segunda-feira, 31 de julho de 2023

Ernesto Guevara, também conhecido como Che (Parte IV), de Paco Ignacio Taibo II

Editora: Expressão Popular

ISBN: 978-85-7743-074-1

Tradução: Cláudia Schilling, Magda Lopes e Maria Carbajal

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 728

Sinopse: Ver Parte I



“(em 26 de outubro de 1960) Fidel envia uma nota urgente a Kruschev: “A agressão é iminente e deve acontecer nas próximas 24-72 horas. O mais provável é que seja um ataque aéreo limitado aos alvos que se quer destruir; em segundo lugar vem a invasão. Resistiremos ao ataque, seja ele qual for”. Sugere que, no segundo caso, se houver um ataque nuclear, a resposta também seja nuclear. Nesse mesmo dia, Kennedy manda aumentar a frequência dos voos de observação.

No dia seguinte, Fidel ordena que se dispare contra os voos piratas. Ao meio dia, um avião U-2 estadunidense que sobrevoa território cubano é derrubado por um projétil SAM, disparado por iniciativa dos comandantes russos de uma das bases.

A tensão chega ao ponto máximo. E, então, sem advertir nem levar em consideração os cubanos, Kruschev propõe a Kennedy o desmantelamento em troca de uma proposta de não-invasão a Cuba e de uma negociação sobre a retirada dos mísseis estadunidenses da Turquia, que estão dirigidos contra a Rússia. Em princípio, Kennedy aceita a proposta e novamente os cubanos ficam no meio do jogo político da guerra fria.

Em 28 de outubro, na redação do jornal Revolución, o diretor Carlos Franqui recebe um telegrama da AP dizendo que Nikita vai retirar os mísseis. O diretor do diário entra em contato com Fidel. Para o dirigente cubano, é a primeira notícia sobre o assunto. Fidel solta uma ladainha de insultos: “Moleque, como, filho-da-puta”. No dia seguinte, o jornal Revolución anuncia: “Os soviéticos retiram os mísseis”. O povo nas ruas canta: “Nikita, mariquita, lo que se da no se quita*”

No dia seguinte, Fidel recebe um boletim informativo de Kruschev. O dirigente soviético esclarece que negociou com base em uma promessa de Kennedy de não intervenção em Cuba. Fidel declara publicamente que se opõe a uma inspeção de Cuba, justifica a derrubada do avião e responde a Kruschev: “O perigo não nos assusta, porque já ficou tanto tempo pairando sobre nós, que acabamos nos acostumando a ele”.

(...) Em um artigo escrito nesses dias e que só seria publicado depois da sua morte, talvez pela denúncia da atitude dos soviéticos, “Tática e estratégia da revolução latino-americana”, Che faz um balanço muito duro da crise. É o exemplo arrepiante de um povo disposto a se imolar atomicamente para que suas cinzas sirvam de base para as novas sociedades. E quando – sem o povo ser consultado – é firmado um pacto que determina a retirada dos mísseis atômicos, não suspira de alívio nem agradece a trégua; declara com voz própria e única a sua posição de combatente, própria e única, e, mais ainda, sua decisão de lutar nem que seja sozinho.

*Nikita, seu viado, o que é dado não pode ser tirado.

 

 

“Novamente Che se retira para cumprir suas tarefas de industrialização, constatando que a produtividade tinha aumentado durante a crise... apesar das mobilizações das milícias, dos alertas, das prioridades militares nos transportes... Só há uma forma de entender isso: a consciência dos trabalhadores nos momentos de crise eleva-se acima dos problemas; é a tensão política, o fator de consciência que faz a diferença que nenhuma norma, compulsão ou grande prêmio podem conseguir. Era a própria lição da sua vida: o grande dínamo era a consciência social, a vontade”.

 

 

“Che continua sendo o personagem difícil e querido, que pressionava brutalmente seus colaboradores e mantinha uma eterna reserva, muito difícil de se romper. Otulski conta: “Fomos ficando mais próximos em diversos encontros, mas sem intimidade nem amizade, e nos primeiros meses tivemos alguns confrontos. Um dia, coloquei a mão sobre seu ombro em sinal de afeto e ele me disse:

– Por que essa confiança?

Eu tirei a mão. Os dias foram passando e uma vez ele me disse:

– Sabe que você não é tão filho-da-puta como tinham me contado?

Rimos muito e ficamos amigos”.”

 

 

“As anedotas sobre o peculiar estilo de Che continuam se multiplicando: em 21 de janeiro, o conselho diretor do Ministério da Indústria estuda as empresas farmacêuticas. Che tinha a seu lado uma garrafa térmica cheia de café e Gravalosa lhe pede para abri-la e servir o café. Mas a garrafa permanece fechada durante toda a reunião. Ao terminar, Gravalosa reclama: “Reuniões sem café...” e Che responde: Não havia café suficiente para todos, por isso não há café para ninguém.

 

 

“Em 23 de fevereiro, o comandante Guevara está cortando cana na Central Orlando Nodarse, juntamente com uma brigada do ministério; o motorista fica na sombra, no caminhão, e Che, contendo a raiva, chega perto dele e diz:

Companheiro, onde está o seu facão?

– Eu não vim cortar cana, eu sou motorista.

 Escute, motorista qualquer um pode ser. Pode procurar um facão e começar a trabalhar como todos nós ou pode ir embora neste instante. E não se preocupe com o caminhão, que eu mesmo posso dirigir na volta. Como acontece sempre com as vidas dos santos, a versão já chegou até nós suavizada; o leitor pode colocar alguns “porra” e “puta que o pariu” e terá uma versão mais próxima da realidade, segundo o depoimento de um dos colaboradores de Che ao autor.”

 

 

“Em 20 de fevereiro, Che responde a uma carta de María Rosário Guevara de Casablanca, dizendo que não tem ideia de que lugar da Espanha procede a sua família. Mas já faz muito tempo que os meus antepassados saíram de lá, com uma mão na frente e outra atrás, e se não conservo as minhas assim é devido ao incômodo da posição. Não acredito que sejamos parentes próximos, mas se você é capaz de tremer de indignação cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então, somos companheiros e isso é muito mais importante.

 

 

“Nesse momento (setembro de 1963), a guerrilha de Masetti está em uma fase prévia ao início dos combates, realizando trabalho político com os camponeses da região e em processo de treinamento. Masetti escreve à sua esposa: já percorremos mais de uma centena de quilômetros no mapa, mas na realidade são muitos mais. Nosso contato com o povo é positivo, sob todos os pontos de vista. Dos coyas aprendemos muitas coisas e ajudamos em tudo que é possível. Mas, o mais importante, é que querem lutar... Esta é uma região em que a miséria e as doenças chegam ao seu nível máximo e até o superam. Há uma economia feudal... A pessoa que vier aqui e não se indignar, quem chegar aqui e não pensar em pegar em armas, quem puder ajudar de qualquer forma e não o fizer, é um canalha...”

 

 

“Leonardo Tamayo: Che sempre tinha a Argentina na cabeça, embora falasse um monte de barbaridades sobre sua terra natal e seus patrícios. Che dizia: O último país a se libertar na América Latina será a Argentina. Na Argentina, apesar de haver pobres, o camponês come bons bifes e a luta só começa quando a pobreza é extrema. E para tirar de casa os argentinos, é preciso um guindaste.”

 

 

“Em 11 de dezembro (de 1964), fala na ONU. O discurso significa um verdadeiro ajuste de contas da revolução cubana com os Estados Unidos e com as ditaduras latino-americanas. Talvez seja seu melhor discurso e uma das melhores expressões da política internacional da esquerda revolucionária da década de 1960.

Depois de declarar que os ventos da mudança avançam por toda parte, queixa-se de que o imperialismo estadunidense, principalmente, pretende fazer acreditar que a coexistência pacífica pertence exclusivamente às grandes potências da Terra. E registra: agressões contra o reino do Camboja, bombardeios no Vietnã, pressões turcas sobre o Chipre, agressões no Panamá, prisão de Albizu em Puerto Rico, manobras para adiar a independência da Guiana, apartheid na África do Sul e a intervenção neocolonial no Congo, à qual dedica boa parte do discurso e uma frase significativa (todos os homens livres do mundo devem estar dispostos a vingar os crimes cometidos no Congo), e depois de subscrever a petição de desarmamento nuclear, um dos motivos principais da conferência, passa a fazer um ajuste de contas, informando sobre as agressões recentes contra Cuba e a recente proibição estadunidense de lhe vender remédios. Propõe um plano de paz no Caribe, incluindo a desativação da base de Guantánamo, o término dos voos, dos ataques e das infiltrações de sabotadores e de lanchas piratas procedentes dos Estados Unidos, assim como o fim do bloqueio econômico. Para ilustrar a magnitude do problema, registra 1.323 provocações de todo tipo durante o ano em curso, todas originadas da base de Guantánamo.

Resume o apoio dos Estados Unidos às ditaduras latino-americanas e sua intervenção direta na Venezuela, na Colômbia e na Guatemala na luta contra as guerrilhas. Muito longe da linguagem habitual da coexistência pacífica, está o desafio de Che e a sua ameaça: O nosso exemplo dará frutos no continente.

Sua intervenção, além da resposta professoral de Adlai Stevenson, provoca a fúria dos delegados de Costa Rica, Nicarágua, Panamá, Venezuela e Colômbia.

Algumas horas depois, volta ao palco, solicitando o direito de resposta.

Agora, Che está no seu elemento – como polemizador – e enfrenta os delegados: o de Costa Rica, por ignorar a existência de uma base de contrarrevolucionários cubanos dirigidos por Artime, onde se faz contrabando de whisky; o da Nicarágua: não entendi bem a sua argumentação em relação ao sotaque (acho que não se referiu a Cuba, Argentina, talvez à União Soviética), mas espero que em todo caso o representante da Nicarágua não tenha encontrado sotaque estadunidense no meu discurso, porque isto sim, seria perigoso. Realmente pode ser que durante o meu discurso tenha escapado algum sotaque da Argentina. Eu nasci na Argentina; isso não é segredo para ninguém. Sou cubano e também sou argentino e, sem querer ofender às ilustríssimas senhorias da América Latina, sinto-me tão patriota da América Latina, de qualquer país latino-americano, quanto qualquer um de vocês, e no momento em que seja necessário, estou disposto a dar a vida pela libertação de qualquer um desses países, sem pedir nada a ninguém, sem exigir nada e sem explorar quem quer que seja. E este é o ânimo, não só deste representante transitório diante desta Assembleia, mas de todo o povo de Cuba.

A seguir, chega a vez de criticar Stevenson, que já havia se retirado da Assembleia, e lhe demonstra que está mentindo ao negar o embargo de remédios; que faz demagogia com a questão de oferecer asilo aos invasores da Baía dos Porcos (dariam asilo ao pessoal que eles mesmos tinham armados). Lembra da sua afirmação que os aviões que tinham atacado Cuba durante a batalha de Girón tinham saído de Cuba, quando na verdade tratava-se de uma operação da CIA e lhe joga na cara este argumento: aconteça o que acontecer, continuaremos sendo uma pequena dor de cabeça sempre que cheguemos até esta Assembleia ou a qualquer outra, porque estamos dispostos a chamar as coisas pelos seus devidos nomes e a dizer que os representantes dos Estados Unidos são os agentes da repressão no mundo inteiro.

 

 

Deve ser dito com toda sinceridade que em uma verdadeira revolução, na qual se entrega tudo, sem esperar nenhuma retribuição material, a tarefa do revolucionário de vanguarda é ao mesmo tempo magnífica e angustiante (...) Nestas condições é necessário ter uma grande dose de humanidade, uma grande dose de senso de justiça e de verdade, para não cair em extremos dogmáticos, em escolasticismos frios, no isolamento das massas. É necessário lutar todos os dias para que este amor pela humanidade se transforme em fatos concretos, que sirvam de exemplo, de mobilização...

 

 

“Dessa longa conversa, só conhecemos os breves comentários feitos por Fidel ao longo dos anos. Em um deles, afirma que “eu mesmo sugeri a Che que era necessário ganhar tempo, esperar” (para se lançar numa tarefa dessas na América Latina); mas Che queria ir embora.

Sentia Che o peso dos anos? Teria medo de não estar em condições físicas para uma nova experiência guerrilheira? O próprio Fidel sugere isso durante sua conversa com Gianni Mina: “Acredito que influiu o fato do tempo estar passando. Ele sabia que para tudo isso era necessário ter condições físicas”; também devemos levar em consideração as palavras de Che, lembradas por Manresa, seu secretário particular: “Em 1961, quando chegamos ao escritório do Departamento de Indústria, Che encostou-se em um arquivo e disse:

Vamos passar cinco anos aqui e depois vamos embora. Com cincos anos mais, ainda podemos fazer uma guerrilha...

Tinham passado apenas quatro anos.

E Fidel não podia, nunca pôde, detê-lo, segurá-lo. Sem dúvida, Che nesse momento apela a uma antiga dívida que Fidel tinha contraído com ele, assumida nos já longínquos dias do exílio: “Quando ele se juntou a nós, no México, pediu somente uma coisa:

A única coisa que eu quero é que, depois de a revolução ter triunfado, se eu quiser ir lutar na Argentina, que isso não seja impedido, que não exista nenhuma razão de Estado que não me permita fazer isso.

E eu prometi. Em primeiro lugar, ninguém sabia se iríamos ganhar a guerra nem se iríamos ficar vivos para contar a história”.”

 

 

“Fidel e Che saem para conversar. Che entrega à Fidel os papéis que vinha escrevendo – é a sua carta de despedida.

Fidel, nesse momento, lembro-me de muitas coisas. Lembro-me de quando conheci você na casa de María Antonia, de quando você me propôs ir junto, de toda a tensão dos preparativos. Um dia, passaram perguntando a quem deveriam avisar em caso de morte e a possibilidade real do fato foi um golpe para todos. Depois soubemos que isso era verdade, que em uma revolução ou se vence ou se morre (se ela for verdadeira). Muitos companheiros caíram no caminho para a vitória.

Hoje tudo tem um tom menos dramático, porque estamos mais amadurecidos, mas o fato se repete. Sinto que cumpri a parte do meu dever que me ligava à Revolução Cubana neste território e quero me despedir de você, dos companheiros e do seu povo, que já é meu também.

E continua, declarando que tem uma dívida com Fidel – o fato de ter pensado em algum momento que não poderia chegar até o fim. Vivi dias magníficos ao seu lado e senti orgulho de pertencer ao nosso povo, naqueles dias luminosos e tristes da crise do Caribe. Poucas vezes brilhou tão alto um estadista como nesses dias, e me orgulho de ter seguido você sem vacilar, de ter me identificado com a sua maneira de ver e de sentir os perigos e os princípios. Outras terras do mundo reclamam a contribuição dos meus modestos esforços. Posso fazer o que é negado a você, devido à sua responsabilidade com Cuba, e chegou a hora de nos separarmos.

A carta não está isenta de certo dramatismo e nela não aparece o habitual tom irônico de Che. Parece sentir que a despedida é para sempre. Deixo aqui o que há de mais puro em minhas esperanças de construtor e os mais queridos dos meus seres queridos (...) e deixo um povo que me acolheu como a um filho: isso dilacera uma parte do meu espírito.

E o tom se repete: Declaro mais uma vez que libero Cuba de qualquer responsabilidade, salvo a que brota do seu exemplo. E que se a minha hora chegar sob outros céus, meu derradeiro pensamento será para este povo e especialmente para você.

Há na carta um tom de testamento: Não deixo a meus filhos nem a minha mulher nada material e não o lamento; fico contente que seja assim. Não peço nada para eles, porque o Estado lhes proporcionará o suficiente para viverem e se educarem.

São muitas as coisas que gostaria de dizer a você e ao nosso povo, mas sinto que são desnecessárias. As palavras não podem expressar o que eu quero e não vale a pena gastar papel. Até a vitória, sempre. Pátria ou morte!

Recebe o meu abraço com todo fervor revolucionário. Che.”

 

 

(Luta no Congo) “Não, tudo havia ido muito mal. Às cinco horas da madrugada, os cubanos tinham aberto fogo com um pequeno canhão e com metralhadora, surpreendendo os defensores do quartel; entretanto, logo depois, começam as deserções dos ruandeses, assustados com os morteiros e metralhadoras dos mercenários. Desesperado, Dreke resume: “Naquele momento só os cubanos continuaram atirando. Não tínhamos muitos projéteis. Os ruandeses, que não sabiam atirar rajadas curtas, metiam o dedo e gastavam os 30 tiros de uma vez só. Estávamos combatendo contra um batalhão de 500, 600 homens. Não se tratava de tomar o quartel, mas de provocá-los para que caíssem nas emboscadas. Com o tempo, percebemos que havia muitos covardes. Diziam que a Dawa* era muito fraca. Todo mundo sente medo na guerra, mas temos de superá-lo para viver. O barulho de um calibre 50 ou 30 em uma selva escura, com neblina, animais apavorados em fuga, é impressionante. Não era muito fácil para ninguém, nem para os nossos, que se comportaram muito dignamente, que aguentaram. Dois ou três ruandeses aguentaram conosco. Depois de um ato de covardia, pode nascer um herói. Sabemos disso. Mas nossa gente não entendeu; esperávamos muito mais deles”. Essa foi a tônica da operação: começamos com brio, mas antes do início do combate, já tínhamos perdido homens em muitas posições e depois houve uma debandada completa.”

* Suposta magia que protegeria os combatentes de tiros.

 

 

“A presença do inimigo, que até então tinha estado muito passivo, começa a se fazer sentir. Aumentam os bombardeios, as aldeias camponesas são metralhadas. Lançam-se panfletos nos quais o governo de Mobutu oferece recompensas aos camponeses pelos assessores cubanos e tratamento justo para aqueles que abandonarem as armas. Jogavam os panfletos depois de bombardear e semear o terror. Parece que este é um método-padrão dos exércitos repressivos. Esta presença aérea corresponde à chegada de 200 milhões de dólares de financiamento estadunidense ao governo e à chegada de assessores da CIA; entre eles havia estadunidenses, cubanos veteranos da Baía dos Porcos, soldados da Rodésia e da África do Sul, uma operação descrita por um dos membros da CIA como “levamos nossos próprios animais”.”

 

 

“De onde Che tira energia para este retorno depois da terrível experiência congolesa? Após sua morte, o jornalista americano I.F. Stone reflete: “Com a assunção do poder temporal, tanto a revolução quanto a igreja entram em um estado de pecado. Podemos imaginar facilmente como esta lenta erosão da virtude original deve ter incomodado Che. Não era cubano e não podia se sentir satisfeito se libertasse apenas um país latino-americano. Pensava em termos continentais. Em certo sentido, estava como os santos primitivos, procurando refúgio no deserto. Só lá a pureza da fé poderia ser salvaguarda do irregenerável revisionismo da natureza humana”. Mas há algo mais que Stone não percebeu. A América Latina não era apenas um território salgariano*, onde podia ser praticada a estocada secreta que despacharia os miseráveis de maneira honrosa, ou a zona de sonhos juvenis associada à vingança vemiana** do capitão Nemo, utilizando imagens literárias da infância guevarista. A América Latina também era um continente absolutamente real. E suas imagens, as misérias profundas dos bairros de Caracas, o horror da desigualdade social peruana, a demagogia boliviana, a prepotência dos militares colombianos, o abuso imperial mafioso na América Central, os ditadores de faz-de-conta que ordenavam torturas, a desnutrição, a fome, a ignorância, o medo, eram imagens reais que Che havia gravado em sua retina durante as viagens da juventude. Daí a tenacidade de Che, a clara consciência de que a necessidade da revolução latino-americana – não só sua necessidade moral –, era inadiável. E se isto fosse pouco, em 1966 esta revolução parecia possível, não só no sentido de algo realizável, atingível, mas no mais terrível e urgente sentido de próxima.”

* Relativo à Emólio Salgari (1863-1911).

** Relativo à Jules Verne (1828-1905), escritor francês.

 

 

(Durante a guerrilha na Bolívia) “Estava esquecendo de ressaltar um fato: hoje, depois de um pouco mais de seis meses, tomei um banho. Constitui um recorde que vários já estão alcançando.”

 

 

“Simón Cuba (do qual uma semana antes Che dissera que talvez aproveite alguma confusão para tentar escapulir sozinho), estava chegando ao ponto mais alto da subida de uns 60 metros de uma escarpa muito íngreme, suportando praticamente todo o peso do comandante Guevara que, ferido na perna direita e com um terrível ataque de asma, mal podia se mexer. Che ainda segurava sua carabina M-2 inutilizada no último confronto (um tiro que ia em sua direção acertou a arma).

O cabo Balboa e os soldados Encinas e Choque deixam-nos avançar e depois Balboa grita-lhes que se rendam. Simón não tem tempo de levantar seu fuzil porque os três soldados estavam mirando para ele. Então, dizem que gritou: “Este é o comandante Guevara e vocês vão respeitá-lo, caralho!”

Os soldados, desconcertados, se encolhem; conta-se inclusive que um deles disse: “Sente-se, senhor”. Depois, recuperados do espanto, tiram as armas dos prisioneiros: o fuzil de Simón, o M-2 quebrado de Che, sua pistola e um punhal Solingen.”

 

 

“Mais ou menos nesse mesmo momento, um dos três grupos de guerrilheiros que estavam combatendo na parte alta da quebrada (Inti Peredo, Harry Villegas, Alarcón, Ñato Méndez, Leonardo Tamayo, Adriazola) consegue chegar ao ponto de encontro previamente combinado com Che, depois de evitar astutamente mais soldados bolivianos. No caminho, encontram farinha jogada no chão; os combatentes se preocupam, Che nunca teria permitido isto. Mais tarde, aparece o prato de Che pisoteado. Inti Peredo narra: “Eu o reconheci, porque era uma vasilha funda, de alumínio. Não encontramos ninguém no lugar da reunião, embora tenhamos reconhecido rastros e as abarcas do Che, que deixavam uma marca diferente dos outros calçados e por isso mesmo, eram facilmente identificáveis. Mas este rastro perdia-se mais para a frente”. Alarcón completa: “Vimos o Che sair e escapar do cerco e por isso acreditamos que ele já estivesse fora de perigo. Deviam ser três da tarde quando vimos o Che iniciar a retirada; então dissemos: já está fora de perigo. Mas é que não vimos que ele tinha voltado para socorrer Simón e o Chino (...). O combate terminaria por volta das cinco da tarde.”

 

 

“Depois da uma da tarde, Terán, de baixa estatura – não devia medir mais de 1,60m, atarracado, 65 quilos –, entrou no quartinho da escola onde o Che estava. Trazia nas mãos um M-2 que pedira emprestado ao suboficial Pérez. No quarto ao lado, Huanca acabava com Chino e Simón.

Che estava sentado em um banco, com os pulsos amarrados, encostado na parede. Terán vacila, diz alguma coisa, Che responde:

Nem se incomode. Você veio me matar.

Terán faz um movimento como se fosse ir embora e dispara a primeira rajada, respondendo à frase, que quase 30 anos depois, dizem que Che proferiu: – Atire, covarde, que vai matar um homem!

“Quando entrei na sala, o Che estava sentado num banco. Quando me viu, disse: Você veio me matar. Eu não tinha coragem de disparar, e então o homem me disse: Fique calmo, você vai matar um homem. Então, dei um passo para trás, rumo à soleira da porta, fechei os olhos e disparei a primeira rajada. Che caiu no chão com as pernas destroçadas, contorceu-se e começou a perder muito sangue. Recuperei o ânimo e disparei a segunda rajada, que o atingiu no braço, em um ombro e no coração”.

Pouco depois, o suboficial Carlos Pérez entra no quarto e dispara contra o corpo. Não será o único: o soldado Cabero, para vingar a morte de seu amigo Manuel Morales, também dispara contra Che.

As diferentes testemunhas parecem concordar sobre a hora da morte de Ernesto Che Guevara: uma e dez da tarde do domingo, 9 de outubro de 1967.”

 

 

“A morte de Ernesto Guevara provocou estupor, desconcerto, assombro, perturbação, raiva, impotência, em milhares de homens e mulheres. Em apenas 11 anos de vida política e sem querer, Che tornou-se material simbólico da tantas vezes adiada e traída revolução latino-americana. Nossa única certeza, naqueles anos, era que o material dos sonhos não morre nunca.”

 

 

“Há uma lembrança. Desde milhares de fotos, pôsteres, camisetas, fitas, discos, vídeos, postais, retratos, livros, frases, testemunhos, todos os fantasmas da sociedade industrial que não sabe depositar seus mitos na sobriedade da memória, Che nos vigia. Para além de toda parafernália, ele retorna. Em era de naufrágios, é nosso santo leigo. Décadas depois de sua morte, sua imagem cruza as gerações, seu mito passa deslizando em meio aos delírios de grandeza do neoliberalismo. Irreverente, irônico, obstinado, moralmente obstinado. Inesquecível.”

Ernesto Guevara, também conhecido como Che (Parte III), de Paco Ignacio Taibo II

Editora: Expressão Popular

ISBN: 978-85-7743-074-1

Tradução: Cláudia Schilling, Magda Lopes e Maria Carbajal

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 728

Sinopse: Ver Parte I



“O panorama industrial no começo da revolução, analisado por Che em um artigo escrito um ano e meio depois, é terrível: Um exército de desempregados composto por 600 mil pessoas (...), uma série de indústrias que fabricavam seus produtos com matérias-primas importadas, em máquinas importadas e utilizando peças de reposição importadas; uma agricultura sem nenhum desenvolvimento, estrangulada pela concorrência do mercado imperialista e pelo latifúndio, que utilizava as terras para reservas de cana-de-açúcar ou para criação de gado, preferindo importar alimentos dos Estados Unidos.

 

 

(em 23 de outubro de 1959) “em uma concentração nacional contra as agressões aéreas diante do Palácio Nacional, o Che pergunta à multidão: este governo revolucionário e este povo cederão diante das pressões estrangeiras? Cederão? A multidão responde com os gritos de Não! Não! No discurso, há uma frase reveladora: Aqui não é a Guatemala!

 

 

“Em 29 de outubro, é publicada em um jornal argentino uma entrevista concedida por Che, na qual ele propõe uma revisão radical das relações com os Estados unidos... Sem dúvida, a América está precisando de alguns barbudos.

Nessa mesma tarde, quando voava em um Cessna 310 de Camagüey em direção a Santa Clara em uma viagem de inspeção, Camilo Cienfuegos desaparece no ar. No amanhecer do dia 30, começa uma enorme operação de busca. Che sobe em um Cessna e começa a procurar Camilo; a marinha é mobilizada e os camponeses realizam uma operação pente-fino em Camagüey. O país inteiro está tenso. Camilo é, sem dúvida, uma das figuras mais populares e queridas da revolução. Seu avião desaparece sem ter dado nenhum tipo de sinal. Na reconstrução dos fatos, descobre-se que, provavelmente, mudou de rumo para se afastar de alguma tempestade e que talvez tenha se dirigido ao mar. A procura continua, durante uma semana, animada, às vezes, por informações falsas. Depois, nada. Há alguma raiva nas palavras de Che, que acaba de perder um de seus poucos amigos: Foi morto pelo inimigo, foi morto porque o inimigo queria a sua morte. Foi morto porque não há aviões seguros, porque os pilotos não podem adquirir a experiência necessária, porque Camilo, sobrecarregado de trabalho, queria chegar em poucas horas a Havana... e também foi morto por seu próprio temperamento. Camilo não media o perigo; para ele, brincar com o perigo era um divertimento, atraía-o e utilizava-o; na sua mentalidade de guerrilheiro, uma nuvem não podia detê-lo ou desviar uma linha já traçada.

A revolução perde assim um de seus escassos dirigentes, como antes já havia perdido Juan Manuel Márquez, José Antonio Echevarria, Frank País e Ramos Latour.”

 

 

     “Em 26 de novembro de 1959, Ernesto Che Guevara recebe sua certidão de nacionalidade cubana, direito que lhe foi outorgado pela lei de fevereiro. Nesse mesmo dia, a nação é informada de que o governo acaba de nomeá-lo presidente do Banco Nacional de Cuba. Muitos anos depois, ainda se contaria a piada (o próprio Fidel a confirma) de que em uma reunião da direção revolucionária cubana, o primeiro-ministro havia perguntado se havia algum economista presente e Che, que estava meio dormindo, entendeu “algum comunista” e levantou a mão.”

 

 

“Aproveitando uma visita de Mikoyan ao México, a direção da revolução cubana envia Héctor Rodríguez Llompart com um convite. Foi assim que os primeiros soviéticos desembarcaram em Cuba. Em fevereiro de 1960, tem lugar a visita de Anastas Mikoyan, uma das principais figuras da burocracia soviética e membro do Politburo do Partido Comunista da URSS.

Che está presente quando Fidel e os outros ministros do governo o recebem e ouvem a primeira declaração de Mikoyan: “Estamos prontos para ajudar Cuba” e estará presente durante toda a visita, tanto em conversas privadas quanto em atos públicos. É, certamente, o primeiro a aplaudir quando Mikoyan entra em uma sala de concertos. E será, sem dúvida, um dos mais fortes partidários, dentro do governo cubano, da aproximação dos soviéticos. O que significa a URSS para Che? Quantos romances sobre a guerra antifascista e a revolução de outubro, a herdeira da mitologia socialista, a pátria de Lênin, o berço do humanismo marxista, a pátria do igualitarismo, a alternativa em um mundo bipolar para o tão conhecido imperialismo estadunidense. Nem os processos de Moscou, nem o autoritarismo policial, nem os “gulags”, nem a perseguição dos dissidentes, nem o antiigualitarismo burocrático, nem a economia mal-planejada, nem o marxismo de papelão e o faz-de-conta dos russos fazem parte da cultura política de Che em 1960.”

 

 

“Em 4 de março, quando Guevara está se dirigindo para o banco, acontece a explosão de La Coubre, um navio francês de 70 toneladas carregado de armas belgas. Che, avisado da terrível explosão, dirige-se às docas do arsenal. O desastre é terrível: 75 mortos e quase 200 feridos. Colabora nas tarefas do resgate. Todos estão em dúvida: acidente ou sabotagem?

O fotógrafo Gilberto Ante, do Verde Olivo, encontra Che tratando dos feridos, mas está furioso e lhe proíbe que tire fotos. Acha imoral ser objeto de curiosidade em um acidente. No dia seguinte, tem lugar o funeral das vítimas. A um quarteirão do cemitério de Colón, na rua 23, há um palanque coberto com a bandeira cubana e uma faixa de luto. É nesse palco que Fidel pronunciará pela primeira vez o grito de guerra de “Pátria ou morte”. O fotógrafo Alberto Díaz, o Korda do Revolución, está focalizando em sua Leika dotada de uma lente de 90 mm todos os personagens do palanque e, na segunda passagem, encontra-se com Che, que avança por um dos lados, fica surpreso com o gesto do argentino e dispara a câmara duas vezes. “Quando o enquadrei, ele tinha uma expressão tão impactante que quase me causou um sobressalto. Intuitivamente, apertei o disparador”. Alberto Granado diria a Korda, pouco tempo depois, que nesse dia Che estava com cara de comer vivo qualquer ianque que encontrasse pela frente; mas não é isso que aparece na foto.

No negativo aparece um homem não-identificado do lado direito e umas folhas de palmeira à esquerda; habilmente, Korda suprime os elementos que distraem e se concentra no rosto: uma imagem peculiar, a cara fechada, a sobrancelha esquerda levemente arqueada, a boina com a estrela, uma jaqueta fechada no pescoço, o vento despenteando o seu cabelo. Anos mais tarde, o editor italiano Feltrinelli encontrará a foto na casa de Korda e fará um pôster. Dezenas de milhares de cópias, depois milhões de exemplares, percorrem o mundo. É a imagem mais conhecida do Che, a simbólica, que inundará muros, capas de livros, revistas, mantas, cartazes e camisetas. É com ela que se confrontará a foto distribuída pelos militares bolivianos do Che morto na mesa do hospital de Malta, em um duelo simbólico, mas nem por isso menos impactante. Curiosamente, o editor fotográfico do Revolución não selecionará a foto naquela oportunidade.

Em 20 de março, Che participa do programa de televisão Universidade Popular. Está usando um tom grave, com uma segurança muito maior e com uma atitude diferente daquela que tinha em 1959 e também com uma proposta de direção: Temos o privilégio de ser o país e o governo mais atacado, não só nestes momentos mas talvez em todos os momentos da história da América. Muito mais do que foi a Guatemala e talvez muito mais que o México (...) quando Cárdenas ordenou a expropriação. E deixa claro que uma sociedade mais justa deve redistribuir a riqueza: para conquistar algo, temos que tirá-lo de alguém e acho bom deixar as coisas claras e não se esconder por trás de conceitos que possam ser mal-interpretados.

 

 

“E um mês depois, em um afã de produtividade, começará outra série que o obriga a escrever semanalmente artigos de reflexão militar que se intitulam “Consejos al combatiente” e que durará sete meses, com temas como “o aproveitamento das metralhadoras no combate defensivo”, a disciplina de fogo no combate”, “a defesa contra os tanques”, ou “a artilharia de bolso”.

Parece que nestes meses de longas horas noturnas que passa sem dormir no escritório do banco, quer recuperar todo o jornalismo que quis fazer na vida e não conseguiu.

(...) E se o jornalismo é íntimo, escrever é fundamental, e a coisa mais sagrada do mundo é o título de escritor, dirá em uma carta a Sábato.

Por esses dias é publicado Guerra de guerrilhas, o livro em que Che trabalha desde meados de 1959 e que obviamente é dedicado a Camilo: Este trabalho pretende se colocar sob a tutela de Camilo Cienfuegos, que deveria tê-lo lido e corrigido, mas cujo destino o impediu de fazê-lo. Todas estas linhas e as que se seguem podem ser consideradas uma homenagem (...) ao revolucionário sem mácula e ao amigo do peito. O livro é um manual, um compêndio da sua aprendizagem guerrilheira durante a revolução cubana. As três ideias principais estão na primeira página do primeiro capítulo e parece que há pressa em expressá-las: As forças populares podem ganhar uma guerra contra o exército; não é necessário esperar que existam condições para a revolução, o foco insurrecional pode criá-las, e na América Latina o território da luta armada deve ser fundamentalmente o campo.

 

 

“A espiral de confronto entre os Estados Unidos e a revolução cubana remonta aos primeiros meses da revolução e estabelece uma série de medidas e contramedidas cada vez mais agressivas de ambas as partes. Quando o governo desapropria as plantações de açúcar, os estadunidenses exigem que se cumpra uma condição impossível: que o pagamento seja feito à vista. Além disso, negam-se a aceitar como pagamento pela desapropriação o valor que os proprietários das terras lhes haviam atribuído para o Ministério da Fazenda. Sob ameaças de corte da cota açucareira e permissões do congresso estadunidense para que Eisenhower pudesse tomar tal medida, o choque foi transferido para o petróleo. Os russos haviam oferecido 300 mil toneladas de petróleo a preço referencial e créditos para equipamento industrial. As empresas estadunidenses Standard, Texaco e Shell negam-se a refiná-lo e, de passagem, também se recusam a fornecer petróleo a Cuba. Em 29 de maio, os cubanos levam navios de petróleo cru russo para a Shell e os estadunidenses abandonam as refinarias que são nacionalizadas em 10 de junho. Veio rapidamente a lei de minas, a lei do petróleo, e depois veio o bloqueio petrolífero, a desapropriação das companhias de petróleo. Uma vez nacionalizadas as refinarias de petróleo, a empresa de eletricidade nega-se a aceitar os descontos de 30% e a funcionar com petróleo soviético; o cerco continua aumentando, cortaram a cota açucareira, nacionalizamos as centrais açucareiras e nacionalizamos a companhia de eletricidade. Com a cota açucareira reduzida, em 9 de julho as empresas estadunidenses recebem ordens de fazer inventários dos seus bens e registrá-los em cartório. Foram umas mudanças com golpes muito rápidos e espetaculares. Um mês mais tarde, no dia 6 de agosto, Fidel nacionaliza 36 centrais açucareiras estadunidenses e suas plantações, e acrescenta tudo isso à lista de nacionalização das refinarias, das empresas de petróleo e das companhias de eletricidade.”

 

 

“– Não estão trocando o domínio americano pelo soviético?

– É ingênuo pensar que homens que fizeram uma revolução libertadora como a nossa, agora vão se ajoelhar diante de algum dominador. Se a União Soviética tivesse exigido dependência política como condição para a sua ajuda, não a teríamos aceito.

A entrevista continua com alguns elogios e Che ri quando o chamam de cérebro da revolução e responde, sorrindo, que a tática de colocá-lo contra Fidel não funcionará; entretanto, fica indignado ao lembrar que na imprensa estadunidense foi publicado um artigo no qual difamavam sua esposa e sua ex-esposa, e aceita com gosto a denominação que você me dá de revolucionário pragmático (...) especulo pouco e não me caracterizo por ser um teórico.

Termina a entrevista de forma cautelosa:

E o que acontecerá agora? – pergunta Bergquist.

Isso depende dos Estados Unidos. Com exceção da reforma agrária, todas as outras medidas que tomamos foram reações, respostas diretas às agressões recebidas.

 

 

“Em 13 de outubro, o governo estadunidense declara o embargo de todas as mercadorias destinadas a Cuba, um bloqueio econômico. A resposta é imediata: nos dias 13 e 14 são nacionalizados 400 bancos, engenhos de açúcar e fábricas e, imediatamente depois, é promulgada uma lei de reforma urbana que entrega as moradias aos seus habitantes ou congela os aluguéis. Como resultado dessas medidas, o Departamento de Industrialização recebe 277 novas empresas, que se somam às 390 que já vinham administrando, além de quase todas as minas da ilha.”

 

 

A burocracia não nasce com a sociedade socialista nem é componente obrigatório dela, e atribui três causas ao fenômeno: falta de consciência, falta de organização e falta de conhecimentos técnicos.

Não tem papas na língua para criticar a direção econômica da revolução, na qual ele está envolvido pessoalmente, em particular com a Junta Central de Planejamento (Juceplan), por centralizar sem dirigir, e propõe uma série de soluções que nunca atingem a raiz do problema: motivação, educação, consciência, maior conhecimento técnico, organização, liberação de energias.

Che acredita que o grande remédio para a irracionalidade burocrática, produto da centralização e da hierarquização, é a reação social e a consciência. E confirmava sua tese com o registro de um fenômeno: quando o país colocava em tensão suas forças para resistir ao ataque inimigo, a produção industrial não diminuía, o absenteísmo desaparecia, os problemas resolviam-se com uma velocidade nunca vista antes, e resumia: O impulso ideológico era conseguido com o estímulo da agressão estrangeira.

 

 

“Às seis da manhã, do dia 15 de abril, aviões B-26 estadunidenses, pilotados por cubanos treinados pela CIA, bombardeiam as bases aéreas de Santiago, San Antonio de los Baños e Ciudad Libertad. Era o prólogo da já esperada invasão.

(...) É reconfortante saber com total certeza que pelo menos um dos aviões inimigos foi derrubado e caiu envolto em chamas... ainda pela manhã vimos o comandante Universo Sánchez – que se encontrava ferido por um resíduo de metralha, tomando as medidas necessárias caso se repetisse o ataque... estes novos nazistas, covardes, traidores, assassinos e mentirosos...

E termina: Não sabemos se este novo ataque será o prelúdio da tão anunciada invasão dos 5 mil vermes... Mas lutaremos sobre os cadáveres dos nossos companheiros, sobre os escombros das nossas fábricas, cada vez com maior determinação. Pátria ou morte!

No dia seguinte, Che está em Havana para participar do enterro dos mortos causados pelo ataque aéreo. O cortejo fúnebre avança pela rua 23, cercado de milhares de milicianos armados, enquanto as baterias antiaéreas, colocadas nos prédios mais altos, protegem a manifestação.

Na sua intervenção, Fidel nega que o ataque tenha sido realizado por aviões cubanos, como afirma a propaganda da CIA e declara que o objetivo da operação era destruir em terra a aviação cubana, para facilitar o ataque anfíbio. E é dentro desta lógica de confronto final, de tudo ou nada, de pátria ou morte, que Fidel determina o caráter socialista da revolução cubana.”

 

 

(Em 8 de agosto, no Uruguai) “Che participa da sessão plenária do Conselho Inter-americano Econômico e Social.

Começa fazendo uma citação de Martí: “O povo que quer ser livre, deve ser livre nos seus negócios” e estabelece o seu direito de falar de política deixando de lado os disfarces técnicos da reunião e destacando que um dos objetivos da conferência é julgar Cuba. Existe uma longa corrente que nos traz até aqui: aviões-piratas saindo de aeroportos estadunidenses, bombardeios nos canaviais, a explosão de La Coubre, as empresas de petróleo que em 1960 se negaram a refinar o petróleo soviético, a suspensão definitiva da cota açucareira em dezembro de 1960, a tentativa de atentado contra Raúl Castro que partiu de Guantánamo. Por tudo isso que acabo de dizer, considero que a revolução cubana não pode vir a esta assembleia de ilustres técnicos para falar de assuntos técnicos.

Define a revolução cubana como agrária, antifeudal e antiimperialista, que foi se transformando em uma revolução socialista devido a sua evolução. Fala das realizações: reforma agrária, igualdade para mulheres, não-discriminação da população negra, sucesso da campanha de alfabetização... E ataca a Aliança para o Progresso, o grande projeto de desenvolvimento criado por Kennedy para a América Latina e que, na sua opinião, trata-se de uma armação contra Cuba e o aumento da onda revolucionária. Não têm um pouco a impressão de que estão zombando da sua cara? Oferecem dólares para fazer estradas, oferecem dólares para abrir caminhos, oferecem dólares para fazer esgotos (...) Por que não dão dólares para equipamentos, dólares para maquinaria, dólares para que nossos países subdesenvolvidos possam se transformar, de uma vez por todas, em países agroindustriais? Realmente é triste. Em tom de brincadeira, estabelece a explicação para a Aliança para o Progresso: Cuba é a galinha dos ovos de ouro; enquanto existir Cuba, eles darão dinheiro.

(...) E resume: Não temos problema nenhum em ser excluídos da divisão de créditos, mas somos contrários a ser deixados de lado na intervenção na vida cultural e espiritual dos povos americanos (...) O que nunca admitiremos é que seja coagida a nossa liberdade de comercializar e de nos relacionar com todos os povos do mundo.

A força da mensagem é enorme. Talvez não consiga comover os representantes profissionais das ditaduras, das democracias de faz-de-conta, das oligarquias nativas, mas Che não fala para o público presente; Che quer ser ouvido pelos ausentes, por aqueles que formam a nova esquerda latino-americana que acha que a revolução cubana inaugurou uma era de profundas mudanças em um continente castigado pela desigualdade.

Em 9 de agosto, dá em Montevidéu uma entrevista coletiva, e entre brincadeiras, sorrisos e até aplausos, depois de ter falado aos jornalistas Perguntem o que quiserem, mas depois escrevam o que eu responder, Guevara passa duas horas respondendo a um bombardeio de perguntas, respondendo – com sorte alternada – a um variado questionário que inclui temas muito diversos.

Os presos de Girón e seu destino: Oferecemos trocá-los por Albizu Campos ou por tratores.

A pirataria aérea: Os estadunidenses estão ficando com os aviões desviados de Cuba.

Seus trabalhos voluntários como cortador de cana e carregador de bananas nas docas: O que estou lhe dizendo é verdade, não me olhe com esta cara de dúvida.

As eleições: Assim que o povo pedi-las em uma assembleia popular.

(pergunta feita por um jornalista peruano): – Nos últimos tempos, comenta-se que o racionamento de setecentos gramas por semana é um dos golpes mais baixos recebidos pelo povo cubano.

Eu não conheço esse racionamento. Tivemos que tomar algumas medidas em relação ao consumo de carne, que é muito maior do que o consumo per capita no Peru, para poder distribuir equitativamente a quantidade de que dispomos. Nos países como o Peru, o racionamento é feito de uma forma diferente: os que têm dinheiro compram carne e o pobre índio morre de fome. Você não acha que é assim?

– Acho que sim, mas há uma coisa que...

Que ninguém escute você dizer isso!

A nacionalização das escolas católicas. Agora são simplesmente escolas.

Os trotskistas: Resolvemos que não era prudente que o trotskismo continuasse incitando à subversão.

A igreja: um governo que não é religioso e que permite a liberdade de culto.

Listen Yankee, de Wright Mills: Em nossa opinião, é um livro que contém alguns erros, mas foi feito com toda sinceridade.

A possibilidade de novas revoluções socialistas na América Latina: Aumentarão, simplesmente porque são o produto das contradições entre um regime social que chegou ao fim da sua  e do povo que chegou ao fim da sua paciência.

     O que ele come, bebe, se fuma e se gosta de mulheres: Se não gostasse de mulheres não seria um homem. No entanto, deixaria de ser revolucionário se deixasse de cumprir nem que fosse uma só das minhas obrigações e dos meus deveres conjugais só porque gosto das mulheres (...) Eu trabalho entre 16 e 18 horas diárias, durmo seis horas quando consigo (...) Não bebo, mas fumo. Não tenho tempo para diversões e estou convencido de que tenho uma missão no mundo, e que devido a essa missão devo sacrificar a vida doméstica (...) e todos os prazeres da vida diária.

A sua argentinidade: Tenho o substrato cultural argentino, mas me sinto tão cubano como qualquer um nascido em Cuba.

Somente uma vez perde as estribeiras, quando um jornalista argentino (Luis Pedro Bonavista) fala sobre sua “ex-pátria” e Che, indignado, responde: Meu senhor, eu tenho uma pátria muito maior e muito mais digna que a sua, porque a minha pátria é toda a América, mas o senhor não conhece esse tipo de pátria.

 

 

“Em 3 de janeiro volta à sua rotina de ministro e inaugura uma fábrica de bolachas construída com restos de equipamentos descartados e materiais conseguidos em diversos lugares. Por partes e com muito esforço. E fica contente por ser uma fábrica de bens de consumo, porque não pode haver socialismo sem se dar mais produtos às pessoas.”

 

 

“É nesta época que Che recebe uma má notícia. Seu amigo, o Patojo, foi morto em combate na Guatemala. Pouco depois chega às suas mãos, procedente do México, uma mala que contém roupa e um caderno de poemas. Che escreve: Alguns dias atrás, ao se referir aos acontecimentos da Guatemala, o telegrama dava notícia da morte de alguns patriotas e entre eles estava Julio Roberto Cáceres Valle.

Neste trabalhoso ofício de revolucionário, em meio às lutas de classe que agitam todo o continente, a morte é um acidente frequente. Mas a morte de um amigo, companheiro de horas difíceis e dos sonhos das melhores horas, é sempre muito sofrida para quem recebe a notícia, e Julio Roberto era um grande amigo.

Depois de chegar a Cuba moramos quase sempre na mesma casa, como correspondia a uma antiga amizade. Mas a antiga confiança mútua não podia ser mantida nesta nova vida e só suspeitei do que Patojo queria quando às vezes o via estudando com interesse alguma língua indígena da sua pátria. Um dia ele me disse que ia embora, que tinha chegado a hora e que precisava cumprir o seu dever. Patojo não tinha instrução militar; simplesmente, sentia que o dever o chamava e ia tentar lutar na sua terra com armas na mão para repetir de algum modo a nossa luta guerrilheira. Tivemos umas poucas conversas longas desta época cubana; eu me limitei a lhe recomendar encarecidamente três coisas: mobilidade constante, desconfiança constante, vigilância constante (...) Era uma síntese da nossa experiência guerrilheira: a única coisa, além de um aperto de mãos, que eu podia dar ao meu amigo. Devia ter-lhe aconselhado a não fazer isso? Com que direito, quando tínhamos tentado algo que todos consideravam impossível, e ele, naquele momento, sabia que tínhamos conseguido?

Mais uma vez fica o gosto amargo do fracasso.

E esse gosto permaneceria com Che – essa sensação de que a América Latina era uma tarefa que deveria ser cumprida.”