, mas de maneira geral não estava ao alcance do pequeno produtor. Por outro lado, as atividades agrícolas dessas colônias tampouco justificavam grandes inversões. Explica-se, assim, que a importação de mão de obra europeia em regime de servidão temporária tenha continuado nas colônias mais pobres e haja sido excluída das colônias mais ricas, não obstante fosse amplamente reconhecido que o trabalho escravo era o mais barato. A transição para o escravo africano só se realizou ali onde foi possível especializar a agricultura num artigo exportável em grande escala.

Essas colônias de pequenos proprietários, em grande parte autossuficientes, constituem comunidades com características totalmente distintas das que predominavam nas prósperas colônias agrícolas de exportação. Nelas era muito menor a concentração da renda, e as mesmas estavam muito menos sujeitas a bruscas contrações econômicas. Demais, a parte dessa renda que revertia em benefício de capitais forâneos era insignificante. Em consequência, o padrão médio de consumo era elevado, relativamente ao nível da produção per capita. Ao contrário do que ocorria nas colônias de grandes plantações, em que parte substancial dos gastos de consumo estava concentrada numa reduzida classe de proprietários e se satisfazia com importações, nas colônias do norte dos EUA os gastos de consumo se distribuíam pelo conjunto da população, sendo relativamente grande o mercado dos objetos de uso comum.”

28. O problema de se os holandeses conseguiram ou não dominar eles mesmos a técnica de produção de açúcar, ou permitiram a vinda ao Brasil de produtores antilhanos que aperfeiçoaram os seus conhecimentos, carece de significação real. Veja-se sobre este assunto A. P. CANABRAVA, “A influência do Brasil na técnica do fabrico de açúcar nas Antilhas francesas e inglesas no meado do século XVII”, Anuário da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas, 1946-47, São Paulo, 1947.

29. “It was thanks to Dutch refugees from Brazil, which was now being reconquered by the Portuguese, that the technique of sugar cultivation and manufacture came to Barbados. Dutch capital helped the planters to buy the necessary machinery, Dutch credit provided them with negro slaves to work on the sugar estates, and Dutch ships bought their sugar and supplied them with food and other goods which England could no longer supply owing to internal troubles.[“Foi graças aos refugiados holandeses vindos do Brasil, que agora estava sendo reconquistado pelos portugueses, que a técnica do cultivo e da fabricação do açúcar chegou a Barbados. O capital holandês ajudou os colonos a comprar o equipamento necessário, o crédito holandês forneceu-lhes escravos negros para trabalhar nas fazendas de cana-de-açúcar, e os barcos holandeses compraram seu açúcar e os abasteceram de gêneros alimentícios e outros bens que a Inglaterra não podia mais fornecer devido a seus distúrbios internos.”] ALAN BURNS, History of the British West Indies, Londres, 1954, p. 232.

30. “Already, in 1667, this substitution of the negro slave for the white servant had reached an advanced stage. In that year Major Scott stated that after examining all the Barbarians records he found that since 1643 no less than 12,000 ‘good men’ had left the island for other plantations, and that the number of landowners had decreased from 11,200 small-holders in 1645 to 745 owners of large estates on 1667; while during the same period the negroes had increased from 5,680 to 82,023. Finally he summed up the situation by saying that in 1667 the island ‘was not half so strong, and forty times as rich as in the year’ 1645.[“Já em 1667 a substituição do escravo negro pelo servo branco atingira um estágio avançado. Nesse ano o major Scott declarou que, depois de ter examinado todos os registros de Barbados, descobriu que desde 1643 nada menos que 12 mil ‘bons homens’ tinham saído da ilha e ido para outras fazendas, e que o número de proprietários de terras decrescera de 11200 pequenos proprietários em 1645 para 745 proprietários de grandes fazendas em 1667; ao passo que durante o mesmo período os negros haviam aumentado de 5680 para 82023. Enfim, ele resumiu a situação dizendo que em 1667 a ilha ‘não tinha nem a metade da força, mas era quarenta vezes mais rica que no ano’ de 1645.”] V. T. HARLOW, op. cit., p. 310.

31. Existe uma ampla correspondência trocada entre COLBERT e o governador da Martinica. Vários planos foram postos em prática para proteger o pequeno cultivador, que rapidamente estava sendo eliminado pelas grandes plantações de cana. “En 1683, des ouvriers et ouvrières experts sont transportés à la Martinique, des graines distribuées avec des arbres, de par l’initiative du seul pouvoir Central. En 1685, le roi renouvelle son désir, il envoie encore des grains et souhaite l’établissement d’une manufacture.” [“Em 1683, operários e operárias especializados são transportados para a Martinica, sementes são distribuídas junto com as árvores, por iniciativa exclusiva do poder central. Em 1685, o rei renova seu desejo, envia mais sementes e quer o estabelecimento de uma manufatura.”] ADRIEN DESSALLES, Histoire générale des Antilles, Paris, 1847-48, II, p. 59. Em 1687 COLBERT escrevia ao governador da ilha: “Il est nécessaire de les obliger [les habitants] à partager la culture de leurs terres en indigo, rocou, cacao, casse, gingembre, coton et autres fruits qu’ils peuvent cultiver. […] La perte infaillible des îles sera causée par l’excessive quantité de cannes de sucre”. [“É necessário obrigá-los (aos habitantes) a dividir o cultivo de suas terras entre índigo, urucum, cacau, cássia, gengibre, algodão e outras frutas que eles podem plantar. […] A perda fatal das ilhas será causada pela quantidade excessiva de pés de cana-de-açúcar.”] Veja-se LUCIEN PEYTRAND, L’esclavage aux Antilles Françaises avant 1789, Paris, 1897. Sem embargo, a política do governo francês nem sempre foi coerente, o que se explica tendo em conta que os interesses açucareiros eram poderosos.

32. V. T. HARLOW, op. cit., p. 281.

33. “Sugar mills had sprung up for crushing the canes, but Barbados possessed no water power to drive them. The alternative was to use tread-mills worked by horses; and horses were accordingly obtained from New England. Casks and barrels too were needed in which to pack the sugar. These were provided from the abundant forests of Massachusetts and Connecticut.[“Brotaram os engenhos de açúcar para moer as canas, mas Barbados não tinha força hidráulica para acioná-los. A alternativa era usar moendas movidas a cavalos, por isso foram adquiridos cavalos na Nova Inglaterra. Também eram necessários tonéis e barris onde acondicionar o açúcar. Estes foram fornecidos pelas abundantes florestas de Massachusetts e Connecticut.”] V. T. HARLOW, op. cit., p. 274.

34. O problema do abastecimento de víveres era menos grave nas Antilhas francesas, pois o governo da França, consciente de sua impotência para manter as linhas de comércio durante os períodos prolongados de guerra, regulamentara a produção dos mesmos em cada ilha.

35. “It has been estimated that at least half of the white immigrants before 1700 were redemptioners or had their fares paid by others.[“Calculou-se que pelo menos metade dos imigrantes brancos antes de 1700 eram redemptioners [emigrantes europeus que, em troca da viagem para a América, aceitavam o regime de servidão temporária] ou tiveram suas passagens pagas por outros.”] F. A. SHANNON, America’s Economic Growth, Nova York, 1951, p. 64.

 

 

“No processo de acumulação de riqueza quase sempre o esforço inicial é relativamente o maior.”

 

 

“Tudo indica que no longo período que se estende do último quartel do século XVII ao começo do século XIX a economia nordestina sofreu um lento processo de atrofiamento, no sentido de que a renda real per capita de sua população declinou secularmente. É interessante observar, entretanto, que esse atrofiamento constituiu o processo mesmo de formação do que no século XIX viria a ser o sistema econômico do Nordeste, cujas características persistem até hoje. A estagnação da produção açucareira não criou a necessidade — como ocorreria nas Antilhas — de emigração do excedente da população livre formado pelo crescimento vegetativo desta. Não havendo ocupação adequada na região açucareira para todo o incremento de sua população livre, parte dela era atraída pela fronteira móvel do interior criatório. Dessa forma, quanto menos favoráveis fossem as condições da economia açucareira, maior seria a tendência imigratória para o interior. As possibilidades da pecuária para receber novos contingentes de população — quando existe abundância de terras — são sabidamente grandes, pois a oferta de alimentos é, nesse tipo de economia, muito elástica a curto prazo. Contudo, como a rentabilidade da economia pecuária dependia em grande medida da rentabilidade da própria economia açucareira, ao transferir-se população desta para aquela nas etapas de depressão se intensificava a conversão da pecuária em economia de subsistência. Não fora esse mecanismo, e a longa depressão do setor açucareiro teria provocado, seja uma emigração de fatores, seja a estagnação demográfica. Sendo a oferta de alimentos pouco elástica na região litorânea, o crescimento da população teria sido muito menor, não fora essa articulação com o sistema pecuário.

A redução da renda real resultante de baixa dos preços de exportação, numa região agrícola onde a terra é escassa, afeta necessariamente a oferta de alimentos, seja porque se desviam terras que antes produziam alimentos, para produzir artigos exportáveis — e recuperar assim o valor das exportações —, seja porque a importação de alimentos deverá reduzir-se. Numa região pecuária — porquanto a população se alimenta do mesmo produto que exporta — a redução das exportações em nada afeta a oferta interna de alimentos, e, assim, a população pode continuar crescendo normalmente durante um longo período de decadência das exportações. No nordeste brasileiro, como as condições de alimentação eram melhores na economia de mais baixa produtividade, isto é, na região pecuária, as etapas de prolongada depressão em que se intensificava a migração do litoral para o interior teriam de caracterizar-se por uma intensificação no crescimento demográfico. Explica-se assim que a população do Nordeste haja continuado a crescer — e possivelmente tenha intensificado o seu crescimento — em todo o século e meio de estagnação da produção açucareira a que fizemos referência.

A expansão da economia nordestina durante esse longo período consistiu, em última instância, num processo de involução econômica: o setor de alta produtividade ia perdendo importância relativa, e a produtividade do setor pecuário declinava à medida que este crescia. Na verdade, a expansão refletia apenas o crescimento do setor de subsistência, no qual se ia acumulando uma fração crescente da população. Dessa forma, de sistema econômico de alta produtividade em meados do século XVII, o Nordeste se foi transformando progressivamente numa economia em que grande parte da população produzia apenas o necessário para subsistir. A dispersão de parte da população, num sistema de pecuária extensiva, provocou uma involução nas formas de divisão do trabalho e especialização, acarretando um retrocesso mesmo nas técnicas artesanais de produção. A formação da população nordestina e a de sua precária economia de subsistência — elemento básico do problema econômico brasileiro em épocas posteriores — estão assim ligadas a esse lento processo de decadência da grande empresa açucareira que possivelmente foi, em sua melhor época, o negócio colonial agrícola mais rentável de todos os tempos.”

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