Editora: Expressão Popular
ISBN: 978-85-7743-074-1
Tradução: Cláudia Schilling, Magda Lopes e Maria
Carbajal
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 728
Sinopse: Ver Parte
I
“(em 26 de outubro de 1960) Fidel envia uma nota
urgente a Kruschev: “A agressão é iminente e deve acontecer nas próximas 24-72 horas.
O mais provável é que seja um ataque aéreo limitado aos alvos que se quer destruir;
em segundo lugar vem a invasão. Resistiremos ao ataque, seja ele qual for”. Sugere
que, no segundo caso, se houver um ataque nuclear, a resposta também seja nuclear.
Nesse mesmo dia, Kennedy manda aumentar a frequência dos voos de observação.
No dia seguinte, Fidel ordena que se dispare contra
os voos piratas. Ao meio dia, um avião U-2 estadunidense que sobrevoa território
cubano é derrubado por um projétil SAM, disparado por iniciativa dos comandantes
russos de uma das bases.
A tensão chega ao ponto máximo. E, então, sem
advertir nem levar em consideração os cubanos, Kruschev propõe a Kennedy o desmantelamento
em troca de uma proposta de não-invasão a Cuba e de uma negociação sobre a retirada
dos mísseis estadunidenses da Turquia, que estão dirigidos contra a Rússia. Em princípio,
Kennedy aceita a proposta e novamente os cubanos ficam no meio do jogo político
da guerra fria.
Em 28 de outubro, na redação do jornal Revolución,
o diretor Carlos Franqui recebe um telegrama da AP dizendo que Nikita vai retirar
os mísseis. O diretor do diário entra em contato com Fidel. Para o dirigente cubano,
é a primeira notícia sobre o assunto. Fidel solta uma ladainha de insultos: “Moleque,
como, filho-da-puta”. No dia seguinte, o jornal Revolución anuncia: “Os soviéticos
retiram os mísseis”. O povo nas ruas canta: “Nikita, mariquita, lo que se da no
se quita*”
No dia seguinte, Fidel recebe um boletim informativo
de Kruschev. O dirigente soviético esclarece que negociou com base em uma promessa
de Kennedy de não intervenção em Cuba. Fidel declara publicamente que se opõe a
uma inspeção de Cuba, justifica a derrubada do avião e responde a Kruschev: “O perigo
não nos assusta, porque já ficou tanto tempo pairando sobre nós, que acabamos nos
acostumando a ele”.
(...) Em um artigo escrito nesses dias e que só
seria publicado depois da sua morte, talvez pela denúncia da atitude dos soviéticos,
“Tática e estratégia da revolução latino-americana”, Che faz um balanço muito duro
da crise. É o exemplo arrepiante de um povo disposto a se imolar atomicamente
para que suas cinzas sirvam de base para as novas sociedades. E quando – sem o povo
ser consultado – é firmado um pacto que determina a retirada dos mísseis atômicos,
não suspira de alívio nem agradece a trégua; declara com voz própria e única a sua
posição de combatente, própria e única, e, mais ainda, sua decisão de lutar nem
que seja sozinho.”
*Nikita, seu viado, o que é dado não pode ser
tirado.
“Novamente Che se retira para cumprir suas tarefas
de industrialização, constatando que a produtividade tinha aumentado durante a crise...
apesar das mobilizações das milícias, dos alertas, das prioridades militares nos
transportes... Só há uma forma de entender isso: a consciência dos trabalhadores
nos momentos de crise eleva-se acima dos problemas; é a tensão política, o fator
de consciência que faz a diferença que nenhuma norma, compulsão ou grande prêmio
podem conseguir. Era a própria lição da sua vida: o grande dínamo era a consciência
social, a vontade”.
“Che continua sendo o personagem difícil e querido,
que pressionava brutalmente seus colaboradores e mantinha uma eterna reserva, muito
difícil de se romper. Otulski conta: “Fomos ficando mais próximos em diversos encontros,
mas sem intimidade nem amizade, e nos primeiros meses tivemos alguns confrontos.
Um dia, coloquei a mão sobre seu ombro em sinal de afeto e ele me disse:
– Por que essa confiança?
Eu tirei a mão. Os dias foram passando e uma vez
ele me disse:
– Sabe que você não é tão filho-da-puta como tinham
me contado?
Rimos muito e ficamos amigos”.”
“As anedotas sobre o peculiar estilo de Che continuam
se multiplicando: em 21 de janeiro, o conselho diretor do Ministério da Indústria
estuda as empresas farmacêuticas. Che tinha a seu lado uma garrafa térmica cheia
de café e Gravalosa lhe pede para abri-la e servir o café. Mas a garrafa permanece
fechada durante toda a reunião. Ao terminar, Gravalosa reclama: “Reuniões sem café...”
e Che responde: Não havia café suficiente para todos, por isso não há café para
ninguém.”
“Em 23 de fevereiro, o comandante Guevara está
cortando cana na Central Orlando Nodarse, juntamente com uma brigada do ministério;
o motorista fica na sombra, no caminhão, e Che, contendo a raiva, chega perto dele
e diz:
– Companheiro, onde está o seu facão?
– Eu não vim cortar cana, eu sou motorista.
– Escute,
motorista qualquer um pode ser. Pode procurar um facão e começar a trabalhar como
todos nós ou pode ir embora neste instante. E não se preocupe com o caminhão, que
eu mesmo posso dirigir na volta. Como acontece sempre com as vidas dos santos,
a versão já chegou até nós suavizada; o leitor pode colocar alguns “porra” e “puta
que o pariu” e terá uma versão mais próxima da realidade, segundo o depoimento de
um dos colaboradores de Che ao autor.”
“Em 20 de fevereiro, Che responde a uma carta
de María Rosário Guevara de Casablanca, dizendo que não tem ideia de que lugar da
Espanha procede a sua família. Mas já faz muito tempo que os meus antepassados
saíram de lá, com uma mão na frente e outra atrás, e se não conservo as minhas assim
é devido ao incômodo da posição. Não acredito que sejamos parentes próximos, mas
se você é capaz de tremer de indignação cada vez que se comete uma injustiça no
mundo, então, somos companheiros e isso é muito mais importante.”
“Nesse momento (setembro de 1963), a guerrilha
de Masetti está em uma fase prévia ao início dos combates, realizando trabalho político
com os camponeses da região e em processo de treinamento. Masetti escreve à sua
esposa: já percorremos mais de uma centena de quilômetros no mapa, mas na realidade
são muitos mais. Nosso contato com o povo é positivo, sob todos os pontos de vista.
Dos coyas aprendemos muitas coisas e ajudamos em tudo que é possível. Mas, o mais
importante, é que querem lutar... Esta é uma região em que a miséria e as doenças
chegam ao seu nível máximo e até o superam. Há uma economia feudal... A pessoa que
vier aqui e não se indignar, quem chegar aqui e não pensar em pegar em armas, quem
puder ajudar de qualquer forma e não o fizer, é um canalha...”
“Leonardo Tamayo: Che sempre tinha a Argentina
na cabeça, embora falasse um monte de barbaridades sobre sua terra natal e seus
patrícios. Che dizia: O último país a se libertar na América Latina será a Argentina.
Na Argentina, apesar de haver pobres, o camponês come bons bifes e a luta só começa
quando a pobreza é extrema. E para tirar de casa os argentinos, é preciso um guindaste.”
“Em 11 de dezembro (de 1964), fala na ONU. O discurso
significa um verdadeiro ajuste de contas da revolução cubana com os Estados Unidos
e com as ditaduras latino-americanas. Talvez seja seu melhor discurso e uma das
melhores expressões da política internacional da esquerda revolucionária da década
de 1960.
Depois de declarar que os ventos da mudança avançam
por toda parte, queixa-se de que o imperialismo estadunidense, principalmente,
pretende fazer acreditar que a coexistência pacífica pertence exclusivamente às
grandes potências da Terra. E registra: agressões contra o reino do Camboja,
bombardeios no Vietnã, pressões turcas sobre o Chipre, agressões no Panamá, prisão
de Albizu em Puerto Rico, manobras para adiar a independência da Guiana, apartheid
na África do Sul e a intervenção neocolonial no Congo, à qual dedica boa parte do
discurso e uma frase significativa (todos os homens livres do mundo devem estar
dispostos a vingar os crimes cometidos no Congo), e depois de subscrever a petição
de desarmamento nuclear, um dos motivos principais da conferência, passa a fazer
um ajuste de contas, informando sobre as agressões recentes contra Cuba e a recente
proibição estadunidense de lhe vender remédios. Propõe um plano de paz no Caribe,
incluindo a desativação da base de Guantánamo, o término dos voos, dos ataques e
das infiltrações de sabotadores e de lanchas piratas procedentes dos Estados Unidos,
assim como o fim do bloqueio econômico. Para ilustrar a magnitude do problema, registra
1.323 provocações de todo tipo durante o ano em curso, todas originadas da base
de Guantánamo.
Resume o apoio dos Estados Unidos às ditaduras
latino-americanas e sua intervenção direta na Venezuela, na Colômbia e na Guatemala
na luta contra as guerrilhas. Muito longe da linguagem habitual da coexistência
pacífica, está o desafio de Che e a sua ameaça: O nosso exemplo dará frutos no
continente.
Sua intervenção, além da resposta professoral
de Adlai Stevenson, provoca a fúria dos delegados de Costa Rica, Nicarágua, Panamá,
Venezuela e Colômbia.
Algumas horas depois, volta ao palco, solicitando
o direito de resposta.
Agora, Che está no seu elemento – como polemizador
– e enfrenta os delegados: o de Costa Rica, por ignorar a existência de uma base
de contrarrevolucionários cubanos dirigidos por Artime, onde se faz contrabando
de whisky; o da Nicarágua: não entendi bem a sua argumentação em relação ao sotaque
(acho que não se referiu a Cuba, Argentina, talvez à União Soviética), mas espero
que em todo caso o representante da Nicarágua não tenha encontrado sotaque estadunidense
no meu discurso, porque isto sim, seria perigoso. Realmente pode ser que durante
o meu discurso tenha escapado algum sotaque da Argentina. Eu nasci na Argentina;
isso não é segredo para ninguém. Sou cubano e também sou argentino e, sem querer
ofender às ilustríssimas senhorias da América Latina, sinto-me tão patriota da América
Latina, de qualquer país latino-americano, quanto qualquer um de vocês, e no momento
em que seja necessário, estou disposto a dar a vida pela libertação de qualquer
um desses países, sem pedir nada a ninguém, sem exigir nada e sem explorar quem
quer que seja. E este é o ânimo, não só deste representante transitório diante desta
Assembleia, mas de todo o povo de Cuba.
A seguir, chega a vez de criticar Stevenson, que
já havia se retirado da Assembleia, e lhe demonstra que está mentindo ao negar o
embargo de remédios; que faz demagogia com a questão de oferecer asilo aos invasores
da Baía dos Porcos (dariam asilo ao pessoal que eles mesmos tinham armados).
Lembra da sua afirmação que os aviões que tinham atacado Cuba durante a batalha
de Girón tinham saído de Cuba, quando na verdade tratava-se de uma operação da CIA
e lhe joga na cara este argumento: aconteça o que acontecer, continuaremos sendo
uma pequena dor de cabeça sempre que cheguemos até esta Assembleia ou a qualquer
outra, porque estamos dispostos a chamar as coisas pelos seus devidos nomes e a
dizer que os representantes dos Estados Unidos são os agentes da repressão no mundo
inteiro.”
“Deve ser dito com toda sinceridade que em
uma verdadeira revolução, na qual se entrega tudo, sem esperar nenhuma retribuição
material, a tarefa do revolucionário de vanguarda é ao mesmo tempo magnífica e angustiante
(...) Nestas condições é necessário ter uma grande dose de humanidade, uma grande
dose de senso de justiça e de verdade, para não cair em extremos dogmáticos, em
escolasticismos frios, no isolamento das massas. É necessário lutar todos os dias
para que este amor pela humanidade se transforme em fatos concretos, que sirvam
de exemplo, de mobilização...”
“Dessa longa conversa, só conhecemos os breves
comentários feitos por Fidel ao longo dos anos. Em um deles, afirma que “eu mesmo
sugeri a Che que era necessário ganhar tempo, esperar” (para se lançar numa tarefa
dessas na América Latina); mas Che queria ir embora.
Sentia Che o peso dos anos? Teria medo de não
estar em condições físicas para uma nova experiência guerrilheira? O próprio Fidel
sugere isso durante sua conversa com Gianni Mina: “Acredito que influiu o fato do
tempo estar passando. Ele sabia que para tudo isso era necessário ter condições
físicas”; também devemos levar em consideração as palavras de Che, lembradas por
Manresa, seu secretário particular: “Em 1961, quando chegamos ao escritório do Departamento
de Indústria, Che encostou-se em um arquivo e disse:
– Vamos passar cinco anos aqui e depois vamos
embora. Com cincos anos mais, ainda podemos fazer uma guerrilha...”
Tinham passado apenas quatro anos.
E Fidel não podia, nunca pôde, detê-lo, segurá-lo.
Sem dúvida, Che nesse momento apela a uma antiga dívida que Fidel tinha contraído
com ele, assumida nos já longínquos dias do exílio: “Quando ele se juntou a nós,
no México, pediu somente uma coisa:
– A única coisa que eu quero é que, depois
de a revolução ter triunfado, se eu quiser ir lutar na Argentina, que isso não seja
impedido, que não exista nenhuma razão de Estado que não me permita fazer isso.
E eu prometi. Em primeiro lugar, ninguém sabia
se iríamos ganhar a guerra nem se iríamos ficar vivos para contar a história”.”
“Fidel e Che saem para conversar. Che entrega
à Fidel os papéis que vinha escrevendo – é a sua carta de despedida.
Fidel, nesse momento, lembro-me de muitas coisas.
Lembro-me de quando conheci você na casa de María Antonia, de quando você me propôs
ir junto, de toda a tensão dos preparativos. Um dia, passaram perguntando a quem
deveriam avisar em caso de morte e a possibilidade real do fato foi um golpe para
todos. Depois soubemos que isso era verdade, que em uma revolução ou se vence ou
se morre (se ela for verdadeira). Muitos companheiros caíram no caminho para a vitória.
Hoje tudo tem um tom menos dramático, porque estamos
mais amadurecidos, mas o fato se repete. Sinto que cumpri a parte do meu dever que
me ligava à Revolução Cubana neste território e quero me despedir de você, dos companheiros
e do seu povo, que já é meu também.
E continua, declarando que tem uma dívida com
Fidel – o fato de ter pensado em algum momento que não poderia chegar até o fim.
Vivi dias magníficos ao seu lado e senti orgulho de pertencer ao nosso povo,
naqueles dias luminosos e tristes da crise do Caribe. Poucas vezes brilhou tão alto
um estadista como nesses dias, e me orgulho de ter seguido você sem vacilar, de
ter me identificado com a sua maneira de ver e de sentir os perigos e os princípios.
Outras terras do mundo reclamam a contribuição dos meus modestos esforços. Posso
fazer o que é negado a você, devido à sua responsabilidade com Cuba, e chegou a
hora de nos separarmos.
A carta não está isenta de certo dramatismo e
nela não aparece o habitual tom irônico de Che. Parece sentir que a despedida é
para sempre. Deixo aqui o que há de mais puro em minhas esperanças de construtor
e os mais queridos dos meus seres queridos (...) e deixo um povo que me acolheu
como a um filho: isso dilacera uma parte do meu espírito.
E o tom se repete: Declaro mais uma vez que
libero Cuba de qualquer responsabilidade, salvo a que brota do seu exemplo. E que
se a minha hora chegar sob outros céus, meu derradeiro pensamento será para este
povo e especialmente para você.
Há na carta um tom de testamento: Não deixo
a meus filhos nem a minha mulher nada material e não o lamento; fico contente que
seja assim. Não peço nada para eles, porque o Estado lhes proporcionará o suficiente
para viverem e se educarem.
São muitas as coisas que gostaria de dizer a você
e ao nosso povo, mas sinto que são desnecessárias. As palavras não podem expressar
o que eu quero e não vale a pena gastar papel. Até a vitória, sempre. Pátria ou
morte!
Recebe o meu abraço com todo fervor revolucionário.
Che.”
(Luta no Congo) “Não, tudo havia ido muito mal.
Às cinco horas da madrugada, os cubanos tinham aberto fogo com um pequeno canhão
e com metralhadora, surpreendendo os defensores do quartel; entretanto, logo depois,
começam as deserções dos ruandeses, assustados com os morteiros e metralhadoras
dos mercenários. Desesperado, Dreke resume: “Naquele momento só os cubanos continuaram
atirando. Não tínhamos muitos projéteis. Os ruandeses, que não sabiam atirar rajadas
curtas, metiam o dedo e gastavam os 30 tiros de uma vez só. Estávamos combatendo
contra um batalhão de 500, 600 homens. Não se tratava de tomar o quartel, mas de
provocá-los para que caíssem nas emboscadas. Com o tempo, percebemos que havia muitos
covardes. Diziam que a Dawa* era muito fraca. Todo mundo sente medo na guerra, mas
temos de superá-lo para viver. O barulho de um calibre 50 ou 30 em uma selva escura,
com neblina, animais apavorados em fuga, é impressionante. Não era muito fácil para
ninguém, nem para os nossos, que se comportaram muito dignamente, que aguentaram.
Dois ou três ruandeses aguentaram conosco. Depois de um ato de covardia, pode nascer
um herói. Sabemos disso. Mas nossa gente não entendeu; esperávamos muito mais deles”.
Essa foi a tônica da operação: começamos com brio, mas antes do início do combate,
já tínhamos perdido homens em muitas posições e depois houve uma debandada completa.”
* Suposta magia que protegeria os combatentes
de tiros.
“A presença do inimigo, que até então tinha estado
muito passivo, começa a se fazer sentir. Aumentam os bombardeios, as aldeias camponesas
são metralhadas. Lançam-se panfletos nos quais o governo de Mobutu oferece recompensas
aos camponeses pelos assessores cubanos e tratamento justo para aqueles que abandonarem
as armas. Jogavam os panfletos depois de bombardear e semear o terror. Parece
que este é um método-padrão dos exércitos repressivos. Esta presença aérea corresponde
à chegada de 200 milhões de dólares de financiamento estadunidense ao governo e
à chegada de assessores da CIA; entre eles havia estadunidenses, cubanos veteranos
da Baía dos Porcos, soldados da Rodésia e da África do Sul, uma operação descrita
por um dos membros da CIA como “levamos nossos próprios animais”.”
“De onde Che tira energia para este retorno depois
da terrível experiência congolesa? Após sua morte, o jornalista americano I.F. Stone
reflete: “Com a assunção do poder temporal, tanto a revolução quanto a igreja entram
em um estado de pecado. Podemos imaginar facilmente como esta lenta erosão da virtude
original deve ter incomodado Che. Não era cubano e não podia se sentir satisfeito
se libertasse apenas um país latino-americano. Pensava em termos continentais. Em
certo sentido, estava como os santos primitivos, procurando refúgio no deserto.
Só lá a pureza da fé poderia ser salvaguarda do irregenerável revisionismo da natureza
humana”. Mas há algo mais que Stone não percebeu. A América Latina não era apenas
um território salgariano*, onde podia ser praticada a estocada secreta que despacharia
os miseráveis de maneira honrosa, ou a zona de sonhos juvenis associada à vingança
vemiana** do capitão Nemo, utilizando imagens literárias da infância guevarista.
A América Latina também era um continente absolutamente real. E suas imagens, as
misérias profundas dos bairros de Caracas, o horror da desigualdade social peruana,
a demagogia boliviana, a prepotência dos militares colombianos, o abuso imperial
mafioso na América Central, os ditadores de faz-de-conta que ordenavam torturas,
a desnutrição, a fome, a ignorância, o medo, eram imagens reais que Che havia gravado
em sua retina durante as viagens da juventude. Daí a tenacidade de Che, a clara
consciência de que a necessidade da revolução latino-americana – não só sua necessidade
moral –, era inadiável. E se isto fosse pouco, em 1966 esta revolução parecia possível,
não só no sentido de algo realizável, atingível, mas no mais terrível e urgente
sentido de próxima.”
* Relativo à Emólio Salgari (1863-1911).
** Relativo à Jules Verne (1828-1905), escritor
francês.
(Durante a guerrilha na Bolívia) “Estava esquecendo
de ressaltar um fato: hoje, depois de um pouco mais de seis meses, tomei um banho.
Constitui um recorde que vários já estão alcançando.”
“Simón Cuba (do qual uma semana antes Che dissera
que talvez aproveite alguma confusão para tentar escapulir sozinho), estava
chegando ao ponto mais alto da subida de uns 60 metros de uma escarpa muito íngreme,
suportando praticamente todo o peso do comandante Guevara que, ferido na perna direita
e com um terrível ataque de asma, mal podia se mexer. Che ainda segurava sua carabina
M-2 inutilizada no último confronto (um tiro que ia em sua direção acertou a arma).
O cabo Balboa e os soldados Encinas e Choque deixam-nos
avançar e depois Balboa grita-lhes que se rendam. Simón não tem tempo de levantar
seu fuzil porque os três soldados estavam mirando para ele. Então, dizem que gritou:
“Este é o comandante Guevara e vocês vão respeitá-lo, caralho!”
Os soldados, desconcertados, se encolhem; conta-se
inclusive que um deles disse: “Sente-se, senhor”. Depois, recuperados do espanto,
tiram as armas dos prisioneiros: o fuzil de Simón, o M-2 quebrado de Che, sua pistola
e um punhal Solingen.”
“Mais ou menos nesse mesmo momento, um dos três
grupos de guerrilheiros que estavam combatendo na parte alta da quebrada (Inti Peredo,
Harry Villegas, Alarcón, Ñato Méndez, Leonardo Tamayo, Adriazola) consegue chegar
ao ponto de encontro previamente combinado com Che, depois de evitar astutamente
mais soldados bolivianos. No caminho, encontram farinha jogada no chão; os combatentes
se preocupam, Che nunca teria permitido isto. Mais tarde, aparece o prato de Che
pisoteado. Inti Peredo narra: “Eu o reconheci, porque era uma vasilha funda, de
alumínio. Não encontramos ninguém no lugar da reunião, embora tenhamos reconhecido
rastros e as abarcas do Che, que deixavam uma marca diferente dos outros calçados
e por isso mesmo, eram facilmente identificáveis. Mas este rastro perdia-se mais
para a frente”. Alarcón completa: “Vimos o Che sair e escapar do cerco e por isso
acreditamos que ele já estivesse fora de perigo. Deviam ser três da tarde quando
vimos o Che iniciar a retirada; então dissemos: já está fora de perigo. Mas é que
não vimos que ele tinha voltado para socorrer Simón e o Chino (...). O combate terminaria
por volta das cinco da tarde.”
“Depois da uma da tarde, Terán, de baixa estatura
– não devia medir mais de 1,60m, atarracado, 65 quilos –, entrou no quartinho da
escola onde o Che estava. Trazia nas mãos um M-2 que pedira emprestado ao suboficial
Pérez. No quarto ao lado, Huanca acabava com Chino e Simón.
Che estava sentado em um banco, com os pulsos
amarrados, encostado na parede. Terán vacila, diz alguma coisa, Che responde:
– Nem se incomode. Você veio me matar.
Terán faz um movimento como se fosse ir embora
e dispara a primeira rajada, respondendo à frase, que quase 30 anos depois, dizem
que Che proferiu: – Atire, covarde, que vai matar um homem!
“Quando entrei na sala, o Che estava sentado num
banco. Quando me viu, disse: Você veio me matar. Eu não tinha coragem de disparar,
e então o homem me disse: Fique calmo, você vai matar um homem. Então, dei
um passo para trás, rumo à soleira da porta, fechei os olhos e disparei a primeira
rajada. Che caiu no chão com as pernas destroçadas, contorceu-se e começou a perder
muito sangue. Recuperei o ânimo e disparei a segunda rajada, que o atingiu no braço,
em um ombro e no coração”.
Pouco depois, o suboficial Carlos Pérez entra
no quarto e dispara contra o corpo. Não será o único: o soldado Cabero, para vingar
a morte de seu amigo Manuel Morales, também dispara contra Che.
As diferentes testemunhas parecem concordar sobre
a hora da morte de Ernesto Che Guevara: uma e dez da tarde do domingo, 9 de outubro
de 1967.”
“A morte de Ernesto Guevara provocou estupor,
desconcerto, assombro, perturbação, raiva, impotência, em milhares de homens e mulheres.
Em apenas 11 anos de vida política e sem querer, Che tornou-se material simbólico
da tantas vezes adiada e traída revolução latino-americana. Nossa única certeza,
naqueles anos, era que o material dos sonhos não morre nunca.”
“Há uma lembrança. Desde milhares de fotos, pôsteres,
camisetas, fitas, discos, vídeos, postais, retratos, livros, frases, testemunhos,
todos os fantasmas da sociedade industrial que não sabe depositar seus mitos na
sobriedade da memória, Che nos vigia. Para além de toda parafernália, ele retorna.
Em era de naufrágios, é nosso santo leigo. Décadas depois de sua morte, sua imagem
cruza as gerações, seu mito passa deslizando em meio aos delírios de grandeza do
neoliberalismo. Irreverente, irônico, obstinado, moralmente obstinado. Inesquecível.”