terça-feira, 29 de novembro de 2022

Capitalismo parasitário: e outros temas contemporâneos, de Zygmunt Bauman

Editora: Zahar

ISBN: 978-85-378-0205-2

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 96

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Sinopse: O aclamado sociólogo Zygmunt Bauman lança o seu olhar crítico sobre temas variados do mundo contemporâneo: cartões de crédito, anorexia, bulimia, a crise financeira de 2009 e suas possíveis soluções, a inutilidade da educação nos moldes atuais, a cultura como balcão de mercadorias... Todos são fenômenos que colaboram para o mal-estar dominante em nossas sociedades, e estão brilhantemente relacionados ao conceito de liquidez desenvolvido pelo sociólogo. Aspectos tão diferentes são articulados de maneira densa, produzindo uma compreensão singular das raízes desse mal-estar. Mais uma vez, as ideias de Bauman orientam e iluminam nossa compreensão da atualidade, tocando na raiz dos problemas da vida cotidiana.




Para além de qualquer dúvida razoável, o recente “tsunami financeiro” demonstrou a milhões de indivíduos – convencidos, pela miragem da “prosperidade agora e sempre”, de que os mercados e bancos capitalistas eram os métodos incontestáveis para a solução dos problemas – que o capitalismo se destaca por criar problemas, e não por solucioná-los.”

 

 

Sem meias palavras, o capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento. Mas não pode fazer isso sem prejudicar o hospedeiro, destruindo assim, cedo ou tarde, as condições de sua prosperidade ou mesmo de sua sobrevivência. (...)

Hoje, quase um século depois de Rosa Luxemburgo ter divulgado sua intuição, sabemos que a força do capitalismo está na extraordinária engenhosidade com que busca e descobre novas espécies hospedeiras sempre que as espécies anteriormente exploradas se tornam escassas ou se extinguem. E também no oportunismo e na rapidez, dignos de um vírus, com que se adapta às idiossincrasias de seus novos pastos.”

 

 

A introdução dos cartões de crédito foi um sinal do que viria a seguir. Foram lançados “no mercado” cerca de 30 anos atrás, com o slogan exaustivo e extremamente sedutor de “Não adie a realização do seu desejo”. Você deseja alguma coisa, mas não ganha o suficiente para adquiri-la? Nos velhos tempos, felizmente passados e esquecidos, era preciso adiar a satisfação (e esse adiamento, segundo um dos pais da sociologia moderna, Max Weber, foi o princípio que tornou possível o advento do capitalismo moderno): apertar o cinto, privar-se de certas alegrias, gastar com prudência e frugalidade, colocar o dinheiro economizado na caderneta de poupança e ter esperança, com cuidado e paciência, de conseguir juntar o suficiente para transformar os sonhos em realidade.

Graças a Deus e à benevolência dos bancos, isso já acabou! Com um cartão de crédito, é possível inverter a ordem dos fatores: desfrute agora e pague depois! Com o cartão de crédito você está livre para administrar sua satisfação, para obter as coisas quando desejar, não quando ganhar o suficiente para obtê-las.

Esta era a promessa, só que ela incluía uma cláusula difícil de decifrar, mas fácil de adivinhar, depois de um momento de reflexão: dizia que todo “depois”, cedo ou tarde, se transformará em “agora” – os empréstimos terão que ser pagos; e o pagamento dos empréstimos, contraídos para afastar a espera do desejo e atender prontamente as velhas aspirações, tornará ainda mais difícil satisfazer os novos anseios. Não pensar no “depois” significa, como sempre, acumular problemas.

Quem não se preocupa com o futuro, faz isso por sua própria conta e risco. E certamente pagará um preço pesado. Mais cedo do que tarde, descobre-se que o desagradável “adiamento da satisfação” foi substituído por um curto adiamento da punição – que será realmente terrível – por tanta pressa. Qualquer um pode ter o prazer quando quiser, mas acelerar sua chegada não torna o gozo desse prazer mais acessível economicamente. Ao fim e ao cabo, a única coisa que podemos adiar é o momento em que nos daremos conta dessa triste verdade.

Por mais amarga e deletéria que seja, esta não é a única pequena cláusula anexada à promessa, grafada em letras maiúsculas, do “desfrute agora, pague depois”. Para impedir que o efeito dos cartões de crédito e do crédito fácil se reduza a um lucro que o emprestador só realiza uma vez com cada cliente, a dívida contraída tinha de ser (e realmente foi) transformada numa fonte permanente de lucro.

Não pode pagar sua dívida? Em primeiro lugar, nem precisa tentar: a ausência de débitos não é o estado ideal. Em segundo lugar, não se preocupe: ao contrário dos emprestadores insensíveis de antigamente, ansiosos para reaver seu dinheiro em prazos pré-fixados e não renováveis, nós, modernos e benevolentes credores, não queremos nosso dinheiro de volta. Longe disso, oferecemos mais créditos para pagar a velha dívida e ainda ficar com algum dinheiro extra (ou seja, alguma dívida extra) a fim de pagar novas alegrias. Somos os bancos que gostam de dizer “sim”. Seus bancos amigos. Bancos “que sorriem”, como dizia uma de suas mais criativas campanhas publicitárias.

O que nenhuma publicidade declarava abertamente, deixando a verdade a cargo das mais sinistras premonições dos devedores, era que os bancos credores realmente não queriam que seus devedores pagassem suas dívidas. Se eles pagassem com diligência os seus débitos, não seriam mais devedores. E são justamente os débitos (os juros cobrados mensalmente) que os credores modernos e benevolentes (além de muito engenhosos) resolveram e conseguiram transformar na principal fonte de lucros constantes. O cliente que paga prontamente o dinheiro que pediu emprestado é o pesadelo dos credores. (...)

Para eles, o “devedor ideal” é aquele que jamais paga integralmente suas dívidas.”

 

 

O Estado assistencial para os ricos (que, ao contrário de seu homônimo para os pobres, jamais teve sua racionalidade questionada e, ainda mais, nunca sofreu tentativas de desmantelamento) voltou aos salões, deixando as dependências de serviço a que seus escritórios estiveram temporariamente relegados, para evitar comparações desagradáveis. O Estado voltou a exibir e flexionar sua musculatura como não fazia há muito tempo, com esses propósitos: agora, porém, pelo bem da continuidade do próprio jogo que tornou sua flexibilização difícil e até – horror! – insuportável; um jogo que, curiosamente, não tolera Estados musculosos, mas ao mesmo tempo não pode sobreviver sem eles.”

 

 

Chegar às raízes do problema que agora saiu do compartimento top secret para o centro da atenção pública não é uma solução instantânea, mas a única que tem alguma possibilidade de se mostrar adequada à enormidade do problema e de sobreviver aos intensos – mas comparativamente breves – tormentos da desintoxicação.

Até agora nada leva a pensar que estamos nos aproximando das raízes do problema. A onda foi barrada a um passo do abismo por generosas injeções de “dinheiro do contribuinte”. O banco Lloyds TSB começou a pressionar o Tesouro britânico para que destinasse parte do pacote de salvação aos dividendos dos acionistas. E, a despeito da indignação oficial dos porta-vozes do Estado, a instituição de crédito seguiu firme na distribuição de bonificações para aqueles cuja avidez desenfreada havia levado os bancos e seus clientes ao desastre. Dos Estados Unidos, chegou a notícia de que 70 bilhões de dólares, cerca de 10% dos subsídios que as autoridades federais pretendiam injetar no sistema bancário americano, já haviam sido usados em bônus pagos exatamente aos que levaram o sistema à beira da ruína.

Por mais imponentes que sejam as medidas que os governos já tomaram, pretendem tomar ou dizem que querem tomar, todas elas buscam “recapitalizar” os bancos e deixá-los novamente em condições de desenvolver suas “atividades normais”: em outras palavras, a atividade que é a principal responsável pela crise atual. Se os devedores não tiveram condições pessoais de pagar os juros sobre a orgia consumista inspirada e amplificada pelos bancos, talvez possam ser induzidos/obrigados a fazê-lo por meio dos impostos que pagam ao Estado.”

 

 

Essa espécie de Estado assistencial para os ricos (ou, mais exatamente, a política de mobilizar, por intermédio do Estado, os recursos públicos que as empresas capitalistas não conseguem convencer o público a lhes entregar diretamente) não é novidade: apenas o alcance e a publicidade que o acompanham assumiram proporções capazes de causar escândalo. Segundo Stephen Sliwinski, ex-colaborador do Cato Institute, já em 2006 o governo federal dos Estados Unidos havia gastado 92 bilhões de dólares para subvencionar os colossos da indústria do país, como a Boeing, a IBM ou a General Motors.”

 

 

A cooperação entre Estado e mercado no capitalismo é a regra; o conflito entre eles, quando acontece, é a exceção. Em geral, as políticas do Estado capitalista, “ditatorial” ou “democrático”, são construídas e conduzidas no interesse e não contra o interesse dos mercados; seu efeito principal (e intencional, embora não abertamente declarado) é avalizar/permitir/garantir a segurança e a longevidade do domínio do mercado.”

 

 

“A política sólido-moderna que consistia em negociar com o diferente, em assimilá-lo à cultura dominante, em privar os estrangeiros de sua estranheza, embora desejada por alguns, não é mais viável. Mas as velhas estratégias de resistência à interação e fusão entre culturas também não são mais efetivas, apesar de consideradas preferíveis pelos aficionados da separação rígida e do isolamento das “comunidades de pertença” (mais precisamente, as comunidades de pertença por nascimento).

“A pertença”, afirma Jean-Claude Kaufmann,* é “utilizada hoje sobretudo como recurso do ego”. Ele nos adverte contra a ideia de que as “comunidades de pertença” são necessariamente “comunidades integradoras”. Recomenda antes que sejam vistas como fenômenos que acompanham o processo de individualização, como uma série de estações de serviço ou de motéis marcando a trajetória do Eu que se forma e reforma continuamente.”

* Jean-Claude Kaufmann, L’invention de soi. Une théorie d’identité, Paris, Armand Colin, 2004, p.214.

 

 

“No mundo líquido-moderno, a solidez das coisas, assim como a solidez dos vínculos humanos, é vista como uma ameaça: qualquer juramento de fidelidade, qualquer compromisso a longo prazo (e mais ainda por prazo indeterminado) prenuncia um futuro prenhe de obrigações que limitam a liberdade de movimento e a capacidade de perceber novas oportunidades (ainda desconhecidas) assim que (inevitavelmente) elas se apresentarem.

A perspectiva de se ver restrito a uma única coisa a vida inteira é repulsiva e apavorante. O que não surpreende, pois todos sabem que até os objetos de desejo logo envelhecem, perdem o brilho num segundo e, de símbolos de honra, transformam-se em estigmas de infâmia. (...)

A capacidade de durar não joga mais a favor das coisas. Dos objetos e dos laços, exige-se apenas que sirvam durante algum tempo e que possam ser destruídos ou descartados de alguma forma quando se tornarem obsoletos – o que acontecerá forçosamente. Assim, é preciso evitar a posse de bens, em particular daqueles que duram muito e que não são descartáveis com facilidade.

O consumismo de hoje não consiste em acumular objetos, mas em seu gozo descartável. Sendo assim, por que o “pacote de conhecimentos” adquiridos na universidade deveria escapar dessa regra universal? No turbilhão de mudanças, é muito mais atraente o conhecimento criado para usar e jogar fora, o conhecimento pronto para utilização e eliminação instantâneas, o tipo de conhecimento prometido pelos programas de computador que entram e saem das prateleiras das lojas num ritmo cada vez mais acelerado. (...)

Num mundo como este, o conhecimento é destinado a perseguir eternamente objetos sempre fugidios que, como se não bastasse, começam a se dissolver no momento em que são apreendidos. E como os prêmios para quem faz a coisa certa tendem a ser colocados cada dia num lugar diferente, os estímulos de reforço podem ser tão enganosos quanto tranquilizadores: transformam-se em armadilhas a serem evitadas, pois podem instilar hábitos ou impulsos que, um segundo depois, se revelarão inúteis ou até daninhos.

Como observou Ralph Waldo Emerson, quando se patina sobre gelo fino, a salvação está na rapidez. Quem quiser se salvar deve se locomover com a velocidade necessária para não correr o risco de forçar demais a resistência de um ponto qualquer. No mundo volátil da modernidade líquida, no qual é difícil uma forma manter sua estrutura pelo tempo necessário para garantir a confiança e se coagular numa credibilidade de longo prazo (não há como saber se e quando o fará, e, de todo modo, é pouco provável que o faça), andar é melhor que ficar sentado, correr é melhor que andar, e surfar é ainda melhor que correr. Melhor surfista é o que desliza com leveza e agilidade, que não é muito exigente quanto às ondas que virão e que está sempre pronto a abandonar as antigas preferências.

Isso é contrário a tudo que a aprendizagem e a educação representaram na maior parte de sua história. Afinal, elas foram criadas na medida de um mundo durável, que esperava permanecer assim e pretendia ser ainda mais durável do que havia sido até então. Num mundo desses, a memória era uma riqueza; quanto mais para trás ela conseguisse ir e quanto mais durasse, maior era o seu valor. Hoje, uma memória tão solidamente ancorada parece ser potencialmente incapacitante, em muitos casos, desorientadora, outros tantos, quase sempre inútil.”

 

 

“Você vale tanto quanto seu último sucesso”: esta é a máxima do bem viver num mundo em que as regras mudam durante a partida e não duram mais do que o tempo necessário para aprendê-las e memorizá-las. Os percentuais de sucesso obtidos com as respostas aprendidas e exercitadas em condições de rotina caem rapidamente: “flexibilidade” é a palavra de ordem do momento. A capacidade de abandonar depressa os hábitos presentes torna-se mais importante do que o aprendizado dos novos. Somos todos obrigados a adotar como norma o estilo de vida que, há dois séculos, Soren Kierkegaard considerou patológico em Don Juan, ou seja: “Terminar rapidamente e desde logo recomeçar do princípio.”*

* Soren Kierkegaard, Enten-Eller [1843] [trad. it., Enten-Eller, Un frammento di vita, t.I. A. Cortese (org.), Milão, Adelphi, 1987, p.165].

 

 

“A galáxia é pura e simplesmente inassimilável. A sede principal do “desconhecido”, mais do que o mundo relatado pela informação, é hoje a própria informação. É ela que dá a impressão de ser “decididamente vasta demais, misteriosa e selvagem”.

As enormes quantidades de informação competindo por atenção parecem muito mais ameaçadoras para os homens e mulheres comuns do que os poucos “mistérios do Universo” que ainda restam e que interessam exclusivamente a um pequeno grupo de maníacos da ciência e ao número ainda mais restrito dos que disputam o Prêmio Nobel. Todas as coisas desconhecidas parecem ameaçadoras, mas suscitam diferentes reações.

Os espaços vazios no mapa do Universo estimulam a curiosidade, incitam à ação e infundem determinação, coragem e confiança nos amantes da aventura; prometem uma vida interessante de descobertas e anunciam um futuro melhor, gradualmente liberado dos aborrecimentos que envenenam a vida. Mas não é assim com a massa impenetrável da informação: ela está toda ali, ao alcance da mão, disponível de imediato, mas zombeteira e exasperadora em sua distância, obstinadamente alheia e indiferente a qualquer esperança de que, algum dia, se possa apreendê-la.

O futuro não é mais um tempo a ser esperado com impaciência: ele só vai aumentar as dificuldades atuais, incrementando de modo exponencial a quantidade de conhecimento que já nos atordoa, nos sufoca e que bloqueia a salvação que ele próprio oferece de forma sedutora. A massa de conhecimento à disposição é o principal obstáculo para sua aceitação. É também a principal ameaça à nossa autoconfiança: certamente a resposta para os problemas que nos afligem deve estar em algum lugar daquela massa impressionante de informação. Portanto, ser incapaz de encontrá-la trará como consequência imediata e concreta a autodepreciação e o autoescárnio.

Essa massa de conhecimento acumulado transformou-se no epítome contemporâneo da desordem e do caos. Nela mergulharam e dissolveram-se pouco a pouco todos os critérios ortodoxos de ordenamento: tópicos de pertinência, atribuição de importância, necessidades determinantes de utilidade e autoridades determinantes de valor. A massa faz esses conteúdos parecerem uniformemente descoloridos. Pode-se dizer que, nela, todas as informações fluem com o mesmo peso específico; portanto, para aqueles a quem se nega o direito de reivindicar a competência de seu próprio julgamento, embora sejam expostos às correntes de teses contraditórias dos especialistas, não há como separar o joio do trigo.

Na massa, a parcela de conhecimento retirada para uso e consumo pessoal só pode ser avaliada com base na quantidade, não é possível comparar sua qualidade com o restante. Todas as informações se equivalem. Os quiz televisivos refletem fielmente esse novo rosto do conhecimento humano: para cada resposta certa, independentemente do assunto, o concorrente obtém o mesmo número de pontos.

Atribuir importância às diversas informações e, sobretudo, atribuir maior importância a umas que a outras talvez seja a tarefa mais desconcertante e a decisão mais difícil. O único critério prático que se pode adotar é a pertinência momentânea, mas ela também muda de um momento para outro, e as informações assimiladas perdem significado assim que são utilizadas. Como outros produtos no mercado, elas são destinadas ao instantâneo, imediato e único.

No passado, a educação assumia muitas formas e era capaz de adaptar-se às circunstâncias mutáveis, de definir novos objetivos e projetar novas estratégias. Mas, se me permitem a insistência, as mudanças presentes são diferentes das que se verificaram no passado. Em nenhum dos momentos decisivos da história humana os educadores enfrentaram um desafio comparável ao que representa este ponto limite. Nunca antes nos deparamos com situação semelhante. A arte de viver num mundo hipersaturado de informação ainda não foi aprendida. E o mesmo vale também para a arte ainda mais difícil de preparar os homens para esse tipo de vida.”

 

 

A incompreensão recíproca entre gerações, entre os “velhos” e os “jovens”, e a desconfiança que isso gera têm uma longa história. Seus sintomas podem ser encontrados facilmente em tempos bem antigos. Mas a desconfiança intergeracional assumiu importância muito maior na era moderna, marcada por mudanças permanentes, rápidas e profundas das condições de vida. A aceleração radical do ritmo das mudanças, característica dos tempos modernos, permitiu que se percebesse no curso de uma única vida humana que “as coisas mudam” e “não são mais como antes”: trata-se de uma constatação que sugere uma associação (ou um nexo causal) entre as mudanças da condição humana e a sucessão das gerações.

A partir do advento da modernidade e em todo o seu percurso, as gerações que vêm ao mundo em fases diferentes da sua contínua transformação tendem a divergir nitidamente na avaliação das condições de vida que partilham. Os filhos em geral enfrentam um mundo drasticamente diferente daquele que seus pais, guiados pelos educadores, aprenderam a considerar um padrão de “normalidade”. Além disso, nunca poderão conhecer esse mundo já desaparecido em que os pais viveram quando eram jovens.

Aquilo que, para algumas gerações, pode parecer “natural” – da série “as coisas são assim”, “normalmente, as coisas são feitas assim” ou “deveriam ser feitas assim” –, para outras pode ser uma aberração: um afastamento da norma, um estado de coisas extravagante e talvez até irracional, ilegítimo, injusto, abominável. Aquilo que, para algumas gerações, pode parecer uma condição confortável e familiar, pois permite o uso de habilidades e rotinas aprendidas e dominadas, poderia parecer estranha e desagradável a outras. Nas situações em que alguns se sentem desconfortáveis, confusos e perdidos, outros poderiam se sentir como um peixe dentro d’água.

As diferenças de percepção tornaram-se hoje tão multidimensionais que, ao contrário dos tempos pré-modernos, as gerações mais velhas não atribuem mais aos jovens o papel de “adultos em miniatura” ou de “aspirantes a adulto” – de “seres ainda não completamente maduros, mas destinados a amadurecer” (“a amadurecer até serem como nós”). Não se espera mais, nem se presume, que os jovens “estão se preparando para ser adultos como nós”: eles são vistos como uma espécie muito diferente de pessoa, destinada a permanecer diferente “de nós” por toda a vida. As diferenças entre “nós” (os velhos) e “eles” (os jovens) não são mais um problema temporário que vai se resolver e evaporar quando os mais novos tiverem (inevitavelmente) que encarar as coisas da vida.

O resultado é que as velhas e as novas gerações tendem a se olhar reciprocamente com um misto de incompreensão e desconfiança. Os mais velhos temem que esses recém-chegados ao mundo estejam prontos a arruinar e destruir a acolhedora, familiar e decorosa “normalidade” que eles, os pais, construíram com esforço e conservam com amoroso cuidado; os jovens, ao contrário, sentem um forte impulso de endireitar o que os antigos estragaram e desequilibraram. Nem uns nem outros estão satisfeitos (pelo menos não completamente) com o modo como as coisas vão e com a direção que seu mundo parece tomar, acusando-se mutuamente por essa insatisfação.”

 

 

Os medos agora são difusos, eles se espalharam. É difícil definir e localizar as raízes desses medos, já que os sentimos, mas não os vemos. É isso que faz com que os medos contemporâneos sejam tão terrivelmente fortes, e os seus efeitos sejam tão difíceis de amenizar. Eles emanam virtualmente em todos os lugares. Há os trabalhos instáveis; as constantes mudanças nos estágios da vida; a fragilidade das parcerias; o reconhecimento social dado só “até segunda ordem” e sujeito a ser retirado sem aviso prévio; as ameaças tóxicas, a comida venenosa ou com possíveis elementos cancerígenos; a possibilidade de falhar num mercado competitivo por causa de um momento de fraqueza ou de uma temporária falta de atenção; o risco que as pessoas correm nas ruas; a constante possibilidade de perda dos bens materiais etc.

Os medos são muitos e diferentes, mas eles alimentam uns aos outros. A combinação desses medos cria um estado na mente e nos sentimentos que só pode ser descrito como ambiente de insegurança. Nós nos sentimos inseguros, ameaçados, e não sabemos exatamente de onde vem esta ansiedade nem como proceder.

Os medos não têm raiz. Essa característica líquida do medo faz com que ele seja explorado política e comercialmente. Os políticos e os vendedores de bens de consumo acabam transformando esse aspecto em um mercado lucrativo. O comum é tentar reagir, fazer alguma coisa, buscar desvendar as causas da ansiedade e lutar contra as ameaças invisíveis. Isso é conveniente do ponto de vista político ou comercial. Tal atitude não vai curar a ansiedade, mas alimentar essa indústria do medo. Adquirir bens para obter segurança só alivia uma parte da tensão e mesmo assim, por um breve tempo.

Para os governos e o mercado, é interessante manter acesos esses medos e, se possível, até estimular o aumento da insegurança. Como a fonte das ansiedades parece distante e indefinida, é como se dependêssemos dos especialistas, das pessoas que entendem do assunto, para mostrar onde estão as causas do sofrimento e como lutar contra ele. Não temos como testar a verdade que nos contam. Só nos resta então acreditar no que dizem.”

 

 

“A competição está cada vez mais individualizada. Essa competição é guiada por uma preocupação crescente com a sobrevivência física – ou a satisfação das necessidades biológicas primárias que os instintos de sobrevivência impõem. E também pelo poder de escolha individual: decidir quais são os seus objetivos e que tipo de vida cada qual quer viver. Exercer esses direitos parece ser o “dever” de todos. Assim, tudo o que acontece ao indivíduo parece ser consequência desse direito. E tudo o que falha, uma recusa em botá-lo em prática. O que acontece ao indivíduo tende a ser visto como uma confirmação do poder de cada um.

Uma vez agindo como indivíduos, nos encorajam a buscar reconhecimento social para nossas escolhas. Reconhecimento social significa a aceitação dos outros, a confirmação de que o indivíduo optou por uma vida decente, que vale a pena e que merece todo o respeito das outras pessoas. O oposto do reconhecimento social significa a negação da dignidade, a humilhação.

Uma pessoa se sente humilhada quando recebe a mensagem, por palavras ou ações, de que não pode ser quem pensa que é. Essa humilhação gera preconceito e ressentimento. Numa sociedade individualista como a nossa, este é um tipo venenoso e implacável de ressentimento e uma das mais comuns causas de conflito, rebelião e revolta. Ela destrói a autoestima – nega o reconhecimento, recusa o respeito e aplica a exclusão –, substitui a exploração e assume a discriminação como explicação mais comumente usada para justificar o rancor do indivíduo em relação à sociedade.

Isso não significa que a humilhação seja um fenômeno novo e característico do atual estágio da história da sociedade moderna. Ao contrário, é tão antigo quanto a convivência entre os homens. Na sociedade individualizada, porém, as queixas e as explicações para a dor perdem o foco no grupo e se deslocam para o indivíduo. Mas, em vez de apontar para a injustiça e o malfuncionamento do todo social, e de buscar um remédio na reforma da sociedade, os sofrimentos individuais tendem a ser percebidos como ofensa pessoal, uma agressão à dignidade pessoal e à autoestima. Sendo assim, eles demandariam uma resposta e uma vingança pessoais.

Parece haver uma tremenda desigualdade. É contra ela que a sociologia precisa apontar sua mensagem, e o mais importante passa a ser enviar e receber essa mensagem.”

 

 

“Não me considero um pessimista. Se eu fosse, por que escreveria? Mas também não sou um otimista. Quem são os otimistas? As pessoas que acham que o nosso é o melhor dos mundos. E os pessimistas? Pessoas que suspeitam que os otimistas talvez estejam certos.”

 

 

A questão do engajamento é realmente o lugar da mais profunda e vexatória ambivalência nesse tempo de modernidade líquida. Nós precisamos do que você chamou de “laços densos” como bote salva-vidas para velejar seguros nas águas turbulentas de cenários dados a mudanças rápidas e sem aviso prévio. Por outro lado, estar confinado apenas a um bote salva-vidas limita os movimentos e reduz a gama de opções. A ausência de “laços densos” é cheia de riscos, mas a densidade também o é.

A ambivalência está aqui para ficar, embora, na maior parte do tempo, possamos reconhecer “tendências” – a maioria das pessoas inclina-se para um lado da oposição e descrê do outro, ou evita-o. Podemos dizer que, em geral, o aumento da incerteza e a crescente evidência da total inadequação do modelo “faça isso sozinho” tornam as pessoas mais ansiosas para construir laços e buscar refúgios em coletividades firmemente cerradas (tendência que pode ser revertida uma vez que as coisas se tornem menos cinzentas ou mais promissoras).”

sábado, 26 de novembro de 2022

USA (01): Paralelo 42, de John dos Passos

Editora: Benvirá

ISBN: 978-85-64065-41-3

Tradução: Marcos Santarrita

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 512

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Sinopse: “Paralelo 42” é uma das obras mais importantes de um dos maiores escritores da moderna literatura americana. Primeiro livro da trilogia USA, também composta por “1919” e “O Grande Capital”, alinha a vida de cinco personagens que buscam seu lugar ao sol para compor um painel social e político dos Estados Unidos no início do século XX. Usando colagem de manchetes e notícias de jornais, letras de músicas, biografias de personagens conhecidos (como o inventor Thomas Edison e o empresário Andrew Carnegie) e pura ficção, John dos Passos integra com mestria técnicas narrativas diversas para retratar o nascimento de uma potência mundial, num parto difícil, com lutas de classe e batalhas econômicas.


 

Mac

Morros avermelhados, trechos de bosques, fazendas, vacas, um potro vermelho escoiceando num pasto, cercas de trilhos, pedaços de pântanos.

— Bem, Tim, eu me sinto como um vira-lata surrado... Durante toda a minha vida, Tim, eu tentei fazer a coisa certa — o Pai continuava repetindo numa voz chacoalhada. — E agora, que estarão dizendo de mim?

— Deus do céu, homem, você não podia ter feito outra coisa, podia? Que diabos se pode fazer quando não se tem dinheiro nenhum, emprego nenhum, e um bando de médicos e papa-defuntos e senhorios aparece com suas contas e a gente com dois filhos pra criar?

— Mas eu tenho sido um homem quieto e respeitável, estável e desgraçado desde que me casei e assentei. E agora, que estarão pensando de mim, escapulindo como um cão surrado?

— John, acredite em mim, eu seria o último a querer levar a desonra a uma morta que era minha irmã de nascimento e sangue... Mas não é culpa sua nem minha... é culpa da pobreza, e a pobreza é culpa do sistema... Fenian, escute o Tio O’Hara por um minuto, e você também, Milly, porque uma moça tem de saber essas coisas tanto quanto um homem, e uma vez nesta vida Tim O’Hara está dizendo a verdade... É culpa do sistema, que não dá a um homem o fruto de seu trabalho... O único homem que recebe alguma coisa do capitalismo é o escroque, e este chega a milionário em pouco tempo... Mas um trabalhador honesto como John ou eu pode trabalhar cem anos que não deixa o bastante pra enterrar a gente decentemente.”

 

 

Amante da Humanidade

Debs era ferroviário, nascera num barraco de tábuas em Terre Haute.

Era um de dez filhos.

O pai viera para a América num veleiro em ’49,

Um alsaciano de Colmar; não era muito de ganhar dinheiro, gostava de música e de ler,

deu aos filhos a oportunidade de concluir a escola pública e isso foi quase tudo que pôde fazer.

Aos quinze anos, Gene Debs já trabalhava como maquinista na Estrada de ferro de Indianápolis e Terre Haute.

Trabalhou como foguista de locomotiva,

escriturário numa loja

associou-se à seção local da Irmandade de Foguistas de Locomotiva, foi eleito secretário, viajou por todo o país como organizador.

Era um homem alto de andar bamboleante, tinha uma espécie de retórica tempestuosa que punha em fogo os trabalhadores da estrada de ferro em seus salões de pinho

fazia-os querer o mundo que ele queria,

um mundo partilhado por irmãos

onde todo mundo tivesse o mesmo quinhão:

Não sou um líder trabalhista. Não quero que vocês me sigam, a mim ou a qualquer outro. Se estão em busca de um Moisés que os conduza para fora do deserto capitalista, fiquem exatamente onde estão. Eu não os conduziria a essa terra prometida mesmo que pudesse porque, se eu pudesse conduzi-los para dentro, outra pessoa os conduziria para fora. (...)

e a gente de Terre Haute e de Indiana e do Meio Oeste gostava dele e o temia e pensava nele como um velho tio bondoso que a amava, e queria estar com ele e que ele lhe desse balas,

mas tinha medo dele como se ele houvesse contraído uma doença social, sífilis ou lepra, e achava isso muito ruim,

mas pela bandeira

e pela prosperidade

e para tornar o mundo seguro para a democracia,

tinha medo de estar com ele,

ou de pensar muito sobre ele por temer vir a acreditar no que ele dizia;

porque ele dizia:

Enquanto houver uma classe baixa eu pertenço a ela, enquanto houver zona classe criminosa eu pertenço a ela, enquanto houver uma alma na prisão eu não sou livre.”

 

 

“— Já leu Marx?

— Não... puxa, mas gostaria.

— Eu também não. Mas li Um olhar para trás, de Bellamy; foi isso que me fez virar socialista.

— Me fale dele; eu tinha acabado de começar a ler ele quando saí de casa.

— É sobre um sujeito inútil que dorme e acorda no ano dois mil, quando a revolução social já aconteceu, todo mundo é socialista e não tem mais cadeia nem pobreza, ninguém trabalha para si mesmo e não tem jeito de alguém ser um rico acionista ou capitalista e a vida é uma maravilha para a classe operária.

— Isso é o que eu sempre pensei... São os operários que criam a riqueza e eles é que devem ficar com ela, e não um bando de tubarões.

— Se a gente pudesse acabar com o sistema capitalista, os grandes trustes e Wall Street, as coisas iam ser assim.

— Puxa.

— Só era preciso uma greve geral e fazer os trabalhadores se recusarem a trabalhar para um patrão... Diabos, se as pessoas ao menos compreendessem como é fácil. Os patrões têm toda a imprensa e negam o conhecimento e a educação aos operários.”

 

 

“A comida é o último prazer do velho.”

 

 

O Imperador do Caribe

Quando Minor C. Keith morreu, todos os jornais trouxeram seu retrato, um homem de olhos brilhantes, com um nariz aquilino e uma bela pança, e uma expressão nervosa sob os olhos.

Minor C. Keith era filho de um homem rico, nascido numa família que gostava do cheiro do dinheiro, podiam farejar dinheiro a uma distância de metade do globo naquela família.

O tio dele era Henry Meiggs, o Don Enrique da Costa Oeste. O pai tinha uma grande empresa madeireira e lidava com imóveis em Brooklyn;

o jovem Keith era uma lasca da velha cepa

(Nos idos de quarenta e nove, Don Enrique fora atraído a San Francisco pela corrida do ouro. Não foi garimpar nas montanhas, não morreu de sede peneirando pós de álcalis no vale da Morte. Vendia equipamentos aos outros. Ficou em San Francisco fazendo política e alta finança até que se comprometeu demais e teve de tomar um navio às pressas.

O navio levou-o ao Chile. Ele farejava dinheiro no Chile.

Era o capitalista ianque. Construiria ferrovias de Santiago a Valparaíso. Havia depósitos de guano nas ilhas Chincha. Meiggs farejava dinheiro no guano. Cavou uma fortuna do guano, tornou-se uma potência na Costa Oeste, manipulou cifras, exércitos, as políticas dos caciques e políticos locais: eram todos fichas num imenso jogo de pôquer. Por trás de uma mão boa ele amontoava os dólares.

Financiou as incríveis ferrovias dos Andes.)

Quando Tomás Guardia se tornou ditador da Costa Rica, escreveu a Don Enrique para que lhe construísse uma ferrovia;

Meiggs estava ocupado nos Andes, um contrato de 75 mil dólares dificilmente valeria a pena;

por isso enviou seu sobrinho Minor Keith.

 

As pessoas daquela família não deixavam a grama nascer debaixo de seus pés:

aos dezesseis anos, Minor Keith já vivia por conta própria, vendendo colarinhos e gravatas numa loja de roupas.

Depois disso, foi inspetor de madeira e teve uma empresa madeireira.

Quando seu pai comprou a ilha Padre, ao largo de Corpus Christi, Texas, enviou Minor para fazer dinheiro lá.

Minor Keith começou criando gado na ilha Padre e pescando com rede de arrasto,

mas o gado e o peixe não davam dinheiro bastante

por isso ele comprou porcos e matou os bois e cozinhou a carne e deu-a aos porcos para comer e matou os peixes e deu-os aos porcos para comer,

mas os porcos não davam dinheiro com rapidez suficiente,

e por isso ele se sentiu feliz por ir para Limon.

 

Limon era um dos piores e mais pestilentos buracos das Caraíbas, até os índios morriam lá de malária, febre amarela, disenteria.

Keith retornou a Nova Orleans no vapor John G. Meiggs, a fim de contratar operários para construir a ferrovia. Oferecia um dólar por dia com comida e contratou setecentos homens. Alguns deles tinham estado por lá antes nos dias de pirataria de William Walker.

Desse bando, cerca de vinte e cinco voltaram vivos.

O resto deixou as carcaças escaldadas de uísque apodrecendo nos pântanos.

Em outra carga, ele embarcou para lá mil e quinhentos; todos morreram, provando que só os negros da Jamaica podiam viver em Limon.

 

Minor Keith não morreu.

 

Em 1882, havia trinta quilômetros de ferrovia construídos e Keith estava um milhão de dólares no vermelho;

a ferrovia nada tinha para transportar.

Keith fez com que plantassem bananas, para que a ferrovia tivesse alguma coisa para transportar, e para vender as bananas teve de entrar no negócio de fretes marítimos;

esse foi o começo do negócio de frutas das Caraíbas.

Durante todo esse tempo, os trabalhadores morriam de uísque, malária, febre amarela, disenteria.

Os três irmãos de Minor Keith morreram.

 

Minor Keith não morreu.

Construiu ferrovias, abriu lojas de varejo acima e abaixo da costa, em Bluefields, Belize, Limon, comprou e vendeu borracha, baunilha, conchas de tartaruga, salsaparrilha, qualquer coisa que pudesse comprar barato comprava, qualquer coisa que pudesse vender caro vendia.

Em 1898, em cooperação com a Boston Fruit Company, formou a United Fruit Company, que desde então se tornou uma das unidades industriais mais poderosas do mundo.

Em 1912, ele incorporou a International Railroads of Central America;

tudo isso construído a partir das bananas;

na Europa e nos Estados Unidos as pessoas haviam começado a comer bananas,

de modo que derrubaram as florestas por toda a América Central para plantar bananas,

c construíram ferrovias para transportar as bananas,

e todo ano mais vapores da Grande Frota Branca

navegavam para o norte carregados de bananas,

e esta é a história do império americano nas Caraíbas,

de modo que derrubaram as florestas por toda a América Central para plantar bananas,

e construíram ferrovias para transportar as bananas,

e todo ano mais vapores da Grande Frota Branca

navegavam para o norte carregados de bananas,

e esta é a história do império americano nas Caraíbas,

e do Canal do Panamá e do futuro Canal da Nicarágua e dos fuzileiros navais e dos vasos de guerra e das baionetas.

 

Por que aquela aparência nervosa sob os olhos no retrato de Minor C. Keith, o pioneiro do comércio de frutas, o construtor de ferrovias, em todas as fotos que os jornais estamparam dele quando ele morreu?”

 

 

O Olho da Câmera (23)

a amiga de mamãe era uma mulher muito linda com lindos cabelos louros e tinha duas lindas filhas a loura casou-se com um homem do petróleo que era calvo como a palma da mão e foi morar em Sumatra          a morena casou-se com o homem de Bogotá e os nativos eram índios e dormiam em redes e tinham doenças horríveis e quando a mulher tinha filho era o marido quem ia para a cama e usavam setas envenenadas e caso se fosse ferido naquela região a ferida nunca sarava mas se alastrava branca e madura e a canoa de tronco virava tão facilmente na água quente e fumegante cheia de peixes vorazes que se a gente tivesse um arranhão ou um ferimento não curado o cheiro de sangue atraía-os às vezes faziam as pessoas em pedaços

eram oito semanas subindo o rio Magdalena em canoa e depois se chegava a Bogotá

o coitado do Jonas Fenimore voltou de Bogotá muito doente e diziam que era elefantíase          ele era um bom sujeito e contava histórias sobre a selva fumegante e as tempestades e os crocodilos e as horríveis doenças e os peixes vorazes e bebia todo o uísque na cômoda e quando ia nadar a gente via grossas manchas em suas pernas como cascas de maçã e ele gostava de tomar uísque e falava que a Colômbia ia tornar-se um dos países mais ricos do mundo em petróleo e madeiras raras para vernizes e borboletas tropicais

mas a viagem rio Magdalena acima era longa demais e quente demais e perigosa demais e ele morreu

disseram ter sido o uísque e a elefantíase

e o rio Magdalena”

 

 

“— Evidentemente, não podemos ter certeza, mas todas as minhas melhores decisões são tomadas de estalo.”

 

 

“- Todo o meu futuro eu já deixei para trás.”