Editora: Clube de Literatura Clássica
ISBN: 978-85-7448-066-4
Tradução: Priscila Catão
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 168
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Sinopse: Em um
romance de surpreendente modernidade, o grande escritor do romantismo se joga
de corpo e alma contra a pena de morte.
“— Condenado à morte! — disse à multidão; e, enquanto me levavam, toda
aquela gente se precipitou sobre meus passos com o estrondo de um edifício que
desmorona. Eu caminhava, atordoado e estupefato. Uma revolução se produzira
dentro de mim. Até a sentença de morte, eu me sentia respirar, palpitar, viver
no mesmo meio que os outros homens; agora, distinguia claramente como uma
barreira a me separar do mundo. Nada mais me aparecia sob o mesmo aspecto de
antes. Aquelas largas janelas luminosas, aquele belo sol, aquele céu puro,
aquela linda flor, tudo ficou branco e pálido, da cor de uma mortalha. Os
homens, mulheres e crianças que se amontoavam à minha passagem, pareciam
fantasmas.”
“Condenado
à morte!
Afinal,
por que não? “Os homens”, lembro de ter lido não sei em qual livro, mas que só
havia isso de bom, “os homens são todos condenados à morte com protelações
indefinidas.” O que haveria, assim, de tão diferente em minha situação?
Desde
a hora em que minha sentença foi pronunciada, quantos dos que se preparavam
para uma longa vida morreram! Quantos dos que esperavam, jovens, livres e
saudáveis, ir ver cair minha cabeça em tal dia na Place de Grève4,
anteciparam-se a mim! Quantos, daqui até lá, que andam e respiram ao ar livre,
que entram e saem à vontade, talvez me precedam também!
Além
disso, o que me oferece a vida para que eu lamente tanto ser privado dela? Na
verdade, o dia sombrio e o pão negro do cárcere, a porção de sopa magra na
tigela dos condenados às galés, ser tratado com aspereza, eu que sou refinado
pela educação, ser brutalizado por carcereiros e guardas, não ver um ser humano
que me julgue digno de ouvir ou de emitir-lhe uma palavra, estremecer o tempo
todo por aquilo que fiz e por aquilo que me farão: eis aí quase os únicos bens
que o carrasco pode me tirar.
Ah!
Mas não importa, é horrível!”
4
Praça onde se realizavam as execuções, e onde, durante a Revolução, foi usada a
guilhotina pela primeira vez.
“Nos primeiros dias trataram-me com uma doçura que me era horrível. As
atenções de um carcereiro cheiram a cadafalso. Por sorte, ao cabo de poucos
dias, o hábito prevaleceu; confundiram-me com os outros prisioneiros numa comum
brutalidade, sem mais aquelas não costumeiras distinções de polidez que me
punham sempre a figura do carrasco diante dos olhos.”
“Enquanto
o dia ainda não aparece, o que fazer da noite? Tive uma ideia. Levantei-me e
aproximei a lamparina das quatro paredes da minha cela. Estão cobertas de
escritos, desenhos, figuras bizarras, nomes que se misturam e se apagam uns aos
outros. Parece que cada condenado quis deixar um vestígio, aqui pelo menos. São
traços de lápis, giz, carvão, letras pretas, brancas, cinzas, muitas vezes
profundos entalhes na pedra, aqui e ali caracteres enferrujados como que
escritos a sangue. Se eu tivesse o espírito mais livre, por certo me
interessaria por esse livro estranho que se desenvolve página a página ante
meus olhos, em cada pedra deste cárcere. Gostaria de compor novamente um todo
com esses fragmentos de pensamento, espalhados na pedra; de reencontrar cada
homem sob cada nome; de devolver o sentido e a vida a essas inscrições
mutiladas, a essas frases desmembradas, a essas palavras truncadas, corpos sem
cabeça como daqueles que as escreveram.
À
altura da minha cabeceira há dois corações inflamados, atravessados por uma
flecha, e acima Amor por toda a vida. O infeliz não assumia um longo
compromisso.”
“Ah! Como a prisão é abjeta! Há nela um
veneno que tudo suja. (...) quando se encontra um pássaro na prisão, há lama em
sua asa; quando se colhe e se cheira uma bela flor, ela fede.”
“Estou calmo agora. Tudo está terminado, bem terminado. Saí da horrível
ansiedade em que me lançou a visita do diretor. Pois, confesso, eu ainda tinha
esperança. Agora, graças a Deus, não espero mais.
Eis
o que acaba de se passar:
No
momento em que soaram seis e meia, não, eram só seis e um quarto, a porta do
meu cárcere voltou a se abrir. Um velho de cabeça branca, vestindo uma capa
castanha, entrou. Entreabriu a capa; vi uma batina, um peitilho. Era um padre.
Esse
padre não era o capelão da prisão, o que me pareceu sinistro.
Sentou-se
à minha frente com um sorriso benévolo; depois sacudiu a cabeça e ergueu os
olhos ao céu, ou seja, à abóbada do cárcere. Compreendi.
—
Meu filho — ele me disse —, está preparado?
Respondi-lhe
com uma voz fraca:
—
Não estou preparado, mas estou pronto.”
“Eis
então que fui transferido, como dizem os autos.
Mas
vale a pena contar a viagem.
Eram
sete e meia quando o meirinho se apresentou novamente na entrada do meu
cárcere.
—
Senhor, eu o espero — ele me disse.
Ai
de mim, ali estavam ele e os outros.
Levantei-me,
dei um passo; achei que não poderia dar o segundo, tão pesada estava a minha
cabeça e tão fracas as pernas. Mas me recompus e continuei com um andar
bastante firme. Antes de sair da cela. Mirei-a uma última vez — eu amava minha
masmorra. Depois a deixei vazia e aberta, o que lhe dava um aspecto singular.
Mas
não ficará assim por muito tempo. Alguém é esperado ali esta noite, disseram os
guarda-chaves, um condenado que o tribunal está acabando de julgar.
No
corredor, o capelão juntou-se a nós. Ele acabara de fazer seu desjejum.
Ao
sairmos da prisão, o diretor apertou-me afetuosamente a mão e reforçou minha
escolta de quatro veteranos.
Ao
passar diante da enfermaria, um velho moribundo gritou-me: Até breve!
Chegamos
ao pátio. Respirei; isso me fez bem.
Não
caminhamos por muito tempo ao ar livre. Uma viatura puxada por cavalos estava
estacionada no primeiro pátio; era a mesma viatura que havia me trazido, uma espécie
de cabriolé oblongo, dividido em duas seções por uma grade transversal de arame
tão espesso que parecia tricotado. As duas seções têm cada qual uma porta, uma
na frente, a outra atrás. Tudo tão escuro, sujo e empoeirado que o carro
fúnebre dos pobres, em comparação, é um carro de luxo.
Antes
de entrar nesse túmulo de duas rodas, lancei um olhar ao pátio, um desses
olhares desesperados diante dos quais parece que as paredes vão desabar. O
pátio, uma pequena praça plantada de árvores, estava ainda mais cheia de
espectadores do que para os galerianos. Era já a multidão!
Como
no dia da partida dos galerianos, caía uma chuva própria da estação, uma chuva
fina e gelada que ainda cai neste momento em que escrevo, que certamente cairá
o dia todo, que vai durar mais do que eu.”
“São
dez horas.
Ó
minha pobre filha! Mais seis horas e estarei morto! Serei uma coisa imunda que
colocarão na mesa fria dos anfiteatros; de um lado, uma cabeça que será
moldada, de outro, um tronco que será dissecado. O que restar será posto num
caixão e levado ao cemitério de Clamart.
Eis
o que farão de teu pai, esses homens. Nenhum dos quais me odeia, homens que têm
pena de mim e que poderiam me salvar. Vão me matar. Compreende isso, Marie?
Matar-me a sangue frio, em cerimônia, para o bem de todos! Ah, grande Deus!
Pobre
menina! Teu pai que te amava tanto, que beijava teu pescocinho branco e
perfumado, que passava a mão nos cachos sedosos dos teus cabelos, que pegava
teu lindo rosto redondo nas mãos, que te fazia saltar sobre os joelhos e à
noite juntava tuas mãos para rezar a Deus!
Quem
te fará tudo isso agora? Quem te amará? Todas as crianças da tua idade terão
pais, com exceção de ti. Como esquecerás, minha criança, o dia do aniversário,
os belos presentes, os bombons e os beijos? Como esquecerás, pobre órfã, quem
te fazia beber e comer?”
“—
Ninguém é ruim só pelo prazer de ser ruim.”
“Fechei
os olhos e pus as mãos em cima, procurei esquecer, esquecer o presente no
passado. Enquanto divago, as lembranças da minha infância e da minha juventude
retornam uma por uma, doces, calmas, sorridentes, como ilhas de flores nesse
abismo de pensamentos negros e confusos que turbilhonam no meu cérebro.
Revejo-me
criança, escolar risonho e puro, brincando, correndo, gritando com meus irmãos
na grande aleia daquele jardim selvagem onde se passaram meus primeiros anos,
antiga abadia de religiosas junto à igreja do Val-de-Grâce36, com
seu domo sombrio.
Quatro
anos mais tarde, estou ainda ali, sempre criança, mas sonhador e apaixonado. Há
uma menina no jardim solitário.
A
espanholita de olhos grandes e cabelos compridos, pele morena e dourada, lábios
vermelhos e faces rosadas, a andaluza de catorze anos, Pepa.
Nossas
mães nos disseram para brincar juntos: fomos passear ali.
Disseram-nos
para brincar, e conversamos, crianças da mesma idade, não do mesmo sexo.
No
entanto, havia um ano apenas corríamos, lutávamos juntos. Eu disputava com
Pepita a mais bela maçã da macieira; golpeava-a por um ninho de pássaro. Ela
chorava, eu dizia: Bem feito! E íamos os dois nos queixar junto de nossas mães,
que nos repreendiam em voz alta e nos davam razão em voz baixa.
Agora
ela se apoia em meu braço e estou orgulhoso e comovido. Caminhamos lentamente,
falamos em voz baixa. Ela deixa cair o lenço, eu o recolho. Nossas mãos tremem
ao se tocarem. Ela me fala dos passarinhos, da estrela que se vê lá adiante, do
pôr do sol vermelho atrás das árvores, ou então de suas amigas de pensionato,
de seu vestido e de suas fitas. Dizemos coisas inocentes e coramos os dois. A
menina está virando mocinha.
Naquele
entardecer — era um dia de verão — estávamos sob as castanheiras, no fundo do
jardim. Após um dos longos silêncios que preenchiam nossos passeios, ela deixou
de repente meu braço: Vamos correr!
Ainda
a vejo, estava vestida de preto, de luto por sua avó. Passou-lhe pela cabeça
uma ideia de criança, Pepa voltou a ser Pepita e me disse: Vamos correr!
E
pôs-se a correr diante de mim com sua cintura fina como a de uma abelha e com
seus pezinhos que erguiam o vestido até a metade da perna. Eu a perseguia, ela
fugia: o vento da corrida levantava por momentos a pelerine preta e deixava-me
ver seus ombros morenos e bonitos.
Eu
estava fora de mim. Alcancei-a perto do velho poço em ruínas; peguei-a pela
cintura, com o direito de vitória, e a fiz sentar-se num banco de relva. Ela
não resistiu. Estava ofegante e ria. Eu estava sério e olhava suas pupilas
negras através de seus cílios negros.
—
Sente-se aí — ela me disse. — Ainda há claridade, vamos ler alguma coisa. Tem
um livro?
Eu
trazia comigo o segundo tomo das Viagens de Spallanzani37. Abri ao acaso, me aproximei
dela, que apoiou seu ombro ao meu, e passamos a ler cada um por seu lado, em
silêncio, a mesma página. Antes de virar a folha, ela era sempre obrigada a me
esperar. Meu espírito era mais lento do que o dela.
—
Terminou? — ela me dizia, quando eu estava apenas no começo.
No
entanto nossas cabeças se tocavam, nossos cabelos se misturavam, nossos hálitos
aos poucos se aproximaram e, de repente, nossas bocas.
Quando
quisemos continuar nossa leitura, o céu estava estrelado.
—
Oh, mamãe, mamãe — disse ela ao voltar para casa —, se soubesse como corremos!
Fiquei
em silêncio.
—
Você não diz nada? — falou minha mãe. — Parece triste.
Eu
tinha o paraíso no coração.
Foi
um anoitecer que lembrarei por toda a minha vida.
Por
toda a minha vida!”
36
Igreja parisiense.
37
Lazzaro Spallanzani (1729-1798), biólogo italiano. O livro mencionado é Viaggi alle Due Sicilie e in alcune parti
dell’Appennino, publicado em cinco volumes.
“É
uma hora e quinze da tarde.
Eis
o que sinto agora:
Uma
violenta dor de cabeça. A barriga fria, a testa ardendo. Toda vez que me
levanto ou me inclino, um líquido parece que flutua no meu cérebro e faz bater
os miolos contra as paredes do crânio.
Tenho
tremores convulsivos, e de vez em quando a pena cai de minhas mãos como por um
choque galvânico.
Meus
olhos ardem como se eu estivesse na fumaça.
Meus
cotovelos doem.
Mais
duas horas e quarenta e cinco minutos e estarei curado.”
“Era
a minha vez. Subi com uma atitude bastante firme.
—
Ele vai bem! — disse uma mulher ao lado dos guardas.
Esse
elogio atroz me deu coragem. O padre veio colocar-se junto a mim. Sentaram-me
na banqueta traseira, de costas para o cavalo. Estremeci com essa última
atenção.
Eles
põem humanidade na cerimônia.
Quis
olhar ao meu redor. Guardas à frente, guardas atrás; e depois multidão,
multidão, multidão, um mar de cabeças na praça.
Um
piquete de guardas a cavalo me esperava no portão gradeado do Palácio.
O
oficial deu a ordem. A carroça e seu cortejo puseram-se em movimento, como que
empurrados à frente pelos berros da populaça.
Atravessamos
o portão. No momento em que a carroça tomou a direção da Pont-au-Change, a
praça explodiu num clamor, do pavimento aos telhados, e as pontes e as ruas
responderam como num tremor de terra.
Foi
aí que o piquete que esperava juntou-se à escolta.
—
Tirem o chapéu! Tirem o chapéu! — gritavam milhares de bocas ao mesmo tempo. —
Como se fosse para o rei.
Então
ri horrivelmente e disse ao padre:
—
Eles tiram o chapéu; eu minha cabeça.
Seguíamos
devagar.
As
bancas de flores junto ao rio perfumavam o ar; é dia de feira. Os vendedores
deixaram seus ramalhetes por mim.
Defronte,
pouco antes da torre quadrada que faz esquina com o Palácio, há restaurantes
cujas sobrelojas estão cheias de espectadores satisfeitos com seus bons
lugares. Principalmente mulheres. O dia deve ser lucrativo para os donos de
restaurantes.
Alugavam-se
mesas, cadeiras, charretes. Tudo repleto de espectadores. Comerciantes de
sangue humano gritavam a plenos pulmões:
—
Quem quer um lugar?
Senti
raiva contra esse povo. Tive vontade de gritar-lhes:
—
Quem quer o meu?”
“No final da ponte, mulheres me lamentaram
por eu ser tão jovem.
O lugar fatal se aproximava. Eu começava a
não mais ver, a não mais ouvir. Todas aquelas vozes, aquelas cabeças nas
janelas, nas portas, nos postes de luz, aqueles espectadores ávidos e cruéis,
aquela multidão em que todos me conheciam e na qual eu não conhecia ninguém,
aquele caminho pavimentado e murado de rostos humanos... Sentia-me bêbado,
estúpido, insano. É uma coisa insuportável o peso de tantos olhares postos em
nós.”
Um comentário:
Pude ler este livro na edição do Clube de Literatura Clássica.
Porém, os trechos que encontrei eram da tradução da L&PM. Eventualmente fiz algumas interpolações de uma tradução na outra.
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