segunda-feira, 3 de julho de 2023

O Estado empreendedor: desmascarando o mito do setor público vs. setor privado (Parte III), de Mariana Mazzucato

Editora: Portfolio Penguin

ISBN: 978-85-8285-003-9

Tradução: Elvira Serapicos

Opinião: ★★☆☆☆

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Páginas: 318

Sinopse: Ver Parte I



“As novas tecnologias energéticas alteram os meios pelos quais a energia é produzida, e o custo da energia que produzem costuma ser mais alto do que o das tecnologias tradicionais quando outros fatores (como o impacto ambiental) não são calculados ou custeados pelos produtores de energia. Os pesquisadores militares recebem uma “incumbência” clara que precisam cumprir sem se preocupar muito ou quase nada com os custos, já que o governo “não se importa” com preços e pode agir como o líder em aquisição de inovação. No campo energético, o conflito continuará centrado no que cada país prevê como estratégia para atender às suas necessidades energéticas futuras, bem como objetivos sociais e econômicos antagônicos, tais como maximizar o potencial exportador ou priorizar a emissão zero de carbono.

Os Estados Unidos adotaram uma abordagem do tipo “financiar tudo” com a esperança de que mais cedo ou mais tarde surjam tecnologias energéticas inovadoras e economicamente viáveis. O problema de usar a mudança do clima como justificativa básica para investir em tecnologias energéticas é que essa não é a única questão ambiental importante hoje. É também uma questão que pode ser parcialmente “resolvida” com a ajuda de tecnologias não renováveis, como a energia nuclear e o sequestro de carbono. É realmente isso que desejamos? A implantação de recursos destinados a facilitar o processo de inovação deve ocorrer aliada à coragem de fixar uma direção tecnológica e segui-la. Deixar que o “mercado” fixe essa direção só garante que a transição energética será adiada até que o preço dos combustíveis fósseis atinjam preço estratosféricos.

 

Impulsionando — não adiando — o desenvolvimento verde

A história dos investimentos americanos em inovação, da internet à nanotecnologia, mostra que foi fundamental para o governo ter os pés tanto na pesquisa básica quanto na aplicada. Os laboratórios do National Institute of Health (NIH), responsável por 75% dos medicamentos mais radicais, realizam pesquisas aplicadas. Em ambos os casos, o governo faz o que o setor privado não está disposto a fazer. O financiamento do Estado faz as coisas acontecerem. Os 10 bilhões de dólares injetados no NIH pelo ARRA estão, segundo Michael Grunwald, “impulsionando descobertas fantásticas na pesquisa do câncer, Alzheimer, em genômica e muito mais” (ANDERSEN, The ‘Silent Green Revolution’ Underway at the Department of Energy, 2012). Por isso, a suposição de que se pode deixar a pesquisa aplicada para o setor empresarial e que isso irá gerar inovação não tem muita base de sustentação (e pode inclusive privar alguns países de descobertas importantes). A questão é: qual pesquisa aplicada será feita e quem irá fazer?

Um “empurrãozinho” nas economias não irá favorecer a explosão de uma “revolução verde”. Os países que se agarram à falsa ideia de que o investimento do governo tem uma espécie de ponto de equilíbrio natural com o setor empresarial perderão a oportunidade de aproveitar uma transição energética histórica ou serão obrigados a importá-la. Na verdade, as atividades governamentais e empresariais costumam se sobrepor. Os negócios de tecnologia limpa, como a maioria dos negócios, estão propensos a requerer subsídios e P&D realizado pelo governo em seus respectivos setores. Já disse que o capital de risco e os “empreendedores” respondem ao apoio governamental, que escolhe as tecnologias nas quais vai investir, mas raramente focam no longo prazo.

A tão necessária revolução verde apresenta um sério problema: dada a aversão ao risco do setor empresarial, os governos precisam manter o financiamento da pesquisa por ideias radicais que levem à revolução industrial verde. Os governos têm um papel de liderança a desempenhar no apoio ao desenvolvimento de tecnologias limpas além dos estágios de protótipos até sua viabilização comercial. Para alcançar a “maturidade” tecnológica é preciso mais apoio para preparar, organizar e estabilizar um “mercado” saudável, em que o investimento tenha uma margem de risco razoavelmente baixa e o lucro seja possível. Muitas das ferramentas para que isso seja feito já estão implantadas em todo o mundo, mas onde a estratégia, as ferramentas e os impostos são abundantes, a vontade política costuma ser o recurso crítico mais escasso. Sem a coragem e o comprometimento das economias mais ricas, que são também algumas das maiores poluidoras, a retirada do apoio a tecnologias fundamentais em períodos economicamente difíceis talvez seja uma receita para o desastre.

A verdadeira coragem está naqueles países que usam os recursos do governo para dar um “empurrão” sério nas tecnologias limpas, comprometendo-se com objetivos e financiamento para a realização de tarefas aparentemente impossíveis. Coragem é a tentativa da China de construir um mercado do tamanho da rede elétrica dos Estados Unidos e Europa para as turbinas eólicas até 2050 e aumentar seu mercado de painéis solares fotovoltaicos em 700% em apenas três anos. Coragem é também a entrada dos bancos de desenvolvimento nos setores em que os bancos comerciais têm dúvidas, promovendo o desenvolvimento, o crescimento das empresas e um retorno do investimento para os contribuintes que é mais fácil de rastrear. É importante que o dinheiro dos impostos seja rastreável na promoção de tecnologias e geração de retornos. O sucesso aumenta as probabilidades de apoio a outra rodada de investimentos arriscados e gera mais visibilidade para o papel positivo que o governo pode ter ao promover a inovação.”

 

 

Enquanto isso, a ascensão da China como centro regional dos principais fabricantes de painéis solares fotovoltaicos teve sérias consequências sobre o setor como um todo, levando a uma “guerra comercial” nos Estados Unidos e na Europa que se manifestou na forma de tarifas contra os produtos chineses.6 Mas enquanto as empresas americanas e europeias estão sem condições de competir, o governo americano, por exemplo, reagiu apontando a necessidade de acabar com o apoio ao desenvolvimento da energia limpa quando a situação indica que ela é mais necessária do que nunca. A guerra comercial serve apenas para reforçar o mito de que o desenvolvimento industrial ocorre por intermédio das forças invisíveis do mercado, que não podem ser criadas ou controladas pelo governo para a obtenção de resultados socialmente benéficos. Com o governo agindo como “juiz” na disputa comercial, o apoio público da China ao desenvolvimento da indústria de tecnologia limpa é rotulado de “roubo” em vez de eficácia. Ao mesmo tempo, muitos países estão tentando fisgar o mercado global de tecnologia limpa com políticas semelhantes, que incluem apoio direto e indireto às empresas; em outras palavras, se a China está roubando, eles também estão. A queda dos preços dos painéis solares fotovoltaicos deveria ser uma coisa boa — acabará criando uma competição favorável com os combustíveis fósseis. Mas nesse caso, a queda dos preços (e a redução da margem de lucro) causa frustração e ignora as deficiências da política industrial em países como os Estados Unidos, que poderíamos descrever como carente de capital paciente propício à formação e ao crescimento de empresas inovadoras, assim como de uma visão de longo prazo para a transição energética (Hopkins e Lazonick, 2012). O que separa a China de seus pares internacionais é a coragem de se comprometer com a inovação e a energia renovável no curto e no longo prazo.”

6. Neste momento, a Europa ainda está indecisa em relação às tarifas.

 

 

Fala-se muito na parceria entre o governo e o setor privado, mas enquanto os esforços são coletivos, o retorno continua privado. É certo que a National Science Foundation não tenha colhido nenhum retorno financeiro da subvenção que produziu o algoritmo que levou ao mecanismo de busca do Google (Block, 2011, p. 23). Pode um sistema de inovação baseado no apoio do governo ser sustentável sem um sistema de recompensas? A falta de conhecimento público do papel empreendedor fundamental desempenhado pelo governo no crescimento de economias de todo o mundo, além da gestão de demanda keynesiana e “criando condições” para o crescimento, está pondo o modelo bem-sucedido em grande perigo.

Teoricamente, a geração socializada e a comercialização privatizada das tecnologias biofarmacêuticas — e outras — poderiam ser acompanhadas de uma retirada do Estado se as empresas privadas usassem seus lucros para reinvestir em pesquisa e posterior desenvolvimento de produto. O papel do Estado se limitaria então ao apoio inicial às descobertas radicalmente novas até que elas gerassem lucros que pudessem financiar outras descobertas. Mas o comportamento do setor privado sugere que as instituições públicas não podem passar o bastão dos projetos de P&D dessa maneira. Também sugere que o papel do Estado não pode se limitar ao plantio das sementes para que depois elas cresçam livremente — se está interessado no crescimento econômico e na mudança tecnológica, deve estar disposto a apoiar as tecnologias até que possam ser produzidas em massa e implantadas amplamente. E é claro que a atuação ampla do Estado em áreas tão diversas quanto “segurança”, atenção ao cumprimento de contratos e redução da desigualdade mostram que o “banco do passageiro” — independentemente do jogo da inovação — não é uma escolha a ser considerada.

Muitos dos problemas enfrentados atualmente pela administração Obama se devem ao fato de que os contribuintes americanos desconhecem que seus impostos fomentam as inovações e o crescimento econômico do país; eles não percebem que as corporações estão ganhando dinheiro com inovação que foi financiada com seus impostos. E essas corporações não estão devolvendo uma parte dos lucros para o governo nem investindo em inovação (MAZZUCATO, The Limits to the 3% R&D Target in Europe, 2010). A história que os contribuintes ouvem é que o crescimento econômico e a inovação são obtidos graças a indivíduos “geniais”, “empreendedores” do Vale do Silício, investidores ou “pequenas empresas”, desde que a legislação seja negligente (ou inexistente) e os impostos baixos — principalmente quando comparada ao “Grande Estado” por trás de boa parte da Europa. Essas histórias também estão sendo contadas no Reino Unido, onde se argumenta que a única alternativa para o país crescer é através da liderança da iniciativa privada, com o Estado retomando um papel mínimo na garantia do estado de direito.”

 

 

O paradoxo dos milagres na economia digital: por que o sucesso empresarial resulta em miséria econômica regional?

A recessão de 2008 ajudou a revelar a queda brutal da competitividade americana, que estava dormente por vários motivos até a chegada da crise financeira. O elevado nível de endividamento do estado da Califórnia é apenas o sintoma de uma epidemia maior. Bem antes do agravamento da crise, um grupo de senadores americanos solicitara à Academia Nacional de Ciências (NAS) que montasse uma equipe de especialistas com o objetivo de identificar as razões para o declínio da competitividade dos Estados Unidos. A comissão deveria fornecer recomendações políticas que ajudassem o país a ressurgir como líder mundial em ciência e tecnologia. Em 2005, a comissão da NAS entregou suas recomendações em um documento de quinhentas páginas intitulado Rising above the Gathering Storm [Elevando-se acima da tempestade], o qual declarava que as intervenções do Estado eram a solução necessária e fundamental para o reposicionamento do país como líder da capacidade de inovação. Em 2010, as recomendações políticas da NAS foram revisitadas e um relatório concluiu que era necessária a ação imediata para interromper a tendência e minimizar a repercussão da queda constante da competitividade americana.

A declaração de Augustine na abertura deste capítulo chama a atenção para o impressionante clima de inovação que existia na Califórnia — clima que beneficiou significativamente empresas como a Apple. A inovação e a criatividade propagadas por esse ambiente deveu-se em grande parte aos investimentos diretos e ao comissionamento do governo e dos militares americanos nas áreas de comunicação e tecnologia da informação. O que se pretende com o uso do dinheiro dos impostos no desenvolvimento de novas tecnologias é assumir o risco que normalmente acompanha a busca por produtos complexos e inovadores e sistemas necessários para alcançar objetivos comuns. É esse risco considerável que costuma servir de desestímulo para o investimento do setor privado. Na teoria, os efeitos da inovação bem-sucedida, que leva a um resultado superior, deveriam ser vistos e sentidos na economia mais ampla. Como resultados superiores levam a novos produtos e/ou serviços que, por sua vez, melhoram a qualidade de vida, criam novas oportunidades de emprego, aumentam significativamente as exportações e a competitividade do país e depois levam a um incremento significativo da receita fiscal, costuma-se acreditar que os investimentos em inovação acabariam sendo reinvestidos em ativos tangíveis e intangíveis do país.

Através desse ciclo ascendente de multiplicação dos investimentos do Estado na base científica e tecnológica, a economia nacional abriria o caminho para a prosperidade sustentável no futuro. Ainda assim, a ironia desses sucessos é que, enquanto empresas como Apple, Google, GE, Cisco etc. estão prosperando financeiramente, a economia de seu país está lutando para encontrar uma saída para questões problemáticas como o crescente déficit comercial em relação às economias asiáticas, a queda das atividades de produção, aumento do desemprego, ampliação do déficit orçamentário, desigualdade e deterioração da infraestrutura etc. A atual crise econômica não pode ser explicada unicamente pela crise bancária, a retração do crédito e o colapso do mercado de hipotecas. Os problemas enfrentados hoje são estruturalmente complexos e muito mais profundos. É importante avaliar os efeitos da inovação, se resultaram em um aumento no número de novos empregos que pagam salários razoáveis ou melhores, um aumento nas receitas fiscais, e/ou um aumento na exportação de bens e serviços de alto valor. Décadas de investimento governamental na base científica e tecnológica fizeram dos Estados Unidos um inovador bem-sucedido, mas paradoxalmente não conseguiram garantir altos níveis de emprego, aumentar as receitas fiscais e promover a exportação de bens e serviços. A Apple é o principal exemplo de como e por que a economia americana vive esse paradoxo.

Existem questões políticas interessantes a ser levantadas em resposta ao crescente interesse e pesquisa a respeito do sucesso de produtos inovadores da Apple e de outras empresas de tecnologia. Como afirmou Lazonick (2009), o Modelo Econômico da Velha Economia foi fundamental para criar a era de ouro da revolução tecnológica fordista/produção em massa, com o capital, trabalho e Estado compartilhando seu potencial e benefícios. Foi uma era em que a “estabilidade no emprego” e o crescimento da renda real eram mais importantes do que a insegurança e a possibilidade de ficar milionário da noite para o dia com uma start-up. É importante lembrar que, embora a inovação seja fundamental para o crescimento de longo prazo, promover a inovação não é a mesma coisa que promover o crescimento “equitativo”. O crescimento equitativo depende, em grande medida, das condições de trabalho e bons salários nas organizações empresariais.

A grande questão é: o Modelo de Negócio da Nova Economia irá se transformar para distribuir os benefícios da revolução de informação e comunicação? Com todo o sucesso que essas novas tecnologias trouxeram para a Apple, como ela pensa em distribuir a riqueza criada na empresa? Proporcionando empregos mais seguros com formação profissional adequada, salários dignos, potencial para a mobilidade ascendente e os benefícios necessários para sustentar um verdadeiro equilíbrio entre vida e trabalho? Ou, talvez, a empresa utilize o recorde de caixa para premiar uma minoria privilegiada formada por executivos, acionistas e investidores? Suas decisões têm grande impacto não apenas no desempenho da economia, mas também na qualidade de vida de milhares de funcionários.”

 

 

Retorno direto ou indireto

Dada a relação comumente aceita entre risco e benefício na teoria financeira, se o Estado é tão importante para financiar investimentos de alto risco em inovação, depreende-se que deveria ter um retorno direto pelos investimentos arriscados. Esse retorno pode ser usado para financiar a próxima rodada de inovações, mas também para ajudar a cobrir as perdas inevitáveis em investimentos tão arriscados. Por isso, no lugar da preocupação com a (in)capacidade do Estado de “escolher vencedores”, mais atenção deveria ser dada à maneira como as vitórias são recompensadas quando acontecem de forma que esses retornos possam cobrir as perdas dos fracassos inevitáveis, bem como o financiamento de futuras vitórias. Ou, para provocar, se o Estado tivesse recebido de volta apenas 1% dos investimentos feitos na internet, hoje haveria muito mais para investir em tecnologia verde.

Muitos argumentam que não é apropriado considerar retornos diretos para o Estado porque este já obtém o retorno de seus investimentos indiretamente, através do sistema tributário. Mas tais argumentos supõem que o sistema tributário já arrecade uma receita “justa e honesta” de várias fontes e, por extensão, que as despesas fiscais refletem a melhor configuração possível de apoio ao crescimento econômico. A realidade, entretanto, é que o sistema tributário não foi concebido para apoiar sistemas de inovação, que são desproporcionalmente conduzidos por atores que estão dispostos a investir décadas antes de o retorno surgir no horizonte. E não é só isso: o argumento ignora o fato de que a evasão fiscal e a sonegação de impostos são comuns e não irão desaparecer (no Reino Unido, pesquisas recentes sugerem que o “rombo fiscal”, isto é, os impostos não recolhidos, o que inclui a evasão fiscal, sonegação e pagamentos atrasados, é de 120 bilhões de libras, quase o mesmo valor do déficit nacional, que é de 126 bilhões de libras).1

Dado que as empresas modernas muitas vezes integram organizações globais que fazem negócios com inúmeros governos atendendo às necessidades de vários bancos de desenvolvimento estatal, é impossível julgar se o apoio do Estado em uma região está recebendo o retorno adequado pelas atividades comerciais realizadas ali. O movimento do capital (negócios) significa que a região que mais faz para financiar a inovação pode não colher os benefícios econômicos posteriores em termos de impostos e criação de empregos, por exemplo. Supor que o sistema tributário capta com precisão a proporção adequada de receita oriunda dos investimentos do Estado é tanto ingênuo quanto problemático.

A Apple é um exemplo paradigmático dessa situação. Como mostramos no capítulo 5, em seu estágio inicial a empresa recebeu financiamento do programa SBIR do governo americano, e todas as tecnologias que fazem o iPhone ser “smart” também foram financiadas pelo Estado (ligadas a programas dos Estados Unidos): a internet, redes sem fio, GPS, microeletrônica, tela touch-screen e o assistente pessoal ativado por voz SIRI. Ainda assim, como vimos no capítulo 8, a Apple utilizou práticas que resultaram em fatura fiscal muito mais baixa para os Estados Unidos. Também decidiu espalhar suas atividades de P&D e fabricação pelo mundo, deixando muito pouco para seu país de origem além de empregos mal remunerados no varejo em sua rede de lojas. Dado o alcance global da empresa, o sistema tributário americano não pode recuperar com precisão ou de forma confiável os investimentos que ajudaram a forjar “vencedores” como a Apple através do apoio a uma série de inovações arriscadas.

Mas o problema é ainda mais evidente na indústria farmacêutica. Como vimos anteriormente, 3/4 das novas entidades moleculares biofarmacêuticas devem sua criação a laboratórios financiados com dinheiro público. Ainda assim, nos últimos dez anos as dez principais empresas dessa indústria tiveram mais lucro do que todas as outras da Fortune 500 somadas*. Além disso, a indústria também desfruta de grandes benefícios fiscais: os gastos com P&D são dedutíveis, assim como grande parte de suas volumosas despesas de comercialização, algumas das quais são contadas como P&D (ANGELL, The Truth About the Drug Companies, 2004). Depois de assumir a maior parte da conta de P&D, o Estado muitas vezes entrega a produção por taxas baixíssimas. O Taxol, por exemplo, medicamento para o câncer descoberto pelo National Institute of Health (NIH), é vendido pela Bristol-Myers Squibb por 20 mil dólares a dose anual, vinte vezes o custo de produção. Mas a empresa paga ao NIH apenas 0,5% de royalties. Na maioria dos casos, não se paga nada em royalties. Apenas se supõe que o investimento público deve ajudar a criar lucros para as empresas em questão, sem que ninguém dê atenção para a evidente distorção na distribuição dos riscos e benefícios.”

1. Disponível em: <http://www.taxresearch.org.uk/Documents/FAQ1TaxGap.pdf>. Acesso em: 1o mar. 2013.

*: O livro é de 2014, ou seja, estes dados referem-se de 2004 até 2013 – fora do período da Covid-19, portanto.

 

 

Ao buscar promover o crescimento puxado pela inovação, é fundamental entender a importância dos papéis do setor público e do setor privado. Isso requer não apenas o entendimento do valor do “ecossistema” de inovação, mas principalmente qual é a contribuição de cada ator para esse sistema. A suposição de que o setor público pode no máximo incentivar inovações puxadas pelo setor privado (através de subsídios, reduções fiscais, precificação do carbono, padrões técnicos etc.), principalmente mas não apenas diante da crise recente, não leva em consideração os muitos exemplos em que a principal força empreendedora veio do Estado e não do setor privado. A não consideração desse papel tem causado grande impacto sobre os tipos de parcerias público-privadas que são criadas (potencialmente parasitárias em vez de simbióticas) e tem desperdiçado dinheiro ou incentivos ineficazes (incluindo diferentes tipos de isenções fiscais) que poderiam ter sido usados de forma mais eficiente.

Para entender o papel fundamental do Estado ao assumir os riscos do capitalismo moderno, é importante reconhecer o caráter “coletivo” da inovação. Diferentes tipos de empresas (grandes e pequenas), diferentes tipos de financiamento e diferentes tipo de políticas estatais, instituições e departamentos interagem às vezes de formas imprevisíveis — mas certamente de maneiras que podemos ajudar a moldar para alcançar os fins desejados. (...)

Existe uma dependência cada vez maior desses sistemas de difusão horizontais à medida que avançamos para sistemas de inovação abertos, em que as barreiras entre colaboração pública e privada são reduzidas.

Há anos sabemos que inovação não é apenas resultado dos gastos com P&D, mas está relacionada a um conjunto de instituições que possibilitam que o novo conhecimento se espalhe por toda a economia. Ligações dinâmicas entre ciência e indústria são uma forma de dar sustentação à inovação, mas os exemplos apresentados neste livro mostraram que as “ligações” podem ser mais profundas e remontar a décadas. Fica muito mais difícil continuar a visualizar o processo de inovação como algo que ocorre através de atividades separadas e isoladas do Estado e das empresas.

Mas em vez de introduzir termos novos, como ecossistemas de inovação, para descrever o processo de inovação, é mais importante entender a divisão do trabalho “inovador” entre os diferentes atores desses sistemas e, em especial, o papel e o comprometimento de cada ator no contexto da paisagem arriscada e acidentada em que estão trabalhando. Embora o Estado precise assumir riscos, não deve limitar-se a absorver (ou mesmo “abrandar”) riscos do setor privado, mas assumir aqueles que o setor privado não está disposto a assumir, e também colher os rendimentos. Isso é fundamental para que o ciclo de inovação possa continuar a ser sustentado (com os rendimentos da rodada atual financiando a seguinte — assim como as inevitáveis perdas) e seja menos suscetível aos ciclos políticos e comerciais. As políticas públicas devem focar no papel específico do setor público, no interior e entre setores e instituições, para permitir que aconteçam coisas que de outra forma não aconteceriam — exatamente como argumentou Keynes em O fim do laissez-faire (1926). Não se trata apenas do importante papel contracíclico que os gastos do setor público devem ter (e infelizmente não têm tido devido à ideologia da austeridade), mas também dos tipos de questão que devem ser feitas a cada instrumento de política individual. (...)

É precisamente por suas características diferentes (das comerciais) que o Estado não pode ter um papel “exato” e “limitado” em termos de inovação (uma espécie de ponto de equilíbrio). Aceitar essa diferença significa que precisamos encontrar uma forma de entender a área de influência específica do Estado e os indicadores de desempenho específicos para julgar suas atividades. Por exemplo, embora o financiamento do projeto do Concorde (exemplo constantemente usado para acusar o governo de “escolher vencedores”) possa ser visto como fracasso, o verdadeiro entendimento do desempenho do Estado nesse empreendimento deve ir além de uma análise de custo-benefício simplista e levar em consideração as repercussões — tangíveis e intangíveis — resultantes do investimento no Concorde. Isso já foi feito? Não, e ainda assim parece que todos concordam que foi um grande fracasso. (...)

Se o Estado está investindo na internet ou em energia limpa em nome da segurança nacional (tendo imaginado uma nova “ameaça”) ou em nome da mudança do clima (ou para a “independência energética”), pode fazer isso em escala e com instrumentos não disponíveis para o setor privado (impostos, por exemplo). Se um obstáculo fundamental para o investimento dos negócios em novas tecnologias é que ele não fará investimentos que possam criar benefícios para o “bem público” (pois não poderá capturar a maior parte do valor criado), então é essencial que o Estado o faça — e se preocupe em como transformar esses investimentos em novo crescimento econômico depois. Os negócios “loucos” não sobreviverão, pois precisam calcular os riscos relacionados ao desenvolvimento de produto e entrada em novos mercados. O sucesso da Apple não dependeu de sua capacidade para criar novas tecnologias, mas de sua capacidade organizacional para integrar, comercializar e vender as que estavam facilmente acessíveis. Em contrapartida, a flexibilidade do Estado é um trunfo importante, que deveria ser autorizado a fazer seus “loucos” investimentos em tecnologia de maneira direta e objetiva. Quem poderia imaginar que a tecnologia criada para preservar a capacidade de comunicação durante uma guerra nuclear se transformaria em uma plataforma de conhecimento, comunicação e comércio que o mundo todo utiliza? Quantos imaginariam então que a internet fosse uma forma “louca” de investir milhões de dólares dos contribuintes?”

 

 

Vivemos em uma era em que o Estado está sendo podado. Os serviços públicos estão sendo terceirizados, os orçamentos estatais cortados e o medo, em vez da coragem, está determinando muitas estratégias nacionais. Boa parte dessa mudança está sendo feita em nome de mercados mais competitivos, mais dinâmicos. Este livro é um convite aberto para mudarmos a forma como falamos do Estado, de seu papel na economia, e as imagens e ideias que usamos para descrever esse papel. Só então poderemos começar a construir o tipo de sociedade em que queremos viver e queremos que nosso filhos vivam — de uma forma que afaste os falsos mitos a respeito do Estado e reconheça como ele pode, quando imbuído de uma missão e organizado de forma dinâmica, resolver problemas tão complexos quanto o de colocar o homem na Lua e da mudança do clima. E precisamos de coragem para insistir — através de uma visão mas também de instrumentos políticos específicos — para que o crescimento resultante dos investimentos subjacentes seja não apenas “inteligente”, mas também “inclusivo”.”

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