Editora: Companhia das Letras
Opinião: ★★★★★
ISBN: 978-85-3590-952-4
Páginas: 428
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Sinopse:
Escrito quando Celso Furtado estava na universidade de Cambridge, Formação
econômica do Brasil pretendia ser uma introdução à história econômica do
Brasil, um afresco, como disse o autor, em que cada segmento tivesse o valor de
uma sugestão. O livro foi além. Tornou-se um clássico da historiografia
econômica e das ciências sociais.
A tese de doutoramento sobre a economia colonial,
defendida na Sorbonne em 1948, e o primeiro ensaio sobre a economia brasileira
contemporânea, escrito no ano seguinte, são o ponto de partida do livro mais
conhecido de Celso Furtado, publicado em 1959: Formação econômica do Brasil.
Quando o escreveu, na Inglaterra, Furtado imaginava explicar o Brasil para
os estrangeiros. Acabou explicando para os brasileiros.
O livro que se tornou um marco na historiografia
econômica brasileira por pouco não existiria: o manuscrito enviado de Cambridge
para a editora brasileira extraviou-se. Por sorte, o microfilme feito de última
hora num equipamento precário pôde ser projetado: as quase trezentas páginas
escritas à mão foram datilografadas, dessa vez com cópia.
Formação econômica do Brasil apoia-se numa visão derivada tanto da história como da economia. A
combinação do método histórico com a análise econômica era, na época, uma
novidade. Pela primeira vez, alguém no Brasil fazia historiografia econômica
tendo uma sólida formação de economista. O texto se inicia com a análise da
ocupação do território brasileiro, comparada também com as colônias do
hemisfério norte e das Antilhas. Seguem-se os ciclos do açúcar, da pecuária, do
ouro, a ascensão da economia cafeeira, e, no século XX, a crise da cafeicultura
e a industrialização, cuja especificidade o autor trata com excepcional
clareza.
Em paralelo aos cinco séculos de história econômica,
Celso Furtado estuda a evolução da mão-de-obra no Brasil, desde a escravidão
até o trabalho assalariado, o dos imigrantes europeus e dos migrantes internos.
Na conclusão, aponta os dois desafios a serem enfrentados até o fim do século
XX, que guardam plena atualidade: completar a industrialização do país e deter
o processo das disparidades regionais.
“A ocupação econômica das terras americanas constitui um episódio da
expansão comercial da Europa. Não se trata de deslocamentos de população
provocados por pressão demográfica — como fora o caso da Grécia — ou de grandes
movimentos de povos determinados pela ruptura de um sistema cujo equilíbrio se
mantivesse pela força — caso das migrações germânicas em direção ao ocidente e
ao sul da Europa. O comércio interno europeu, em intenso crescimento a partir
do século XI, havia alcançado um elevado grau de desenvolvimento no século XV,
quando as invasões turcas começaram a criar dificuldades crescentes às linhas
orientais de abastecimento de produtos de alta qualidade, inclusive
manufaturas. O restabelecimento dessas linhas, contornando o obstáculo otomano,
constitui sem dúvida alguma a maior realização dos europeus na segunda metade
desse século.1
A
descoberta das terras americanas é, basicamente, um episódio dessa obra
ingente. De início pareceu ser episódio secundário. E na verdade o foi para os
portugueses durante todo um meio século. Aos espanhóis revertem em sua
totalidade os primeiros frutos, que são também os mais fáceis de colher. O ouro
acumulado pelas velhas civilizações da meseta mexicana e do altiplano andino é
a razão de ser da América, como objetivo dos europeus, em sua primeira etapa de
existência histórica. A legenda de riquezas inapreciáveis por descobrir corre a
Europa e suscita um enorme interesse pelas novas terras. Esse interesse
contrapõe Espanha e Portugal, “donos” dessas terras, às demais nações
europeias. A partir desse momento a ocupação da América deixa de ser um
problema exclusivamente comercial: intervêm nele importantes fatores políticos.
A Espanha — a quem coubera um tesouro como até então não se conhecera no mundo
— tratará de transformar os seus domínios numa imensa cidadela. Outros países
tentarão estabelecer-se em posições fortes, seja como ponto de partida para
descobertas compensatórias, seja como plataforma para atacar os espanhóis. Não
fora a miragem desses tesouros, de que, nos primeiros dois séculos da história
americana, somente os espanhóis desfrutaram, e muito provavelmente a exploração
e ocupação do continente teriam progredido muito mais lentamente.
O
início da ocupação econômica do território brasileiro é em boa medida uma
consequência da pressão política exercida sobre Portugal e Espanha pelas demais
nações europeias. Nestas últimas prevalecia o princípio de que espanhóis e
portugueses não tinham direito senão àquelas terras que houvessem efetivamente
ocupado. Dessa forma, quando, por motivos religiosos, mas com apoio
governamental, os franceses organizam sua primeira expedição para criar uma
colônia de povoamento nas novas terras — aliás a primeira colônia de povoamento
do continente —, é para a costa setentrional do Brasil que voltam as vistas. Os
portugueses acompanhavam de perto esses movimentos e até pelo suborno atuaram
na corte francesa para desviar as atenções do Brasil. Contudo tornava-se cada
dia mais claro que se perderiam as terras americanas a menos que fosse
realizado um esforço de monta para ocupá-las permanentemente. Esse esforço
significava desviar recursos de empresas muito mais produtivas no Oriente. A
miragem do ouro que existia no interior das terras do Brasil — à qual não era
estranha a pressão crescente dos franceses — pesou seguramente na decisão
tomada de realizar um esforço relativamente grande para conservar as terras
americanas. Sem embargo, os recursos de que dispunha Portugal para colocar
improdutivamente no Brasil eram limitados e dificilmente teriam sido
suficientes para defender as novas terras por muito tempo. A Espanha, cujos recursos
eram incomparavelmente superiores, teve que ceder à pressão dos invasores em
grande parte das terras que lhe cabiam pelo Tratado de Tordesilhas. Para tornar
mais efetiva a defesa de seu quinhão, foi-lhe necessário reduzir o perímetro
deste. Demais, fez-se indispensável criar colônias de povoamento de reduzida
importância econômica — como no caso de Cuba — com fins de abastecimento e de
defesa. Fora das regiões ligadas à grande empresa militar-mineira espanhola, o
continente apresentava escasso interesse econômico, e defendê-lo de forma
efetiva e permanente constituiria sorvedouro enorme de recursos. O comércio de
peles e madeiras com os índios, que se desenvolve durante o século XVI em toda
a costa oriental do continente, é de reduzido alcance e não exige mais que o
estabelecimento de precárias feitorias.
Os
traços de maior relevo do primeiro século da história americana estão ligados a
essas lutas em torno de terras de escassa ou nenhuma utilização econômica.
Espanha e Portugal se creem com direito à totalidade das novas terras, direito
esse que é contestado pelas nações europeias em mais rápida expansão comercial
na época: Holanda, França e Inglaterra. A Espanha recolhe de imediato pingues
frutos que lhe permitem financiar a defesa de seu rico quinhão. Contudo, tão
grande é este e tão inúteis lhe parecem muitas das novas terras, que decide
concentrar seu sistema de defesa em torno ao eixo produtor de metais preciosos,
México-Peru. Esse sistema de defesa estendia-se da Flórida à embocadura do rio
da Prata. Ainda assim, e não obstante a abundância dos recursos de que
dispunha, a Espanha não conseguiu evitar que seus inimigos penetrassem no
centro mesmo de suas linhas de defesa, as Antilhas. Essa cunha antilhana foi de
início uma operação basicamente militar.2 Contudo, nos séculos
seguintes ela terá enorme importância econômica, como veremos mais adiante.
Coube
a Portugal a tarefa de encontrar uma forma de utilização econômica das terras
americanas que não fosse a fácil extração de metais preciosos. Somente assim
seria possível cobrir os gastos de defesa dessas terras. Este problema foi
discutido amplamente e em alto nível, com a interferência de gente — como
Damião de Góis — que via o desenvolvimento da Europa contemporânea a partir de
uma ampla perspectiva. Das medidas políticas que então foram tomadas resultou o
início da exploração agrícola das terras brasileiras, acontecimento de enorme
importância na história americana. De simples empresa espoliativa e extrativa —
idêntica à que na mesma época estava sendo empreendida na costa da África e nas
Índias Orientais —, a América passa a constituir parte integrante da economia
reprodutiva europeia, cuja técnica e capitais nela se aplicam para criar de
forma permanente um fluxo de bens destinados ao mercado europeu.
A
exploração econômica das terras americanas deveria parecer, no século XVI, uma
empresa completamente inviável. Por essa época nenhum produto agrícola era
objeto de comércio em grande escala na Europa. O principal produto da terra — o
trigo — dispunha de abundantes fontes de abastecimento dentro do continente. Os
fretes eram de tal forma elevados — em razão da insegurança no transporte a
grandes distâncias — que somente os produtos manufaturados e as chamadas
especiarias do Oriente podiam comportá-los. Demais, era fácil imaginar os
enormes custos que não teria de enfrentar uma empresa agrícola nas distantes
terras da América. É fato universalmente conhecido que aos portugueses coube a
primazia nesse empreendimento.3 Se seus esforços não tivessem sido coroados
de êxito, a defesa das terras no Brasil ter-se-ia transformado em ônus
demasiado grande, e — excluída a hipótese de antecipação na descoberta do ouro
— dificilmente Portugal teria perdurado como grande potência colonial na
América.”
1.
O desenvolvimento econômico de Portugal no século XV — a exploração da costa
africana, a expansão agrícola nas ilhas do Atlântico e finalmente a abertura da
rota marítima das Índias Orientais — constitui um fenômeno autônomo na expansão
comercial europeia, em grande parte independente das vicissitudes crescentes
criadas ao comércio do Mediterrâneo oriental pela penetração otomana. A
produção de açúcar na Madeira e São Tomé alcançou seus pontos altos na segunda
metade do século XV, época em que os venezianos ainda conservavam intactas suas
fontes de abastecimento nas ilhas do Mediterrâneo oriental. O mesmo se pode
dizer do comércio das especiarias das Índias, pois a ocupação do Egito —
entreposto principal — pelos turcos só ocorreu um quarto de século depois da
viagem de Vasco da Gama. A imediata consequência da abertura da nova rota foi
uma brusca queda dos preços das especiarias: os venezianos passaram a comprar
pimenta em Lisboa pela metade do preço que pagavam aos árabes em Alexandria.
Veja-se sobre este ponto FREDDY THIRIET, Histoire de Venise, Paris,
1952, p. 104. O grande feito português, eliminando os intermediários árabes,
antecipando-se à ameaça turca, quebrando o monopólio dos venezianos e baixando
o preço dos produtos, foi de fundamental importância para o subsequente
desenvolvimento comercial da Europa. Sobre as causas do início da expansão
marítima portuguesa, veja-se o lúcido estudo de ANTÓNIO SÉRGIO, A conquista
de Ceuta, Ensaios, tomo I, 2a ed., Coimbra, 1949.
2.
O povoamento das Antilhas pelos franceses “fut envisagé d’abord sous l’angle
défense coloniale et attaque en Amérique espagnole”. [“[…] foi projetado de
início sob o ângulo de defesa colonial e de ataque contra a América
espanhola.”] LÉON VIGNOLES, “Les
Antilles françaises sous l’ancien régime”, Revue d’Histoire Economique et
Sociale, no 1, 1928, p. 34.
3. “Brazil was the first of the European settlements in America to
attempt the cultivation of the soil.” [“O Brasil foi o primeiro dos assentamentos
europeus na América a tentar o cultivo do solo.”] The Cambridge modern
history, Cambridge, 1909, vol. VI, p. 389. É sabido que os espanhóis nas
Antilhas e no México tentaram empreendimentos agrícolas com anterioridade aos
portugueses. Sem embargo, esses empreendimentos não passaram do estágio
experimental.
“Os magníficos resultados financeiros da colonização agrícola do Brasil
abriram perspectivas atraentes à utilização econômica das novas terras. Sem
embargo, os espanhóis continuaram concentrados em sua tarefa de extrair metais
preciosos. Ao aumentar a pressão de seus adversários, limitaram-se a reforçar o
cordão de isolamento em torno do seu rico quinhão. As terras onde estavam
concentrados se singularizavam na América por serem densamente povoadas. Na
verdade, a empresa colonial espanhola tinha como base a exploração dessa mão de
obra. A Espanha não chegou a interessar-se em fomentar um intercâmbio com as
colônias ou entre estas. A forma como estavam organizadas as relações entre
Metrópole e colônias criava uma permanente escassez de meios de transporte; e era
a causa de fretes excessivamente elevados.10 A política espanhola
estava orientada no sentido de transformar as colônias em sistemas econômicos o
quanto possível autossuficientes e produtores de um excedente líquido — na
forma de metais preciosos — que se transferia periodicamente para a Metrópole.
Esse afluxo de metais preciosos alcançou enormes proporções relativas e
provocou profundas transformações estruturais na economia espanhola. O poder
econômico do Estado cresceu desmesuradamente, e o enorme aumento no fluxo de
renda gerado pelos gastos públicos — ou por gastos privados subsidiados pelo
governo — provocou uma crônica inflação que se traduziu em persistente déficit
na balança comercial. Sendo a Espanha o centro de uma inflação que chegou a
propagar-se por toda a Europa, não é de estranhar que o nível geral de preços
haja sido persistentemente mais elevado nesse país que em seus vizinhos, o que
necessariamente teria de provocar um aumento de importações e uma diminuição de
exportações.11 Em consequência, os metais preciosos que a Espanha
recebia da América sob a forma de transferências unilaterais provocavam um
afluxo de importação de efeitos negativos sobre a produção interna e altamente
estimulante para as demais economias europeias. Por outro lado, a possibilidade
de viver direta ou indiretamente de subsídios do Estado fez crescer o número de
pessoas economicamente inativas, reduzindo a importância relativa na sociedade
espanhola e na orientação da política estatal dos grupos dirigentes ligados às atividades
produtivas.”
10.
As Leis das Índias impediam rigorosamente a entrada de barcos não espanhóis nos
portos americanos e limitavam o tráfego com a Espanha ao porto de Sevilha. Para
esse porto partia da América anualmente apenas uma frota, na qual dificilmente
se podia obter praça. Mesmo na época em que Portugal estava ligado à Espanha,
os equipamentos para os engenhos açucareiros que se fabricavam em Lisboa tinham
que transportar-se a Sevilha para serem embarcados a altos fretes para as
colônias espanholas. Veja-se
RAMIRO GUERRA Y SÁNCHEZ, Azúcar y población en las Antillas, La Habana,
1944, 3a ed., p. 50.
11.
Os estudos realizados por J. HAMILTON sobre o abastecimento da frota em Sevilha
puseram amplamente em evidência que o mesmo se fazia em grande parte com
mercadorias importadas, seja manufaturas, seja alimentos. Veja-se, entre vários
trabalhos desse autor, American treasure and the price revolution in Spain,
1501-1610, Cambridge, Mass., 1934. A luta pela conquista do mercado
espanhol passou a ser um objetivo comum dos demais países europeus. COLBERT
mesmo escreveu: “Plus chacun Etat a du commerce avec les Espagnols plus il a
d’argent”. [“Quanto mais um Estado faz comércio com os espanhóis, mais tem
dinheiro.”] Veja-se E. LEVASSEUR, Histoire du commerce de la France,
Paris, 1911, tomo I, p. 413.
“É
provável entretanto que as transformações da economia antilhana tivessem
ocorrido muito mais lentamente, não fora a ação de um poderoso fator exógeno em
fins da primeira metade do século XVII. Esse fator foi a expulsão definitiva
dos holandeses da região nordeste do Brasil. Senhores da técnica de produção e
muito provavelmente aparelhados para a fabricação28 de equipamentos
para a indústria açucareira, os holandeses se empenharam firmemente em criar
fora do Brasil um importante núcleo produtor de açúcar. É tão favorável a
situação que encontram nas Antilhas francesas e inglesas que preferem colaborar
com os colonos dessas regiões a ocupar novas terras e instalar por conta
própria a indústria. Na Martinica, as dificuldades causadas pela baixa dos
preços do fumo eram grandes, o que facilita o início de qualquer negócio
tendente a restaurar a prosperidade da ilha. Nas Antilhas inglesas, as
dificuldades econômicas haviam sido agravadas pela guerra civil que se
prolongava nas Ilhas Britânicas. Praticamente isoladas da Metrópole, as
colônias inglesas acolheram com grande entusiasmo a possibilidade de um intenso
comércio com os holandeses. Estes não somente deram a necessária ajuda técnica,
como também propiciaram crédito fácil para comprar equipamentos, escravos e
terra.29 Em pouco tempo se constituíram nas ilhas poderosos grupos
financeiros que controlavam grandes quantidades de terras e possuíam engenhos
açucareiros de grandes proporções. Dessa forma, menos de um decênio depois da
expulsão dos holandeses do Brasil, operava nas Antilhas uma economia açucareira
de consideráveis proporções, cujos equipamentos eram totalmente novos e que se
beneficiava de mais favorável posição geográfica.
As
consequências dessa autêntica eclosão de um sistema econômico dentro de outro
foram profundas. A população de origem europeia decresceu rapidamente, tanto
nas Antilhas francesas como nas inglesas, enquanto crescia verticalmente o
número de escravos africanos. Em Barbados, por exemplo, a população branca se
reduziu à metade e a negra mais que decuplicou no correr de dois decênios.
Nesse ínterim, a riqueza da ilha tinha aumentado quarenta vezes.30
Na França, onde o governo estava menos submetido à influência das companhias de
comércio, a reação provocada pelas rápidas transformações econômico-sociais das
ilhas foi maior. Inúmeras medidas foram tomadas para deter o seu abandono pela
população branca e a rápida transformação das colônias de povoamento em grandes
plantações de açúcar. Tratou-se inclusive — contra a orientação da política
colonial da época — de introduzir nas ilhas atividades manufatureiras. Colbert
tomou o assunto em suas mãos, sugeriu inúmeras soluções, enviou operários
especializados em missões técnicas para estudar os recursos da ilha. Tudo
inutilmente. A valorização das terras provocada pela introdução do açúcar agiu
inexoravelmente, destruindo em pouco tempo esse prematuro ensaio de colonização
de povoamento das regiões tropicais da América.31
Se
a economia açucareira ao florescer nas Antilhas fez desaparecerem as colônias
de povoamento que se havia tentado instalar nessas ilhas, por outro lado
contribuiu grandemente para tornar economicamente viáveis as colônias desse
tipo que os ingleses haviam estabelecido na região norte do continente.
Conforme já indicamos, estas últimas estiveram longe de ser um êxito econômico
para as companhias que haviam financiado sua instalação, pois os únicos
produtos que na época justificavam um comércio transatlântico nelas não podiam
ser produzidos. Contudo, os membros dessas colônias que sobreviveram às
vicissitudes da etapa de instalação empenharam-se em criar uma economia
autossuficiente, suplementada por algumas atividades comerciais que lhes
permitiam atender a um mínimo indispensável de importações. Essas colônias
pareciam fadadas a um lento desenvolvimento — o que aliás ocorreu com os grupos
de população francesa situados no Canadá — quando o advento da economia
açucareira antilhana, no começo da segunda metade do século XVII, veio
abrir-lhes inesperadas perspectivas.
A
penetração do açúcar nas ilhas caribenhas expeliu uma parte substancial da
população branca nelas estabelecida, boa parte da qual foi instalar-se nas
colônias do norte. Tratava-se, em grande parte, de pequenos proprietários que
se viram na contingência de alienar suas terras e que se transferiram com algum
capital. Por outro lado, o açúcar desorganizou e, em algumas partes, eliminou a
produção agrícola de subsistência. As ilhas se transformaram, em pouco tempo,
em grandes importadoras de alimentos, e as colônias setentrionais, que havia
pouco não sabiam que fazer com seu excedente de produção de trigo, se
constituíram em principal fonte de abastecimento das prósperas colônias
açucareiras. Como bem observa um
historiador inglês: “Starting with fish, timber and meat, the New Englander
by a clever, complex system of sale and barter in which the West Indies […]
formed the connecting link, drew to themselves any sort of commodity from the
Old World of which they had need”.32 *
E
não ficou na exportação de bens de consumo a importante corrente comercial que
se formou entre os dois grupos de colônias inglesas. Não dispondo de força
hidráulica para mover os engenhos, as ilhas dependiam principalmente de animais
de tiro como fonte de energia. Tampouco dispunham de madeira para fabricar as
caixas em que se exportava o açúcar. Do norte vinham uma e outra coisa.33
Esse importante comércio se efetuava principalmente em navios dos colonos da
Nova Inglaterra, o que veio fomentar a indústria de construção naval nessa
região. Essa indústria, encontrando condições excepcionalmente favoráveis em
razão da abundância de madeira adequada, se desenvolveu intensamente,
transformando-se em uma das principais atividades exportadoras das colônias
setentrionais. Por último cabe mencionar a instalação de uma importante
indústria derivada da cana: a destilação de bebidas alcoólicas. Neste caso a
integração se realizou com as Antilhas francesas. Estas, estando interditadas
de usar a matéria-prima de que dispunham — para evitar a concorrência às
indústrias de bebidas da Metrópole —, vendiam-na a preços extremamente baixos.
Os colonos do norte se prevaleciam desses baixos preços para concorrer
vantajosamente com as próprias Antilhas inglesas nesse negócio altamente
lucrativo.
As
colônias do norte dos EUA se desenvolveram, assim, na segunda metade do século
XVII e primeira do século XVIII, como parte integrante de um sistema maior no
qual o elemento dinâmico são as regiões antilhanas produtoras de artigos
tropicais. O fato de que as duas partes principais do sistema — a região
produtora do artigo básico de exportação e a região que abastecia a primeira —
hajam estado separadas é de fundamental importância para explicar o
desenvolvimento subsequente de ambas. A essa separação se deve que os capitais
gerados no conjunto do sistema não tenham sido canalizados exclusivamente para
a atividade açucareira, que na realidade era a mais lucrativa. Essa separação,
ao tornar possível o desenvolvimento de uma economia agrícola não especializada
na exportação de produtos tropicais, marca o início de uma nova etapa na
ocupação econômica das terras americanas. A primeira etapa consistira
basicamente na exploração da mão de obra preexistente com vistas a criar um
excedente líquido de produção de metais preciosos; a segunda se concretizara na
produção de artigos agrícolas tropicais por meio de grandes empresas que usavam
intensamente mão de obra escrava importada.
Nesta
terceira etapa surgia uma economia similar à da Europa contemporânea, isto é,
dirigida de dentro para fora, produzindo principalmente para o mercado interno,
sem uma separação fundamental entre as atividades produtivas destinadas à
exportação e aquelas ligadas ao mercado interno. Uma economia desse tipo estava
em flagrante contradição com os princípios da política colonial e somente
graças a um conjunto de circunstâncias favoráveis pôde desenvolver-se. Com
efeito, sem o prolongado período de guerra civil por que passou a Inglaterra no
século XVII, teria sido muito mais difícil aos colonos da Nova Inglaterra
firmar-se tão amplamente nos mercados das prósperas ilhas antilhanas. Demais, a
famosa legislação protecionista naval que no último quartel desse século
excluiu os holandeses do comércio das colônias constitui outro forte aliciante
não só para as exportações da Nova Inglaterra como também para sua indústria de
construção de barcos. Por último, o prolongado período de guerras que a
Inglaterra manteve com a França tornou precário o abastecimento das Antilhas
com gêneros europeus, criando para os colonos do norte a situação favorável de
abastecedores regulares das ilhas inglesas e ocasionais das francesas.34
Os
esforços, quase malogrados, feitos pelos ingleses para eliminar os contatos
comerciais desses colonos com as Antilhas francesas constituem a primeira etapa
de um período de fricção e choque de interesses que se fez cada vez mais
manifesto. Com efeito, uma vez lograda a supremacia e excluídos os franceses de
suas posições principais na América, a Inglaterra pretendeu, na segunda metade
do século XVIII, pôr cobro à crescente concorrência que as colônias
setentrionais estavam fazendo à economia metropolitana. As medidas legislativas
se sucederam, então, mas serviram apenas para aumentar a tensão e pôr à mostra
o profundo desencontro de interesses, que já existia, precipitando a separação.
De
um ponto de vista macroeconômico, as colônias da Nova Inglaterra (assim como
Nova York e Pensilvânia) continuaram a ser, avançando o século XVIII, economias
de produtividade relativamente baixa. O produto por habitante deveria ser
substancialmente inferior ao das colônias agrícolas de grandes plantações.
Contudo, o tipo de atividade econômica que nelas prevalecia era compatível com
pequenas unidades produtivas, de base familiar, sem o compromisso de remunerar
vultosos capitais. Por outro lado, a abundância de terras tornava atrativa a
imigração europeia no regime de servidão temporária. Ao surgir para o pequeno
proprietário a possibilidade de vender regularmente parte de sua produção
agrícola, tornou-se para ele viável o financiamento da viagem de um imigrante
cujo trabalho seria explorado durante quatro anos. Estima-se que pelo menos a
metade da população europeia que emigrou para os EUA antes de 1700 era
constituída de pessoas que haviam aceitado um ou outro regime de servidão
temporária.35 A principal vantagem que esse sistema apresentava para
o pequeno proprietário estava em que a imobilização de capital era muito menor
que a exigida pela compra do escravo, sendo também menor o risco em caso de
morte. O escravo africano constituía um negócio muito mais rentável para o
grande capitalista, mas de maneira geral não estava ao alcance do pequeno
produtor. Por outro lado, as atividades agrícolas dessas colônias tampouco
justificavam grandes inversões. Explica-se, assim, que a importação de mão de
obra europeia em regime de servidão temporária tenha continuado nas colônias
mais pobres e haja sido excluída das colônias mais ricas, não obstante fosse
amplamente reconhecido que o trabalho escravo era o mais barato. A transição
para o escravo africano só se realizou ali onde foi possível especializar a
agricultura num artigo exportável em grande escala.
Essas
colônias de pequenos proprietários, em grande parte autossuficientes,
constituem comunidades com características totalmente distintas das que
predominavam nas prósperas colônias agrícolas de exportação. Nelas era muito
menor a concentração da renda, e as mesmas estavam muito menos sujeitas a
bruscas contrações econômicas. Demais, a parte dessa renda que revertia em
benefício de capitais forâneos era insignificante. Em consequência, o padrão
médio de consumo era elevado, relativamente ao nível da produção per capita. Ao
contrário do que ocorria nas colônias de grandes plantações, em que parte
substancial dos gastos de consumo estava concentrada numa reduzida classe de
proprietários e se satisfazia com importações, nas colônias do norte dos EUA os
gastos de consumo se distribuíam pelo conjunto da população, sendo
relativamente grande o mercado dos objetos de uso comum.”
28.
O problema de se os holandeses conseguiram ou não dominar eles mesmos a técnica
de produção de açúcar, ou permitiram a vinda ao Brasil de produtores antilhanos
que aperfeiçoaram os seus conhecimentos, carece de significação real. Veja-se
sobre este assunto A. P. CANABRAVA, “A influência do Brasil na técnica do fabrico
de açúcar nas Antilhas francesas e inglesas no meado do século XVII”, Anuário
da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas, 1946-47, São Paulo,
1947.
29. “It was thanks to Dutch refugees from Brazil, which was now being
reconquered by the Portuguese, that the technique of sugar cultivation and
manufacture came to Barbados. Dutch capital helped the planters to buy the
necessary machinery, Dutch credit provided them with negro slaves to work on
the sugar estates, and Dutch ships bought their sugar and supplied them with
food and other goods which England could no longer supply owing to internal
troubles.” [“Foi graças aos
refugiados holandeses vindos do Brasil, que agora estava sendo reconquistado
pelos portugueses, que a técnica do cultivo e da fabricação do açúcar chegou a
Barbados. O capital holandês ajudou os colonos a comprar o equipamento
necessário, o crédito holandês forneceu-lhes escravos negros para trabalhar nas
fazendas de cana-de-açúcar, e os barcos holandeses compraram seu açúcar e os abasteceram
de gêneros alimentícios e outros bens que a Inglaterra não podia mais fornecer
devido a seus distúrbios internos.”] ALAN BURNS, History of the British West Indies,
Londres, 1954, p. 232.
30. “Already, in 1667, this substitution of the negro slave for the
white servant had reached an advanced stage. In that year Major Scott stated
that after examining all the Barbarians records he found that since 1643 no
less than 12,000 ‘good men’ had left the island for other plantations, and that
the number of landowners had decreased from 11,200 small-holders in 1645 to 745
owners of large estates on 1667; while during the same period the negroes had
increased from 5,680 to 82,023. Finally he summed up the situation by saying
that in 1667 the island ‘was not half so strong, and forty times as rich as in
the year’ 1645.” [“Já
em 1667 a substituição do escravo negro pelo servo branco atingira um estágio
avançado. Nesse ano o major Scott declarou que, depois de ter examinado todos
os registros de Barbados, descobriu que desde 1643 nada menos que 12 mil ‘bons
homens’ tinham saído da ilha e ido para outras fazendas, e que o número de
proprietários de terras decrescera de 11200 pequenos proprietários em 1645 para
745 proprietários de grandes fazendas em 1667; ao passo que durante o mesmo
período os negros haviam aumentado de 5680 para 82023. Enfim, ele resumiu a
situação dizendo que em 1667 a ilha ‘não tinha nem a metade da força, mas era
quarenta vezes mais rica que no ano’ de 1645.”] V. T. HARLOW, op. cit., p. 310.
31.
Existe uma ampla correspondência trocada entre COLBERT e o governador da
Martinica. Vários planos foram postos em prática para proteger o pequeno
cultivador, que rapidamente estava sendo eliminado pelas grandes plantações de
cana. “En 1683, des ouvriers et ouvrières experts sont transportés à la
Martinique, des graines distribuées avec des arbres, de par l’initiative du
seul pouvoir Central. En 1685, le roi renouvelle son désir, il envoie encore
des grains et souhaite l’établissement d’une manufacture.” [“Em 1683,
operários e operárias especializados são transportados para a Martinica,
sementes são distribuídas junto com as árvores, por iniciativa exclusiva do
poder central. Em 1685, o rei renova seu desejo, envia mais sementes e quer o
estabelecimento de uma manufatura.”] ADRIEN DESSALLES, Histoire générale des
Antilles, Paris, 1847-48, II, p. 59. Em 1687 COLBERT escrevia ao governador
da ilha: “Il est nécessaire de les obliger [les habitants] à partager
la culture de leurs terres en indigo, rocou, cacao, casse, gingembre, coton et
autres fruits qu’ils peuvent cultiver. […] La perte infaillible des îles
sera causée par l’excessive quantité de cannes de sucre”. [“É necessário
obrigá-los (aos habitantes) a dividir o cultivo de suas terras entre índigo,
urucum, cacau, cássia, gengibre, algodão e outras frutas que eles podem
plantar. […] A perda fatal das ilhas será causada pela quantidade excessiva de
pés de cana-de-açúcar.”] Veja-se LUCIEN PEYTRAND, L’esclavage aux Antilles
Françaises avant 1789, Paris, 1897. Sem embargo, a política do governo
francês nem sempre foi coerente, o que se explica tendo em conta que os
interesses açucareiros eram poderosos.
32. V. T. HARLOW, op. cit., p. 281.
33. “Sugar mills had sprung up for crushing the canes, but Barbados
possessed no water power to drive them. The alternative was to use tread-mills
worked by horses; and horses were accordingly obtained from New England. Casks
and barrels too were needed in which to pack the sugar. These were provided
from the abundant forests of Massachusetts and Connecticut.” [“Brotaram os engenhos de açúcar
para moer as canas, mas Barbados não tinha força hidráulica para acioná-los. A
alternativa era usar moendas movidas a cavalos, por isso foram adquiridos
cavalos na Nova Inglaterra. Também eram necessários tonéis e barris onde
acondicionar o açúcar. Estes foram fornecidos pelas abundantes florestas de
Massachusetts e Connecticut.”] V. T. HARLOW, op. cit., p. 274.
34.
O problema do abastecimento de víveres era menos grave nas Antilhas francesas,
pois o governo da França, consciente de sua impotência para manter as linhas de
comércio durante os períodos prolongados de guerra, regulamentara a produção
dos mesmos em cada ilha.
35. “It has been estimated that at least half of the white immigrants
before 1700 were redemptioners or had their fares paid by others.” [“Calculou-se que pelo menos
metade dos imigrantes brancos antes de 1700 eram redemptioners
[emigrantes europeus que, em troca da viagem para a América, aceitavam o regime
de servidão temporária] ou tiveram suas passagens pagas por outros.”] F. A. SHANNON, America’s
Economic Growth, Nova York, 1951, p. 64.
“No
processo de acumulação de riqueza quase sempre o esforço inicial é
relativamente o maior.”
“Tudo
indica que no longo período que se estende do último quartel do século XVII ao
começo do século XIX a economia nordestina sofreu um lento processo de
atrofiamento, no sentido de que a renda real per capita de sua população
declinou secularmente. É interessante observar, entretanto, que esse
atrofiamento constituiu o processo mesmo de formação do que no século XIX viria
a ser o sistema econômico do Nordeste, cujas características persistem até
hoje. A estagnação da produção açucareira não criou a necessidade — como
ocorreria nas Antilhas — de emigração do excedente da população livre formado
pelo crescimento vegetativo desta. Não havendo ocupação adequada na região
açucareira para todo o incremento de sua população livre, parte dela era
atraída pela fronteira móvel do interior criatório. Dessa forma, quanto menos
favoráveis fossem as condições da economia açucareira, maior seria a tendência
imigratória para o interior. As possibilidades da pecuária para receber novos
contingentes de população — quando existe abundância de terras — são
sabidamente grandes, pois a oferta de alimentos é, nesse tipo de economia,
muito elástica a curto prazo. Contudo, como a rentabilidade da economia
pecuária dependia em grande medida da rentabilidade da própria economia açucareira,
ao transferir-se população desta para aquela nas etapas de depressão se
intensificava a conversão da pecuária em economia de subsistência. Não fora
esse mecanismo, e a longa depressão do setor açucareiro teria provocado, seja
uma emigração de fatores, seja a estagnação demográfica. Sendo a oferta de
alimentos pouco elástica na região litorânea, o crescimento da população teria
sido muito menor, não fora essa articulação com o sistema pecuário.
A
redução da renda real resultante de baixa dos preços de exportação, numa região
agrícola onde a terra é escassa, afeta necessariamente a oferta de alimentos,
seja porque se desviam terras que antes produziam alimentos, para produzir
artigos exportáveis — e recuperar assim o valor das exportações —, seja porque a
importação de alimentos deverá reduzir-se. Numa região pecuária — porquanto a
população se alimenta do mesmo produto que exporta — a redução das exportações
em nada afeta a oferta interna de alimentos, e, assim, a população pode
continuar crescendo normalmente durante um longo período de decadência das
exportações. No nordeste brasileiro, como as condições de alimentação eram
melhores na economia de mais baixa produtividade, isto é, na região pecuária,
as etapas de prolongada depressão em que se intensificava a migração do litoral
para o interior teriam de caracterizar-se por uma intensificação no crescimento
demográfico. Explica-se assim que a população do Nordeste haja continuado a
crescer — e possivelmente tenha intensificado o seu crescimento — em todo o
século e meio de estagnação da produção açucareira a que fizemos referência.
A
expansão da economia nordestina durante esse longo período consistiu, em última
instância, num processo de involução econômica: o setor de alta produtividade
ia perdendo importância relativa, e a produtividade do setor pecuário declinava
à medida que este crescia. Na verdade, a expansão refletia apenas o crescimento
do setor de subsistência, no qual se ia acumulando uma fração crescente da
população. Dessa forma, de sistema econômico de alta produtividade em meados do
século XVII, o Nordeste se foi transformando progressivamente numa economia em
que grande parte da população produzia apenas o necessário para subsistir. A
dispersão de parte da população, num sistema de pecuária extensiva, provocou
uma involução nas formas de divisão do trabalho e especialização, acarretando
um retrocesso mesmo nas técnicas artesanais de produção. A formação da
população nordestina e a de sua precária economia de subsistência — elemento
básico do problema econômico brasileiro em épocas posteriores — estão assim
ligadas a esse lento processo de decadência da grande empresa açucareira que
possivelmente foi, em sua melhor época, o negócio colonial agrícola mais
rentável de todos os tempos.”
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