Editora: Companhia das Letras
Opinião: ★★★★★
Páginas: 428
ISBN: 978-85-3590-952-4
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Sinopse: Ver Parte I
“O
século XVII constitui a etapa de maiores dificuldades na vida política da
colônia. Em sua primeira metade, o desenvolvimento da economia açucareira foi
interrompido pelas invasões holandesas. Nessa etapa os prejuízos são bem
maiores para Portugal que para o próprio Brasil, teatro das operações de
guerra. A administração holandesa se preocupou em reter na colônia parte das
rendas fiscais proporcionadas pelo açúcar, o que permitiu um desenvolvimento
mais intenso da vida urbana. Do ponto de vista do comércio e do fisco
portugueses, entretanto, os prejuízos deveriam ser consideráveis. Simonsen
estimou em 20 milhões de libras o valor das mercadorias subtraídas ao comércio
lusitano.65 Isso concomitantemente com gastos militares vultosos.
Encerrada a etapa militar, tem início a baixa nos preços do açúcar provocada
pela perda do monopólio. Na segunda metade do século a rentabilidade da colônia
baixou substancialmente, tanto para o comércio como para o erário lusitanos, ao
mesmo tempo que cresciam suas próprias dificuldades de administração e defesa.
Na
etapa de prosperidade da economia açucareira, os portugueses se haviam
preocupado em estender seus domínios para o norte. A preocupação de defender o
monopólio do açúcar deve haver fomentado esse movimento expansionista. Em fins
do século XVI praticamente todas as terras tropicais do continente — isto é, as
terras potencialmente produtoras de açúcar — estavam em mãos de espanhóis e
portugueses, por essa época unidos sob um só governo. O ataque de holandeses,
franceses e ingleses se fez em toda a linha que desce das Antilhas à região
nordeste do Brasil. Aos portugueses coube a defesa da parte dessa linha ao sul
da foz do Amazonas. Dessa forma, foi defendendo as terras da Espanha dos
inimigos desta que os portugueses se fixaram na foz do grande rio,
posição-chave para o fácil controle de toda a imensa bacia.
A
experiência havia já demonstrado que a simples defesa militar sem a efetiva
ocupação da terra era, a longo prazo, operação infrutífera, seja porque os
demais povos não reconheciam direito senão sobre as terras efetivamente
ocupadas, seja porque, na ausência de bases permanentes em terra, as operações de
defesa se tornavam muito mais onerosas. Na época do apogeu açucareiro, Portugal
ocupou — expulsando franceses, holandeses e ingleses — toda a costa que se
estende até a foz do Amazonas. Pelo menos nessa parte da América estava
eliminado o risco de formação de uma economia concorrente.”
65.
Op. cit., p. 120.
“A
luta pela mão de obra indígena que realizaram os colonos do norte e a tenaz
reação, contra estes, dos jesuítas, que desenvolveram técnicas bem mais
racionais de incorporação das populações indígenas à economia da colônia,
constituem um fator decisivo na penetração econômica da bacia amazônica. Em sua
caça ao indígena, os colonos foram conhecendo melhor a floresta e descobrindo
suas potencialidades. Na primeira metade do século XVIII a região paraense
progressivamente se transforma em centro exportador de produtos florestais:
cacau, baunilha, canela, cravo, resinas aromáticas. A colheita desses produtos,
entretanto, dependia de uma utilização intensiva da mão de obra indígena, a
qual, trabalhando dispersa na floresta, dificilmente poderia submeter-se às formas
correntes de organização do trabalho escravo. Coube aos jesuítas encontrar a
solução adequada para esse problema. Conservando os índios em suas próprias
estruturas comunitárias, tratavam eles de conseguir a cooperação voluntária dos
mesmos. Dado o reduzido valor dos objetos que recebiam os índios, tornava-se
rentável organizar a exploração florestal de forma extensiva, ligando pequenas
comunidades disseminadas na imensa zona. Essa penetração em superfície
apresentava a vantagem de que podia estender-se indefinidamente. Não se
dependia de nenhum sistema coercitivo. Uma vez suscitado o interesse do
silvícola, a penetração se realizava sutilmente, pois, criada a necessidade de
uma nova mercadoria, estava estabelecido um vínculo de dependência do qual já não
podiam desligar-se os indígenas. Explica-se assim que, com meios tão limitados,
os jesuítas hajam podido penetrar a fundo na bacia amazônica. Dessa forma, a
pobreza mesma do Maranhão, ao obrigar seus colonos a lutar tão tenazmente pela
mão de obra indígena, e a correspondente reação jesuítica — de início simples
defesa do indígena, em seguida busca de formas racionais de convivência e
finalmente exploração servil dessa mão de obra — constituíram fator decisivo da
enorme expansão territorial que se efetua na primeira metade do século XVIII.
Na
etapa em que os colonos do norte se esforçam por sobreviver numa caça impiedosa
ao índio e num aprendizado crescente da exploração florestal, grandes são
também as dificuldades que enfrentam os colonos da antiga colônia de São
Vicente, no sul, para manter seu precário sistema de vida. O empobrecimento da
região açucareira, ao reduzir o mercado de escravos da terra, repercutiu
igualmente na região sulina, escassa de toda mercadoria comercial. Os couros,
que de há muito se exportavam também pelos portos do sul, aumentaram então sua
importância relativa, e os negócios de criação passaram a preocupar os
governantes portugueses de forma crescente. Por essa época a região do rio da
Prata se configurava já como grande centro criatório, e os seus couros
constituíam uma séria ameaça a um dos poucos produtos da colônia portuguesa
cujo mercado não havia sido desorganizado pelo desenvolvimento antilhano. A
penetração dos portugueses em pleno estuário do Prata, onde em 1680 fundaram a
Colônia do Sacramento, constitui assim outro episódio da expansão territorial
do Brasil ligado às vicissitudes da etapa de decadência da economia açucareira.
A Colônia do Sacramento, que esteve em mãos portuguesas com interrupções
durante quase um século, permitiu a Portugal reforçar enormemente sua posição
nos negócios do couro, demais de constituir um entreposto para o contrabando,
sendo um dos principais portos de entrada da América espanhola, numa etapa em
que a Espanha perdera praticamente a sua frota e persistia em manter o
monopólio do comércio com suas colônias.
À
medida que cresciam em importância relativa os setores de subsistência no
norte, no sul e no interior nordestino — reduzindo-se concomitantemente a
participação das exportações no total do produto da colônia —, tornava-se mais
e mais difícil para o governo português transferir para a Metrópole o reduzido
valor dos impostos que arrecadava. Devendo liquidar-se em moeda portuguesa tais
impostos, sua transferência impunha uma crescente escassez de numerário na
colônia, cujas dificuldades também por esse lado se viam agravadas. Em Portugal
eram ainda mais sérias as vicissitudes. A queda no valor das exportações de
açúcar, por um lado, criava dificuldades ao erário e, por outro, impunha a
necessidade de reajustar todo o sistema econômico em um nível de importações
bem mais baixo. As repetidas desvalorizações cambiais (o valor da libra sobe de
mil para 3500 réis entre 1640 e 1700) refletem a extensão do desequilíbrio
provocado na economia lusitana. Do ponto de vista da colônia, tais
desvalorizações, se traziam algum alívio à região exportadora de açúcar, também
contribuíam para agravar a situação das regiões mais pobres, que pouco ou nada
tinham para exportar e cuja procura de importações era altamente inelástica
pelo fato mesmo de que se limitava a coisas imprescindíveis, como o sal. O
encarecimento das manufaturas importadas chegou a extremos, e nas regiões mais
pobres, como Piratininga, uma simples roupa de fazenda importada ou uma
espingarda podiam valer mais que uma casa residencial.68 Esses
fatores contribuíam para a reversão cada vez mais acentuada a formas de
economia de subsistência, com atrofiamento da divisão do trabalho, redução da
produtividade, fragmentação do sistema em unidades produtivas cada vez menores,
desaparição das formas mais complexas de convivência social, substituição da
lei geral pela norma local etc.”
68.
ROBERTO SIMONSEN, História econômica do
Brasil, 1957, p. 221.
“A
natureza mesma da empresa mineira não permitia uma ligação à terra do tipo da
que prevalecia nas regiões açucareiras. O capital fixo era reduzido, pois a
vida de uma lavra era sempre algo incerto. A empresa estava organizada de forma
a poder deslocar-se em tempo relativamente curto. Por outro lado, a elevada
lucratividade do negócio induzia a concentrar na própria mineração todos os
recursos disponíveis. A combinação desses dois fatores — incerteza e
correspondente mobilidade da empresa, alta lucratividade e correspondente
especialização — marca a organização de toda a economia mineira. Sendo a
lucratividade maior na etapa inicial da mineração, em cada região, a excessiva
concentração de recursos nos trabalhos mineratórios conduzia sempre a grandes
dificuldades de abastecimento. A fome acompanhava sempre a riqueza nas regiões
do ouro. A elevação dos preços dos alimentos e dos animais de transporte nas
regiões vizinhas constituiu o mecanismo de irradiação dos benefícios econômicos
da mineração.
A
pecuária, que encontrara no sul um hábitat excepcionalmente favorável para
desenvolver-se — e que, não obstante sua baixíssima rentabilidade, subsistia
graças às exportações de couro —, passará por uma verdadeira revolução com o
advento da economia mineira. O gado do sul, cujos preços haviam permanecido
sempre em níveis extremamente baixos, comparativamente aos que prevaleciam na
região açucareira, valoriza-se rapidamente e alcança, em ocasiões, preços
excepcionalmente altos. O próprio gado do Nordeste, cujo mercado definhava com
a decadência da economia açucareira, tende a deslocar-se em busca do
florescente mercado da região mineira. Esse deslocamento do gado nordestino
teria que acarretar a elevação dos preços que pagavam os engenhos, razão pela
qual provocou fortes reações oficiais e tentativas de interdição.
Outra
característica da economia mineira, de profundas consequências para as regiões
vizinhas, radicava em seu sistema de transporte. Localizada a grande distância
do litoral, dispersa e em região montanhosa, a população mineira dependia para
tudo de um complexo sistema de transporte. A tropa de mulas constitui autêntica
infraestrutura de todo o sistema. A quase inexistência de abastecimento local
de alimentos, a grande distância por terra que deviam percorrer todas as
mercadorias importadas, a necessidade de vencer grandes caminhadas em região
montanhosa para alcançar os locais de trabalho, tudo contribuía para que o
sistema de transporte desempenhasse um papel básico no funcionamento da
economia. Criou-se, assim, um grande mercado para animais de carga.
Se
se considera em conjunto a procura de gado para corte e de muares para
transporte, a economia mineira constituiu, no século XVIII, um mercado de
proporções superiores ao que havia propiciado a economia açucareira em sua
etapa de máxima prosperidade. Destarte, os benefícios que dela se irradiam para
toda a região criatória do sul são substancialmente maiores do que os que
recebeu o sertão nordestino. A região rio-grandense, onde a criação de mulas se
desenvolveu em grande escala, foi, dessa forma, integrada no conjunto da
economia brasileira. Cada ano subiam do Rio Grande do Sul dezenas de milhares
de mulas, as quais constituíam a principal fonte de renda da região. Esses
animais se concentravam na região de São Paulo, onde, em grandes feiras, eram
distribuídos aos compradores que provinham de diferentes regiões. Desse modo, a
economia mineira, através de seus efeitos indiretos, permitiu que se
articulassem as diferentes regiões do sul do país.
Ao
contrário do que ocorrera no Nordeste, onde se partiu de um vazio econômico
para a formação de uma economia pecuária dependente da açucareira, no sul do
país a pecuária preexistiu à mineração. Com efeito, o advento da mineração
ocorreu quando a economia de subsistência de Piratininga havia já atravessado
século e meio de pobreza. Além disso, no Rio Grande e mesmo no Mato Grosso já
existia uma economia pecuária rudimentar de onde saía alguma exportação de
couros. Essas distintas regiões viviam independentemente e tenderiam
provavelmente a desenvolver-se, num regime de subsistência, sem vínculos de
solidariedade econômica que as articulassem. A economia mineira abriu um novo
ciclo de desenvolvimento para todas elas. Por um lado, elevou substancialmente
a rentabilidade da atividade pecuária, induzindo a uma utilização mais ampla
das terras e do rebanho. Por outro, fez interdependentes as diferentes regiões,
especializadas umas na criação, outras na engorda e distribuição, e outras
constituindo os principais mercados consumidores. É um equívoco supor que foi a
criação que uniu essas regiões. Quem as uniu foi a procura de gado que se
irradiava do centro dinâmico constituído pela economia mineira.”
“17. Passivo
colonial, crise financeira e instabilidade política
A
repercussão no Brasil dos acontecimentos políticos da Europa de fins do século
XVIII e começo do seguinte, se por um lado acelerou a evolução política do
país, por outro contribuiu para prolongar a etapa de dificuldades econômicas
que se iniciara com a decadência do ouro. Ocupado o reino português pelas
tropas francesas, desapareceu o entreposto que representava Lisboa para o
comércio da colônia, tornando-se indispensável o contato direto desta com os
mercados ainda acessíveis. A “abertura dos portos”, decretada ainda em 1808,
resultava de uma imposição dos acontecimentos.76 Vêm em seguida os
tratados de 1810, que transformam a Inglaterra em potência privilegiada, com
direitos de extraterritorialidade e tarifas preferenciais extremamente baixas,
tratados esses que constituirão, em toda a primeira metade do século, uma séria
limitação à autonomia do governo brasileiro no setor econômico. A separação
definitiva de Portugal, em 1822, e o acordo pelo qual a Inglaterra consegue
consolidar sua posição, em 1827, são outros dois marcos fundamentais nessa
etapa de grandes acontecimentos políticos. Por último, cabe referir a
eliminação do poder pessoal de d. Pedro I, em 1831, e a consequente ascensão
definitiva ao poder da classe colonial dominante formada pelos senhores da
grande agricultura de exportação.
Observados
esses acontecimentos de uma perspectiva ampla, torna-se mais ou menos evidente
que os privilégios concedidos à Inglaterra constituíram uma consequência
natural da forma como se processou a independência, sem maiores desgastes de
recursos, mas devendo a antiga colônia assumir a responsabilidade de parte do
passivo que contraíra Portugal para sobreviver como potência colonial. Se a
independência houvesse resultado de uma luta prolongada, dificilmente ter-se-ia
preservado a unidade territorial, pois nenhuma das regiões do país dispunha de
suficiente ascendência sobre as demais para impor a unidade. Os interesses
regionais constituíam uma realidade muito mais palpável que a unidade nacional,
a qual só começou realmente a existir quando se transferiu para o Rio de
Janeiro o governo português. A luta ingente e inútil de Bolívar, para manter a
unidade de Nova Granada, constitui um exemplo do difícil que é impor uma ideia
que não encontra correspondência na realidade dos interesses dominantes.
Seria
erro, entretanto, supor que aos privilégios concedidos à Inglaterra cabe a
principal responsabilidade pelo fato de que o Brasil não se haja transformado
numa nação moderna já na primeira metade do século XIX, a exemplo do ocorrido
nos EUA. A diferença fundamental que existe entre os pontos de vista do
visconde de Cairu — seguramente o representante mais lúcido da intelligentzia
da classe agrícola colonial — e do visconde de Strangford é que neste último
persistiam ranços mercantilistas, enquanto o brasileiro refletia melhor as
ideias que prevaleceriam na Inglaterra nos anos subsequentes. Não existindo na
colônia sequer uma classe comerciante de importância — o grande comércio era
monopólio da Metrópole —, resultava que a única classe com expressão era a dos
grandes senhores agrícolas. Qualquer que fosse a forma como se processasse a
independência, seria essa classe a que ocuparia o poder, como na verdade
ocorreu, particularmente a partir de 1831. A grande agricultura tinha consciência
clara de que Portugal constituía um entreposto oneroso, e a voz dominante na
época era que a colônia necessitava urgentemente de liberdade de comércio. O
desaparecimento do entreposto lusitano logo se traduziu em baixa de preços nas
mercadorias importadas, maior abundância de suprimentos, facilidades de crédito
mais amplas e outras óbvias vantagens para a classe de grandes agricultores.
Sendo
uma grande plantação de produtos tropicais, a colônia estava intimamente
integrada nas economias europeias, das quais dependia. Não constituía,
portanto, um sistema autônomo, sendo simples prolongamento de outros maiores.
Caso fosse completa a integração — o que ocorria no caso das Antilhas inglesas
—, a identidade de interesses das classes dominantes na economia principal e na
dependente teria de ser completa. Essa comunhão ideológica não podia existir
com Portugal porque este último país era apenas um entreposto, estando seus
interesses via de regra em conflito com os da colônia.
Os
conflitos da primeira metade do século XIX entre os dirigentes da grande
agricultura brasileira e a Inglaterra — os quais contribuíram indiretamente
para que se formasse uma clara consciência da necessidade de lograr a plena
independência política — não tiveram sua origem em discrepâncias de ideologia
econômica. Resultaram principalmente da falta de coerência com que os ingleses
seguiam a ideologia liberal. O tratado de comércio de 1810, referindo-se embora
com bonitas palavras ao novo “systema liberal”, constitui, na verdade, um instrumento
criador de privilégios. Por outro lado, os ingleses não se preocuparam em abrir
mercados aos produtos brasileiros, os quais competiam com os de suas
dependências antilhanas. Aplicada unilateralmente, a ideologia liberal passou a
criar sérias dificuldades à economia brasileira, exatamente na etapa em que a
classe de grandes agricultores começava a governar o país. É nesse ambiente de
dificuldades que a Inglaterra pretende impor a eliminação da importação de
escravos africanos. Assim, entre as dificuldades que encontravam para vender os
seus produtos e o temor de uma forte elevação de custos provocada pela
suspensão da importação de escravos, a classe de grandes agricultores se
defendeu tenazmente, provocando e enfrentando a ira dos ingleses. O governo
britânico, escudado em sólidas razões morais e impulsado pelos interesses
antilhanos que viam na persistência da escravatura brasileira o principal fator
de depressão do mercado do açúcar, usou inutilmente todos os meios a seu
alcance para terminar com o tráfico transatlântico de escravos.
A
tensão que na primeira metade do século XIX perdura entre o governo britânico e
a classe dominante brasileira77 não encobre, destarte, nenhuma
contradição séria de interesses. Portanto, não se pode afirmar que, se o
governo brasileiro houvesse gozado de plena liberdade de ação, o
desenvolvimento econômico do país teria sido necessariamente muito intenso.
Contudo, cabe reconhecer que o privilégio aduaneiro concedido à Inglaterra e a
posterior uniformização da tarifa em quinze por cento ad valorem, numa etapa de
estagnação do comércio exterior, criaram sérias dificuldades financeiras ao
governo brasileiro. O imposto sobre as importações é o instrumento comum com
que os governos dos países da economia primária exportadora arrecadam suas
receitas básicas. A única alternativa a esse imposto era taxar as exportações,
o que numa economia escravista significa cortar os lucros da classe de senhores
da grande agricultura.78 Assim, entre a necessidade de sangrar seus
próprios lucros numa etapa de dificuldades e a possibilidade de aumentar o
imposto de importação, debateu-se a classe governante brasileira.
O
governo central, que enfrenta extraordinária escassez de recursos financeiros,
vê sua autoridade reduzir-se por todo o país, numa fase em que as dificuldades
econômicas criavam um clima de insatisfação em praticamente todas as regiões.
As províncias do norte — Bahia, Pernambuco e Maranhão — atravessam um momento
de sérias dificuldades econômicas. Os preços do açúcar caem persistentemente na
primeira metade do século, e os do algodão, ainda mais acentuadamente. Na Bahia
e em Pernambuco, e em especial no Maranhão, a renda per capita deve haver
declinado substancialmente durante esse período. Na região sul do país as
dificuldades econômicas se acumularam como reflexo da decadência da economia do
ouro, principal mercado para o gado produzido no sul. As inúmeras rebeliões
armadas do norte e a prolongada guerra civil do extremo sul são o reflexo desse
processo de empobrecimento e dificuldades.79
É
no meio dessas grandes dificuldades que o café começa a surgir como nova fonte
de riqueza para o país. Já nos anos 1830 esse produto se firma como principal
elemento da exportação brasileira, e sua progressão é firme. Graças a essa nova
riqueza forma-se um sólido núcleo de estabilidade na região central mais
próxima da capital do país, o qual passa a constituir verdadeiro centro de
resistência contra as forças de desagregação que atuam no norte e no sul.
É
necessário ter em conta a quase inexistência de um aparelhamento fiscal no
país, para captar a importância que na época cabia às aduanas como fonte de
receita e meio de subsistência do governo. Limitado o acesso a essa fonte, o
governo central se encontrou em sérias dificuldades financeiras para
desempenhar suas múltiplas funções na etapa de consolidação da independência. A
eliminação do entreposto português possibilitou um aumento de receita. Mas,
efetuado esse reajustamento, o governo se encontrará praticamente
impossibilitado de aumentar a arrecadação até que expire o acordo com a
Inglaterra, em 1844. A experiência dos anos 1820 — primeiro decênio de vida
independente — é ilustrativa e explica grande parte das dificuldades dos dois
decênios subsequentes. Nesse período o governo central não consegue arrecadar
recursos, através do sistema fiscal, para cobrir sequer metade dos seus gastos
agravados com a guerra na Banda Oriental.80 O financiamento do
déficit se faz principalmente com emissão de moeda-papel, mais que duplicando o
meio circulante durante o referido decênio.81
Dadas
as pequenas dimensões da economia monetária, seu alto coeficiente de importação
e a impossibilidade de elevar a tarifa aduaneira, os efeitos das emissões de
moeda-papel se concentravam na taxa de câmbio, duplicando o valor em mil-réis
da libra esterlina entre 1822 e 1830.
A
forma de financiar o déficit do governo central com emissões de moeda-papel e a
elevação relativa dos preços dos produtos importados — provocada pela
desvalorização externa da moeda — incidiam particularmente sobre a população
urbana. A grande classe de senhores agrícolas, que em boa medida se
autoabasteciam em seus domínios e cujos gastos monetários o sistema de trabalho
escravo amortecia, era relativamente pouco afetada pelos efeitos das emissões
de moeda-papel. Esses efeitos se concentravam sobre as populações urbanas de
pequenos comerciantes, empregados públicos e do comércio, militares etc. Com
efeito, a inflação acarretou um empobrecimento dessas classes, o que explica o
caráter principalmente urbano das revoltas da época e o acirramento do ódio
contra os portugueses, os quais, sendo comerciantes, eram responsabilizados
pelos males que acabrunhavam o povo.82”
76.
A abertura dos portos, se bem que na prática beneficiaria quase exclusivamente
aos ingleses, foi decretada sem consulta a estes últimos, pois na parte da
frota que tocou na Bahia não viajava o visconde de Strangford, representante da
Inglaterra, que seria o mentor da política econômica do governo português, a
partir do momento em que este se estabelecesse no Rio de Janeiro. Segundo
consta, o príncipe regente relutou muito antes de aceitar os argumentos de José
da Silva Lisboa, depois visconde de Cairu, em favor da abertura dos portos, o
que indica quão pouca percepção tinham os governantes lusitanos do que estava
ocorrendo na realidade. Os ingleses — que acreditavam menos em ADAM SMITH do que José da Silva
Lisboa — tampouco ficaram muito satisfeitos, conforme se deduz das palavras de
seu representante no Rio de Janeiro, Mr. Hill, a d. João, a propósito da
medida: “It could not fail to produce a good effect in England, but that had
it authorized the admittance of British vessels, and for British manufactures
upon terms more advantageous than those granted to the ships and merchandise of
other foreign nations, it would necessarily have afforded greater satisfaction”.
[“Isso não deixaria
de causar boa impressão na Inglaterra, mas a satisfação teria sido maior se se
tivesse autorizado a admissão dos navios britânicos e se as manufaturas
britânicas pudessem entrar em condições mais vantajosas do que aquelas
concedidas aos navios e à mercadoria de outras nações estrangeiras.”] Carta de
Hill a GEORGE CANNING, de 30 de março de 1808, citada por A. K. MANCHESTER, op.
cit., p. 71.
77.
O conflito não era com os interesses comerciais ingleses locais, pois estes
continuaram a prosperar à sombra dos privilégios de que gozavam, nem exatamente
com o governo brasileiro, o qual fazia repetidas exortações para que terminasse
o tráfico, que era “ilegal”.
78.
Foi introduzido um imposto de oito por cento ad valorem sobre as exportações,
na etapa de maiores dificuldades fiscais.
79.
Nos anos 30 e 40 do século XIX o Brasil viveu um período praticamente ininterrupto
de revoltas e guerra civil. Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas
Gerais, São Paulo, Mato Grosso e Rio Grande do Sul atravessaram convulsões
internas. No Pará, no Ceará e em Pernambuco o período de convulsões durou anos,
e no Rio Grande do Sul a guerra civil se estendeu por decênios.
80.
O governo português, prevalecendo-se da confusão que reinava nas colônias
espanholas, ocupara a chamada Banda Oriental do Uruguai em 1815, a qual passou
a ser a província Cisplatina do Brasil. Ajudados pelos argentinos, os uruguaios
se revoltaram em 1825 e conseguiram, com os auspícios da Inglaterra, que sua
independência fosse reconhecida pelas duas potências vizinhas.
81.
Entre 1824 e 1829 o governo do Brasil conseguiu alguns empréstimos externos, se
bem que em condições extremamente onerosas, no montante real de 4,8 milhões de
libras. Esses recursos foram, entretanto, totalmente absorvidos nos gastos
diretos da independência, inclusive parte da indenização de 2 milhões de libras
paga a Portugal.
82.
Houve inúmeras revoltas de guarnições militares sem qualquer explicação
plausível que não o “aumento da indisciplina”, na linguagem dos historiadores.
“No Pará”, diz João Ribeiro, “as tropas amotinadas detinham os generais,
aprisionavam ou assassinavam os governadores, com o auxílio faccioso de todos
os desordeiros, e só ao cabo de quatro anos se pôde […] restabelecer a ordem e
o prestígio da autoridade.” Em Pernambuco, a “tropa saqueou a cidade; a
discórdia durou outros tantos anos. […] No Maranhão, os anarquistas tentaram
eliminar o escol da sociedade”. História do Brasil, 16a
ed., pp. 377-8. O descontentamento contra os portugueses é outra manifestação
do mesmo fenômeno, sendo o caso mais notório o da chamada “Revolução Praieira”
de Pernambuco (1847-48): “Os praieiros pediam a nacionalização do
comércio a varejo, e até a expulsão dos portugueses não ligados pela família às
gentes do Brasil. Aos gritos de Mata marinheiro!, muitos portugueses
foram vilmente assassinados em dias de maior tumulto”. Op. cit., p. 389.
“Nenhuma indústria cria mercado para si
mesma.”
“Observada em conjunto, a nova economia cafeeira baseada no trabalho
assalariado apresenta certas similaridades com a antiga economia escravista:
está constituída por uma multiplicidade de unidades produtoras que se ligam
intimamente às correntes do comércio exterior. Todavia, se nos fixamos mais de
perto no mecanismo dessas unidades, vemos que são profundas as diferenças. Para
facilidade de exposição, consideraremos o processo econômico a partir do
momento em que a produção é vendida ao exportador. O valor total dessa venda é
a renda bruta da unidade produtiva, renda essa que deverá cobrir a depreciação
do capital real utilizado no processo produtivo e remunerar a totalidade dos
fatores utilizados na produção. A fim de simplificar a análise, dividiremos
essa renda em dois grupos gerais: renda dos assalariados e renda dos
proprietários. O comportamento desses dois grupos, no que respeita à utilização
da renda, é sabidamente muito distinto. Os assalariados transformam a
totalidade ou quase totalidade de sua renda em gastos de consumo. A classe
proprietária, cujo nível de consumo é muito superior, retém parte de sua renda para
aumentar seu capital, fonte dessa mesma renda.
Vejamos
como se propaga o fluxo de renda criado pelas exportações. Os gastos de consumo
— compra de alimentos, roupas, serviços etc. — vêm a constituir a renda dos
pequenos produtores, comerciantes etc. Estes últimos também transformam grande
parte de sua própria renda em gastos de consumo. Destarte, a soma de todos
esses gastos terá necessariamente de exceder de muito a renda monetária criada
pela atividade exportadora. Suponhamos agora que ocorra um aumento do impulso
externo. Crescendo a massa de salários pagos, aumentaria automaticamente a
procura de artigos de consumo. A produção de parte destes últimos, por seu
lado, pode ser expandida com relativa facilidade, dada a existência de mão de
obra e terras subutilizadas, particularmente em certas regiões em que predomina
a atividade de subsistência. Desta forma o aumento do impulso externo — atuando
sobre um setor da economia organizado à base de trabalho assalariado —
determina melhor utilização de fatores já existentes no país.136
Demais, o aumento de produtividade — efeito secundário do impulso externo —
manifesta-se fora da unidade produtora-exportadora. A massa de salários pagos
no setor exportador vem a ser, por conseguinte, o núcleo de uma economia de
mercado interno. Quando convergem certos fatores a que nos referiremos mais
adiante, o mercado interno se encontra em condições de crescer mais intensamente
que a economia de exportação, se bem que o impulso de crescimento tenha origem
nesta última.”
136.
Exemplo típico da melhor utilização dos recursos provocada pela expansão da
procura interna de bens de consumo é dado pela economia de subsistência formada
no sul do país com imigração de origem europeia. Veja-se capítulo 25.
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