sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Mas não se matam cavalos?, de Horace McCoy

Editora: L&PM

Opinião: ★★★☆☆

Tradução: Irene Hirsch

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ISBN: 978-85-2541-646-9

Páginas: 136

Sinopse: A depressão econômica da década de 1930 nos Estados Unidos fez as pessoas tomarem medidas drásticas para sobreviver. Popularizaram-se no país as maratonas de dança – competições públicas em que casais dançavam por dias a fio, desafiando os limites dos seus corpos diante de uma plateia animada, na tentativa de ser a última dupla remanescente. Em um período de fome e desespero, parecia uma maneira simples de ganhar um dinheirinho. Mas tais concursos escondiam uma agressividade e uma violência social usualmente não associadas aos salões de dança.

Em Mas não se matam cavalos? (1935), Horace McCoy (1897-1955) apresenta Robert Syverten e Gloria Beatty, duas pessoas sem perspectiva alguma, que decidem participar de uma maratona de dança achando que, assim, granjearão alguma oportunidade de trabalho em Hollywood. Quando de sua publicação, a novela foi considerada experimental devido à maneira como é utilizado o recurso de flashback. Em 1969, o filme foi adaptado para o cinema por Sydney Pollack, com Jane Fonda no papel de Gloria. Tanto o livro quanto o filme chocaram o público ao mostrar ao mundo como um lugar em que aqueles sem dinheiro ou status social lutam como podem pela sobrevivência – tendo à frente apenas a certeza da morte. Um livro pungente, impossível de largar.



Não existem experiências novas na vida. Alguma coisa pode acontecer que você acha que nunca aconteceu antes, que você acha que é novidade, mas é um engano. Basta você ver, ou sentir um cheiro, ou escutar alguma coisa para você entender que essa experiência, que você pensou que era nova, já aconteceu antes.”

 

 

— O que você vai fazer quando isso acabar? — ela perguntou.

— Por que se preocupar com isso? — eu disse. — Ainda não acabou. Não sei do que você está reclamando — eu disse a ela. — Estamos numa situação melhor do que antes... Pelo menos, sabemos onde vamos comer.

— Queria estar morta — ela disse. — Queria que Deus me matasse.

Ela não parava de dizer isso. Eu estava começando a ficar irritado.

— Um dia Deus vai fazer esse favorzinho a você — eu disse.

— Queria tanto que fizesse mesmo... Queria ter coragem de fazer isso por Ele.

— Se ganharmos essa coisa, você pode pegar seus quinhentos dólares e ir para qualquer lugar — eu disse. — Você pode se casar. Tem um monte de sujeitos querendo se casar. Nunca pensou nisso?

— Já pensei muito nisso — ela disse. — Mas nunca conseguiria casar com o tipo de homem que quero. O único tipo que se casaria comigo é aquele que não quero. Um ladrão, um cafetão, ou algo parecido.

— Sei por que você está tão mórbida — eu disse. — Vai se sentir bem dentro de alguns dias. Vai se sentir melhor.

— Não tem nada a ver — ela disse. — Não estou nem com dores nas costas. Não é isso. Isso aqui é um turbilhão. Quando sairmos daqui, vamos estar no mesmo lugar onde estávamos antes de começar.

— Nós comemos e dormimos — eu disse.

— E de que adianta isso, se isso apenas significa adiar uma coisa que vai mesmo acontecer?”

 

 

“— Estou cheia disso — disse Glória. — Estou cheia de olhar para as celebridades e estou cheia de fazer sempre a mesma coisa...

— Às vezes me arrependo de ter conhecido você — eu disse. — Não gosto de dizer isso, mas é verdade. Antes de conhecer você eu não sabia como era estar perto de gente deprimida.

Nós nos juntamos aos outros pares na linha de partida.

— Estou cansada de viver e tenho medo de morrer

— Glória disse.

— Ora, essa é uma ideia legal para uma música — disse James Bates, que escutou tudo. — Você podia compor uma música sobre um velho negro no rio que estava cansado de viver e tinha medo de morrer. Ele poderia estar carregando algodão e enquanto isso cantava uma música para o rio Mississipi. Ora, sei de um bom título... você podia chamar de Old Man River...

Glória lançou olhares fulminantes para ele, mexendo no nariz.”

 

 

“— As senhoras têm filhos? — Glória perguntou, quando a porta se fechou.

— Nós duas temos filhas adultas — disse a sra. Higby.

— Sabem onde elas estão hoje à noite e o que estão fazendo?

Nenhuma das duas mulheres disse nada.

— Talvez eu possa lhes dar uma ideia — Glória disse. — Enquanto as senhoras, duas nobres personalidades, estão aqui cumprindo seu dever com pessoas que nem conhecem, suas filhas provavelmente estão sem roupas no apartamento de algum sujeito enchendo a cara.

A sra. Higby e a sra. Witcher prenderam a respiração ao mesmo tempo.

— É o que acontece em geral com as filhas de reformadores — Glória disse. — Mais cedo ou mais tarde elas transam com alguém e a maioria não sabe nem evitar encrenca. Vocês as afastam de casa com seus malditos sermões sobre pureza e decência, e ficam muito ocupadas se metendo na vida dos outros para poder ensinar a elas...

— Ora! — disse a sra. Higby, com o rosto cada vez mais vermelho.

— Eu... — disse a sra. Witcher.

— Glória... — eu disse.

— Está na hora de alguém falar isso para essas mulheres — disse Glória, ficando de costas para a porta, como se para evitar que as mulheres saíssem —, e sou quem vai fazer isso. Vocês são daquele tipo de vaca que se enfia no banheiro para ler livros de sacanagem e contar histórias sujas e depois anda por aí tentando estragar a festa dos outros...

— Saia da frente desta porta, mocinha, e deixe— nos sair daqui! — gritou a sra. Higby. — Me recuso a escutá-la. Sou uma senhora respeitável. Sou professora da escola dominical...

— Não vou me mexer nem um milímetro, enquanto eu não acabar — disse Glória.

— Glória...

— Sua Liga da Moralidade e seus malditos clubes de mulheres — ela disse, sem prestar atenção em mim — cheios de vacas intrometidas que não dão uma bela trepada há mais de vinte anos. Por que as senhoras não saem por aí e pagam por uma de vez em quando? É isso que está errado com vocês...”

 

 

“Glória esteve mórbida o dia todo. Perguntei um monte de vezes o que ela estava pensando.

— Nada — era a resposta.

Percebo agora como fui burro. Eu deveria saber sobre o que ela estava pensando. Lembrando agora daquela noite, não entendo como pude ser tão burro. Mas naquela época eu era um idiota a respeito de um monte de coisas... O juiz está sentado ali, fazendo seu discurso, me olhando pelos seus óculos, mas suas palavras têm o mesmo efeito sobre o meu corpo como sua visão em relação aos óculos, atravessam sem parar, destruindo cada olhar e cada palavra que seguem. Não estou escutando o juiz com meus ouvidos e meu cérebro, assim como as lentes dos óculos não pegam e aprisionam os olhares que as atravessam. Eu o escuto com os pés e as pernas e as costas e os braços e tudo menos meus ouvidos e meu cérebro. Com meus ouvidos e meu cérebro escuto um vendedor de jornal na rua gritando alguma coisa sobre o rei Alexandre, escuto os bondes passando na rua, escuto os carros, escuto os avisos dos semáforos; na sala do tribunal escuto as pessoas respirando e mexendo os pés, escuto a madeira de um banco estalando, escuto o pingo de uma pessoa cuspindo. Tudo isso eu escuto com meus ouvidos e meu cérebro, mas escuto o juiz apenas com meu corpo. Se algum dia você escutar um juiz dizer a você o que ele está dizendo para mim, você vai entender o que quero dizer.

 

 

(Na parte abaixo conta-se o final do livro – o famoso spoiler – portanto, cuidado ao seguir.)

Glória e eu andamos pela pista de dança, meus calcanhares fazendo tanto barulho que nem pareciam meus. Rocky estava na porta da frente com um policial.

— Para onde vocês vão? — Rocky perguntou.

— Vamos tomar um pouco de ar — Glória disse.

— Vão voltar?

— Vamos — eu disse a ele. — Só vamos tomar um pouco de ar. Faz tanto tempo que não saímos ao ar livre...

— Não demorem — Rocky disse, olhando para Glória e molhando os lábios de modo expressivo.

— Vá à merda! — Glória disse, saindo.

Passava das duas da madrugada. O ar estava úmido, espesso e limpo. Tão espesso e limpo que eu sentia meus pulmões devorando o ar em imensos pedaços.

“Aposto que estão contentes por receber este tipo de ar”, eu disse aos meus pulmões.

Virei para trás e olhei para o edifício.

— Então foi nesse lugar que estivemos o tempo todo — eu disse. — Agora sei como Jonas se sentiu quando olhou para a baleia.

— Vamos — disse Glória.

Andamos em volta do prédio em direção ao píer. O píer se estendia pelo oceano até onde a vista alcançava, subindo e descendo, gemendo e estalando com o movimento da água.

— É um mistério as ondas não levarem esse píer embora — eu disse.

— Você é obcecado por ondas — Glória disse.

— Não, não sou — eu disse.

— Você só fala nisso há um mês...

— Tudo bem, fique parada um minuto e vai entender o que estou dizendo. Dá para sentir o sobe e desce...

— Posso sentir isso sem ficar parada — ela disse —, mas isso não é motivo de preocupação. Isso acontece há milhões de anos.

— Não fique pensando que sou louco pelo oceano — eu disse. — Tudo bem se eu nunca mais vir o oceano. Já vi o bastante pelo resto de minha vida.

Sentamos num banco que estava úmido dos borrifos do mar. No fim do píer vários homens pescavam à beira do trapiche. A noite estava escura, não tinha lua nem estrelas. Uma linha irregular de espuma branca marcava a praia.

— A brisa está gostosa — eu disse.

Glória não disse nada, olhando para longe. Lá embaixo na praia tinha um lugar com luzes.

— Ali é Malibu — eu disse. — Onde todas as estrelas de cinema moram.

— O que você vai fazer agora? — ela disse, por fim.

— Não sei direito. Pensei em procurar o sr. Maxwell amanhã. Talvez ele possa fazer alguma coisa. Ele parecia interessado de verdade.

— Sempre amanhã — ela disse. — A grande chance sempre vem amanhã.

Passaram dois homens, carregando varas de pescar. Um deles arrastava um tubarão-martelo atrás de si.

— Essa criancinha não vai fazer mais nenhum estrago — ele disse para o outro homem...

— O que você vai fazer? — eu perguntei a Glória.

— Vou pular fora desse carrossel — ela disse. — Estou de saco cheio desta coisa nojenta.

— Que coisa?

— A vida — ela disse.

— Por que não tenta ajudar a si mesma? — eu disse. — Você sempre toma a atitude errada em todas as coisas.

— Não me venha com sermões — ela disse.

— Não estou fazendo sermão — eu disse —, mas você tem de mudar de atitude. É sério. Isso afeta todo mundo que chega perto de você. Eu, por exemplo. Antes de conhecer você eu não achava que poderia fracassar. Nunca pensei em não dar certo. E agora...

— Quem ensinou você a falar desse jeito? — ela perguntou. — Você nunca pensaria isso por você.

— Sim, eu pensei — eu disse.

Ela olhou para o oceano em direção a Malibu.

— Ah, de que adianta eu enganar a mim mesma? — ela disse, depressa. — Sei qual é meu lugar...

Eu não disse nada, fiquei olhando para o oceano e pensando em Hollywood, pensando se já tinha estado lá, ou se acordaria de novo em Arkansas e teria de correr e pegar meu jornal antes que amanhecesse.

—...Filho-da-puta — Glória dizia para si. — Não precisa me olhar desse jeito — ela disse. — Sei que não presto...

“Ela tem razão”, disse comigo. “Ela tem toda razão. Ela não presta...”

— Queria ter morrido naquela vez em Dallas — ela disse. — Sempre achei que o médico salvou minha vida por uma única razão...

Eu não disse nada quando escutei isso, ainda olhando para o oceano e pensando em como ela estava certa sobre não prestar e que não foi legal ela não ter morrido naquela vez em Dallas. Com certeza ela estaria melhor se estivesse morta.

— Sou uma desajustada. Não tenho nada para dar para ninguém — ela dizia. — Pare de me olhar desse jeito — ela disse.

— Não estou olhando para você de nenhum jeito — eu disse. — Você não está vendo meu rosto...

— Estou sim — ela disse.

Ela estava mentindo. Ela não podia ver meu rosto. Estava muito escuro.

— Você não acha que devemos entrar? — eu disse. — Rocky queria ver você...

— Aquele... — ela disse. — Sei o que ele quer, mas ele nunca mais vai conseguir. Nem ninguém mais.

— O quê? — eu disse.

— Você não sabe?

— Não sei o quê? — eu disse.

— O que Rocky quer.

— Ah! — eu disse. — Claro. Agora caiu a ficha.

— É o que todos os homens querem — ela disse —, mas tudo bem. Ah, não foi ruim dar para o Rocky. Ele me fez um favor e eu fiz um favor a ele... Mas, e se eu me encrenquei?

— Você não está achando que sim, está? — perguntei.

— Sim, estou. Até agora sempre tomei conta de mim. E se eu tiver uma criança? — ela disse. — Você já sabe o que ela vai ser quando crescer, não é? Como nós. Não quero isso. De qualquer modo, estou acabada. Acho este mundo podre e estou acabada. Eu estaria melhor se estivesse morta, assim como todo mundo. Eu estrago tudo que chega perto de mim. Você mesmo disse isso.

— Quando foi que eu disse uma coisa dessas?

— Agora mesmo. Você disse que antes de me conhecer nunca tinha pensado em fracassar... Bem, não é minha culpa. Não tenho controle. Já tentei me matar uma vez, mas não consegui e nunca mais tive coragem para tentar de novo... Quer fazer um favor ao mundo? — ela perguntou.

Eu não disse nada, fiquei escutando o oceano bater contra a balaustrada, sentindo o píer subir e descer e pensando que ela estava certa sobre o que dissera.

Glória estava remexendo na bolsa. Quando tirou a mão de dentro, vi que estava segurando uma arma pequena. Não tinha visto a arma antes, mas não fiquei surpreso. Não fiquei nada surpreso.

— Pegue — ela disse, entregando a arma para mim.

— Não quero. Guarde isso — eu disse. — Vamos, vamos voltar lá para dentro. Estou com frio...

— Pegue e ajude a Deus — ela disse, pressionando a arma na minha mão. — Atire em mim. É o único jeito de me salvar deste sofrimento.

“Ela está certa”, disse comigo. “É o único jeito de salvá-la desse sofrimento.” Quando eu era criança passava as férias na fazenda de meu avô em Arkansas. Certo dia estava perto do defumadouro, vendo a minha avó fazer sabão numa grande panela de ferro, quando meu avô atravessou o jardim, muito agitado. “A Nellie quebrou a perna”, meu avô disse. Minha avó e eu subimos a escada para o jardim onde meu avô estava arando. A Nellie estava no chão gemendo, ainda presa ao arado. Ficamos ali olhando para ela, só olhando para ela. Meu avô voltou com a arma que tinha usado em Chickamauga Ridge. “Ela pisou num buraco”, ele disse acariciando a cabeça de Nellie. Minha avó me virou para o outro lado. Comecei a chorar. Ouvi um tiro. Ainda escuto esse tiro. Corri até ela, me joguei no chão, abraçando o pescoço dela. Eu amava aquela égua. Eu odiei meu avô. Me levantei e fui até ele, bati nas pernas dele com meus punhos... Mais tarde, naquele dia, ele me explicou que também amava Nellie, mas que teve de atirar nela. “Era a coisa mais bondosa a fazer”, ele disse. “Ela não ia ficar boa. Era o único jeito de salvá-la do sofrimento...”

Eu estava com a arma na mão.

— Tudo bem — eu disse a Glória. — Diga quando.

— Estou pronta.

— Onde?

— Aqui mesmo. Do lado da cabeça.

O píer pulou quando uma onda grande se quebrou.

— Agora?

— Agora.

Atirei nela.

O píer se mexeu de novo e a água fez um barulho de engolir algo quando voltou para o oceano.

Joguei a arma no mar.

 

 

Um policial estava sentado atrás comigo enquanto o outro dirigia. Estávamos indo bem depressa e a sirene tocava. Era o mesmo tipo de sirene que usaram na maratona de dança quando queriam nos acordar.

— Por que você a matou? — perguntou o policial no banco de trás.

— Ela me pediu — eu disse.

— Escutou isso, Ben?

— Que filho-da-puta mais prestativo! — disse Ben, por cima do ombro.

— É seu único motivo? — perguntou o policial do banco de trás.

— Mas não se matam cavalos? — eu disse.”

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