segunda-feira, 3 de julho de 2023

O Estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado (Parte I), de Mariana Mazzucato

Editora: Portfolio Penguin

ISBN: 978-85-8285-003-9

Tradução: Elvira Serapicos

Opinião: ★★☆☆☆

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 318

Sinopse: Uma invenção com impacto enorme na vida de milhões de pessoas, o iPhone costuma ser visto como fruto da mente genial de Steve Jobs e da empresa que ele ajudou a se tornar uma marca mundial bilionária, a Apple. Muitas das tecnologias mais marcantes do aparelho, porém, são resultado de pesquisas financiadas pelo Estado americano, como a tela touchscreen e o assistente virtual acionado por voz, Siri. Essa é uma das revelações feitas por Mariana Mazzucato em O Estado empreendedor, e ilustra bem o principal tema discutido por ela no livro: apesar de ser percebido como lento, burocrático e pouco ousado, o Estado teve e continua tendo papel fundamental e estratégico no desenvolvimento de grandes avanços tecnológicos. Valendo-se sempre de dados fartos e análises bem-fundamentadas, a autora examina outros casos semelhantes em áreas que vão da internet à nanotecnologia e, através de um olhar fresco e muitas vezes surpreendente, enriquece um debate atualíssimo.



Moral da história: quando o Estado é organizado eficientemente, sua mão é firme mas não pesada, proporcionando a visão e o impulso dinâmico (assim como alguns “cutucões” — embora os cutucões não possam ser dados pela revolução da TI do passado nem pela revolução verde de hoje), acontecem coisas que de outra forma não aconteceriam. Tais ações visam encorajar o setor privado. Isso requer a compreensão de que o Estado não é nem um “intruso” nem um mero facilitador do crescimento econômico. É um parceiro fundamental do setor privado — e em geral mais ousado, disposto a assumir riscos que as empresas não assumem. O Estado não pode e não deve se curvar facilmente a grupos de interesse que se aproximam dele em busca de doações, rendas e privilégios desnecessários, como cortes de impostos. Em vez disso, deve procurar aqueles grupos de interesse com os quais possa trabalhar dinamicamente em sua busca por crescimento e evolução tecnológica. (...)

Um Estado empreendedor não apenas “reduz os riscos” do setor privado, como antevê o espaço de risco e opera corajosa e eficientemente dentro desse espaço para fazer as coisas acontecerem. De fato, quando não se mostra confiante, o mais provável é que o Estado seja “submetido” e se curve aos interesses privados. Quando não assume um papel de liderança, o Estado se torna uma pobre contrafação do comportamento do setor privado em vez de uma alternativa real. E as críticas costumeiras de que o Estado é lento e burocrático são mais prováveis nos países em que ele é marginalizado e obrigado a desempenhar um papel puramente “administrativo”.”

 

 

“O entendimento mais recente leva a discussões (mais) interessantes a respeito do que o Estado pode fazer para elevar o “espírito animal” do empresariado — para fazer com que pare de acumular dinheiro e o gaste em novas áreas pioneiras. Isso faz uma grande diferença na forma como se imagina o “espaço” político. Para começar, torna o Estado menos vulnerável à propaganda a respeito do que o setor empresarial pode fazer (e faz). De fato, são os Estados mais fracos que (mais) cedem à retórica de que existe uma necessidade de diferentes tipos de “cortes na carga tributária” e eliminação da “burocracia” normativa. Um governo confiante reconhece que o setor comercial pode “falar” a respeito dos impostos, mas “caminha” para onde estão as novas oportunidades tecnológicas e de mercado — e que isso está fortemente concatenado com áreas caracterizadas por grandes investimentos do setor público. Por acaso a Pfizer saiu de Sandwich, Kent (Reino Unido), e se mudou para Boston, nos Estados Unidos, devido à redução da carga tributária e à legislação mais flexível? Ou isso ocorreu porque o National Institutes of Health (NIH), do setor público, tem desembolsado cerca de 30,9 bilhões de dólares por ano nos Estados Unidos no financiamento da base de conhecimento sobre a qual empresas farmacêuticas privadas prosperam?

Em economia, a hipótese do crowding out é usada para analisar a possibilidade de a elevação nos gastos do Estado reduzir os investimentos do setor privado, uma vez que ambos competem pelo mesmo pool de poupança (através de empréstimos), o que poderia resultar então em taxas de juros mais elevadas, algo que reduziria a disposição das empresas para fazer empréstimos e, consequentemente, investir. Embora a análise keynesiana tenha argumentado contra essa possibilidade durante os períodos de capacidade ociosa (Zenghelis, A Macroeconomic Plan for a Green Recovery, 2011), a questão é que mesmo quando há um boom (quando teoricamente existe capacidade de utilização plena), existem na prática muitas partes do cenário de risco em que os negócios privados temem colocar os pés e o governo indica o caminho. De fato, os gastos que levaram à internet ocorreram principalmente em épocas de boom — assim como os gastos governamentais que levaram à indústria da nanotecnologia (Motoyama et al., The National Nanotechnology Initiative: Federal Support for Science and Technology, or Hidden Industrial Policy?, 2011).

Desse modo, uma defesa apropriada do Estado deveria argumentar que ele não apenas faz o crowd in [reúne] do investimento privado (aumentando o PIB através do efeito multiplicador) — noção correta, porém limitada, apresentada pelos keynesianos —, mas vai além.”

 

 

“Na zona do euro, argumenta-se atualmente que todos os problemas dos países “periféricos” da União Europeia, como Portugal e Itália, são resultado de um setor público “perdulário”, ignorando-se as evidências de que esses países se caracterizam mais por um setor público estagnado, que não fizeram os investimentos estratégicos que países mais bem-sucedidos, como a Alemanha, vêm fazendo há décadas (MAZZUCATO, 2012b, The EU Needs More, Not Less Investment, to Get Out of Its Current Economic Predicament).

O poder da ideologia é tão grande que consegue fabricar a história com facilidade. Um aspecto notável da crise financeira que teve início em 2007 é o fato de que, apesar de ter sido flagrantemente causada pelo excesso de endividamento do setor privado (principalmente no mercado imobiliário americano), muitas pessoas foram levadas a acreditar que o principal culpado foi a dívida pública. É verdade que a dívida do setor público (ALESSANDRI e HALDANE, Banking on the State, 2009) subiu drasticamente devido tanto aos resgates bancários financiados pelo governo quanto à redução das receitas fiscais que acompanhou a recessão subsequente em muitos países. Mas dificilmente se pode argumentar que a crise financeira, ou a crise econômica decorrente, foi causada pela dívida pública. A questão-chave não era a quantidade de gastos do setor público, mas o tipo de gasto. De fato, uma das razões para o índice de crescimento da Itália ter sido tão baixo nos últimos quinze anos não é o fato de o país estar gastando muito, mas não ter investido o suficiente em áreas como educação, capital humano e P&D. Por isso, mesmo com um déficit pré-crise relativamente modesto (cerca de 4%), a relação dívida/PIB continuou crescendo porque a taxa de crescimento do denominador nessa relação manteve-se próxima de zero.”

 

 

“O aspecto mais chocante dessa discussão foi não apenas constatar que o trabalho estatístico (publicado na que é considerada a revista de economia mais importante) foi feito de maneira incorreta (e descuidada), mas a rapidez com que as pessoas acreditaram na questão central: que a dívida acima de 90% do PIB irá necessariamente derrubar o crescimento. O corolário tornou-se o novo dogma: a austeridade trará necessariamente (e suficientemente) o crescimento de volta. E ainda assim existem muitos países com dívida mais alta que cresceram de forma estável (como o Canadá, a Nova Zelândia e a Austrália — todos ignorados). Ainda mais óbvia é a questão de que aquilo que importa com certeza não é o tamanho agregado do setor público, mas no que ele está gastando. Gastos com papelada inútil, ou comissões, certamente não podem ser comparados àqueles com um sistema de saúde mais funcional e eficiente, com os gastos em educação de qualidade ou com pesquisas inovadoras que podem contribuir para a formação do capital humano e tecnologias futuras. Na verdade, as variáveis que segundo os economistas são importantes para o crescimento — como educação, P&D — são dispendiosas. O fato de os países mais fracos da Europa, com uma relação dívida/PIB muito alta, terem gastado muito pouco nessas áreas (fazendo com que o denominador dessa relação seja prejudicado) não deveria surpreender. Entretanto, as receitas de austeridade que estão sendo impostas a eles atualmente só irão agravar o problema.

E é aqui que entra a promessa autorrealizável: quanto mais depreciamos o papel do Estado na economia, menos condições teremos de elevar seu nível de jogo e de transformá-lo em um player importante, e assim ele terá menos condições de atrair os melhores talentos.”

 

 

Evidentemente, a ênfase sobre o Estado como agente empreendedor não pretende negar a existência da atividade empreendedora do setor privado, desde o papel das jovens empresas que geram dinamismo em novos setores (Google, por exemplo) a importantes fontes de financiamento como o capital de risco. O problema-chave é que essa é a única história que costuma ser contada. O Vale do Silício e a indústria da biotecnologia costumam ser vistos como conquistas dos gênios que estão por trás de pequenas empresas de alta tecnologia como o Facebook, ou do grande número de pequenas empresas de biotecnologia em Boston (Estados Unidos) ou Cambridge (Reino Unido). O “atraso” da Europa em relação aos Estados Unidos costuma ser atribuído a um setor de capital de risco fraco. Exemplos desses setores de alta tecnologia nos Estados Unidos são frequentemente usados para justificar por que precisamos de menos Estado e mais mercado: inclinando a balança a favor do mercado, a Europa poderia produzir seus próprios “Googles”. Mas quantas pessoas sabem que o algoritmo que levou ao sucesso do Google foi financiado por um subsídio de uma agência do setor público, a Fundação Nacional de Ciência (NSF)? (Batelle, The Search, 2005). Ou que os anticorpos moleculares, que forneceram as bases para a biotecnologia antes da entrada do capital de risco no setor, foram descobertos em laboratórios públicos, do Conselho de Pesquisa Médica (MRC), no Reino Unido? Quantas pessoas percebem que muitas das mais jovens e inovadoras empresas americanas foram financiadas não pelo capital de risco privado, mas pelo capital de risco público, como o que é oferecido pelo programa de Pesquisa para a Inovação em Pequenas Empresas (SBIR)?

As lições dessas experiências são importantes. Elas obrigam o debate a ir além do papel do Estado no estímulo à demanda, ou da preocupação de “escolher os vencedores”. Em vez disso, o que temos é um caso de Estado direcionado, proativo, empreendedor, capaz de assumir riscos e criar um sistema altamente articulado que aproveita o melhor do setor privado para o bem nacional em um horizonte de médio e longo prazo. É o Estado agindo como principal investidor e catalisador, que desperta toda a rede para a ação e difusão do conhecimento. O Estado pode e age como criador, não como mero facilitador da economia do conhecimento.

A defesa de um Estado empreendedor não é uma “nova” política industrial porque de fato é o que aconteceu. Como explicaram tão bem Block e Keller (2011, State of Innovation, p. 95), as diretivas industriais do Estado são “escondidas” basicamente para evitar uma reação da direita conservadora. São abundantes as evidências do papel crucial do Estado na história da indústria de computadores, da internet, da indústria farmacêutica-biotecnológica, da nanotecnologia e do setor da tecnologia verde. Em todos esses casos, o Estado ousou pensar — contra todas as probabilidades — no “impossível”: criando novas oportunidades tecnológicas; fazendo os investimentos iniciais, grandes e fundamentais; permitindo que uma rede descentralizada desenvolvesse a pesquisa arriscada; e depois possibilitando que o processo de desenvolvimento e comercialização ocorresse de forma dinâmica.”

 

 

“Economistas dispostos a admitir que o Estado tem um papel importante costumam apresentar seus argumentos usando uma estrutura específica chamada “falha do mercado”. Segundo essa perspectiva, o fato de os mercados serem “imperfeitos” é visto como a exceção, o que significa que o Estado tem um papel a cumprir — porém não muito interessante. As imperfeições podem surgir por vários motivos: a falta de vontade das empresas privadas de investirem em determinadas áreas, como pesquisa básica, nas quais não podem auferir lucros porque os resultados são um “bem público” acessível a todas as empresas (resultados de P&D básicos são uma externalidade positiva); o fato de as empresas privadas não incluírem o custo da poluição causada por elas ao fixarem seus preços (a poluição é uma externalidade negativa); ou o fato de que o risco de certos investimentos é alto demais para que uma única empresa possa arcar com ele (levando a mercados incompletos). Considerando essas diferentes formas de falhas do mercado, exemplos do papel que se espera do Estado incluiriam pesquisa básica financiada com recursos públicos, cobrança de impostos das empresas poluidoras e financiamento público para projetos de infraestrutura. Apesar de útil, essa argumentação não consegue explicar o papel estratégico “visionário” exercido pelo governo ao fazer esses investimentos. A descoberta da internet ou o surgimento da indústria da nanotecnologia não ocorreram porque o setor privado queria algo mas não conseguia encontrar os recursos para investir. Elas aconteceram devido à visão que o governo tinha de uma área que ainda não havia sido sondada pelo setor privado. Mesmo depois da introdução dessas novas tecnologias pelo governo, o setor privado continuou a mostrar muito receio de investir. O governo precisou inclusive apoiar a comercialização da internet. E passaram-se anos até que os investidores capitalistas começassem a financiar empresas de biotecnologia e nanotecnologia. Foi o Estado — nesse e em tantos outros casos — que demonstrou ter um “espírito animal” mais agressivo.

Existem vários contraexemplos que poderiam ser usados para caracterizar o Estado como muito distante de uma força “empreendedora”. Afinal de contas, o desenvolvimento de novas tecnologias e o apoio a novas indústrias não são o único papel do Estado. Mas a admissão das circunstâncias em que ele desempenhou um papel empreendedor dará subsídios para políticas, que muitas vezes se baseiam na suposição de que o papel do Estado é corrigir as falhas do mercado ou facilitar a inovação para o “dinâmico” setor privado. Essas suposições de que tudo o que o Estado tem de fazer é “dar um empurrãozinho” no setor privado na direção correta; que os créditos fiscais funcionarão porque o empresariado está ansioso para investir em inovação; que a remoção de obstáculos e a regulação é necessária; que as pequenas empresas, simplesmente por causa de seu tamanho, são mais flexíveis e empreendedoras e deveriam receber apoio direto e indireto; que o principal problema da Europa é mera questão de “comercialização”, não passam de mitos. Mitos sobre a origem do empreendedorismo e da inovação. Mitos que impediram que algumas políticas fossem tão eficientes quanto poderiam ter sido para estimular o tipo de inovação que o empresariado não teria tentado por conta própria.”

 

 

“É ingenuidade esperar que o capital de risco invista nos estágios iniciais e mais arriscados de qualquer novo setor da economia atualmente (como a energia limpa). Na biotecnologia, nanotecnologia e internet, o capital de risco chegou quinze ou vinte anos depois que os investimentos mais importantes foram feitos com recursos do setor público.

A história mostra que essas áreas do cenário de risco (dentro dos setores, em qualquer momento; e no início, quando novos setores estão surgindo), que são definidas pelo grande investimento financeiro, alto nível tecnológico e grande risco mercadológico, tendem a ser evitadas pelo setor privado e têm exigido grandes montantes de financiamento (de diferentes tipos) do setor público, assim como a visão e o espírito de liderança do setor público para decolar. O Estado está por trás da maioria das revoluções tecnológicas e longos períodos de crescimento. É por isso que um “Estado empreendedor” é necessário para assumir o risco e a criação de uma nova visão, em vez de apenas corrigir as falhas do mercado.

A falta de entendimento do papel desempenhado pelos vários atores faz com que o governo se torne “presa” fácil de interesses especiais que desempenham seu papel de uma forma retórica e ideológica que carece de evidências ou razão. Embora os investidores capitalistas tenham feito muita pressão para reduzir os impostos sobre os ganhos de capital (já mencionada), eles não investem em novas tecnologias com base nas alíquotas; fazem seus investimentos baseados na percepção de risco, algo reduzido em décadas pelo investimento prévio do Estado. Sem um melhor entendimento dos atores envolvidos no processo de inovação, corremos o risco de permitir que um sistema de inovação simbiótico, em que o Estado e o setor privado se beneficiam mutuamente, se transforme em um sistema parasitário, no qual o setor privado consegue sugar benefícios de um Estado que ao mesmo tempo se recusa a financiar.”

 

 

Atualmente, costuma-se falar dos “sistemas” de inovação como “ecossistemas”. Na verdade, esse termo parece estar na ponta da língua de muitos formuladores de políticas e de especialistas em inovação. Mas como podemos ter certeza de que o ecossistema de inovação resultará em uma relação simbiótica entre o setor público e o privado, e não em uma relação parasitária? Isto é, o aumento dos investimentos por parte do Estado no ecossistema de inovação fará com que o setor privado invista menos, usando os lucros acumulados para financiar ganhos imediatos (através de práticas como a “recompra de ações”), ou mais, em áreas mais arriscadas como formação de capital e P&D, para promover o crescimento no longo prazo?”

 

 

Um dos maiores problemas, ao qual voltaremos no capítulo 9, tem sido a forma como essa redução nos gastos com P&D vem coincidindo com um aumento da “financeirização” do setor privado. Embora a causalidade possa ser difícil de provar, não se pode negar que ao mesmo tempo em que têm reduzido o volume de pesquisa, as empresas farmacêuticas têm aumentado o volume de recursos usados para recomprar suas próprias ações — estratégia utilizada para aumentar o preço de suas ações, o que afeta a cotação das opções de ações e os salários dos executivos ligados a tais opções. Em 2011, por exemplo, junto com 6,2 bilhões de dólares pagos em dividendos, a Pfizer recomprou 9 bilhões de dólares em ações, soma equivalente a 90% de sua receita líquida e 99% de seus gastos com P&D. A Amgen, a maior empresa biofarmacêutica do mundo, tem recomprado ações anualmente desde 1992, em um total de 42,2 milhões de dólares até 2011, incluindo 8,3 bilhões apenas em 2011. Desde 2002, o custo da recompra das ações da Amgen superou as despesas da empresa em P&D em todos esses anos, com exceção de 2004, e no período 1992-2011 foi equivalente a 115% dos gastos com P&D e a 113% da receita líquida (LAZONICK e TULUM, US Biopharmaceutical Finance and the Sustainability of the Biotech Business Model, 2011). O fato de as principais empresas farmacêuticas estarem gastando cada vez menos em P&D, enquanto o Estado está gastando mais — ao mesmo tempo em que aumentam as quantias despendidas em recompra de ações —, torna esse ecossistema de inovação específico muito mais parasitário do que simbiótico. Isso não é efeito do crowding out: isso é parasitismo. Os esquemas de recompra de ações fazem a cotação disparar, beneficiando os altos executivos, administradores e investidores que detêm a maioria das ações da empresa. O aumento do valor das ações não gera valor (a questão da inovação), mas facilita sua extração. Os acionistas e os executivos acabam sendo “recompensados” por pegar carona na onda da inovação criada pelo Estado. (...)

Infelizmente, o mesmo problema parece estar surgindo no emergente setor da tecnologia limpa. Em 2010, o American Energy Innovation Council (AEIC), uma associação das indústrias do setor, solicitou ao governo dos Estados Unidos que triplicasse seus gastos com tecnologia limpa, desembolsando 16 bilhões de dólares anuais, mais 1 bilhão adicional para a Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Energia (LAZONICK, Academic-Industry Research Network, 2011c). Em compensação, as empresas do conselho gastaram juntas 237 bilhões de dólares na recompra de ações entre 2001 e 2010. Os principais diretores do AEIC vêm de empresas com receita líquida coletiva de 37 bilhões de dólares e gastos com P&D no valor aproximado de 16 bilhões de dólares. O fato de acreditarem que os enormes recursos de suas próprias empresas são insuficientes para promover maior inovação em tecnologia limpa dá a medida do papel do Estado como principal condutor da inovação ou de sua própria aversão pelo risco — ou ambas as coisas.

O problema da recompra das ações não é isolado. Está fora de controle: na última década, empresas do S&P 500 gastaram 3 trilhões em recompra de ações (LAZONICK, Toward an Economics of “Organizational Success”, 2012). Os maiores compradores (especialmente no setor de petróleo e farmacêutico) alegam que isso se deve à falta de novas oportunidades. Na verdade, em muitos casos, os investimentos mais dispendiosos (isto é, de capital intensivo) em novas oportunidades, como medicina e energia renovável (investimentos com alto risco tecnológico e de mercado), estão sendo feitos pelo setor público (GWEC, Global Wind Energy Council, 2012). Isso levanta a questão quanto ao fato de o modelo de “inovação aberta” estar se tornando disfuncional. Como as grandes empresas estão dependendo cada vez mais das pequenas e do setor público, tudo indica que os grandes players investem mais em ganhos no curto prazo (por meio de truques de mercado) do que nos investimentos de longo prazo.”

 

 

Há mais de 250 anos, ao discutir sua noção da “Mão Invisível”, Adam Smith argumentou que ao serem deixados por sua própria conta os mercados capitalistas se autorregulariam, com o papel do Estado ficando limitado à criação da infraestrutura básica (escolas, hospitais, estradas) e à garantia de que a propriedade privada e a “confiança” (um código moral) entre os atores fossem cuidadas e protegidas (SMITH, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, 1904 [1776]). Devido à sua formação em política e filosofia, seus escritos eram muito mais profundos do que o simples liberalismo econômico pelo qual costuma ser reconhecido, mas não há como fugir do fato de que ele acreditava que a mágica do capitalismo consistia na capacidade do mercado de organizar a produção e a distribuição sem a coerção do Estado.

O trabalho pioneiro de Karl Polanyi (que tinha um doutorado em direito, mas é considerado um economista importante), no entanto, mostrou como a noção de autorregulação do mercado é um mito sem sustentação nas origens históricas dos mercados: “O caminho para o livre mercado foi aberto e mantido assim por um gigantesco aumento do intervencionismo contínuo, centralmente organizado e controlado” (POLANYI, The Great Transformation, 2001 [1944], p. 144). Para ele, foi o Estado que impôs as condições que permitiram o surgimento de uma economia baseada no mercado. O trabalho de Polanyi foi revolucionário ao mostrar o mito da oposição entre Estado e mercado: o mais capitalista de todos os mercados, isto é, o mercado nacional, foi energicamente “forçado” a existir pelo Estado. Na verdade, os mercados local e internacional, que precederam o capitalismo, eram os menos ligados ao Estado. Mas o capitalismo, sistema que se acredita ter sido impulsionado pelo “mercado”, esteve firmemente incrustado e foi moldado pelo Estado desde o primeiro dia (EVANS, Embedded Autonomy, 1995).

John Maynard Keynes acreditava que os mercados capitalistas, independente de sua origem, precisavam ser constantemente regulados devido à instabilidade inerente ao capitalismo. Keynes sustentava que a estabilidade do capitalismo dependia do equilíbrio das quatro categorias de despesas (demanda agregada) do PIB: investimento empresarial (I), investimento governamental (G), despesas de consumo (C) e exportações líquidas (X–M). Uma fonte fundamental de extrema volatilidade encontrava-se no investimento empresarial. A razão para essa volatilidade é que, longe de ser uma simples função de taxas de juros ou impostos, 1  está sujeito ao “espírito animal” — as suposições instintivas feitas sobre as perspectivas de crescimento futuro de uma economia ou setor específico pelos investidores (KEYNES, The General Theory of Employment, Interest and Money, 1934). Em sua opinião, essa incerteza cria constantemente períodos de escassez ou de excesso de investimentos, provocando graves flutuações na economia, as quais são agravadas pelo efeito multiplicador. Segundo Keynes, a menos que o investimento privado seja equilibrado por um aumento nos gastos do governo, a queda do consumo e do investimento levará a rupturas no mercado e depressões, que na verdade eram frequentes antes que as ideias de Keynes fossem adotadas pelas políticas econômicas depois da Segunda Guerra Mundial.

Os keynesianos argumentaram vigorosamente quanto à importância do uso dos gastos governamentais para estimular a demanda e estabilizar a economia. Economistas inspirados pelo trabalho de Joseph Schumpeter (1883-1950) foram além, pedindo ao governo que gastasse também naquelas áreas específicas que aumentam a capacidade de inovação de um país (retomaremos isso mais à frente). O apoio à inovação pode tomar a forma de investimentos em P&D, infraestrutura, capacitação profissional e apoio direto e indireto a empresas e tecnologias específicas.

À esquerda do espectro político, investimentos em áreas de programas que aumentam a produtividade são menos populares do que os gastos com instituições do Estado ligadas ao bem-estar social, como saúde ou educação. Mas essas instituições não conseguem sobreviver sem ter por trás uma economia produtiva que gere lucro e receitas fiscais que possam financiar esses direitos (NORDHAUS e SHELLENBERGER, Breakthrough Journal 1, 2011; ATKINSON, Top Incomes in the Long Run of History, 2011). Embora as políticas de redistribuição progressiva sejam fundamentais para garantir que os resultados do crescimento econômico sejam justos, elas em si não geram crescimento. A desigualdade pode prejudicar o crescimento, mas a igualdade por si só não pode estimulá-lo. O que falta a boa parte da esquerda keynesiana é uma agenda de crescimento que crie e simultaneamente redistribua as riquezas. A combinação das lições de Keynes e Schumpeter pode fazer com que algo assim aconteça.”

Nenhum comentário: