segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O Brasil privatizado: Um balanço do desmonte do Estado (Parte II), de Aloysio Biondi

Editora: Geração Editorial

ISBN: 978-85-8130-257-7

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 256

Sinopse: Ver Parte I



Até tu, Malan?

Tudo somado, contas benfeitas mostrariam que as privatizações não reduziram a dívida e o “rombo” do governo. Ao contrário, elas contribuíram para aumentá-los. O governo ficou com dívidas — e sem as fontes de lucros para pagá-las.

Ironicamente, o governo reconheceu isso com todas as letras. Na carta de intenções que o ministro da Fazenda, Pedro Malan, entregou ao FMI (Fundo Monetário Internacional), inconscientemente, o governo confessa que o equilíbrio das contas do Tesouro ficou mais difícil porque... o governo deixou de contar com os lucros que as estatais ofereciam como contribuição para cobrir o rombo até serem vendidas. Pasmem-se, mas é verdade.”

 

 

Importações, o ralo

Antes mesmo das privatizações, o governo elevou os investimentos na área de telecomunicações, de 3,5 bilhões para 7 bilhões de reais por ano, como já visto. Apesar dessas cifras, o faturamento dos fabricantes brasileiros recuou, empresas foram fechadas e o desemprego avançou... Razão da contradição? As grandes multinacionais, já existentes ou extraídas para o setor — e beneficiadas, mais uma vez, por financiamentos do BNDES —, passaram a importar maciçamente. Alguns equipamentos de telefonia chegaram a utilizar 97% de peças e componentes importados — e aparelhos celulares de algumas marcas chegam a utilizar de 85% a 100% de peças vindas do exterior, isto é, são apenas “montados” no país.

Quando preparava a privatização, o governo chegou a acenar com a possibilidade de obrigar as fábricas locais a usarem pelo menos 35% de peças e componentes nacionais. À medida que o leilão se aproximava, porém, o governo foi recuando, rebaixou aquela previsão de 20% de índice de nacionalização e, no final, às vésperas do leilão, descartou qualquer obrigatoriedade de compra de peças nacionais. Estabeleceu apenas que o BNDES iria financiar fabricantes do país, quando seus produtos competissem com similares estrangeiros em termos de preço, tecnologia e prazo de entrega. Ao regulamentar a decisão, porém houve novo recuo governamental: os financiamentos serão concedidos às próprias empresas “compradoras” das teles, que terão liberdade para escolher os fornecedores, mantendo-se a “preferência” pelo produto nacional, dentro das condições expostas acima. Isto é, tudo apenas para inglês ver... Resultado: em suas primeiras “concorrências” para a compra de equipamentos, em março de 1999, a Telefônica, comprada da Telesp de São Paulo, não convidou uma única empresa brasileira fabricante de peças e equipamentos para disputar as encomendas. O peso das importações do setor de telecomunicações no “rombo” da balança comercial pode ser avaliado por estes dados: de 1993 a 1998, as compras da área de telecomunicações no exterior aumentaram dez vezes, 1.000%, de 280 milhões de dólares para 2,8 bilhões de dólares, deixando um déficit setorial de 2,5 bilhões de dólares.

Esses números, ainda por cima, não retratam o verdadeiro tamanho do “rombo” em dólares provocado pelo setor. Por quê? Há peças e componentes que são classificados como produtos “eletrônicos”, embora na verdade se destinem ao setor de telecomunicações. E, nessa área de eletrônicos, o déficit ganhou dimensões assombrosas, chegando aos 8 bilhões de dólares, com a importação de 11 bilhões de dólares e a exportação de 3 bilhões de dólares. Bom notar: o saldo negativo do setor é superior a todo o “rombo” da balança comercial brasileira, de 6,4 bilhões de dólares. Vale dizer: ele é capaz de devorar o valor das exportações e os saldos positivos de outros setores — sobretudo a agricultura... No frigir dos ovos, as privatizações contribuíram para a “torra” de dólares, o “rombo” nas contas externas e consequentes abalos nas cotações do real.”

 

 

Adubo para a recessão

Implantada com distorções, a política de privatizações acabou por ser um dos fatores da recessão, por diversos caminhos. As importações maciças realizadas pelos “compradores” tiveram um efeito mais devastador do que parecia à primeira vista. A compra de peças e componentes no exterior, em substituição à produção local, significou cortes na utilização também de matérias-primas, como plástico, borracha, metais, devastando setores inteiros, fechando fábricas, cortando empregos — isto é, puxando a economia do país para o fosso. Além disso, a própria concentração dos empréstimos do BNDES a esses “compradores” implicou, na prática, que as demais áreas e centenas de milhares de empresas continuassem às voltas com a falta de crédito. Ou, ainda, submetidos a juros elevadíssimos, enquanto os clientes do BNDES desfrutam de taxas baixíssimas, privilegiadas: chegam a apenas um terço dos juros cobrados no mercado.”

 

 

No primeiro semestre de 1997, a Telebras ainda era uma empresa estatal. Mas seu lucro, naqueles seis meses, deu um salto de 250%, passando para 1,8 bilhão de reais, contra 500 milhões de reais em igual período do ano anterior. Fenômeno similar ocorreu com as compras de energia elétrica: a lucratividade da Eletrobras explodiu para 1,5 bilhão de reais, com praticamente 200% de avanço sobre os 550 milhões de reais do ano anterior. Como explicar esses saltos, que desmentem desde já as afirmações repetidas pelo governo FHC e pelos meios de comunicação de que as estatais são um “saco sem fundo”, que devoram o dinheiro do Tesouro?

Não houve “milagre” algum. Pura e simplesmente, como já visto, o governo havia, finalmente, começado a eliminar o congelamento das tarifas dos serviços das estatais, atualizando-as. Bastou dar início aos reajustes negados durante anos, enquanto a inflação continuava a aumentar os custos das estatais, para a situação se inverter e os lucros dispararem. Sem privatização.

Os prejuízos que o achatamento de tarifas e preços trouxe para as estatais teve efeitos que o consumidor conhece bem: nesses períodos, eles ficaram sem dinheiro para investir e ampliar serviços. Explicam-se, assim, as filas de espera para os telefones ou as constantes ameaças de “apagões” no sistema de eletricidade. Ou, dito de outra forma: não é verdade que os serviços das estatais tenham se deteriorado por “incompetência”. Como também é mentira que o “Estado perdeu sua capacidade de investir”, como diz a campanha dos privatizantes. O que houve foi uma política absurda que sacrificou as estatais.

Além do congelamento das tarifas, houve outra decisão — absolutamente incrível — que prejudicou os investimentos nas estatais de todas as áreas. Por incrível que pareça, repita-se, em 1989, houve um decreto do presidente da República, nunca revogado, simplesmente proibindo o banco oficial, o BNDE (hoje BNDES), de realizar empréstimos a empresas estatais.

 

Cancelando a história

Proibir um banco estatal de financiar empresas estatais, de setores vitais para o país, é uma decisão esdrúxula. Mas, no caso do BNDES, chega à beira da insanidade, porque esse banco, como o próprio nome — Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico (e Social) — diz, foi criado no governo Juscelino Kubitschek exatamente com o objetivo de fornecer recursos para a execução de projetos de infraestrutura, que exigem desembolso de bilhões e bilhões — e precisam de alguns anos para sua execução. Mais especificamente, dentro da filosofia desenvolvimentista do governo JK, o BNDES disporia de recursos retirados do Imposto de Renda (e outras fontes de “impostos”, como o PIS/Pasep) para permitir a construção de usinas hidrelétricas, ferrovias, rodovias, portos, sistemas de telecomunicações, enfim, toda a infraestrutura que o processo de industrialização exigia. Um instrumento estratégico, em resumo, capaz de viabilizar a política de desenvolvimento de longo prazo, incumbido de dar apoio às áreas consideradas prioritárias.”

 

 

Assim como os subsídios à população pobre reduziam os lucros das teles e empresas de energia, a Petrobras também pagou o preço de decisões que o governo tomou em favor de outros setores, por considerá-los “estratégicos” dentro da política econômica do momento. Para permitir que a indústria petroquímica nacional tivesse preços capazes de enfrentar a concorrência internacional, por exemplo, a Petrobras durante longos anos vendeu a nafta, matéria-prima do setor, a preços mais baixos, com um “prejuízo” acumulado que chegou aos 4 bilhões de dólares. Na mesma linha, as siderúrgicas estatais, como CSN, Cosipa, Usiminas, tiveram os preços do aço achatados em até 75%, acumulando imensos prejuízos em seus balanços. Somente quando se preparava a privatização é que o aço teve aumentos de até 300% nos preços. Por que o achatamento? O governo impôs preços mais baixos na venda do aço nacional para que as indústrias de automóveis, eletrodomésticos, máquinas e equipamentos, principalmente, tivessem custos mais baixos e conseguissem exportar, ou evitar importações, trazendo dólares para o país. As siderúrgicas estatais, portanto, também foram utilizadas como arma na guerra para obter dólares (e conter a inflação). Por isso, ficaram arruinadas. É lamentável que os consumidores de aço ou nafta, que foram beneficiados com subsídios das siderúrgicas estatais e da Petrobras, nunca tenham dito uma palavra para explicar à opinião pública que essa política foi a principal culpada pelos prejuízos das siderúrgicas — e pela menor lucratividade da Petrobras —, permitindo que a população fosse convencida de que as estatais “sugavam” o Tesouro.”

 

 

Subtrair, subtrair...

Em 1996 e 1997, já decidida a privatização, o governo investiu 16 bilhões de reais no sistema Telebras e, somente no primeiro semestre de 1998, às portas do leilão realizado em julho, mais 5 bilhões de reais. No total, 21 bilhões de reais, praticamente mais de duas vezes e meia (250%) os 8,8 bilhões de reais recebidos de entrada pela sua privatização.

Há mais, porém. O sistema Telebras, graças ao descongelamento rápido das tarifas e à expansão do número de linhas e serviços trazidos por aqueles investimentos do governo, apresentou faturamento e lucros crescentes, que chegaram aos 4 bilhões de reais em 1997 — e pela lógica continuariam a crescer nos anos seguintes. Além disso, não se pode esquecer o cálculo do retorno que o governo poderia obter sobre esse dinheiro aplicado nas teles: mesmo a juros médios de 20% ao ano, baixíssimos em relação ao padrão brasileiro naquele período, os 21 bilhões gastos pelo governo deveriam render aproximadamente 9 bilhões de reais nos mesmos 30 meses.

E os demais investimentos realizados ao longo de décadas, antes de 1996, para formar o patrimônio da Telebras? Não entram no preço da venda? Não. É isso que a maioria dos brasileiros não entendeu até hoje — e por isso aceita passivamente a entrega das estatais aos preços anunciados.”

 

 

Desde maio de 1998, os banqueiros e investidores internacionais já estavam fugindo, cortando o crédito, do Brasil, e o real caminhava para a desvalorização. Os leilões da Telebras, a toque de caixa, eram uma forma de captar dólares e reais, mesmo que em quantidades abaixo do preço justo, e permitir que o governo mantivesse a ilusão do real até a reeleição. Prevaleceu a política de vender as estatais a preço de banana, com a “torra” de um patrimônio de 120 bilhões de reais. Mas o preço baixo da Telebras não foi uma exceção.”

 

 

• Rede Ferroviária — o governo previa, inicialmente, arrecadar 4 bilhões de reais. Vendeu todas as malhas — a prazo — por aproximadamente 1,4 bilhão de reais. Investimentos previstos pelos “compradores” para a recuperação de 400 locomotivas: 240 milhões de reais. Em 20 anos. Ou 12 milhões de reais por ano. Tostões.”

 

 

E o Banespa?

Antes mesmo do BB, o Banespa já havia sido vítima de manobras para considerá-lo “quebrado”. Poucos dias antes da posse do governador Mário Covas, em seu primeiro mandato, no final de 1994, o Banco Central decretou a intervenção no banco paulista, alegando que o estado havia deixado de pagar uma parcela de um acordo de refinanciamento da dívida, firmado com o governo federal. No entanto, segundo a defesa de um ex-governador paulista, em juízo, o atraso era inferior a dez dias — e as regras do acordo de financiamento previam que qualquer punição poderia ser adotada apenas após 30 dias de atraso.

No caso do Banespa, ainda, houve um aspecto nunca explicado suficientemente à opinião pública. Afirmava-se que o banco tinha um “rombo”, que estava “quebrado”, insinuando-se que seria uma situação igual à do Nacional, do Econômico e de outros bancos particulares que quebraram.

Na verdade, no caso desses bancos privados, as dívidas eram superiores aos créditos que os bancos tinham — inclusive a receber. Havia um “rombo”, sim. No caso do Banespa, a situação era outra: o dinheiro do banco não havia “evaporado” ou sumido, deixando um “rombo”. Havia, o que não foi satisfatoriamente explicado, um grande devedor, que não estava pagando suas dívidas: o governo do estado. O Banespa nunca quebrou. Quem estava “quebrado” era o governo do estado. Os créditos a receber existiam. O dinheiro existia. Mas a equipe de FHC construiu uma imagem de “quebra” para o Banespa, para abrir caminho para a privatização.”

 

 

Ainda, acredite...

Com base na nova lei, o governo FHC já providenciou “parcerias” para a Petrobras, isto é, sócios estrangeiros e nacionais que passarão a investir, junto com a empresa estatal em pesquisa e exploração de campos de petróleo.

Para completar, o governo FHC também “tomou” da Petrobras áreas em que ela havia descoberto petróleo, ou indícios de petróleo, para entregá-las a empresas nacionais ou multinacionais por meio de licitações (concorrências). Parece incrível, mas é verdade: com base na nova lei, a Petrobras foi obrigada a entregar todos os estudos e relatórios de pesquisas que fez sobre as possíveis jazidas de petróleo no Brasil. Estudos e pesquisas de décadas, que custaram dezenas e dezenas de bilhões de reais à Petrobras, isto é, ao povo brasileiro. E que foram entregues à Agência Nacional de Petróleo de graça, com um único objetivo: serem vendidos às empresas interessadas em participar das concorrências. O preço cobrado pela Agência? De novo, parece incrível: apenas 300 mil reais por todo o “pacote” de pesquisas que custaram bilhões ao Brasil. Isso mesmo, 300 mil reais. E tem mais: as empresas que quiserem comprar os estudos relativos apenas a uma região do país poderão pagar uns 20 mil, 30 mil reais, qualquer trocadinho por eles. Um assalto, literalmente, contra os contribuintes e cidadãos brasileiros, que pagaram as pesquisas da Petrobras ao longo de décadas.

Detalhe final, que retrata o comportamento do governo FHC e seus aliados no Congresso: há empresas multinacionais que também estudaram o subsolo brasileiro, na década de 1970, como participantes dos contratos de risco do governo Geisel. A nova lei não previu que elas deveriam entregar esses estudos à Agência Nacional de Petróleo. Só a Petrobras.”

 

 

Não verás país nenhum

Numa sexta-feira, cinco dias antes do leilão de “privatização” da Cemig, empresa de energia de Minas Gerais, o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou um decreto revolucionário. Por ele, o BNDES ficou “autorizado” a — leia-se “recebeu ordens para” — conceder empréstimos também a grupos estrangeiros. Reviravolta histórica — e inconcebível. Criado para dar apoio ao desenvolvimento nacional, o banco estatal se concentrou inicialmente no financiamento de projetos de infraestrutura e, posteriormente, como instrumento de política industrial, recebeu a incumbência de criar condições de competição para grupos nacionais. Para cumprir esse papel, o BNDES estava proibido por lei de financiar empresas estrangeiras. O decreto presidencial de 24 de maio de 1997 escancarou os cofres do BNDES às multinacionais, para que comprassem estatais. Isso ao mesmo tempo que o banco continuava proibido de conceder empréstimos às estatais brasileiras, incumbidas dos setores de infraestrutura e básicos. Na quarta-feira seguinte, um grupo norte-americano comprou um bloco de um terço das ações da Cemig por 2 bilhões de reais, com metade desse valor financiado pelo BNDES. Pois é.”

 

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Livro II

 

No começo dos anos 1990, o sonho estava ao alcance da mão, o Amanhã chegava. O Brasil conquistara uma posição entre as dez maiores economias do mundo. Melhor ainda: o Brasil nadava em dólares, porque era capaz de realizar exportações muito maiores do que as importações. Poucos se lembram disso hoje, mas o Brasil tinha um dos maiores saldos comerciais positivos (exportações menos importações) do mundo, na casa dos 10 a 15 bilhões de dólares por ano. Tinha dólares seus, não precisava mais de empréstimos ou de capital das multinacionais para realizar investimentos e manter a economia em expansão para criação de empregos e solução dos problemas do seu Povo.

Foi ontem, e está tudo tão distante. A serviço de outros países, o governo escancarou o mercado às importações e às multinacionais. Feiticeiros malditos transformaram o saldo positivo da balança comercial em um “rombo” permanente, deram vantagens na cobrança de impostos sobre a remessa de juros e de lucros, estimulando o envio de dólares para o exterior, elevaram os juros para cobrir os rombos criados, “quebraram” assim a União, os estados, os municípios. Destruíram a indústria e a agricultura.

Em cinco ou seis anos, clones malditos dos intelectuais de ontem destruíram o que havia sido construído ao longo de décadas. Destruíram mais. Destruíram o sonho, a Alma Nacional. O que somos hoje? Um quintal dos países ricos? Não. Somos um curral. Bovinos ruminando babosamente enquanto o vizinho do lado, o trabalhador, o funcionário público, o aposentado, o agricultor, o empresário, todos, um a um, são arrastados para o grande matadouro em que o país se transformou, com suas mil formas de abate como o desemprego, os cortes na aposentadoria, as falsas reformas do funcionalismo, a falência, as importações. Bovinos ruminando no curral, enquanto empresas de todos os portes são engolidas por grupos estrangeiros e até o petróleo, ou os campos mais fabulosos de petróleo do mundo, com poços capazes de produzir 10 mil barris por dia, cada um, são entregues a preço simbólico às multinacionais.

Em cinco anos, o governo Fernando Henrique Cardoso não destruiu apenas a economia nacional, tornando-a dependente do exterior. Seu crime mais hediondo foi destruir a Alma Nacional, o sonho coletivo. Para isso, e com a ajuda dos meios de comunicação, jogou o consumidor contra os empresários nacionais, “esses aproveitadores”; o contribuinte contra os funcionários públicos, “esses marajás”; o pobre contra os agricultores, “esses caloteiros”; a opinião pública contra os aposentados, “esses vagabundos”.

No governo FHC, o brasileiro foi levado a esquecer que, em qualquer país do mundo, a sociedade só pode funcionar com base em objetivos que atendam aos interesses e necessidades de todos — ou, mais claramente, não se pode, por exemplo, ter uma política de importação indiscriminada a pretexto de beneficiar o consumidor sem provocar desemprego e quebra de empresas. Ou, a longo prazo, desemprego generalizado.

Com o jogo perverso de estimular a busca de pretensas vantagens individuais, o governo FHC destruiu a busca de objetivos coletivos. Destruiu a Alma Nacional, o Projeto Nacional. A violenta desnacionalização sofrida pelo Brasil em sua economia vai eternizar a remessa de lucros, dividendos, juros para o exterior. Isto é, vai torná-lo totalmente dependente da boa vontade dos governos de países ricos em fornecer dólares e, portanto, de ordens e autorizações desses governos de países ricos. Uma espécie de colônia, mesmo, como alertou o economista Celso Furtado, em palestra que encerrou com sua frase, arrasadora para quem viveu o Brasil de 1950 para cá: “Nunca estivemos tão distantes do Brasil com que um dia sonhamos”. Mesmo sem tê-lo consultado a respeito, uma sugestão: escreva a frase de Furtado em um pedaço de papel e a releia todos os dias. Ou faça decalques com ela. Sugira que seus amigos façam o mesmo. E comece a agir. Ainda há tempo de ressuscitar a Alma Nacional, antes que o Brasil vire colônia.”

 

 

Classe média e trabalhadores pagam até 27,5% de Imposto de Renda sobre tudo o que ganham — isto é, sem o direito de descontar as despesas feitas para trabalhar, ter renda. Abatimentos? Só ridículos valores para mensalidades escolares, despesas médicas, dependentes. A Vale do Rio Doce, ex-estatal portentosa, “dona” de outras 30 empresas das áreas de mineração, navegação, portos, celulose, madeira, doada por FHC a um grupo liderado pelo sr. Steinbruch, teve um lucro de 1,25 bilhão de reais em 1999, para um faturamento de 4,4 bilhões de reais. Quanto vai pagar de Imposto de Renda? Segure-se na cadeira: míseros 5 (c-i-n-c-o) milhões de reais. Ou menos de 0,5% do lucro, ou 0,125% do faturamento...

Como isso é possível? O secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, já havia dado uma pista sobre aberrações como esta ao depor no Congresso Nacional em meados do ano passado na CPI sobre o socorro do Banco Central a bancos quebrados, na crise do Real em janeiro de 1999. Maciel, tão sério que vivem pedindo sua demissão, apontou distorções na cobrança dos impostos no Brasil, fazendo revelações inacreditáveis, que, em outros países, derrubariam governos.

Primeiro: foi ele quem mostrou que o governo estava perdendo bilhões de reais em impostos com as privatizações. Como? Porque o “ágio”, ou diferença entre o preço pedido pelo governo, nos leilões, e o preço oferecido pelo “comprador”, é devolvido pelo Tesouro, sob a forma de abatimento no Imposto de Renda. Segundo: Maciel revelou ao Congresso que metade das 500 maiores empresas do Brasil não pagam um tostão de Imposto de Renda, e a outra metade paga em média apenas 5%. Por quê? Sonegação? Não. Há “brechas” na lei, disse ele, de forma diplomática, mas na verdade são privilégios e vantagens oferecidos pelo governo FHC às grandes empresas e aos bancos, para reduzir o imposto devido. O balanço da Vale, com 0,5% de Imposto de Renda sobre o lucro, é um retrato do Brasil de FHC/Malan, que aumenta impostos e corta verbas para as áreas sociais em nome do “equilíbrio do Tesouro”, e abre buracos no Tesouro para favorecer os grupos de elite. Mas ele mostra muito, muito mais, sobre este Brasil.”

 

 

“Durante séculos, os países ricos, que dependem de petróleo importado, fizeram guerras, trucidaram povos, patrocinaram golpes de Estado para se apropriar de jazidas dos países pobres. Hoje basta manipular governantes e a grande imprensa, e oficializar o assalto em salões de luxo. Ah, sim: no dia dos leilões, correram dois boatos. Primeiro: que o país ainda dispõe de uma instituição chamada Congresso Nacional. Segundo: que, ainda por cima, seus integrantes pensam no interesse nacional. Do Brasil, claro.”

 

 

“Há dois domingos, os paulistas tiveram a oportunidade de avaliar a evolução de seu governador. O jornalista Bóris Casoy, que o entrevistava, questionou Covas sobre a privatização do Banespa e suas críticas ao secretário da Receita Federal, por causa da multa de 2,8 bilhões de reais aplicada ao banco. A resposta veio rasteira e rápida: “Eu quero é o ‘meu’ (dinheiro). O culpado por essa multa deve pagá-la”. Para avaliar melhor a atitude do governador, é preciso recapitular alguns fatos:

• Intervenção — o Banespa sofreu intervenção do governo federal, às vésperas da posse de Covas. O Banco Central alegou que o banco paulista estava “quebrado”. O tempo se encarregou de mostrar que isso era mentira, como deixou claro também que os interventores do Banco Central “falsificaram” balanços do Banespa para inventar prejuízos. Motivo das manobras: convencer os paulistas da (falsa) necessidade de privatizar o Banespa. O governador Covas foi conivente.

• Prova definitiva — agora, preste atenção. A multa aplicada pela Receita Federal tem uma importância imensa, que a grande imprensa não destacou até agora. Qual é? Veja bem: o Banespa foi multado exatamente porque seus diretores, os interventores do governo federal, fizeram (outros) balanços falsos para criar prejuízos inexistentes ou reduzir os lucros. Reflita um minuto: o episódio da multa revelou, para a sociedade brasileira, aquilo em que ela se recusava a acreditar: o governo FHC/Malan & Cia. Falsifica até balanços para forçar a privatização, isto é, para poder doar patrimônio coletivo a determinados grupos empresariais, brasileiros ou multinacionais. Há governadores coniventes com esse autêntico assalto, em que bilhões e bilhões de reais pertencentes aos contribuintes, isto é, trabalhadores, classe média, empresários, agricultores, são transferidos para os bolsos e os cofres de grupos que enriquecem cada vez mais.

A esta altura, você deve estar pensando com seus botões: “Pelo menos o governador Covas está defendendo os contribuintes de São Paulo, recusando-se a pagar a multa”. Engano seu. Pense bem: os balanços falsificados representam prejuízos gigantescos ao Estado (aos paulistas), que continua a ser acionista do banco, e Covas não tocou nesse assunto. Continua conivente. “Atrelado” ao governo FHC e às manobras sujas da política de privatização. Passado esquecido.”

 

 

As provas do crime (Diário Popular, 23/11/99)

O governo do estado do Rio de Janeiro gastou 7 bilhões (com a letra bê) de reais para “preparar” o seu banco, o Banerj, para a “privatização”. O “comprador”, o Itaú, pagou apenas 310 milhões (com a letra eme), ou quase 25 vezes menos, no leilão. O governo da Bahia gastou 2 bilhões (com a letra bê) para preparar o seu banco, o Baneb, para a “privatização”. O “comprador”, o Bradesco, pagou apenas 260 milhões, ou oito vezes menos, no leilão. Três meses depois, o Bradesco recebeu de volta nada menos de 240 milhões, pagos pelo Tesouro, isto é, por todos os brasileiros. Ou seja, o Bradesco pagou apenas 20 milhões de reais, o preço de dez apartamentos de luxo, por um banco estadual, com toda a sua rede de agências, dezenas de milhares de clientes, rede de informática, caixas automáticos etc. O governo baiano ficou com dívidas de 1,7 bilhão, assim como o governo do Rio ficou com dívidas de 6,7 bilhões, o governo federal gastou 240 milhões, ou um quarto de bilhão. Os bancos compradores ficaram com os lucros e o patrimônio de bilhões de reais formado com o dinheiro dos cidadãos ao longo de décadas.

Essas aberrações são relembradas pelo jornalista Alex Ribeiro em reportagem publicada ontem pela Folha de S. Paulo. Elas já são suficientes para demonstrar que as privatizações comandadas pelo governo FHC são criminosas: as empresas e os bancos estatais não estão apenas sendo literalmente doados aos grupos privilegiados, brasileiros ou multinacionais. O assalto vai mais longe: na prática, estamos até pagando, bilhões de reais, para que os compradores “façam” o favor de embolsar o patrimônio coletivo e tenham lucros bilionários.

O esquema montado pelo governo FHC para espoliar a sociedade brasileira chega a ser maquiavélico: numa primeira etapa, a própria equipe econômica, o Banco Central, faz manobras para “inventar” prejuízos nos balanços dos bancos estatais já escolhidos para ser privatizados. Com essa falsificação, o governo FHC atinge dois objetivos. De um lado, engana a opinião pública, isto é, consegue convencer os cidadãos de que os bancos estatais não dão lucros e, portanto, é vantajoso privatizá-los a qualquer preço. De outro, essa mesma falsificação não apenas reduz o preço a ser pago pelos “compradores” como garante que eles terão rapidamente lucros de centenas de milhões ou bilhões de reais — como ocorreu com o Bradesco e o Itaú, nas compras do Banerj e do Baneb. Lucros que seriam dos governos estaduais e do governo federal, isto é, de toda a população, e que vão para os cofres de grupos privilegiados. Responda você mesmo: os paulistas vão aceitar que o Banespa seja doado, ou, pior, vão pagar para que os banqueiros privados abocanhem o seu patrimônio?”

O Brasil privatizado: Um balanço do desmonte do Estado (Parte I), de Aloysio Biondi

Editora: Geração Editorial

ISBN: 978-85-8130-257-7

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 256

Sinopse: Quem não leu este livro não tem ― e nem terá ― a menor ideia do que se passou nos anos 1990. Foi quando o Brasil, ao torrar suas estatais, emprestar dinheiro para os compradores as adquirirem e aceitar moedas podres no pagamento, fechou alguns dos piores negócios de que se tem notícia. Mais: antes de privatizar as empresas de energia e telefonia, o governo do PSDB turbinou as tarifas em até 500 por cento, o que premiou o comprador e puniu o consumidor. Seu autor, Aloysio Biondi, um dos mais importantes jornalistas de economia que o país já teve, não recorre ao discurso político-ideológico para nos convencer. Usa uma ciência mais neutra, a matemática. Aqui, os números falam pelas palavras. É um trabalho profundo, meticuloso e ― importante ― didático. Biondi procurou e descobriu as muitas caixas-pretas das privatizações. E, para nosso espanto e horror, abriu uma a uma, escancarando o tamanho do esbulho que a nação sofreu.


 

“Antes de vender as empresas telefônicas, o governo investiu 21 bilhões de reais no setor, em dois anos e meio. Vendeu tudo por uma “entrada” de 8,8 bilhões de reais, ou menos — porque financiou metade da “entrada” para grupos brasileiros.

Na venda do Banco do Estado do Rio de Janeiro (Banerj), o “comprador” pagou apenas 330 milhões de reais e o governo do Rio tomou, antes, um empréstimo dez vezes maior, de 3,3 bilhões de reais, para pagar direitos dos trabalhadores.

Na privatização da rodovia dos Bandeirantes, em São Paulo, a empreiteira que ganhou o leilão está recebendo 220 milhões de reais de pedágio por ano desde que assinou o contrato — e até abril de 1999 não havia começado a construção da nova pista.

A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) foi comprada por 1,05 bilhão de reais, dos quais 1,01 bilhão em “moedas podres” — vendida aos “compradores” pelo próprio BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social), financiada em 12 anos.

Assim é a privatização brasileira: o governo financia a compra no leilão, vende “moedas podres” a longo prazo e ainda financia os investimentos que os “compradores” precisam fazer — até a Light recebeu um empréstimo de 730 milhões de reais. E, para aumentar os lucros dos futuros “compradores”, o governo “engole” dívidas bilionárias, demite funcionários, investe maciçamente e até aumenta tarifas e preços antes da privatização. (...)

Todos esses desastres já criaram a convicção de que o famoso processo de privatização no Brasil está cheio de aberrações. Não foi feito para “beneficiar o consumidor”, a população, e sim levando em conta os interesses — e a busca de grandes lucros — dos grupos que “compraram” as estatais, sejam brasileiros ou multinacionais. Mas há mentiras ainda maiores a serem descobertas pelos brasileiros, destruindo os argumentos que o governo e os meios de comunicação utilizaram para privatizar as estatais a toque de caixa, a preços incrivelmente baixos.

A venda de estatais, segundo o governo, serviria para atrair dólares, reduzindo a dívida do Brasil com o resto do mundo — e “salvando” o real. O dinheiro arrecadado com a venda serviria ainda, segundo o governo, para reduzir também a dívida interna, isto é, aqui dentro do país, do governo federal e dos estados. Aconteceu o contrário: as vendas foram um “negócio da China” e o governo “engoliu” dívidas de todos os tipos das estatais vendidas; isto é, a privatização acabou por aumentar a dívida interna. Ao mesmo tempo, as empresas multinacionais ou brasileiras que “compraram” as estatais não usaram capital próprio, dinheiro delas mesmas, mas tomaram empréstimos lá fora para fechar negócios. Assim, aumentaram a dívida externa do Brasil. É o que se pode demonstrar na ponta do lápis, neste “balanço” das privatizações brasileiras, aceleradas a partir do governo Fernando Henrique Cardoso.”

 

 

Na surdina, governo garantiu tarifas altas

Houve uma intensa campanha contra as estatais por meio de comunicação, verdadeira “lavagem cerebral” da população para facilitar as privatizações. Entre os principais argumentos, apareceu sempre a promessa de que eles trariam preços mais baixos para o consumidor, “graças à maior eficiência das empresas privadas”. A promessa era pura enganação. No caso dos serviços telefônicos e de energia elétrica, o projeto do governo sempre foi fazer exatamente o contrário, por baixo do pano ou na surdina.

Como assim? Primeiro é preciso relembrar um detalhe importante: antes das privatizações, o governo já havia começado a aumentar as tarifas alucinadamente, para assim garantir imensos lucros no futuro aos “compradores” — sem que eles tivessem de enfrentar os riscos de protestos e indignação do consumidor. Para as telefônicas, reajustes de até 500% a partir de novembro de 1995 e, para as fornecedoras de energia elétrica, aumentos de 150% — ou ainda maiores para as famílias de trabalhadores que ganham menos, vítimas de mudanças na política de cobrança de tarifas menores (por quilowatt gasto) nas contas de consumo baixo. Tudo isso aconteceu como “preparativo” para as privatizações, antes dos leilões.

Mas o importante, que sempre foi escondido da população, é que, em vez de assinar contratos que obrigassem a Light e outros “compradores” a reduzir gradualmente as tarifas — como foi obrigatório em outros países —, o governo garantiu que eles teriam direito, no mínimo, a aumentar as tarifas todos os anos, de acordo com a inflação. Isto é, o governo fez exatamente o contrário do que jornais, revistas e TVs diziam ao povo brasileiro, que acreditou em suas mentiras o tempo todo. Além dessa garantia de reajustes anuais de acordo com a inflação, os “compradores” das empresas de energia podiam também aumentar preços se houvesse algum  “imprevisto” — como é o caso da maxidesvalorização do real no começo de 1999...”

 

 

Há quem acredite na boa-fé do governo e julgue que essas estranhas “bondades” aconteceram apenas por incompetência... Há quem prefira, porém, a hipótese de que foi tudo um jogo de cartas marcadas, para permitir que os “compradores” adiassem gastos e investimentos para a melhoria dos serviços.

E para a Light e outras empresas fornecedoras de energia elétrica? Aqui, a “bondade” do governo bateu recordes. No caso da Light, o contrato previu — isto mesmo, previu — e autorizou a piora dos serviços, pois permitiu um número maior de blecautes ou “apagões”, e também de interrupções mais prolongadas no fornecimento de energia. Incrível? Pois essa “piora autorizada” foi denunciada antes mesmo da assinatura do contrato com a Light, por uma organização não-governamental do Rio, o Grupo de Acompanhamento Institucional do Sistema de Energia, do qual o físico Luís Pinguelli Rosa é um dos integrantes.

Como se não bastasse, a multa fixada para as empresas de energia que desrespeitassem até os limites “simpáticos” combinados com o governo é absolutamente ridícula. Quanto? Apenas 0,1% do faturamento anual. Ou seja, se a Light, a Eletropaulo ou a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) faturarem 1,2 bilhão de reais em um ano, a multa será de apenas 1,2 milhão de reais... Deu para entender a jogada? Se as empresas privatizadas deixarem de investir 100 milhões, 200 milhões ou 400 milhões de reais para atender os moradores, as indústrias, as empresas de determinada região ou cidade, pagarão apenas 1,2 milhão de reais de multa... Isso não é multa. É prêmio do governo aos “compradores”.”

 

 

Por que é tão fácil as privatizadas lucrarem

— Ah, mas as estatais sempre dão prejuízos, tiram dinheiro da saúde e da educação... É incrível como essas empresas estão dando lucro, logo no primeiro ano depois da privatização...

Esse argumento também foi largamente repetido para a população. Ele também é falso. Ponto por ponto, pode-se explicar as razões dos “lucros” rápidos das empresas privatizadas:

• Tarifas e preços — os reajustes de 100%, 300%, 500% antes da privatização garantem lucros aos novos donos. E há aumentos até de última hora, como o reajuste de 58% para as contas de energia no Rio, poucos dias antes do leilão da Light.

• Demissões — antes de privatizar, o governo tem feito demissões maciças de trabalhadores das estatais, isto é, gastou bilhões com o pagamento de indenizações e direitos trabalhistas, que na verdade seriam de responsabilidade de “compradores”. Exemplos: o governo de São Paulo demitiu 10.026 funcionários de sua empresa ferroviária, a Fepasa, de 1995 a 1998. E ficou ainda responsável pelo pagamento de 50 mil aposentados da ferrovia. No Rio, o governo do estado, antes da privatização, incumbiu-se de demitir nada menos que a metade — mais exatamente 6.200 — dos 12 mil funcionários do seu banco, o Banerj. Com essas demissões, além de se livrar do pagamento das indenizações e aposentadorias, os “compradores” receberam também folhas de pagamento mais baixas, mês a mês — e isso vale para quase todas as estatais privatizadas.

• Dívidas “engolidas” — esse é um ponto que nunca ficou claro para o povo brasileiro: ao longo de 30 anos, desde o final dos anos 1960, o governo frequentemente usou as estatais para “segurar” a inflação ou beneficiar certos setores da economia, geralmente por serem considerados “estratégicos” para o país. Como assim? Houve períodos em que o governo evitou reajustes de preços e tarifas de produtos (como o aço) e serviços fornecidos pelas estatais, na tentativa de reduzir as pressões e controlar as taxas de inflação. Esses “achatamentos” e “congelamentos” de preços foram os principais responsáveis por prejuízos ou baixos lucros apresentados por algumas estatais, que passavam a acumular dívidas ao longo dos anos — sofrendo então nova “sangria” de recursos, representada pelos juros que tinham de pagar sobre essas dívidas. Certo ou errado, as estatais foram usadas como arma contra a inflação por governos que achavam que o combate à carestia era a principal prioridade do país. O mal é que nunca foi suficientemente explicado à população que essa decisão arruinava as empresas estatais, dando motivo a falsas acusações de “incompetência” e “sacos sem fundo” contra elas. Quando veio a onda das privatizações, o governo fez exatamente o contrário. Primeiro, como visto acima, aumentou os preços (até 300%, no caso do aço) e tarifas (até 500%, repita-se) cobrados por empresas que seriam privatizadas. Mas — o que é espantoso — o governo fez muito mais: “engoliu”, passou para o Tesouro, dívidas que eram das estatais, bilhões e bilhões de reais que deveriam ser pagos pelos “compradores” — mesmo que esse pagamento fosse feito a longo prazo, mediante acordo com os credores. Exemplos? Na venda da Cosipa (Companhia Siderúrgica Paulista), o governo ficou responsável por dívidas de 1,5 bilhão de reais (além de o governo paulista ter adiado o recebimento de 400 milhões de reais em ICMS atrasado). Quanto o governo recebeu pela venda? Só 300 milhões de reais. Isto é, o governo “ganhou” uma dívida de 1,5 bilhão de reais, e os “compradores” pagaram somente 300 milhões. A venda da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) de Volta Redonda não foi diferente: o governo “engoliu” dívidas de no mínimo 1 bilhão de reais. Então, pode-se entender que, com essa política, ficou mais fácil para os “compradores” terem grandes lucros rapidamente: já no primeiro ano, além das tarifas e preços majorados, além da folha salarial reduzida, eles se livraram de pagar prestações dessas dívidas, bem como os juros sobre elas. Receberam as empresas “limpinhas”, prontas para os lucros. É essa política que o governo chama de “saneamento das estatais”, preparatório para a privatização. Quem não quer? (...)

• Fundos de pensão — exatamente como as grandes empresas privadas, as empresas estatais mantêm planos especiais de aposentadoria ou planos de pensão para seus funcionários. Em vários casos, os “compradores” ficaram livres também desses compromissos. Como assim? O governo — estados ou União — “transferiu” os aposentados para sua folha de pagamentos ou se responsabilizou, no caso dos fundos de pensão, pelo pagamento dos benefícios aos funcionários existentes. No caso da Fepasa, o número de aposentados que “ficou” com o governo chega a nada menos que 50 mil. No entanto, o mais escandaloso foi o caso do Banco do Estado do Rio de Janeiro. Para privatizá-lo, o governo “engoliu” todos os compromissos futuros do plano de pensão dos funcionários. Para isso, o então governador Marcello Alencar tomou um empréstimo de nada menos que 3,3 bilhões de reais, mesmo sabendo que o banco seria vendido por apenas 330 milhões de reais, isto é, um preço dez vezes menor. Pior ainda: esse valor foi pago em “moedas podres”, negociadas no mercado com desconto de 50%, ou seja, os 330 milhões de reais representavam mesmo, no final das contas, apenas 165 milhões de reais, ou praticamente 20 vezes menos do que o valor do empréstimo de 3,3 bilhões... Tudo para livrar os “compradores” de futuros gastos. Essa operação escandalosa agravou os problemas financeiros do Rio, como o governador, Anthony Garotinho, não se cansa de apontar. (...)

• Prejuízos bondosos — existe uma vantagem, sobre a qual nunca se fala, de que desfrutam os “compradores” de bancos estatais — à custa da Receita Federal, do pagamento de impostos. Eles podem utilizar os prejuízos que os bancos estatais “comprados” por eles tenham sofrido nos últimos anos e acumulado nos balanços. Utilizar como? Eles podem “pegar” esse prejuízo e subtraí-lo do seu próprio lucro, reduzindo-o e, portanto, diminuindo também o Imposto de Renda que deveriam pagar. Com esse mecanismo, chamado de “crédito tributário”, o banco “comprador” do gaúcho Meridional pode utilizar um prejuízo de 230 milhões de reais (do banco “comprado”) em seu benefício. Quanto ele havia pago pelo Meridional? Apenas 267 milhões de reais. Como utilizou os 230 milhões de reais, o seu “gasto” para comprar o banco seria, na verdade, de meros 37 milhões de reais. Quem se interessar por mais detalhes sobre essas operações deve consultar a magnífica reportagem da jornalista Maria Christina Carvalho, publicada pela Gazeta Mercantil em 17 de novembro de 1998.

• Dinheiro em caixa — por incrível que possa parecer, há estatais que foram vendidas com “dinheiro em caixa”, isto é, dinheiro que os compradores receberam de mão beijada. A Vale do Rio Doce foi entregue a Benjamin Steinbruch com 700 milhões de reais em caixa, segundo noticiário da época. Ou, mais inacreditável ainda, simplesmente espantoso: a Telesp tinha nada menos que 1 bilhão (com letra b, mesmo) em caixa ao ser entregue à espanhola Telefônica, segundo entrevista do diretor da empresa “compradora” à Gazeta Mercantil, em janeiro de 1999, logo após a queda do real. Lembrete: a Telefônica pagou uma entrada de 2,2 bilhões de reais pela Telesp. Descontando-se o dinheiro em caixa, seu desembolso na verdade foi de apenas 1,2 bilhão.”

 

 

Vendas à prestação

Outro motivo para o aumento dos lucros dos “compradores” (e novos “rombos”, se as contas forem benfeitas, para o governo): na maioria das privatizações, o valor está sendo pago em prestações e com juros vergonhosamente baixos se comparados com as taxas normais no Brasil ou, mais ainda, com as taxas que o governo tem pago sobre sua dívida cada vez mais alta. Na venda das redes ferroviárias, por exemplo, houve uma entrada de 10% a 20% do valor, com prazo, no total, de nada menos de 30 anos. Isto é, nesses três primeiros anos o “comprador” recebe dinheiro, fatura, utilizando o patrimônio formado pelo Estado ao longo de décadas, e nada paga (e atenção: ainda recebe empréstimos do BNDES para “investir”). Mesmo no caso das teles houve parcelamento, cuidadosamente escondido por todo o noticiário: a entrada era apenas de 40%, seguida de duas parcelas de 30% cada, a vencerem daí a um e dois anos, respectivamente. Os comentaristas dos jornais e TVs, ou as reportagens sobre a venda, repisavam o tempo todo que o governo iria receber 13,5 bilhões de reais (preço mínimo pedido no leilão), ou “quatro vezes o valor recebido pela Vale do Rio Doce” (sic). Era mentira. A entrada seria de apenas 5,4 bilhões de reais, ou 40% daquele valor. E, quando as teles afinal foram vendidas por 22,2 bilhões de reais, os meios de comunicação trombetearam o tempo todo que o governo usaria aquela “dinheirama” para reduzir a dívida... Continuavam a esconder que, na verdade, o governo só receberia 40% desse valor — 8,8 bilhões de reais. (De fato, receberia menos ainda, considerando-se que o governo financiaria, por meio do BNDES, 50% da entrada, quando o comprador fosse uma empresa nacional, mesmo que ela fosse apenas participante do consórcio.)”

 

 

“Moedas podres” e truques...

Nas primeiras privatizações, o governo chegou a aceitar que o pagamento fosse totalmente feito em “moedas podres”, isto é, títulos antigos emitidos pelo governo e que podiam ser comprados por até 50% do seu valor. A própria Companhia Siderúrgica Nacional foi “vendida” no leilão por 1,05 bilhão de reais, mas esse valor foi pago em sua quase totalidade, ou 1,01 bilhão de reais, com “moedas podres”, com apenas 38 milhões de reais pagos em dinheiro. Em outras palavras, foi nula a entrada de dinheiro nos cofres do governo, que na prática apenas recebeu de volta uma parcela de sua dívida em títulos (exemplo: Títulos da Dívida Agrária, espécie de “promissória”, a ser paga ao longo dos anos, entregue a proprietários rurais que tiveram suas fazendas desapropriadas). E os grupos “compradores”? Usaram títulos, que compraram pela metade do preço, para “pagar” ao governo, isto é, na verdade compraram as estatais pela metade do preço anunciado. Há mais surpresas, porém: por incrível que pareça e o que é geralmente desconhecido pela opinião pública, mesmo “moedas podres” usadas nos leilões também foram vendidas à prestação, financiadas pelo BNDES. Como assim? Era o próprio banco do governo que tinha “moedas podres” guardadas e as colocava em leilão, para os interessados em “comprar” estatais, em condições incríveis: até 12 anos para pagar e com juros privilegiados.”

 

 

... e mais financiamentos

Em resumo, o governo está vendendo empresas à prestação, fornecendo “metade” da “entrada” nos leilões, financiando até a “compra” de “moedas podres”... Mas não se contenta com isso. Os felizes “compradores” das estatais brasileiras têm ainda novos presentes à sua espera: o BNDES lhes oferece empréstimos bilionários, depois que tomam posse das empresas, para executarem — com dinheiro do banco estatal, logo nosso dinheiro — os “investimentos” que se comprometeram a fazer. Ninguém se espante: depois do caos nos serviços de energia elétrica no Rio, no começo de 1998, a Light ganhou um empréstimo de nada menos que 730 milhões de reais do BNDES. A Companhia Siderúrgica Nacional, comprada com “moedas podres” financiadas, também foi imediatamente presenteada com um empréstimo de 1,1 bilhão de reais do BNDES para execução de um plano de expansão de cinco anos. Tudo, sempre, com juros privilegiados, abaixo dos níveis de mercado. Explicam-se, assim, os rápidos e crescentes lucros dos “compradores” de estatais... Com dinheiro nosso, a baixo custo.

 

Como aumentar a dívida e abalar o real

Para coroar tudo isso, não se deve esquecer que o governo fez investimentos maciços, bilionários, nos meses que antecederam os leilões de “venda” das estatais. Isto é, com esses investimentos, o governo está criando novas e formidáveis fontes de renda, de faturamento, para os “compradores” — que, assim, já têm garantido um salto fantástico nos lucros, falsamente atribuídos pelos meios de comunicação à sua “eficiência”. Exemplos? O governo investiu 4,7 bilhões de reais na Açominas antes de privatizá-la. Gastou, também, 1,9 bilhão na CSN.”

 

 

O governo não tinha outro caminho?

A febre da privatização e o impulso ao chamado neoliberalismo tiveram seu ponto de partida na Inglaterra, com a primeira-ministra Margaret Thatcher. Mas mesmo a “dama de ferro” fez tudo diferente do governo Fernando Henrique Cardoso: a privatização inglesa não representou a doação de empresas estatais, a preços baixos, a poucos grupos empresariais. Ao contrário: seu objetivo foi exatamente a “pulverização” das ações, isto é, transformar o maior número possível de cidadãos ingleses em “donos” de ações, acionistas das empresas privatizadas. Não foi só o blá-blá-blá, não. O governo inglês criou “prêmios”, incentivos para qualquer cidadão comprar ações: quem não as revendesse antes de certo prazo tinha o direito de “ganhar” determinadas quantias, em datas já marcadas no momento da compra (o sistema se baseava na distribuição de customer vouchers, espécie de cupons que eram trocados por dinheiro nos prazos previstos). Ou ainda: após três anos, os acionistas que tivessem guardado as ações podiam ganhar também sobre “lotes extras” dos títulos, geralmente na promoção de 10% sobre o número de ações compradas. Isso na Inglaterra de Thatcher, nos anos 1980.

Mais recentemente, a Itália também partiu para a privatização. Como na Inglaterra, houve a preocupação de “democratizar”, garantir a distribuição do patrimônio nacional, evitar a concentração da renda. Como os italianos não eram tão adeptos de aplicações em bolsas quanto os norte-americanos ou os ingleses, o governo procurou vencer suas resistências com uma fórmula atraente: se houvesse queda nas bolsas ou por outro motivo qualquer, o comprador de ações poderia receber seu dinheiro de volta, com juros de 3% a 4% acima das taxas do mercado internacional, que ele ganharia se tivesse aplicado em títulos de renda fixa (isto é, que só rendem juros).

Na França, a mesma coisa. Na privatização parcial das empresas de telecomunicações, em 1998, nada menos que 4 milhões de franceses compraram ações, graças aos atrativos oferecidos pelo governo.”

 

 

Povo duplamente lesado

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso implantou as privatizações a preços baixos, financiou os “compradores”, sempre alegando não haver outros caminhos possíveis. A experiência de outros países, que a equipe de governo conhecia muito bem, mostra que essa argumentação é falsa. Como foi possível ao governo agir com tal autoritarismo, transferindo o patrimônio público, acumulado ao longo de décadas, a poucos grupos empresariais que nem sequer tinham dinheiro para pagar ao Tesouro? Como explicar a falta de reação da sociedade?

Sem sombra de dúvida, os meios de comunicação, com seu apoio incondicional às privatizações, foram um aliado poderoso. Houve a campanha de desmoralização das estatais e a ladainha do “esgotamento dos recursos do Estado”. Mais ainda: a sociedade brasileira perdeu completamente a noção — se é que a tinha — de que as estatais não são empresas da propriedade do “governo”, que pode dispor delas a seu bel-prazer. Esqueceu-se de que o Estado é mero “gerente” dos bens, do patrimônio da sociedade, isto é, que as estatais sempre pertenceram a cada cidadão, portanto a todos os cidadãos, e não ao governo federal ou estadual. Essa falta de consciência coletiva, reforçada pelos meios de comunicação, repita-se, explica a indiferença com que a opinião pública viu o governo doar por 10 o que valia 100. Um “negócio da China” que, em sua vida particular, nenhum trabalhador, empresário, nenhuma família de classe média ou o povão aceitariam. Qual seria a reação de qualquer brasileiro, por exemplo, se um vizinho rico quisesse comprar sua casa, que vale 50 mil ou 100 mil, por 5 mil ou 10 mil? Reagiria violentamente. No entanto, centenas e centenas de bilhões de reais de patrimônio público, isto é, de propriedade dos milhões de brasileiros, foram “vendidos” dessa forma, sem grandes protestos a não ser nas áreas sindicais ou oposicionistas — que, por isso mesmo, tiveram seu espaço nos meios de comunicação devidamente cortado, tornado quase inexistente, nos últimos anos.

A “doação” do patrimônio público empreendida pelo governo Fernando Henrique Cardoso tem um agravante. O governo poderia ter imitado o modelo de outros países, como dito. Mas havia ainda outro aspecto, no caso brasileiro, que não apenas aconselhava, mas exigia, o caminho da “pulverização” de ações das empresas privatizadas. Qual? O governo já tem dívidas com os trabalhadores, cerca de 50 bilhões a 60 bilhões de reais, representadas pelo dinheiro do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e do PIS/Pasep (Plano de Integração Social/ Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público), que o governo usou para financiar projetos diversos. Se todos os trabalhadores brasileiros fossem sacar seu PIS ou FGTS, descobririam que não poderiam receber porque está “faltando” aquele dinheiro, utilizado pelo governo. Isto é: quando se diz que o governo deve a cada João, a cada Maria, a cada Antônio, a cada Joana brasileiros, não é mera força de expressão. É a pura verdade. O governo poderia ter finalmente pago essa dívida aos brasileiros, entregando-lhes ações das empresas estatais. Essa hipótese existia no governo Itamar Franco, quando o BNDES planejava privatizar as estatais usando “moedas podres” (ou seja, FGTS, PIS/Pasep). Com a posse de Fernando Henrique Cardoso e sua equipe, a proposta foi abandonada, para alegria de grupos empresariais.

O trabalhador brasileiro foi duplamente lesado. Continuou vítima do “calote” do governo, no FGTS e no PIS/Pasep. E ficou sem as estatais, das quais já era dono.”