Editora: L&PM
Opinião: ★★★☆☆
Tradução: Irene Hirsch
ISBN: 978-85-2541-646-9
Páginas: 136
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Sinopse: A depressão econômica da década de 1930 nos
Estados Unidos fez as pessoas tomarem medidas drásticas para sobreviver. Popularizaram-se
no país as maratonas de dança – competições públicas em que casais dançavam por
dias a fio, desafiando os limites dos seus corpos diante de uma plateia animada,
na tentativa de ser a última dupla remanescente. Em um período de fome e desespero,
parecia uma maneira simples de ganhar um dinheirinho. Mas tais concursos escondiam
uma agressividade e uma violência social usualmente não associadas aos salões de
dança
Em
Mas não se matam cavalos? (1935), Horace McCoy (1897-1955) apresenta Robert
Syverten e Gloria Beatty, duas pessoas sem perspectiva alguma, que decidem participar
de uma maratona de dança achando que, assim, granjearão alguma oportunidade de trabalho
em Hollywood. Quando de sua publicação, a novela foi considerada experimental devido
à maneira como é utilizado o recurso de flashback. Em 1969, o filme foi adaptado
para o cinema por Sydney Pollack, com Jane Fonda no papel de Gloria. Tanto o livro
quanto o filme chocaram o público ao mostrar ao mundo como um lugar em que aqueles
sem dinheiro ou status social lutam como podem pela sobrevivência – tendo à frente
apenas a certeza da morte. Um livro pungente, impossível de largar.
“Não existem experiências novas na vida. Alguma coisa
pode acontecer que você acha que nunca aconteceu antes, que você acha que é
novidade, mas é um engano. Basta você ver, ou sentir um cheiro, ou escutar
alguma coisa para você entender que essa experiência, que você pensou que era
nova, já aconteceu antes.”
“— O que você vai fazer quando isso acabar? — ela
perguntou.
— Por que se
preocupar com isso? — eu disse. — Ainda não acabou. Não sei do que você está
reclamando — eu disse a ela. — Estamos numa situação melhor do que antes...
Pelo menos, sabemos onde vamos comer.
— Queria estar morta
— ela disse. — Queria que Deus me matasse.
Ela não parava de
dizer isso. Eu estava começando a ficar irritado.
— Um dia Deus vai
fazer esse favorzinho a você — eu disse.
— Queria tanto que
fizesse mesmo... Queria ter coragem de fazer isso por Ele.
— Se ganharmos essa
coisa, você pode pegar seus quinhentos dólares e ir para qualquer lugar — eu
disse. — Você pode se casar. Tem um monte de sujeitos querendo se casar. Nunca
pensou nisso?
— Já pensei muito
nisso — ela disse. — Mas nunca conseguiria casar com o tipo de homem que quero.
O único tipo que se casaria comigo é aquele que não quero. Um ladrão, um
cafetão, ou algo parecido.
— Sei por que você
está tão mórbida — eu disse. — Vai se sentir bem dentro de alguns dias. Vai se
sentir melhor.
— Não tem nada a ver
— ela disse. — Não estou nem com dores nas costas. Não é isso. Isso aqui é um
turbilhão. Quando sairmos daqui, vamos estar no mesmo lugar onde estávamos
antes de começar.
— Nós comemos e
dormimos — eu disse.
— E de que adianta
isso, se isso apenas significa adiar uma coisa que vai mesmo acontecer?”
“— Estou cheia disso
— disse Glória. — Estou cheia de olhar para as celebridades e estou cheia de
fazer sempre a mesma coisa...
— Às vezes me
arrependo de ter conhecido você — eu disse. — Não gosto de dizer isso, mas é
verdade. Antes de conhecer você eu não sabia como era estar perto de gente
deprimida.
Nós nos juntamos aos
outros pares na linha de partida.
— Estou cansada de
viver e tenho medo de morrer
— Glória disse.
— Ora, essa é uma
ideia legal para uma música — disse James Bates, que escutou tudo. — Você podia
compor uma música sobre um velho negro no rio que estava cansado de viver e
tinha medo de morrer. Ele poderia estar carregando algodão e enquanto isso
cantava uma música para o rio Mississipi. Ora, sei de um bom título... você
podia chamar de Old Man River...
Glória lançou olhares
fulminantes para ele, mexendo no nariz.”
“— As senhoras têm
filhos? — Glória perguntou, quando a porta se fechou.
— Nós duas temos
filhas adultas — disse a sra. Higby.
— Sabem onde elas
estão hoje à noite e o que estão fazendo?
Nenhuma das duas mulheres
disse nada.
— Talvez eu possa
lhes dar uma ideia — Glória disse. — Enquanto as senhoras, duas nobres
personalidades, estão aqui cumprindo seu dever com pessoas que nem conhecem,
suas filhas provavelmente estão sem roupas no apartamento de algum sujeito
enchendo a cara.
A sra. Higby e a sra.
Witcher prenderam a respiração ao mesmo tempo.
— É o que acontece em
geral com as filhas de reformadores — Glória disse. — Mais cedo ou mais tarde
elas transam com alguém e a maioria não sabe nem evitar encrenca. Vocês as
afastam de casa com seus malditos sermões sobre pureza e decência, e ficam
muito ocupadas se metendo na vida dos outros para poder ensinar a elas...
— Ora! — disse a sra.
Higby, com o rosto cada vez mais vermelho.
— Eu... — disse a sra.
Witcher.
— Glória... — eu
disse.
— Está na hora de
alguém falar isso para essas mulheres — disse Glória, ficando de costas para a
porta, como se para evitar que as mulheres saíssem —, e sou quem vai fazer
isso. Vocês são daquele tipo de vaca que se enfia no banheiro para ler livros
de sacanagem e contar histórias sujas e depois anda por aí tentando estragar a
festa dos outros...
— Saia da frente
desta porta, mocinha, e deixe— nos sair daqui! — gritou a sra. Higby. — Me
recuso a escutá-la. Sou uma senhora respeitável. Sou professora da escola
dominical...
— Não vou me mexer
nem um milímetro, enquanto eu não acabar — disse Glória.
— Glória...
— Sua Liga da
Moralidade e seus malditos clubes de mulheres — ela disse, sem prestar atenção
em mim — cheios de vacas intrometidas que não dão uma bela trepada há mais de
vinte anos. Por que as senhoras não saem por aí e pagam por uma de vez em
quando? É isso que está errado com vocês...”
“Glória esteve
mórbida o dia todo. Perguntei um monte de vezes o que ela estava pensando.
— Nada — era a
resposta.
Percebo agora como
fui burro. Eu deveria saber sobre o que ela estava pensando. Lembrando agora
daquela noite, não entendo como pude ser tão burro. Mas naquela época eu era um
idiota a respeito de um monte de coisas... O juiz está sentado ali, fazendo seu
discurso, me olhando pelos seus óculos, mas suas palavras têm o mesmo efeito
sobre o meu corpo como sua visão em relação aos óculos-, atravessam sem parar,
destruindo cada olhar e cada palavra que seguem. Não estou escutando o juiz com
meus ouvidos e meu cérebro, assim como as lentes dos óculos não pegam e
aprisionam os olhares que as atravessam. Eu o escuto com os pés e as pernas e
as costas e os braços e tudo menos meus ouvidos e meu cérebro. Com meus ouvidos
e meu cérebro escuto um vendedor de jornal na rua gritando alguma coisa sobre o
rei Alexandre, escuto os bondes passando na rua, escuto os carros, escuto os
avisos dos semáforos; na sala do tribunal escuto as pessoas respirando e
mexendo os pés, escuto a madeira de um banco estalando, escuto o pingo de uma
pessoa cuspindo. Tudo isso eu escuto com meus ouvidos e meu cérebro, mas escuto
o juiz apenas com meu corpo. Se algum dia você escutar um juiz dizer a você o
que ele está dizendo para mim, você vai entender o que quero dizer.”
(Na
parte abaixo conta-se o final do livro – o famoso spoiler – portanto, cuidado ao seguir.)
“Glória e eu andamos pela pista de dança, meus
calcanhares fazendo tanto barulho que nem pareciam meus. Rocky estava na porta
da frente com um policial.
— Para onde vocês
vão? — Rocky perguntou.
— Vamos tomar um
pouco de ar — Glória disse.
— Vão voltar?
— Vamos — eu disse a
ele. — Só vamos tomar um pouco de ar. Faz tanto tempo que não saímos ao ar
livre...
— Não demorem — Rocky
disse, olhando para Glória e molhando os lábios de modo expressivo.
— Vá à merda! —
Glória disse, saindo.
Passava das duas da
madrugada. O ar estava úmido, espesso e limpo. Tão espesso e limpo que eu
sentia meus pulmões devorando o ar em imensos pedaços.
“Aposto que estão
contentes por receber este tipo de ar”, eu disse aos meus pulmões.
Virei para trás e
olhei para o edifício.
— Então foi nesse
lugar que estivemos o tempo todo — eu disse. — Agora sei como Jonas se sentiu
quando olhou para a baleia.
— Vamos — disse
Glória.
Andamos em volta do
prédio em direção ao píer. O píer se estendia pelo oceano até onde a vista
alcançava, subindo e descendo, gemendo e estalando com o movimento da água.
— É um mistério as
ondas não levarem esse píer embora — e disse.
— Você é obcecado por
ondas — Glória disse.
— Não, não sou — eu
disse.
— Você só fala nisso
há um mês...
— Tudo bem, fique
parada um minuto e vai entender o que estou dizendo. Dá para sentir o sobe e
desce...
— Posso sentir isso
sem ficar parada — ela disse mas isso não é motivo de preocupação. Isso
acontece há milhões de anos.
— Não fique pensando
que sou louco pelo oceano — eu disse. — Tudo bem se eu nunca mais vir o oceano.
Já vi o bastante pelo resto de minha vida.
Sentamos num banco que
estava úmido dos borrifos do mar. No fim do píer vários homens pescavam à beira
do trapiche. A noite estava escura, não tinha lua nem estrelas. Uma linha
irregular de espuma branca marcava a praia.
— A brisa está
gostosa — eu disse.
Glória não disse nada,
olhando para longe. Lá embaixo na praia tinha um lugar com luzes.
— Ali é Malibu — eu
disse. — Onde todas as estrelas de cinema moram.
— O que você vai
fazer agora? — ela disse, por fim.
— Não sei direito.
Pensei em procurar o sr. Maxwell amanhã. Talvez ele possa fazer alguma coisa.
Ele parecia interessado de verdade.
— Sempre amanhã — ela
disse. — A grande chance sempre vem amanhã.
Passaram dois homens,
carregando varas de pescar. Um deles arrastava um tubarão-martelo atrás de si.
— Essa criancinha não
vai fazer mais nenhum estrago — ele disse para o outro homem...
— O que você vai
fazer? — eu perguntei a Glória.
— Vou pular fora
desse carrossel — ela disse. — Estou de saco cheio desta coisa nojenta.
— Que coisa?
— A vida — ela disse.
— Por que não tenta
ajudar a si mesma? — eu disse. — Você sempre toma a atitude errada em todas as
coisas.
— Não me venha com
sermões — ela disse.
— Não estou fazendo
sermão — eu disse mas você tem de mudar de atitude. É sério. Isso afeta todo
mundo que chega perto de você. Eu, por exemplo. Antes de conhecer você eu não
achava que poderia fracassar. Nunca pensei em não dar certo. E agora...
— Quem ensinou você a
falar desse jeito? — ela perguntou. — Você nunca pensaria isso por você.
— Sim, eu pensei — eu
disse.
Ela olhou para o
oceano em direção a Malibu.
— Ah, de que adianta
eu enganar a mim mesma? — ela disse, depressa. — Sei qual é meu lugar...
Eu não disse nada,
fiquei olhando para o oceano e pensando em Hollywood, pensando se já tinha
estado lá, ou se acordaria de novo em Arkansas e teria de correr e pegar meu
jornal antes que amanhecesse.
— ...Filho-da-puta —
Glória dizia para si. — Não precisa me olhar desse jeito — ela disse. — Sei que
não presto...
“Ela tem razão”,
disse comigo. “Ela tem toda razão. Ela não presta...”
— Queria ter morrido
naquela vez em Dallas — ela disse. — Sempre achei que o médico salvou minha
vida por uma única razão...
Eu não disse nada
quando escutei isso, ainda olhando para o oceano e pensando em como ela estava
certa sobre não prestar e que não foi legal ela não ter morrido naquela vez em
Dallas. Com certeza ela estaria melhor se estivesse morta.
— Sou uma
desajustada. Não tenho nada para dar para ninguém — ela dizia. — Pare de me
olhar desse jeito — ela disse.
— Não estou olhando
para você de nenhum jeito — eu disse. — Você não está vendo meu rosto...
— Estou sim — ela
disse.
Ela estava mentindo.
Ela não podia ver meu rosto. Estava muito escuro.
— Você não acha que
devemos entrar? — eu disse. — Rocky queria ver você...
— Aquele... — ela
disse. — Sei o que ele quer, mas ele nunca mais vai conseguir. Nem ninguém
mais.
— O quê? — eu disse.
— Você não sabe?
— Não sei o quê? — eu
disse.
— O que Rocky quer.
— Ah! — eu disse. —
Claro. Agora caiu a ficha.
— É o que todos os
homens querem — ela disse —, mas tudo bem. Ah, não foi ruim dar para o Rocky.
Ele me fez um favor e eu fiz um favor a ele... Mas, e se eu me encrenquei?
— Você não está
achando que sim, está? — perguntei.
— Sim, estou. Até
agora sempre tomei conta de mim. E se eu tiver uma criança? — ela disse. — Você
já sabe o que ela vai ser quando crescer, não é? Como nós. Não quero isso. De
qualquer modo, estou acabada. Acho este mundo podre e estou acabada. Eu estaria
melhor se estivesse morta, assim como todo mundo. Eu estrago tudo que chega
perto de mim. Você mesmo disse isso.
— Quando foi que eu
disse uma coisa dessas?
— Agora mesmo. Você
disse que antes de me conhecer nunca tinha pensado em fracassar... Bem, não é
minha culpa. Não tenho controle. Já tentei me matar uma vez, mas não consegui e
nunca mais tive coragem para tentar de novo... Quer fazer um favor ao mundo? —
ela perguntou.
Eu não disse nada,
fiquei escutando o oceano bater contra a balaustrada, sentindo o píer subir e
descer e pensando que ela estava certa sobre o que dissera.
Glória estava
remexendo na bolsa. Quando tirou a mão de dentro, vi que estava segurando uma
arma pequena. Não tinha visto a arma antes, mas não fiquei surpreso. Não fiquei
nada surpreso.
— Pegue — ela disse,
entregando a arma para mim.
— Não quero. Guarde
isso — eu disse. — Vamos, vamos voltar lá para dentro. Estou com frio...
— Pegue e ajude a
Deus — ela disse, pressionando a arma na minha mão. — Atire em mim. É o único
jeito de me salvar deste sofrimento.
“Ela está certa”,
disse comigo. “É o único jeito de salvá-la desse sofrimento.” Quando eu era
criança passava as férias na fazenda de meu avô em Arkansas. Certo dia estava
perto do defumadouro, vendo a minha avó fazer sabão numa grande panela de
ferro, quando meu avô atravessou o jardim, muito agitado. “A Nellie quebrou a
perna”, meu avô disse. Minha avó e eu subimos a escada para o jardim onde meu
avô estava arando. A Nellie estava no chão gemendo, ainda presa ao arado.
Ficamos ali olhando para ela, só olhando para ela. Meu avô voltou com a arma
que tinha usado em Chickamauga Ridge. “Elapisou num buraco”, ele disse
acariciando a cabeça de Nellie. Minha avó me virou para o outro lado. Comecei a
chorar. Ouvi um tiro. Ainda escuto esse tiro. Corri até ela, me joguei no chão,
abraçando o pescoço dela. Eu amava aquela égua. Eu odiei meu avô. Me levantei e
fui até ele, bati nas pernas dele com meus punhos... Mais tarde, naquele dia,
ele me explicou que também amava Nellie, mas que teve de atirar nela. “Era a
coisa mais bondosa a fazer”, ele disse. “Ela não ia ficar boa. Era o único
jeito de salvá-la do sofrimento...”
Eu estava com a arma
na mão.
— Tudo bem — eu disse
a Glória. — Diga quando.
— Estou pronta.
— Onde?
— Aqui mesmo. Do lado
da cabeça.
O píer pulou quando
uma onda grande se quebrou.
— Agora?
— Agora.
Atirei nela.
O píer se mexeu de
novo e a água fez um barulho de engolir algo quando voltou para o oceano.
Joguei a arma no mar.
Um policial estava
sentado atrás comigo enquanto o outro dirigia. Estávamos indo bem depressa e a
sirene tocava. Era o mesmo tipo de sirene que usaram na maratona de dança
quando queriam nos acordar.
— Por que você a
matou? — perguntou o policial no banco de trás.
— Ela me pediu — eu
disse.
— Escutou isso, Ben?
— Que filho-da-puta
mais prestativo! — disse Ben, por cima do ombro.
— É seu único motivo?
— perguntou o policial do banco de trás.
— Mas não se matam
cavalos? — eu disse.”
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