quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Formação Econômica do Brasil (Parte II), de Celso Furtado

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★★★

Páginas: 428

ISBN: 978-85-3590-952-4

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Sinopse: Ver Parte I



“O século XVII constitui a etapa de maiores dificuldades na vida política da colônia. Em sua primeira metade, o desenvolvimento da economia açucareira foi interrompido pelas invasões holandesas. Nessa etapa os prejuízos são bem maiores para Portugal que para o próprio Brasil, teatro das operações de guerra. A administração holandesa se preocupou em reter na colônia parte das rendas fiscais proporcionadas pelo açúcar, o que permitiu um desenvolvimento mais intenso da vida urbana. Do ponto de vista do comércio e do fisco portugueses, entretanto, os prejuízos deveriam ser consideráveis. Simonsen estimou em 20 milhões de libras o valor das mercadorias subtraídas ao comércio lusitano.65 Isso concomitantemente com gastos militares vultosos. Encerrada a etapa militar, tem início a baixa nos preços do açúcar provocada pela perda do monopólio. Na segunda metade do século a rentabilidade da colônia baixou substancialmente, tanto para o comércio como para o erário lusitanos, ao mesmo tempo que cresciam suas próprias dificuldades de administração e defesa.

Na etapa de prosperidade da economia açucareira, os portugueses se haviam preocupado em estender seus domínios para o norte. A preocupação de defender o monopólio do açúcar deve haver fomentado esse movimento expansionista. Em fins do século XVI praticamente todas as terras tropicais do continente — isto é, as terras potencialmente produtoras de açúcar — estavam em mãos de espanhóis e portugueses, por essa época unidos sob um só governo. O ataque de holandeses, franceses e ingleses se fez em toda a linha que desce das Antilhas à região nordeste do Brasil. Aos portugueses coube a defesa da parte dessa linha ao sul da foz do Amazonas. Dessa forma, foi defendendo as terras da Espanha dos inimigos desta que os portugueses se fixaram na foz do grande rio, posição-chave para o fácil controle de toda a imensa bacia.

A experiência havia já demonstrado que a simples defesa militar sem a efetiva ocupação da terra era, a longo prazo, operação infrutífera, seja porque os demais povos não reconheciam direito senão sobre as terras efetivamente ocupadas, seja porque, na ausência de bases permanentes em terra, as operações de defesa se tornavam muito mais onerosas. Na época do apogeu açucareiro, Portugal ocupou — expulsando franceses, holandeses e ingleses — toda a costa que se estende até a foz do Amazonas. Pelo menos nessa parte da América estava eliminado o risco de formação de uma economia concorrente.”

65. Op. cit., p. 120.

 

 

“A luta pela mão de obra indígena que realizaram os colonos do norte e a tenaz reação, contra estes, dos jesuítas, que desenvolveram técnicas bem mais racionais de incorporação das populações indígenas à economia da colônia, constituem um fator decisivo na penetração econômica da bacia amazônica. Em sua caça ao indígena, os colonos foram conhecendo melhor a floresta e descobrindo suas potencialidades. Na primeira metade do século XVIII a região paraense progressivamente se transforma em centro exportador de produtos florestais: cacau, baunilha, canela, cravo, resinas aromáticas. A colheita desses produtos, entretanto, dependia de uma utilização intensiva da mão de obra indígena, a qual, trabalhando dispersa na floresta, dificilmente poderia submeter-se às formas correntes de organização do trabalho escravo. Coube aos jesuítas encontrar a solução adequada para esse problema. Conservando os índios em suas próprias estruturas comunitárias, tratavam eles de conseguir a cooperação voluntária dos mesmos. Dado o reduzido valor dos objetos que recebiam os índios, tornava-se rentável organizar a exploração florestal de forma extensiva, ligando pequenas comunidades disseminadas na imensa zona. Essa penetração em superfície apresentava a vantagem de que podia estender-se indefinidamente. Não se dependia de nenhum sistema coercitivo. Uma vez suscitado o interesse do silvícola, a penetração se realizava sutilmente, pois, criada a necessidade de uma nova mercadoria, estava estabelecido um vínculo de dependência do qual já não podiam desligar-se os indígenas. Explica-se assim que, com meios tão limitados, os jesuítas hajam podido penetrar a fundo na bacia amazônica. Dessa forma, a pobreza mesma do Maranhão, ao obrigar seus colonos a lutar tão tenazmente pela mão de obra indígena, e a correspondente reação jesuítica — de início simples defesa do indígena, em seguida busca de formas racionais de convivência e finalmente exploração servil dessa mão de obra — constituíram fator decisivo da enorme expansão territorial que se efetua na primeira metade do século XVIII.

Na etapa em que os colonos do norte se esforçam por sobreviver numa caça impiedosa ao índio e num aprendizado crescente da exploração florestal, grandes são também as dificuldades que enfrentam os colonos da antiga colônia de São Vicente, no sul, para manter seu precário sistema de vida. O empobrecimento da região açucareira, ao reduzir o mercado de escravos da terra, repercutiu igualmente na região sulina, escassa de toda mercadoria comercial. Os couros, que de há muito se exportavam também pelos portos do sul, aumentaram então sua importância relativa, e os negócios de criação passaram a preocupar os governantes portugueses de forma crescente. Por essa época a região do rio da Prata se configurava já como grande centro criatório, e os seus couros constituíam uma séria ameaça a um dos poucos produtos da colônia portuguesa cujo mercado não havia sido desorganizado pelo desenvolvimento antilhano. A penetração dos portugueses em pleno estuário do Prata, onde em 1680 fundaram a Colônia do Sacramento, constitui assim outro episódio da expansão territorial do Brasil ligado às vicissitudes da etapa de decadência da economia açucareira. A Colônia do Sacramento, que esteve em mãos portuguesas com interrupções durante quase um século, permitiu a Portugal reforçar enormemente sua posição nos negócios do couro, demais de constituir um entreposto para o contrabando, sendo um dos principais portos de entrada da América espanhola, numa etapa em que a Espanha perdera praticamente a sua frota e persistia em manter o monopólio do comércio com suas colônias.

À medida que cresciam em importância relativa os setores de subsistência no norte, no sul e no interior nordestino — reduzindo-se concomitantemente a participação das exportações no total do produto da colônia —, tornava-se mais e mais difícil para o governo português transferir para a Metrópole o reduzido valor dos impostos que arrecadava. Devendo liquidar-se em moeda portuguesa tais impostos, sua transferência impunha uma crescente escassez de numerário na colônia, cujas dificuldades também por esse lado se viam agravadas. Em Portugal eram ainda mais sérias as vicissitudes. A queda no valor das exportações de açúcar, por um lado, criava dificuldades ao erário e, por outro, impunha a necessidade de reajustar todo o sistema econômico em um nível de importações bem mais baixo. As repetidas desvalorizações cambiais (o valor da libra sobe de mil para 3500 réis entre 1640 e 1700) refletem a extensão do desequilíbrio provocado na economia lusitana. Do ponto de vista da colônia, tais desvalorizações, se traziam algum alívio à região exportadora de açúcar, também contribuíam para agravar a situação das regiões mais pobres, que pouco ou nada tinham para exportar e cuja procura de importações era altamente inelástica pelo fato mesmo de que se limitava a coisas imprescindíveis, como o sal. O encarecimento das manufaturas importadas chegou a extremos, e nas regiões mais pobres, como Piratininga, uma simples roupa de fazenda importada ou uma espingarda podiam valer mais que uma casa residencial.68 Esses fatores contribuíam para a reversão cada vez mais acentuada a formas de economia de subsistência, com atrofiamento da divisão do trabalho, redução da produtividade, fragmentação do sistema em unidades produtivas cada vez menores, desaparição das formas mais complexas de convivência social, substituição da lei geral pela norma local etc.”

68. ROBERTO SIMONSEN, História econômica do Brasil, 1957, p. 221.

 

 

“A natureza mesma da empresa mineira não permitia uma ligação à terra do tipo da que prevalecia nas regiões açucareiras. O capital fixo era reduzido, pois a vida de uma lavra era sempre algo incerto. A empresa estava organizada de forma a poder deslocar-se em tempo relativamente curto. Por outro lado, a elevada lucratividade do negócio induzia a concentrar na própria mineração todos os recursos disponíveis. A combinação desses dois fatores — incerteza e correspondente mobilidade da empresa, alta lucratividade e correspondente especialização — marca a organização de toda a economia mineira. Sendo a lucratividade maior na etapa inicial da mineração, em cada região, a excessiva concentração de recursos nos trabalhos mineratórios conduzia sempre a grandes dificuldades de abastecimento. A fome acompanhava sempre a riqueza nas regiões do ouro. A elevação dos preços dos alimentos e dos animais de transporte nas regiões vizinhas constituiu o mecanismo de irradiação dos benefícios econômicos da mineração.

A pecuária, que encontrara no sul um hábitat excepcionalmente favorável para desenvolver-se — e que, não obstante sua baixíssima rentabilidade, subsistia graças às exportações de couro —, passará por uma verdadeira revolução com o advento da economia mineira. O gado do sul, cujos preços haviam permanecido sempre em níveis extremamente baixos, comparativamente aos que prevaleciam na região açucareira, valoriza-se rapidamente e alcança, em ocasiões, preços excepcionalmente altos. O próprio gado do Nordeste, cujo mercado definhava com a decadência da economia açucareira, tende a deslocar-se em busca do florescente mercado da região mineira. Esse deslocamento do gado nordestino teria que acarretar a elevação dos preços que pagavam os engenhos, razão pela qual provocou fortes reações oficiais e tentativas de interdição.

Outra característica da economia mineira, de profundas consequências para as regiões vizinhas, radicava em seu sistema de transporte. Localizada a grande distância do litoral, dispersa e em região montanhosa, a população mineira dependia para tudo de um complexo sistema de transporte. A tropa de mulas constitui autêntica infraestrutura de todo o sistema. A quase inexistência de abastecimento local de alimentos, a grande distância por terra que deviam percorrer todas as mercadorias importadas, a necessidade de vencer grandes caminhadas em região montanhosa para alcançar os locais de trabalho, tudo contribuía para que o sistema de transporte desempenhasse um papel básico no funcionamento da economia. Criou-se, assim, um grande mercado para animais de carga.

Se se considera em conjunto a procura de gado para corte e de muares para transporte, a economia mineira constituiu, no século XVIII, um mercado de proporções superiores ao que havia propiciado a economia açucareira em sua etapa de máxima prosperidade. Destarte, os benefícios que dela se irradiam para toda a região criatória do sul são substancialmente maiores do que os que recebeu o sertão nordestino. A região rio-grandense, onde a criação de mulas se desenvolveu em grande escala, foi, dessa forma, integrada no conjunto da economia brasileira. Cada ano subiam do Rio Grande do Sul dezenas de milhares de mulas, as quais constituíam a principal fonte de renda da região. Esses animais se concentravam na região de São Paulo, onde, em grandes feiras, eram distribuídos aos compradores que provinham de diferentes regiões. Desse modo, a economia mineira, através de seus efeitos indiretos, permitiu que se articulassem as diferentes regiões do sul do país.

Ao contrário do que ocorrera no Nordeste, onde se partiu de um vazio econômico para a formação de uma economia pecuária dependente da açucareira, no sul do país a pecuária preexistiu à mineração. Com efeito, o advento da mineração ocorreu quando a economia de subsistência de Piratininga havia já atravessado século e meio de pobreza. Além disso, no Rio Grande e mesmo no Mato Grosso já existia uma economia pecuária rudimentar de onde saía alguma exportação de couros. Essas distintas regiões viviam independentemente e tenderiam provavelmente a desenvolver-se, num regime de subsistência, sem vínculos de solidariedade econômica que as articulassem. A economia mineira abriu um novo ciclo de desenvolvimento para todas elas. Por um lado, elevou substancialmente a rentabilidade da atividade pecuária, induzindo a uma utilização mais ampla das terras e do rebanho. Por outro, fez interdependentes as diferentes regiões, especializadas umas na criação, outras na engorda e distribuição, e outras constituindo os principais mercados consumidores. É um equívoco supor que foi a criação que uniu essas regiões. Quem as uniu foi a procura de gado que se irradiava do centro dinâmico constituído pela economia mineira.”

 

 

17. Passivo colonial, crise financeira e instabilidade política

A repercussão no Brasil dos acontecimentos políticos da Europa de fins do século XVIII e começo do seguinte, se por um lado acelerou a evolução política do país, por outro contribuiu para prolongar a etapa de dificuldades econômicas que se iniciara com a decadência do ouro. Ocupado o reino português pelas tropas francesas, desapareceu o entreposto que representava Lisboa para o comércio da colônia, tornando-se indispensável o contato direto desta com os mercados ainda acessíveis. A “abertura dos portos”, decretada ainda em 1808, resultava de uma imposição dos acontecimentos.76 Vêm em seguida os tratados de 1810, que transformam a Inglaterra em potência privilegiada, com direitos de extraterritorialidade e tarifas preferenciais extremamente baixas, tratados esses que constituirão, em toda a primeira metade do século, uma séria limitação à autonomia do governo brasileiro no setor econômico. A separação definitiva de Portugal, em 1822, e o acordo pelo qual a Inglaterra consegue consolidar sua posição, em 1827, são outros dois marcos fundamentais nessa etapa de grandes acontecimentos políticos. Por último, cabe referir a eliminação do poder pessoal de d. Pedro I, em 1831, e a consequente ascensão definitiva ao poder da classe colonial dominante formada pelos senhores da grande agricultura de exportação.

Observados esses acontecimentos de uma perspectiva ampla, torna-se mais ou menos evidente que os privilégios concedidos à Inglaterra constituíram uma consequência natural da forma como se processou a independência, sem maiores desgastes de recursos, mas devendo a antiga colônia assumir a responsabilidade de parte do passivo que contraíra Portugal para sobreviver como potência colonial. Se a independência houvesse resultado de uma luta prolongada, dificilmente ter-se-ia preservado a unidade territorial, pois nenhuma das regiões do país dispunha de suficiente ascendência sobre as demais para impor a unidade. Os interesses regionais constituíam uma realidade muito mais palpável que a unidade nacional, a qual só começou realmente a existir quando se transferiu para o Rio de Janeiro o governo português. A luta ingente e inútil de Bolívar, para manter a unidade de Nova Granada, constitui um exemplo do difícil que é impor uma ideia que não encontra correspondência na realidade dos interesses dominantes.

Seria erro, entretanto, supor que aos privilégios concedidos à Inglaterra cabe a principal responsabilidade pelo fato de que o Brasil não se haja transformado numa nação moderna já na primeira metade do século XIX, a exemplo do ocorrido nos EUA. A diferença fundamental que existe entre os pontos de vista do visconde de Cairu — seguramente o representante mais lúcido da intelligentzia da classe agrícola colonial — e do visconde de Strangford é que neste último persistiam ranços mercantilistas, enquanto o brasileiro refletia melhor as ideias que prevaleceriam na Inglaterra nos anos subsequentes. Não existindo na colônia sequer uma classe comerciante de importância — o grande comércio era monopólio da Metrópole —, resultava que a única classe com expressão era a dos grandes senhores agrícolas. Qualquer que fosse a forma como se processasse a independência, seria essa classe a que ocuparia o poder, como na verdade ocorreu, particularmente a partir de 1831. A grande agricultura tinha consciência clara de que Portugal constituía um entreposto oneroso, e a voz dominante na época era que a colônia necessitava urgentemente de liberdade de comércio. O desaparecimento do entreposto lusitano logo se traduziu em baixa de preços nas mercadorias importadas, maior abundância de suprimentos, facilidades de crédito mais amplas e outras óbvias vantagens para a classe de grandes agricultores.

Sendo uma grande plantação de produtos tropicais, a colônia estava intimamente integrada nas economias europeias, das quais dependia. Não constituía, portanto, um sistema autônomo, sendo simples prolongamento de outros maiores. Caso fosse completa a integração — o que ocorria no caso das Antilhas inglesas —, a identidade de interesses das classes dominantes na economia principal e na dependente teria de ser completa. Essa comunhão ideológica não podia existir com Portugal porque este último país era apenas um entreposto, estando seus interesses via de regra em conflito com os da colônia.

Os conflitos da primeira metade do século XIX entre os dirigentes da grande agricultura brasileira e a Inglaterra — os quais contribuíram indiretamente para que se formasse uma clara consciência da necessidade de lograr a plena independência política — não tiveram sua origem em discrepâncias de ideologia econômica. Resultaram principalmente da falta de coerência com que os ingleses seguiam a ideologia liberal. O tratado de comércio de 1810, referindo-se embora com bonitas palavras ao novo “systema liberal”, constitui, na verdade, um instrumento criador de privilégios. Por outro lado, os ingleses não se preocuparam em abrir mercados aos produtos brasileiros, os quais competiam com os de suas dependências antilhanas. Aplicada unilateralmente, a ideologia liberal passou a criar sérias dificuldades à economia brasileira, exatamente na etapa em que a classe de grandes agricultores começava a governar o país. É nesse ambiente de dificuldades que a Inglaterra pretende impor a eliminação da importação de escravos africanos. Assim, entre as dificuldades que encontravam para vender os seus produtos e o temor de uma forte elevação de custos provocada pela suspensão da importação de escravos, a classe de grandes agricultores se defendeu tenazmente, provocando e enfrentando a ira dos ingleses. O governo britânico, escudado em sólidas razões morais e impulsado pelos interesses antilhanos que viam na persistência da escravatura brasileira o principal fator de depressão do mercado do açúcar, usou inutilmente todos os meios a seu alcance para terminar com o tráfico transatlântico de escravos.

A tensão que na primeira metade do século XIX perdura entre o governo britânico e a classe dominante brasileira77 não encobre, destarte, nenhuma contradição séria de interesses. Portanto, não se pode afirmar que, se o governo brasileiro houvesse gozado de plena liberdade de ação, o desenvolvimento econômico do país teria sido necessariamente muito intenso. Contudo, cabe reconhecer que o privilégio aduaneiro concedido à Inglaterra e a posterior uniformização da tarifa em quinze por cento ad valorem, numa etapa de estagnação do comércio exterior, criaram sérias dificuldades financeiras ao governo brasileiro. O imposto sobre as importações é o instrumento comum com que os governos dos países da economia primária exportadora arrecadam suas receitas básicas. A única alternativa a esse imposto era taxar as exportações, o que numa economia escravista significa cortar os lucros da classe de senhores da grande agricultura.78 Assim, entre a necessidade de sangrar seus próprios lucros numa etapa de dificuldades e a possibilidade de aumentar o imposto de importação, debateu-se a classe governante brasileira.

O governo central, que enfrenta extraordinária escassez de recursos financeiros, vê sua autoridade reduzir-se por todo o país, numa fase em que as dificuldades econômicas criavam um clima de insatisfação em praticamente todas as regiões. As províncias do norte — Bahia, Pernambuco e Maranhão — atravessam um momento de sérias dificuldades econômicas. Os preços do açúcar caem persistentemente na primeira metade do século, e os do algodão, ainda mais acentuadamente. Na Bahia e em Pernambuco, e em especial no Maranhão, a renda per capita deve haver declinado substancialmente durante esse período. Na região sul do país as dificuldades econômicas se acumularam como reflexo da decadência da economia do ouro, principal mercado para o gado produzido no sul. As inúmeras rebeliões armadas do norte e a prolongada guerra civil do extremo sul são o reflexo desse processo de empobrecimento e dificuldades.79

É no meio dessas grandes dificuldades que o café começa a surgir como nova fonte de riqueza para o país. Já nos anos 1830 esse produto se firma como principal elemento da exportação brasileira, e sua progressão é firme. Graças a essa nova riqueza forma-se um sólido núcleo de estabilidade na região central mais próxima da capital do país, o qual passa a constituir verdadeiro centro de resistência contra as forças de desagregação que atuam no norte e no sul.

É necessário ter em conta a quase inexistência de um aparelhamento fiscal no país, para captar a importância que na época cabia às aduanas como fonte de receita e meio de subsistência do governo. Limitado o acesso a essa fonte, o governo central se encontrou em sérias dificuldades financeiras para desempenhar suas múltiplas funções na etapa de consolidação da independência. A eliminação do entreposto português possibilitou um aumento de receita. Mas, efetuado esse reajustamento, o governo se encontrará praticamente impossibilitado de aumentar a arrecadação até que expire o acordo com a Inglaterra, em 1844. A experiência dos anos 1820 — primeiro decênio de vida independente — é ilustrativa e explica grande parte das dificuldades dos dois decênios subsequentes. Nesse período o governo central não consegue arrecadar recursos, através do sistema fiscal, para cobrir sequer metade dos seus gastos agravados com a guerra na Banda Oriental.80 O financiamento do déficit se faz principalmente com emissão de moeda-papel, mais que duplicando o meio circulante durante o referido decênio.81

Dadas as pequenas dimensões da economia monetária, seu alto coeficiente de importação e a impossibilidade de elevar a tarifa aduaneira, os efeitos das emissões de moeda-papel se concentravam na taxa de câmbio, duplicando o valor em mil-réis da libra esterlina entre 1822 e 1830.

A forma de financiar o déficit do governo central com emissões de moeda-papel e a elevação relativa dos preços dos produtos importados — provocada pela desvalorização externa da moeda — incidiam particularmente sobre a população urbana. A grande classe de senhores agrícolas, que em boa medida se autoabasteciam em seus domínios e cujos gastos monetários o sistema de trabalho escravo amortecia, era relativamente pouco afetada pelos efeitos das emissões de moeda-papel. Esses efeitos se concentravam sobre as populações urbanas de pequenos comerciantes, empregados públicos e do comércio, militares etc. Com efeito, a inflação acarretou um empobrecimento dessas classes, o que explica o caráter principalmente urbano das revoltas da época e o acirramento do ódio contra os portugueses, os quais, sendo comerciantes, eram responsabilizados pelos males que acabrunhavam o povo.82

76. A abertura dos portos, se bem que na prática beneficiaria quase exclusivamente aos ingleses, foi decretada sem consulta a estes últimos, pois na parte da frota que tocou na Bahia não viajava o visconde de Strangford, representante da Inglaterra, que seria o mentor da política econômica do governo português, a partir do momento em que este se estabelecesse no Rio de Janeiro. Segundo consta, o príncipe regente relutou muito antes de aceitar os argumentos de José da Silva Lisboa, depois visconde de Cairu, em favor da abertura dos portos, o que indica quão pouca percepção tinham os governantes lusitanos do que estava ocorrendo na realidade. Os ingleses — que acreditavam menos em ADAM SMITH do que José da Silva Lisboa — tampouco ficaram muito satisfeitos, conforme se deduz das palavras de seu representante no Rio de Janeiro, Mr. Hill, a d. João, a propósito da medida: “It could not fail to produce a good effect in England, but that had it authorized the admittance of British vessels, and for British manufactures upon terms more advantageous than those granted to the ships and merchandise of other foreign nations, it would necessarily have afforded greater satisfaction”. [“Isso não deixaria de causar boa impressão na Inglaterra, mas a satisfação teria sido maior se se tivesse autorizado a admissão dos navios britânicos e se as manufaturas britânicas pudessem entrar em condições mais vantajosas do que aquelas concedidas aos navios e à mercadoria de outras nações estrangeiras.”] Carta de Hill a GEORGE CANNING, de 30 de março de 1808, citada por A. K. MANCHESTER, op. cit., p. 71.

77. O conflito não era com os interesses comerciais ingleses locais, pois estes continuaram a prosperar à sombra dos privilégios de que gozavam, nem exatamente com o governo brasileiro, o qual fazia repetidas exortações para que terminasse o tráfico, que era “ilegal”.

78. Foi introduzido um imposto de oito por cento ad valorem sobre as exportações, na etapa de maiores dificuldades fiscais.

79. Nos anos 30 e 40 do século XIX o Brasil viveu um período praticamente ininterrupto de revoltas e guerra civil. Pará, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso e Rio Grande do Sul atravessaram convulsões internas. No Pará, no Ceará e em Pernambuco o período de convulsões durou anos, e no Rio Grande do Sul a guerra civil se estendeu por decênios.

80. O governo português, prevalecendo-se da confusão que reinava nas colônias espanholas, ocupara a chamada Banda Oriental do Uruguai em 1815, a qual passou a ser a província Cisplatina do Brasil. Ajudados pelos argentinos, os uruguaios se revoltaram em 1825 e conseguiram, com os auspícios da Inglaterra, que sua independência fosse reconhecida pelas duas potências vizinhas.

81. Entre 1824 e 1829 o governo do Brasil conseguiu alguns empréstimos externos, se bem que em condições extremamente onerosas, no montante real de 4,8 milhões de libras. Esses recursos foram, entretanto, totalmente absorvidos nos gastos diretos da independência, inclusive parte da indenização de 2 milhões de libras paga a Portugal.

82. Houve inúmeras revoltas de guarnições militares sem qualquer explicação plausível que não o “aumento da indisciplina”, na linguagem dos historiadores. “No Pará”, diz João Ribeiro, “as tropas amotinadas detinham os generais, aprisionavam ou assassinavam os governadores, com o auxílio faccioso de todos os desordeiros, e só ao cabo de quatro anos se pôde […] restabelecer a ordem e o prestígio da autoridade.” Em Pernambuco, a “tropa saqueou a cidade; a discórdia durou outros tantos anos. […] No Maranhão, os anarquistas tentaram eliminar o escol da sociedade”. História do Brasil, 16a ed., pp. 377-8. O descontentamento contra os portugueses é outra manifestação do mesmo fenômeno, sendo o caso mais notório o da chamada “Revolução Praieira” de Pernambuco (1847-48): “Os praieiros pediam a nacionalização do comércio a varejo, e até a expulsão dos portugueses não ligados pela família às gentes do Brasil. Aos gritos de Mata marinheiro!, muitos portugueses foram vilmente assassinados em dias de maior tumulto”. Op. cit., p. 389.

 

 

“Nenhuma indústria cria mercado para si mesma.”

 

 

Observada em conjunto, a nova economia cafeeira baseada no trabalho assalariado apresenta certas similaridades com a antiga economia escravista: está constituída por uma multiplicidade de unidades produtoras que se ligam intimamente às correntes do comércio exterior. Todavia, se nos fixamos mais de perto no mecanismo dessas unidades, vemos que são profundas as diferenças. Para facilidade de exposição, consideraremos o processo econômico a partir do momento em que a produção é vendida ao exportador. O valor total dessa venda é a renda bruta da unidade produtiva, renda essa que deverá cobrir a depreciação do capital real utilizado no processo produtivo e remunerar a totalidade dos fatores utilizados na produção. A fim de simplificar a análise, dividiremos essa renda em dois grupos gerais: renda dos assalariados e renda dos proprietários. O comportamento desses dois grupos, no que respeita à utilização da renda, é sabidamente muito distinto. Os assalariados transformam a totalidade ou quase totalidade de sua renda em gastos de consumo. A classe proprietária, cujo nível de consumo é muito superior, retém parte de sua renda para aumentar seu capital, fonte dessa mesma renda.

Vejamos como se propaga o fluxo de renda criado pelas exportações. Os gastos de consumo — compra de alimentos, roupas, serviços etc. — vêm a constituir a renda dos pequenos produtores, comerciantes etc. Estes últimos também transformam grande parte de sua própria renda em gastos de consumo. Destarte, a soma de todos esses gastos terá necessariamente de exceder de muito a renda monetária criada pela atividade exportadora. Suponhamos agora que ocorra um aumento do impulso externo. Crescendo a massa de salários pagos, aumentaria automaticamente a procura de artigos de consumo. A produção de parte destes últimos, por seu lado, pode ser expandida com relativa facilidade, dada a existência de mão de obra e terras subutilizadas, particularmente em certas regiões em que predomina a atividade de subsistência. Desta forma o aumento do impulso externo — atuando sobre um setor da economia organizado à base de trabalho assalariado — determina melhor utilização de fatores já existentes no país.136 Demais, o aumento de produtividade — efeito secundário do impulso externo — manifesta-se fora da unidade produtora-exportadora. A massa de salários pagos no setor exportador vem a ser, por conseguinte, o núcleo de uma economia de mercado interno. Quando convergem certos fatores a que nos referiremos mais adiante, o mercado interno se encontra em condições de crescer mais intensamente que a economia de exportação, se bem que o impulso de crescimento tenha origem nesta última.”

136. Exemplo típico da melhor utilização dos recursos provocada pela expansão da procura interna de bens de consumo é dado pela economia de subsistência formada no sul do país com imigração de origem europeia. Veja-se capítulo 25.

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