sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Formação Econômica do Brasil (Parte III), de Celso Furtado

Editora: Companhia das Letras

Opinião: ★★★★★

ISBN: 978-85-3590-952-4

Páginas: 428

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Sinopse: Ver Parte I



27. A tendência ao desequilíbrio externo

O funcionamento do novo sistema econômico, baseado no trabalho assalariado, apresentava uma série de problemas que, na antiga economia exportadora escravista, apenas se haviam esboçado. Um desses problemas — aliás comum a outras economias de características similares — consistiria na impossibilidade de adaptar-se às regras do padrão-ouro, base de toda a economia internacional no período que aqui nos ocupa. O princípio fundamental do sistema do padrão-ouro radicava em que cada país deveria dispor de uma reserva metálica — ou de divisas conversíveis, na variante mais corrente — suficientemente grande para cobrir os déficits ocasionais de sua balança de pagamentos. É fácil compreender que uma reserva metálica — estivesse ela amoedada ou não — constituía uma inversão improdutiva, que era na verdade a contribuição de cada país para o financiamento a curto prazo das trocas internacionais. A dificuldade estava em que cada país deveria contribuir para esse financiamento em função de sua participação no comércio internacional e da amplitude das flutuações de sua balança de pagamentos.138 Ora, um país exportador de produtos primários tinha, como regra, uma elevada participação relativa no comércio internacional, isto é, seu intercâmbio per capita era relativamente muito maior que sua renda monetária per capita. Por outro lado, sua economia — pelo fato mesmo de que dependia muito mais das exportações — estava sujeita a oscilações muito mais agudas.

O problema que se apresentava à economia brasileira era, em essência, o seguinte: a que preço as regras do padrão-ouro poderiam aplicar-se a um sistema especializado na exportação de produtos primários e com um elevado coeficiente de importação? Esse problema não preocupou os economistas europeus, que sempre teorizaram em matéria de comércio internacional em termos de economia de graus de desenvolvimento mais ou menos similar, com estruturas de produção não muito distintas e com coeficientes de importação relativamente baixos.

A teoria monetária do século XIX constitui, indubitavelmente, um instrumento de utilidade para explicar a realidade europeia. Ela se baseava no princípio de que, se todos os países seguissem as regras do padrão-ouro — isto é, se o meio circulante dos distintos países tivesse como base a mesma moeda-mercadoria —, o ouro disponível tenderia a distribuir-se em função das necessidades do comércio interno de cada país e das do comércio internacional. Destarte, os sistemas de preços dos distintos países seriam solidários. Estava implícito nessa teoria que, se um país importava mais do que exportava — criando um desequilíbrio em sua balança de pagamentos —, esse país se veria obrigado a exportar ouro, reduzindo-se consequentemente o seu meio circulante. Essa redução, de acordo com a teoria quantitativa, deveria acarretar uma baixa de preços — contrapartida da alta do preço do ouro —, criando-se automaticamente um estímulo às exportações e um desestímulo às importações, o que traria consigo a correção do desequilíbrio.139

Nas economias em que as importações constituíam uma reduzida parcela do dispêndio nacional, um desequilíbrio ocasional da balança de pagamentos podia ser financiado com numerário de circulação interna sem provocar grande redução no grau de liquidez do sistema. O mesmo, entretanto, não se podia esperar de uma economia de elevado coeficiente de importações. Neste último caso, um brusco desequilíbrio na balança de pagamentos exigiria uma redução de grandes proporções no meio circulante, provocando verdadeira traumatização do sistema. Esse tipo de dificuldade poderia ter ocorrido com a Inglaterra, cujo coeficiente de importações cresceu fortemente no correr do século XIX, se esse país não se houvesse transformado em grande exportador de capitais e não fosse ele mesmo o centro que comandava as flutuações da economia mundial.

Numa economia do tipo da brasileira do século XIX, o coeficiente de importações era particularmente elevado, se se tem em conta apenas o setor monetário, ao qual se limitavam praticamente as transações externas. Por outro lado, os desequilíbrios na balança de pagamentos eram relativamente muito mais amplos, pois refletiam as bruscas quedas de preços das matérias-primas no mercado mundial. Por último, caberia ter em conta as inter-relações entre o comércio exterior e as finanças públicas, pois o imposto das importações era a principal fonte de renda do governo central.

Como se apresentara esse problema na antiga economia exportadora escravista? Quando existiu em forma pura, esta desconheceu por natureza qualquer forma de desequilíbrio externo. Sendo a procura monetária igual às exportações, é evidente que toda ela poderia transformar-se em importações sem que por essa razão surgisse qualquer desequilíbrio. É quando a procura monetária tende a crescer mais que as exportações que começa a surgir a possibilidade de desequilíbrio. Esse desajustamento está intimamente ligado ao regime de trabalho assalariado, como é fácil perceber.

Ao crescer a renda criada pelas exportações, cresce a massa total de pagamentos a fatores, realizados dentro da economia. Essa renda, conforme vimos, tende a multiplicar-se, primeiramente em termos monetários e finalmente em termos reais, dada a existência de fatores subocupados. O aumento da renda se realiza, portanto, em duas etapas: em primeiro lugar graças ao crescimento das exportações, e em segundo pelo efeito multiplicador interno. Parte desse aumento da renda terá de ser satisfeita com importações, conforme uma relação relativamente estável que existe entre o aumento da renda e o das importações.

O mais importante a considerar, entretanto, é o seguinte: no momento em que deflagrava uma crise nos centros industriais, os preços dos produtos primários caíram bruscamente, reduzindo-se de imediato a entrada de divisas no país de economia dependente. Enquanto isso, o efeito dos aumentos anteriores do valor e do volume das exportações continuava a propagar-se lentamente.140 Existia portanto uma etapa intermédia em que a procura de importações continuava crescendo, se bem que a oferta de divisas já se houvesse reduzido drasticamente. Nessa etapa é que caberia mobilizar as reservas metálicas. Estas, entretanto, teriam de ser de grandes proporções para que funcionasse o mecanismo do padrão-ouro, não somente porque a participação das importações no dispêndio total da coletividade era muito elevada, e as flutuações da capacidade para importar, muito grandes, mas também porque numa economia desse tipo a conta de capital da balança de pagamentos se comporta adversamente nas etapas de depressão.

Se se observa a natureza dos fenômenos cíclicos nas economias dependentes, em contraste com as industrializadas, percebe-se facilmente por que aquelas estiveram sempre condenadas a desequilíbrios de balança de pagamentos e à inflação monetária. O ciclo na economia industrializada está ligado às flutuações no volume das inversões. A crise se caracteriza por uma contração brusca dessas inversões, contração essa que reduz automaticamente a procura global e desencadeia uma série de reações que têm por efeito ir reduzindo cada vez mais essa procura. É fácil compreender que essa redução da procura se traduz imediatamente em contração das importações e liquidação de estoques. À simples notícia de que teve início a crise, os importadores, sabendo que a procura de produtos importados tenderá a reduzir-se, suspenderão os seus pedidos, o que acarreta a brusca baixa dos preços das mercadorias importadas, que neste caso são principalmente os produtos primários fornecidos pelas economias dependentes. Por outro lado, a contração dos negócios provocada pela crise reduz a liquidez das empresas, induzindo-as a lançar mão de quaisquer fundos de que disponham, inclusive aqueles que se encontram no exterior. Dessa forma, a crise vem acompanhada, para o país industrializado, de contração das importações, baixa de preços dos artigos importados e entrada de capitais. Por último, como grande parte dos capitais exportados no século XIX eram empréstimos públicos, ou inversões no setor privado com garantia de juros, o serviço dos capitais constituía uma partida relativamente rígida na conta corrente da balança de pagamentos e contribuía para reforçar a posição internacional dos países exportadores de capital nas etapas de depressão.

Nas economias dependentes, a crise se apresenta de forma totalmente distinta, tendo início com uma queda no valor das exportações, em razão de uma redução seja no valor unitário dos produtos exportados, seja nesse valor e no volume total das exportações.141 É necessário que passe algum tempo para que a contração do valor das exportações exerça seu pleno efeito sobre a procura de importações, sendo portanto de esperar que se crie um desequilíbrio inicial na balança de pagamentos. Por outro lado, a queda dos preços das mercadorias importadas (produtos manufaturados) se faz mais lentamente e com menor intensidade que a dos produtos primários exportados, isto é, tem início uma piora na relação de preços do intercâmbio. A esses dois fatores vêm acumular-se os efeitos da rigidez do serviço dos capitais estrangeiros e a redução na entrada desses capitais.142 Em tais condições, é fácil prever as imensas reservas metálicas que exigiria o pleno funcionamento do padrão-ouro numa economia como a do apogeu do café no Brasil. À medida que a economia escravista-exportadora era substituída por um novo sistema, com base no trabalho assalariado, tornava-se mais difícil o funcionamento do padrão-ouro.

A análise dessa questão é tanto mais interessante quanto mais projeta luz sobre o tipo de dificuldade que enfrentava o homem público brasileiro da época para captar a realidade econômica do país. Constituindo a economia brasileira uma dependência dos centros industriais, dificilmente se podia evitar a tendência a “interpretar”, por analogia com o que ocorria na Europa, os problemas econômicos do país. A ciência econômica europeia penetrava através das escolas de direito e tendia a transformar-se em um “corpo de doutrina”, que se aceitava independentemente de qualquer tentativa de confronto com a realidade. Ali onde a realidade se distanciava do mundo ideal da doutrina, supunha-se que tinha início a patologia social. Dessa forma passava-se diretamente de uma interpretação idealista da realidade para a política, excluindo qualquer possibilidade de crítica da doutrina em confronto com a realidade.

Essa inibição mental para captar a realidade de um ponto de vista crítico-científico é particularmente óbvia no que diz respeito aos problemas monetários. A razão disso deriva de que na Europa não se fez, durante o século XIX, nenhum esforço sério para elaborar uma teoria monetária fora do esquema do padrão-metálico. O político brasileiro com a formação de economista estava preso por uma série de preconceitos doutrinários em matéria monetária, que eram as regras do padrão-ouro. Na moeda que circulava no Brasil via-se apenas o aspecto “patológico”, ou seja, sua “inconversibilidade”. E ao tentar aplicar a essa moeda “inconversível” as regras do padrão-metálico — particularmente aquelas que derivavam da teoria quantitativa —, ele era levado a afastar-se mais e mais da realidade. Ao historiador das ideias econômicas no Brasil não deixará de surpreender a monótona insistência com que se acoima de aberrativo e anormal tudo que ocorre no país: a inconversibilidade, os déficits, as emissões de papel-moeda. Essa “anormalidade” secular não chega, entretanto, a constituir objeto de estudo sistemático. Com efeito, não se faz nenhum esforço sério para compreender tal anormalidade, que em última instância era a realidade dentro da qual se vivia. Todos os esforços se gastam numa tarefa que a experiência histórica demonstrava ser vã: submeter o sistema econômico às regras monetárias que prevaleciam na Europa. Esse enorme esforço de mimetismo — que derivava de uma fé inabalável nos princípios de uma doutrina sem fundamento na observação da realidade — se estenderá pelos três primeiros decênios do século XX.”

138. A balança de pagamentos por definição está sempre em equilíbrio. As flutuações a que se refere o texto são aquelas do saldo da conta corrente e do movimento de capitais não destinado especificamente a cobrir esse saldo.

139. A correção do desequilíbrio também se podia realizar através do movimento de capitais: a escassez relativa de ouro acarretaria uma elevação da taxa de juros, o que atrairia capitais estrangeiros. O déficit na balança em conta corrente seria assim compensado por um saldo na conta de capital.

140. A forma como se financiavam as importações brasileiras contribuía para agravar a pressão sobre a balança de pagamentos por ocasião das depressões. As importações brasileiras procediam em grande parte da Inglaterra ou estavam controladas por casas comerciais inglesas, com grande liquidez nas praças brasileiras. Essas casas inglesas emprestavam a médio prazo aos comerciantes (inclusive de outras nacionalidades) que exportavam para outros países. Dessa forma, o comércio de importação é que financiava o de exportação. Ao ocorrer um colapso na procura de produtos brasileiros no exterior, acumulavam-se os fundos líquidos em mãos dos importadores, fundos esses que advinham das vendas na etapa anterior de prosperidade. Esses fundos líquidos pressionavam sobre a balança de pagamentos exatamente no momento em que se reduzia a oferta de divisas. É interessante observar a forma distinta como se apresentou esse mesmo problema nos EUA, onde os fundos líquidos dos exportadores ingleses tenderam desde cedo a aplicar-se em títulos da dívida pública. Veja-se A. K. MANCHESTER, op. cit., p. 315; e também LELAND H. JENKS, Migration of British capital to 1873, Nova York, 1927, pp. 68-70.

141. O primeiro desses fenômenos ocorre com os produtos alimentícios, cuja procura apresenta uma baixa elasticidade-renda, isto é, se deixa influenciar pouco pelas flutuações da renda do consumidor. O segundo ocorre com as matérias-primas industriais, cuja procura se contrai bruscamente com a redução da atividade industrial. Num e noutro caso, entretanto, baixam os preços, pois se reduzem as perspectivas de lucros nos negócios.

142. O serviço dos capitais estrangeiros não chegou a constituir uma carga excessivamente pesada para a balança de pagamentos do Brasil na segunda metade do século XIX. Comparado com o valor das exportações, esse serviço teria aumentado de 9,4 por cento em 1861-64 para 12,1 por cento em 1890-92. Sem embargo, se se excetuam casos especiais — constituídos por períodos em que se contraíram grandes empréstimos públicos para fins não econômicos: Guerra do Paraguai, consolidação da dívida etc. —, a entrada de capitais foi sempre inferior ao serviço da dívida. Num período excepcionalmente favorável como 1886-89, a importação de capitais alcançou 14,3 por cento do valor das exportações, enquanto o serviço dos capitais estrangeiros atingia 14,6 por cento. Num período menos favorável, como 1876-85, a importação de capitais se reduz a 5,3 por cento, e o serviço dos capitais estrangeiros alcança 12,2 por cento. Veja-se sobre esse assunto o meticuloso estudo de J. P. WILEMAN, cit.

 

 

28. A defesa do nível de emprego e a concentração da renda

Vimos que a existência de uma reserva de mão de obra dentro do país, reforçada pelo forte fluxo imigratório, permitiu que a economia cafeeira se expandisse durante um longo período sem que os salários reais apresentassem tendência para a alta. A elevação do salário médio no país refletia o aumento de produtividade que se ia alcançando através da simples transferência de mão de obra da economia estacionária de subsistência para a economia exportadora. As melhoras de produtividade obtidas na própria economia exportadora, essas o empresário podia retê-las, pois nenhuma pressão se formava dentro do sistema que o obrigasse a transferi-las total ou parcialmente para os assalariados. Também assinalamos que esses aumentos de produtividade do setor exportador eram de natureza puramente econômica e refletiam modificações nos preços do café. Para que houvesse aumento na produtividade física, seja da mão de obra, seja da terra, era necessário que o empresário aperfeiçoasse os processos de cultivo ou intensificasse a capitalização, isto é, aplicasse maior quantidade de capital por unidade de terra ou de mão de obra.

Não existindo nenhuma pressão da mão de obra no sentido da elevação dos salários, ao empresário não interessava substituir essa mão de obra por capital, isto é, aumentar a quantidade de capital por unidade de mão de obra. Como os frutos dos aumentos de produtividade revertiam para o capital, quanto mais extensiva fosse a cultura, vale dizer, quanto maior fosse a quantidade produzida por unidade de capital imobilizado, mais vantajosa seria a situação do empresário. Transformando-se qualquer aumento de produtividade em lucros, é evidente que seria sempre mais interessante produzir a maior quantidade possível por unidade de capital, e não pagar o mínimo possível de salários por unidade de produto. A consequência prática dessa situação era que o empresário estava sempre interessado em aplicar seu capital novo na expansão das plantações, não se formando nenhum incentivo à melhora dos métodos de cultivo.

Observação idêntica se poderia fazer relativamente à terra. É evidente que se esta fosse escassa, concluída sua ocupação os empresários seriam induzidos a melhorar os métodos de cultivo e a intensificar a capitalização para aumentar os rendimentos. Por outro lado, a ocupação de solos de qualidade inferior iria elevando a renda da terra, isto é, obrigaria o empresário a transferir para o proprietário da terra uma parcela crescente de seus lucros. Para defender-se contra essa pressão da renda da terra, o empresário seria levado a intensificar os cultivos, ou seja, a aumentar a dose de capital imobilizado por unidade de terra cultivada. Ora, a terra, mais ainda do que a mão de obra, existia em abundância, desocupada ou subocupada na economia de subsistência. O empresário tratava de utilizá-la aplicando o mínimo de capital por unidade de superfície. Sempre que essa terra dava sinais de esgotamento, se justificava, do ponto de vista do empresário, abandoná-la, transferindo-se o capital para solos novos de mais elevado rendimento. A destruição de solos que, do ponto de vista social, pode parecer inescusável, do ponto de vista de um empresário privado, cuja meta é obter o máximo de lucro de seu capital, é perfeitamente concebível. A preservação do solo só preocupa o empresário quando tem um fundamento econômico. Ora, os incentivos econômicos o induziam a estender suas plantações, a aumentar a quantidade de terra e de mão de obra por unidade de capital.

As condições econômicas em que se desenvolvia a cultura do café não criavam, portanto, nenhum estímulo ao empresário para aumentar a produtividade física seja da terra, seja da mão de obra por ele utilizadas. Era essa, aliás, a forma racional de crescimento de uma economia onde existiam terra e mão de obra desocupadas ou subocupadas, e onde era escasso o capital. Pode-se argumentar, evidentemente, que a destruição consciente de solos seria de efeitos negativos a longo prazo. Nem por isso se poderá deixar de reconhecer que o método da cultura extensiva possibilitava um volume de produção por unidade de capital — fator escasso — muito superior ao que se lograria com métodos agrícolas intensivos. A situação pode ser perfeitamente assimilada à de uma indústria extrativa, pois o esgotamento de uma reserva mineral representa a alienação de um patrimônio cuja ausência poderá ser lamentada pelas gerações futuras. Mas, se o aproveitamento da reserva esgotável se faz para dar início a um processo de desenvolvimento econômico, não somente a geração presente mas também as futuras — que receberão a reserva transformada em capital reprodutível — serão beneficiadas. O problema dos solos é, até certo ponto, menos grave, pois quase sempre é possível reconstituí-los. São raros os casos em que a destruição de solos é irreparável.

Pelas razões indicadas e outras, o setor exportador não apresentou, graças à sua expansão, nenhuma tendência a aumentar sua produtividade física. Os frutos do aumento de produtividade, que retinha o empresário e a que antes nos referimos, refletiam principalmente elevações ocasionais de preços. Ora, essas elevações de preços se manifestavam por meio do ciclo econômico, sendo portanto de esperar que o empresário devolvesse, na forma de lucros mais baixos, aquilo que ganhara em lucros extraordinários na etapa cíclica favorável. As flutuações dos preços de exportação se traduziriam, dessa maneira, em contrações e expansões da margem de lucro do empresário. Entretanto, assim não ocorria, por motivos mais ou menos óbvios. Já observamos que a contração cíclica trazia consigo, quase necessariamente, um desequilíbrio na balança de pagamentos, cuja correção se fazia por meio de reajustamentos na taxa cambial.143

Ora, o desequilíbrio externo, conforme indicamos, decorria de uma série de fatores ligados à própria natureza do sistema econômico. A crise penetrava neste de fora para dentro, e seu impacto alcançava necessariamente grandes proporções. Verificamos que na primeira etapa, isto é, naquela que se seguia imediatamente à baixa dos preços de exportação, a procura de importações, influenciada pelos efeitos indiretos da expansão anterior das vendas externas e pela forma de financiamento das importações, teria de prolongar-se durante algum tempo. Da ação deste e de outros fatores que indicamos resultava o desequilíbrio, isto é, a acumulação de um déficit na conta corrente da balança de pagamentos. Se a economia operasse dentro das regras do padrão-ouro, vale dizer, através da liquidação de ativos externos e reservas metálicas, a correção do desequilíbrio adviria como consequência da contração geral que se propagaria do setor exportador a todas as atividades econômicas. Já observamos que a contração do setor exportador, pela lógica do sistema, deveria traduzir-se principalmente em redução na margem dos lucros. A contração da renda global resultante da crise se manifestaria, portanto, basicamente, numa redução das remunerações das classes não assalariadas. Como nos gastos de consumo dessas classes de altas rendas os produtos importados participavam com elevada parcela, é evidente que uma brusca contração nos lucros do setor exportador tenderia a reduzir a procura de bens importados. Demais, a redução dos lucros afetaria o volume das inversões, provocando uma série de efeitos secundários tendentes a reduzir a procura de importações.

A correção do desequilíbrio através da taxa cambial era uma operação de natureza e consequências inteiramente distintas. Ao reduzirem-se os preços dos produtos exportados — no caso, o café — tendia a baixar bruscamente o poder aquisitivo externo da moeda nacional.144 Essa baixa se processava mesmo antes que se materializasse o desequilíbrio, pois a simples previsão de que viria tal desequilíbrio era suficiente para que tivesse início uma corrida contra o valor externo da moeda. Dessa forma, encareciam bruscamente todos os produtos importados, reduzindo-se automaticamente sua procura dentro do país. Assim, sem necessitar liquidar reservas, que aliás não possuía, a economia lograva corrigir o desequilíbrio externo. Por um lado, cortava-se o poder de compra dos consumidores de artigos importados, elevando os preços destes, e por outro estabelecia-se uma espécie de taxa sobre a exportação de capitais, fazendo pagar mais àqueles que desejassem reverter fundos para o exterior.

A redução do valor externo da moeda significava, demais, um prêmio a todos os que vendiam divisas estrangeiras, isto é, aos exportadores. Para aclarar esse mecanismo, vejamos um exemplo. Suponhamos que, na situação imediatamente anterior à crise, o exportador de café estivesse vendendo a saca a 25 dólares e transformando esses dólares em duzentos cruzeiros, isto é, ao câmbio de oito cruzeiros por dólar. Desencadeada a crise, ocorreria uma redução, digamos, de quarenta por cento do preço de venda da saca de café, a qual passava a ser cotada a quinze dólares. Se a economia funcionasse num regime de estabilidade cambial, tal perda de dez dólares se traduziria, pelas razões já indicadas, em uma redução equivalente dos lucros do empresário. Entretanto, como o reajustamento vinha pela taxa cambial, as consequências eram outras. Admitamos que, ao deflagrar a crise, o valor do dólar subisse de oito para doze cruzeiros. Os quinze dólares a que o nosso empresário estava vendendo agora a saca do café já não valiam 120 cruzeiros, mas sim 180. Dessa forma, a perda do empresário, que em moeda estrangeira havia sido de quarenta por cento, em moeda nacional passava a ser de dez por cento.

O processo de correção do desequilíbrio externo significava, em última instância, uma transferência de renda daqueles que pagavam as importações para aqueles que vendiam as exportações. Como as importações eram pagas pela coletividade em seu conjunto, os empresários exportadores estavam na realidade logrando socializar as perdas que os mecanismos econômicos tendiam a concentrar em seus lucros. É verdade que parte dessa transferência de renda se fazia dentro da própria classe empresarial, na sua qualidade dupla de exportadora e consumidora de artigos importados. Não obstante, a parte principal da transferência teria de realizar-se entre a grande massa de consumidores de artigos importados e os empresários exportadores. Para dar-se conta do vulto dessa transferência, bastaria atentar na composição das importações brasileiras no fim do século XIX e começo do XX, quando metade delas era constituída por alimentos e tecidos. Durante a depressão, as importações que se contraíam menos — dada a baixa elasticidade-renda de sua procura — eram aquelas de produtos essenciais utilizados pela grande massa consumidora. Os produtos de consumo de importação exclusiva das classes não assalariadas apresentavam elevada elasticidade-renda, dado o seu caráter de não essencialidade.

Em síntese, os aumentos de produtividade econômica alcançados na alta cíclica eram retidos pelo empresário, dadas as condições que prevaleciam de abundância de terras e de mão de obra. Havia, portanto, uma tendência à concentração da renda nas etapas de prosperidade. Crescendo os lucros mais intensamente que os salários, ou crescendo aqueles enquanto estes permaneciam estáveis, é evidente que a participação dos lucros no total da renda territorial tendia a aumentar. Na etapa de declínio cíclico, havia uma forte baixa na produtividade econômica do setor exportador. Pelas mesmas razões por que na alta cíclica os frutos desse aumento de produtividade eram retidos pela classe empresarial, na depressão os prejuízos da baixa de preços tenderiam a concentrar-se nos lucros dos empresários do setor exportador. Não obstante, o mecanismo pelo qual a economia corrigia o desequilíbrio externo — o reajustamento da taxa cambial — possibilitava a transferência do prejuízo para a grande massa consumidora. Destarte, o processo de concentração de riqueza, que caracterizava a prosperidade, não encontrava um movimento compensatório na etapa de contração da renda.

A razão de ser dessa forma de operar estava no esforço de sobrevivência de um organismo econômico que contava com escassos meios de defesa. A crise econômica, do ponto de vista de um centro industrial, apresentava-se como uma parada mais ou menos regular numa marcha firme para a frente. Essa parada permitia reajustar as peças do sistema, que numa etapa de crescimento rápido tendiam a descoordenar-se. A queda brusca da lucratividade significava a eliminação dos menos eficientes e dos financeiramente mais débeis. Por outro lado, exigia dos financeiramente fortes aumentarem sua eficiência e possibilitava a concentração do poder financeiro indispensável na etapa superior de desenvolvimento da economia capitalista.

Na economia dependente, exportadora de produtos primários, a crise se apresentava como um cataclismo, imposto de fora para dentro. As contorções que realizava essa economia, para defender-se da pressão esmagadora que vinha do exterior, não guardavam nenhuma semelhança com as ações e reações que se processavam na economia industrializada nos períodos de depressão e recuperação que sucediam à crise. Se a baixa dos preços de exportação se transformasse, como seria de esperar pela lógica do sistema, em redução dos lucros dos empresários, é evidente que, conforme fosse o grau dessas perdas, muitos deles teriam que interromper a produção de café, ou as compras desse produto aos pequenos produtores locais. Não sendo praticável uma redução do custo a curto prazo através de uma compressão dos salários, cujo nível não se elevava na alta cíclica, a única solução que ficaria ao empresário, ou àqueles financeiramente menos resistentes, seria reduzir a produção. Dessa forma, tenderia a paralisar-se uma grande parte da atividade econômica. Dada a natureza dessa atividade, a paralisação acarretaria a maior de todas as perdas.

Por sua própria natureza, a plantação de café significa uma inversão a longo prazo com grandes imobilizações de capital. A terra ocupada pelo café não pode ser utilizada senão de forma subsidiária para outras culturas. Não existe, como no caso dos cereais, a possibilidade de reduzir, no período produtivo seguinte, a área semeada. O abandono da plantação de café significaria para o empresário um grande prejuízo, dado o montante do capital imobilizado. Por outro lado, como não existia possibilidade alternativa de utilização da mão de obra, a perda total de renda seria de grandes proporções. A população que deixasse de trabalhar nos cafezais reverteria à pura economia de subsistência. A queda da renda monetária teria evidentemente uma série de efeitos secundários sobre a economia de mercado interno, ampliando-se o efeito depressivo. E esse elevado preço seria pago por coisa nenhuma ou por muito pouco. Provavelmente se operaria uma maior concentração da propriedade, absorvendo os empresários de maior poder financeiro os mais fracos. Não há, entretanto, nenhuma razão para crer que se criassem estímulos no sentido de aumento da produtividade. Dada a natureza da atividade econômica, a única forma de lograr, a curto prazo, aumentos de produtividade física seria cortando na folha de salários, o que não constituía uma solução do ponto de vista do conjunto da coletividade.

Explica-se, portanto, que a economia procurasse por todos os meios manter o seu nível de emprego durante os períodos de depressão. Qualquer que fosse a redução no preço internacional do café, sempre era vantajoso, do ponto de vista do conjunto da coletividade, manter o nível das exportações. Defendia-se, assim, o nível de emprego dentro do país e limitavam-se os efeitos secundários da crise. Sem embargo, para que esse objetivo fosse alcançado era necessário que o impacto da crise não se concentrasse nos lucros dos empresários, pois do contrário parte destes últimos seria forçada a paralisar suas atividades por impossibilidade financeira de enfrentar maiores reduções em suas receitas.”

143. A paridade legal do mil-réis (a partir de 1942 chamado cruzeiro), que na época da independência era 67½ pence (correspondente a 1$600 por oitava de ouro de 22 quilates), foi reduzida a 43½ pence em 1833 e a 27 pence em 1846. No decênio de 1850, a taxa média anual esteve a 27 ou acima de 27 durante seis anos em dez e em todos os anos foi superior a 25. No de 1860, a média anual alcançou 27 em um ano e foi superior a 25 em cinco anos. No de 1870, alcançou 27 num ano e foi superior a 25 em quatro anos. No de 1880 não alcançou 27 em nenhum ano, foi superior a 25 em dois e inferior a vinte em dois. No de 1890 foi inferior a vinte em nove anos.

144. O papel do preço do café, como fator determinante da taxa cambial, foi perfeitamente percebido por WILEMAN, numa época em que os observadores mais esclarecidos do Brasil preocupavam-se apenas com as emissões de moeda-papel e os déficits do governo central. WILEMAN observa que entre 1861-64 e 1865-69 o preço médio da saca de café baixou de 5$729 para 4$952 (ouro) e a taxa de câmbio média desce de 26⅞ para 21,31; no período 1870-75 a saca de café sobe para 6$339, e a taxa de câmbio se recupera, indo para 24,3; no período 1876-85, a saca desce para 3$247, e o câmbio baixa para 22¼. Finalmente, em 1886-89 o café sobe para 5$432, e o câmbio se eleva para 24¼. Op. cit., pp. 234-48.

 

 

29. A descentralização republicana e a formação de novos grupos de pressão

Observando mais detidamente o processo de depreciação cambial, depreende-se facilmente que as transferências de renda assumiam várias formas. Por um lado, havia transferências entre o setor de subsistência e o exportador, em benefício deste último, pois os preços que pagava o setor de subsistência pelo que importava cresciam relativamente aos preços que pagava o setor exportador pelos produtos de subsistência. Por outro, havia importantes transferências dentro do próprio setor exportador, uma vez que os assalariados rurais empregados neste último, se bem que produzissem boa parte de seus próprios alimentos, recebiam em moeda a principal parte de seu salário e consumiam uma série de artigos de uso corrente que eram importados ou semimanufaturados no país com matéria-prima importada. Os núcleos mais prejudicados eram, entretanto, as populações urbanas. Vivendo de ordenados e salários e consumindo grandes quantidades de artigos importados, inclusive alimentos, o salário real dessas populações era particularmente afetado pelas modificações da taxa cambial.

O efeito regressivo na distribuição da renda provocado pela depreciação cambial era, demais, agravado pelo funcionamento das finanças públicas. O imposto sobre as importações, base da receita do governo central, era cobrado a uma taxa fixa de câmbio.145

Ao depreciar-se a moeda, reduzia-se a importância ad valorem do imposto, acarretando dois efeitos de caráter regressivo. Por um lado, a redução real do gravame era maior para os produtos que pagavam maior imposto, isto é, para os artigos cujo consumo se limitava às classes de alta renda. Por outro, a redução relativa das receitas públicas obrigava o governo a emitir para financiar o déficit, e as emissões operavam como um imposto altamente regressivo, pois incidiam particularmente sobre as classes assalariadas urbanas.

A redução do valor em ouro da receita governamental era tanto mais grave porque o governo tinha importantes compromissos a saldar em ouro. Ao depreciar-se o câmbio, o governo era obrigado a dedicar uma parte muito maior de sua receita em moeda nacional ao serviço da dívida externa. E, em consequência, para manter os serviços públicos mais indispensáveis, via-se obrigado a emitir moeda-papel. Se se excetua o período da Guerra do Paraguai, não existe nenhuma indicação de que as emissões de moeda-papel hajam sido destinadas a expandir as atividades do setor público.146 Por outro lado, para “defender o câmbio” o governo contraía sucessivos e onerosos empréstimos externos, cujo serviço acarretava uma sobrecarga fiscal incompressível. O aumento da importância relativa do serviço da dívida na despesa pública tornou mais e mais difícil ao governo financiar seus gastos com receitas correntes nas etapas de depressão. Dessa forma, estabelecia-se uma íntima conexão entre os empréstimos externos, os déficits orçamentários, as emissões de papel-moeda — em boa parte efetuadas para financiar os déficits — e os desequilíbrios da conta corrente da balança de pagamentos, através das flutuações da taxa de câmbio.

A forma de operar do sistema fiscal merece particular atenção, pois, se por um lado contribuía para reduzir o impacto das flutuações externas, por outro agravava o processo de transferência regressiva da renda nas etapas de depressão. O fato de que se reduzisse a carga fiscal ao depreciar-se a moeda — isto é, nas etapas em que os preços dos produtos exportados baixavam no mercado internacional — operava evidentemente como um fator compensatório da pressão deflacionária externa. Sem embargo, a redução da carga fiscal se fazia principalmente em benefício dos grupos sociais de rendas elevadas. Por outro lado, a cobertura dos déficits com emissões de papel-moeda criava uma pressão inflacionária cujos efeitos imediatos se sentiam mais fortemente nas zonas urbanas. Dessa forma, a depressão externa (redução dos preços das exportações) transformava-se internamente em um processo inflacionário.

No último decênio do século, desequilíbrios internos desse tipo foram agravados pela política monetária que seguiu o governo provisório instalado após a proclamação do regime republicano. A política monetária do governo imperial nos anos 1880, traumatizada pela miragem da “conversibilidade”, por um lado conduzira a um grande aumento da dívida externa e por outro mantivera o sistema econômico em regime de permanente escassez de meios de pagamentos. Entre 1880 e 1889, a quantidade de papel-moeda em circulação diminuiu de 216 mil para 197 mil contos, enquanto o valor do comércio exterior (importações mais exportações) cresceu de 411 mil para 477 mil contos. Se se tem em conta que nesse período o sistema da escravidão foi substituído pelo do trabalho assalariado e que entraram no país cerca de 200 mil imigrantes, compreende-se facilmente a enorme adstringência de meios de pagamentos que prevaleceu então. O sistema monetário de que dispunha o país demonstrava ser totalmente inadequado para uma economia baseada no trabalho assalariado. Esse sistema tinha como base uma massa de moeda-papel emitida pelo Tesouro para cobrir déficits do governo e em menor quantidade (cerca de vinte por cento nos anos 1880) por notas emitidas por bancos que em certas ocasiões haviam gozado do privilégio de emissão. Era totalmente destituído de elasticidade, e sua expansão anterior havia resultado de medidas de emergência tomadas em momento de crise, ou do simples arbítrio dos governantes. Enquanto prevalecera o regime de trabalho escravo, sendo reduzido o fluxo de renda monetária, não eram muitos os tropeços criados por esse rudimentar sistema monetário. Contudo, a partir da crise de 1875, fez-se evidente a necessidade de dotar o país de um mínimo de automatismos monetários. Seria preciso esperar, entretanto, até 1888 para que o Parlamento aprovasse uma imprecisa reforma, a qual o governo imperial relutaria até o fim em aplicar.

A incapacidade do governo imperial para dotar o país de um sistema monetário adequado, bem como sua inaptidão para encaminhar com firmeza e positivamente a solução do problema da mão de obra refletem em boa medida divergências crescentes de interesses entre distintas regiões do país. Nas etapas anteriores, mesmo que fossem reduzidas as relações econômicas entre essas regiões, nenhuma divergência de interesses fundamentais as separava. No norte e no sul as formas de organização social eram as mesmas, as classes dirigentes falavam a mesma linguagem e estavam unidas em questões fundamentais, como fora o caso da luta pela manutenção do tráfico de escravos. Nos últimos decênios do século as divergências começam a aprofundar-se. A organização social do sul transformou-se rapidamente, sob a influência do trabalho assalariado nas plantações de café e nos centros urbanos, e da pequena propriedade agrícola na região de colonização das províncias meridionais.

As necessidades de ação administrativa no campo dos serviços públicos, da educação e da saúde, da formação profissional, da organização bancária etc. no sul do país são cada vez maiores. O governo imperial, entretanto, em cuja política e administração pesam homens ligados aos velhos interesses escravistas, apresentava escassa sensibilidade com respeito a esses novos problemas. A proclamação da República, em 1889, toma, em consequência, a forma de um movimento de reivindicação da autonomia regional. Aos novos governos estaduais caberá, nos dois primeiros decênios da vida republicana, um papel fundamental no campo da política econômico-financeira. A reforma monetária de 1888, que o governo imperial não executou, do modo como foi aplicada posteriormente, pelo governo provisório, concedeu o poder de emissão a inúmeros bancos regionais, provocando subitamente em todo o país uma grande expansão de crédito. A transição de uma prolongada etapa de crédito excessivamente difícil para outra de extrema facilidade deu lugar a uma febril atividade econômica como jamais se conhecera no país. A brusca expansão da renda monetária acarretou enorme pressão sobre a balança de pagamentos. A taxa média de câmbio desceu de 26 d., em 1890, para 1315⁄16 em 1893, e continuou declinando nos anos seguintes, até o fim do decênio, quando alcançou 87⁄32.

A grande depreciação cambial do último decênio do século XIX, provocada principalmente pela expansão creditícia imoderada do primeiro governo provisório, criou forte pressão sobre as classes assalariadas, particularmente nas zonas urbanas. Essa pressão não é alheia à intranquilidade social e política que se observa nessa época, caracterizada por levantes militares e intentos revolucionários, dos quais o país se havia desabituado no correr do meio século anterior. A partir de 1898 a política de Murtinho reflete um novo equilíbrio de forças.147 A redução do serviço da dívida externa por meio de um empréstimo de consolidação (1898), a introdução da cláusula-ouro na arrecadação do imposto de importação (1900), uma série de medidas de caráter deflacionário e um substancial aumento no valor das exportações, de 26 milhões de libras em 1896-99 para 37 milhões em 1900-03, tornaram possível a recuperação do equilíbrio externo.148 Os interesses diretamente ligados à depreciação externa da moeda — grupos exportadores — terão a partir dessa época que enfrentar a resistência organizada de outros grupos. Entre estes se destacam a classe média urbana — empregados do governo, civis e militares, e do comércio —, os assalariados urbanos e rurais, os produtores agrícolas ligados ao mercado interno, as empresas estrangeiras que exploram serviços públicos, das quais nem todas têm garantia de juros. Os nascentes grupos industriais, mais interessados em aumentar a capacidade produtiva (portanto nos preços dos equipamentos importados) que em proteção adicional, também se sentem prejudicados com a depreciação cambial.

Se por um lado a descentralização republicana deu maior flexibilidade político-administrativa ao governo no campo econômico, em benefício dos grandes interesses agrícola-exportadores, por outro a ascensão política de novos grupos sociais — facilitada pelo regime republicano —, cujas rendas não derivavam da propriedade, veio reduzir substancialmente o controle que antes exerciam aqueles grupos agrícola-exportadores sobre o governo central. Tem início assim um período de tensões entre os dois níveis de governo — estadual e federal — que se prolongará pelos primeiros decênios do século XX.”

145. Sendo o imposto ad valorem pago em moeda nacional a uma taxa de câmbio fixa (27 d. por mil-réis), resultava que, ao depreciar-se a moeda, a parte do imposto permanecia estável, enquanto aumentava o valor em moeda nacional da mercadoria importada. Dessa forma, a receita governamental proveniente do imposto de importação permanecia estacionária, enquanto crescia o valor em moeda nacional do que se importava e ainda mais o valor das divisas. Em 1886 a reforma Belisário fixou em 24 d. o valor do mil-réis para fim de arrecadação do imposto. Ao subir o câmbio acima desse nível nos dois anos seguintes, o valor do imposto aumentou mais que o das importações, enquanto se reduzia o preço das divisas, o que contribuiu para criar a situação excepcionalmente favorável das finanças públicas nesses anos. Murtinho, em 1900, deu uma solução radical ao problema, introduzindo a tarifa-ouro.

146. A comparação entre o decênio dos 1880 e o dos 1890 é, a esse respeito, muito ilustrativa. No primeiro desses decênios, o meio circulante se manteve estacionário, e no segundo, mais que triplicou. Sem embargo, se comparamos o monte da empresa do governo central com o valor das exportações, comprovamos que a relação entre aquela e estas desce de 0,72 para 0,49. Essa redução reflete em parte a transferência de renda em benefício da classe exportadora acarretada pela depreciação cambial, mas também evidencia que muito provavelmente houve uma forte redução da carga fiscal. Outro indício dessa redução nos é dado pelo fato de que a receita ordinária representou somente oitenta por cento da despesa, no segundo decênio, contra 88 por cento no anterior.

147. Joaquim Murtinho, ministro da Fazenda do governo Campos Salles (1898-1902), adotou pela primeira vez no Brasil um conjunto de medidas econômico-financeiras coordenadas e visando um objetivo definido, que era reduzir a pressão sobre a balança de pagamentos e restabelecer o crédito exterior do governo. Murtinho foi influenciado pelo livro de WILEMAN, cit., o qual constitui indubitavelmente a primeira análise objetiva e sistemática — com base em crítica cuidadosa das fontes estatísticas — das causas da tendência ao desequilíbrio externo da economia brasileira.

148. O grande aumento do valor das exportações brasileiras, entre o último decênio do século XIX e o primeiro do século XX — fator principal da melhora substancial na posição da balança de pagamentos —, teve como causa básica a grande expansão das exportações de borracha. A participação desse produto no valor das exportações brasileiras subiu de dez por cento em 1890 para 39 por cento em 1910.

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