Editora: Expressão Popular
Tradução: Carlos
Eduardo Martins, Eduardo Carcanholo e Roberta Traspadini
Organização: João
Pedro Stedile e Roberta Traspadini
ISBN:
978-65-589-1059-6
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 360
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Sinopse: Ver Parte
I
“Em sua análise da dependência
latino-americana, os pesquisadores marxistas incorreram, geralmente, em dois
tipos de desvios: a substituição do fato concreto pelo conceito abstrato, ou a
adulteração do conceito em nome de uma realidade rebelde para aceitá-lo em sua
formulação pura. No primeiro caso, o resultado tem sido os estudos marxistas
chamados de ortodoxos, nos quais a dinâmica dos processos estudados se volta
para uma formalização que é incapaz de reconstruí-la no âmbito da exposição, e
nos que a relação entre o concreto e o abstrato se rompe, para dar lugar a
descrições empíricas que correm paralelamente ao discurso teórico, sem
fundir-se com ele; isso tem ocorrido, sobretudo, no campo da história
Econômica. O segundo tipo de desvio tem sido mais frequente no campo da
sociologia, no qual, frente à dificuldade de adequar a uma realidade categorias
que não foram desenhadas especificamente para ela, os estudiosos de formação
marxista recorrem simultaneamente a outros enfoques metodológicos e teóricos; a
consequência necessária desse procedimento é o ecletismo, a falta de rigor conceitual
e metodológico e um pretenso enriquecimento do marxismo, que é na realidade sua
negação.
Esses desvios nascem de uma dificuldade real:
frente ao parâmetro do modo de produção capitalista puro, a economia
latino-americana apresenta peculiaridades, que às vezes se apresentam como
insuficiências e outras — nem sempre distinguíveis facilmente das primeiras —
como deformações. Não é acidental portanto a recorrência nos estudos sobre a
América Latina a noção de “pré-capitalismo”. O que deveria ser dito é que,
ainda quando se trate realmente de um desenvolvimento insuficiente das relações
capitalistas, essa noção se refere a aspectos de uma realidade que, por sua
estrutura global e seu funcionamento, não poderá desenvolver-se jamais da mesma
forma como se desenvolvem as economias capitalistas chamadas de avançadas. É
por isso que, mais do que um pré-capitalismo, o que se tem é um capitalismo sui
generis, que só adquire sentido se o contemplamos na perspectiva do sistema em
seu conjunto, tanto em nível nacional, quanto, e principalmente, em nível
internacional.
Isso é verdade, sobretudo, quando nos
referimos ao moderno capitalismo industrial latino-americano, tal como se tem
constituído nas duas últimas décadas. Mas, em seu aspecto mais geral, a
proposição é válida também para o período imediatamente precedente e ainda para
a etapa da economia exportadora. É óbvio que, no último caso, a insuficiência
prevalece ainda sobre a distorção, mas se desejamos entender como uma se
converteu na outra é à luz desta que devemos estudar aquela. Em outros termos,
é o conhecimento da forma particular que acabou por adotar o capitalismo
dependente latino-americano o que ilumina o estudo de sua gestação e permite
conhecer analiticamente as tendências que desembocaram nesse resultado.
Mas aqui, como sempre, a verdade tem um duplo
sentido: se é certo que o estudo das formas sociais mais desenvolvidas lança
luz sobre as formas mais embrionárias (ou, para dizê-lo com Marx, “a anatomia
do homem é um a chave para a anatomia do macaco”) (MARX, s/d, p. 41), também é
certo que o desenvolvimento ainda insuficiente de uma sociedade, ao ressaltar
um elemento simples, torna mais compreensível sua forma mais complexa, que
integra e subordina esse elemento. Como assinala Marx:
[...] a categoria mais simples pode expressar as relações dominantes de
um todo não desenvolvido ou as relações subordinadas de um todo mais
desenvolvido, relações que já existiam historicamente antes de que o todo se
desenvolvesse no sentido expressado por uma categoria mais concreta. Só então,
o caminho do pensamento abstrato, que se eleva do simples ao complexo, poderia
corresponder ao processo histórico real. (MARX, s/d, p. 41)
Na identificação desses elementos, as
categorias marxistas devem ser aplicadas, isto é, à realidade como instrumentos
de análise e antecipações de seu desenvolvimento posterior. Por outro lado,
essas categorias não podem substituir ou mistificar os fenômenos a que se
aplicam; é por isso que a análise tem de ponderá-las, sem que isso implique em
nenhum caso romper com a linha do raciocínio marxista, enxertando-lhe corpos
que lhe são estranhos e que não podem, portanto, ser assimilados por ela. O
rigor conceitual e metodológico: a isso se reduz em última instância a
ortodoxia marxista. Qualquer limitação para o processo de investigação que dali
se derive já não tem nada relacionado com a ortodoxia, mas apenas com o
dogmatismo.”
“1. A
integração ao mercado mundial
Forjada no calor da expansão comercial
promovida no século XVI pelo capitalismo nascente, a América Latina se
desenvolve em estreita consonância com a dinâmica do capitalismo internacional.
Colônia produtora de metais preciosos e gêneros exóticos, a América Latina
contribuiu em um primeiro momento com o aumento do fluxo de mercadorias e a expansão
dos meios de pagamento que, ao mesmo tempo em que permitiam o desenvolvimento
do capital comercial e bancário na Europa, sustentaram o sistema manufatureiro
europeu e propiciaram o caminho para a criação da grande indústria. A revolução
industrial, que dará início a ela, corresponde na América Latina à
independência política que, conquistada nas primeiras décadas do século XIX,
fará surgir, com base na estrutura demográfica e administrativa construída
durante a Colônia, um conjunto de países que passam a girar em torno da
Inglaterra. Os fluxos de mercadorias e, posteriormente, de capitais têm nesta
seu ponto de entroncamento: ignorando uns aos outros, os novos países se
articularão diretamente com a metrópole inglesa e, em função dos requerimentos desta,
começarão a produzir e a exportar bens primários, em troca de manufaturas de
consumo e — quando a exportação supera as importações — de dívidas.2
É a partir desse momento que as relações da
América Latina com os centros capitalistas europeus se inserem em uma estrutura
definida: a divisão internacional do trabalho, que determinará o sentido do
desenvolvimento posterior da região. Em outros termos, é a partir de então que
se configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação entre
nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das
nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução
ampliada da dependência. A consequência da dependência não pode ser, portanto,
nada mais do que maior dependência, e sua superação supõe necessariamente a
supressão das relações de produção nela envolvida. Neste sentido, a conhecida
fórmula de André Gunder Frank sobre o “desenvolvimento do subdesenvolvimento” é
impecável, como impecáveis são as conclusões políticas a que ela conduz3.”
2 Até a metade do século 19, as exportações
latino-americanas se encontram estagnadas e a balança comercial
latino-americana é deficitária; os empréstimos estrangeiros se destinam à
sustentação da capacidade de importação. Ao aumentar as exportações, e,
sobretudo a partir do momento em que o comércio exterior começa a gerar saldos
positivos, o papel da dívida externa passa a ser o de transferir para a
metrópole parte do excedente obtido na América Latina. O caso do Brasil é
revelador: a partir da década de 1860, quando os saldos da balança comercial se
tornam cada vez mais importantes, o serviço da dívida externa aumenta: dos 50%
que representava sobre esse saldo nos anos de 1960, se eleva para 99% na década
seguinte”. (Nelson Werneck Sodré, Formação Histórica do Brasil. Ed.
Brasiliense, São Paulo, 1964). “Entre 1902-1913, enquanto o valor das
exportações aumenta em 79,6%, a dívida externa brasileira cresce em 144,6%, e
representa, em 1913, 60% do gasto público total”. (J. A. Barboza-Carneiro,
Situation économique et financière du Brésil: memorandum presente à la
Conférence Financière Internationale. Bruxelas, setembro-outubro de 1920).
(retornar ao texto)
3 Veja-se, por exemplo, seu artigo “Quién es el
ejemplo inmediato” (FRANK, Pensamiento Crítico n° 13, La Habana, 1968).
“A criação da grande indústria moderna seria
fortemente obstaculizada se não houvesse contado com os países dependentes, e
tido que se realizar sobre uma base estritamente nacional. De fato, o
desenvolvimento industrial supõe uma grande disponibilidade de produtos
agrícolas, que permita a especialização de parte da sociedade na atividade
especificamente industrial.7 No caso da industrialização europeia, o
recurso à simples produção agrícola interna teria bloqueado a elevada
especialização produtiva que a grande indústria tornava possível. O forte
incremento da classe operária industrial e, em geral, da população urbana
ocupada na indústria e nos serviços, que se verifica nos países industriais no
século passado, não poderia ter acontecido se estes não contassem com os meios
de subsistência de origem agropecuária, proporcionados de forma considerável
pelos países latino-americanos. Isso foi o que permitiu aprofundar a divisão do
trabalho e especializar os países industriais como produtores mundiais de
manufaturas. Mas não se reduziu a isso a função cumprida pela América Latina no
desenvolvimento do capitalismo: à sua capacidade para criar uma oferta mundial
de alimentos, que aparece como condição necessária de sua inserção na economia
internacional capitalista, prontamente será agregada a contribuição para a
formação de um mercado de matérias primas industriais, cuja importância cresce
em função do mesmo desenvolvimento industrial.8 O crescimento da
classe trabalhadora nos países centrais e a elevação ainda mais notável de sua
produtividade, que resultam do surgimento da grande indústria, levaram a que a
massa de matérias primas voltada para o processo de produção aumentasse em
maior proporção.9 Essa função, que chegará mais tarde a sua
plenitude, é também a que se revelará como a mais duradoura para a América
Latina, mantendo toda sua importância mesmo depois que a divisão internacional
do trabalho tenha alcançado em novo estágio.
O que importa considerar aqui é que as
funções que cumpre a América Latina na economia capitalista mundial transcendem
a mera resposta aos requisitos físicos induzidos pela acumulação nos países
industriais. Mais além de facilitar o crescimento quantitativo destes, a
participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para que o eixo
da acumulação na economia industrial se desloque da produção de mais-valia
absoluta para a de mais-valia relativa, ou seja, que a acumulação passe a
depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que
simplesmente da exploração do trabalhador. No entanto, o desenvolvimento da
produção latino-americana, que permite à região coadjuvar com essa mudança
qualitativa nos países centrais, dar-se-á fundamentalmente com base em uma
maior exploração do trabalhador. É esse caráter contraditório da dependência
latino-americana, que determina as relações de produção no conjunto do sistema
capitalista, o que deve reter nossa atenção.”
7 “Uma produtividade do trabalho agrícola que
supere as necessidades individuais do operário constitui a base de toda
sociedade e, sobretudo, a base da produção capitalista, que separa uma parte
cada vez maior da sociedade da produção de meios diretos de subsistência e a
converte, como disse Steuart, em free
heads, em homens disponíveis para a exploração de outras esferas.” (Marx,
1968a, El Capital,
t. III, XLVII, p. 728).
8 É interessante observar que, a partir de um
certo momento, as mesmas nações industriais exportarão seus capitais para a
América Latina, para aplicá-los na produção de matérias primas e alimentos para
a exportação. Isso é sobretudo visível quando a presença dos Estados Unidos na
América Latina se acentua e começa a deslocar a Inglaterra. Se observamos a
composição funcional do capital estrangeiro existente na região, nas primeiras
décadas deste século 20, veremos que a origem britânica se concentra
prioritariamente nos investimentos de carteira, principalmente títulos públicos
e ferroviários, os quais representavam normalmente três quartas partes do
total; enquanto que os Estados Unidos destinava a esse tipo de operações a
terceira parte de seu investimento, e privilegiavam a aplicação de fundos na mineração,
no petróleo e na agricultura. Veja-se Paul R. Olson e C. Addison Hickman,
Economia internacional latinoamericana, Ed. Fondo de Cultura Econômica, México,
1945, cap. V.
9 “[...] ao crescer o capital variável, tem de crescer também
necessariamente o capital constante, e ao aumentar o volume das condições
comuns de produção, os edifícios, os fornos etc., têm também de aumentar, e
muito mais rapidamente que a quantidade de operários, as matérias-primas.” El Capital, I, XII, p. 293. Além disso, qualquer
que seja a variação do capital variável e do elemento fixo do capital
constante, o gasto de matérias-primas é sempre maior, quando aumenta o grau de
exploração ou a produtividade do trabalho. Cf. O
Capital (Marx, 1968a, t. I, cap. XXII, inciso 4).
“É mediante o aumento de uma massa de
produtos cada vez mais baratos no mercado internacional, que a América Latina
não só alimenta a expansão quantitativa da produção capitalista nos países
industriais, mas também contribui para que sejam superados os obstáculos que o
caráter contraditório da acumulação de capital cria para essa expansão.”
“Não é porque foram cometidos abusos contra
as nações não industriais que estas se tornaram economicamente débeis, é porque
eram débeis que se abusou delas. Não é tampouco porque produziram além do
necessário que sua posição comercial se deteriorou, mas foi a deterioração
comercial o que as forçou a produzir em maior escala. Negar-se a ver as coisas
dessa forma é mistificar a economia capitalista internacional, é fazer crer que
essa economia poderia ser diferente do que realmente é. Em última instância,
isso leva a reivindicar relações comerciais equitativas entre as nações, quando
se trata de suprimir as relações econômicas internacionais que se baseiam no
valor de troca.
De fato, à medida que o mercado mundial
alcança formas mais desenvolvidas, o uso da violência política e militar para
explorar as nações débeis se torna supérfluo, e a exploração internacional pode
descansar progressivamente na reprodução de relações econômicas que perpetuam e
amplificam o atraso e a debilidade dessas nações. Verifica-se aqui o mesmo
fenômeno que se observa no interior das economias industriais: o uso da força
para submeter a massa trabalhadora ao império do capital diminui à medida que
começam a jogar mecanismos econômicos que consagram essa subordinação.15
A expansão do mercado mundial é a base sobre a qual opera a divisão
internacional do trabalho entre as nações industriais e as não industriais, mas
a contrapartida dessa divisão é a ampliação do mercado mundial. O
desenvolvimento das relações mercantis coloca as bases para que uma melhor
aplicação da lei do valor tenha lugar, mas, simultaneamente, cria todas as
condições para que operem os distintos mecanismos mediante os quais o capital
trata de burlá-la.”
15 “Não basta que as condições de trabalho
cristalizem em um dos polos como capital e no outro polo contrário como homens
que não têm mais nada que vender a não ser sua força de trabalho. Não basta
tampouco obrigar estes a se vender voluntariamente. No transcurso da produção
capitalista, vai sendo formada uma classe operária que, por força de educação,
de tradição, de costume, se submete às exigências deste regime de produção como
às mais lógicas leis naturais. A organização do processo capitalista de
produção já desenvolvido vence todas as resistências, a existência constante de
uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho em
concordância com as necessidades de exploração do capital, e a pressão surda
das condições Econômicas sela o poder de mando do capitalista sobre o operário.
Ainda é empregada, de vez em quando, a violência direta, extraeconômica; mas só
em casos excepcionais. Dentro do transcurso natural das coisas, já pode
deixar-se o operário a mercê das ‘leis naturais da produção’, isto é, entregue
ao predomínio do capital, predomínio que as próprias condições de produção
engendram, garantem e perpetuam.” (Marx, 1968a, O Capital, t. I, cap. XXIV, p.627).
“As nações desfavorecidas pela troca desigual
não buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre os preços e o valor de suas
mercadorias exportadas (o que implicaria um esforço redobrado para aumentar a
capacidade produtiva do trabalho), mas procuram compensar a perda de renda
gerada pelo comércio internacional por meio do recurso de uma maior exploração
do trabalhador. Chegamos assim a um ponto em que já não nos basta continuar
trabalhando simplesmente a noção de troca entre nações, mas devemos encarar o
fato de que, no marco dessa troca, a apropriação de valor realizado encobre a
apropriação de uma mais-valia que é gerada mediante a exploração do trabalho no
interior de cada nação. Sob esse ângulo, a transferência de valor é uma
transferência de mais-valia, que se apresenta, desde o ponto de vista do
capitalista que opera na nação desfavorecida, como uma queda da taxa de
mais-valia e por isso da taxa de lucro. Assim, a contrapartida do processo
mediante o qual a América Latina contribuiu para incrementar a taxa de
mais-valia e a taxa de lucro nos países industriais implicou para ela efeitos
rigorosamente opostos. E o que aparecia como um mecanismo de compensação no
nível de mercado é de fato um mecanismo que opera em nível da produção
interna.”
“A superioridade do capitalismo sobre as
demais formas de produção mercantil, e sua diferença básica em relação a elas,
reside em que aquilo que se transforma em mercadoria não é o trabalhador — ou
seja, o tempo total de existência do trabalhador, com todos os momentos mortos
que este implica desde o ponto de vista da produção — mas sua força de
trabalho, isto é, o tempo de sua existência que pode ser utilizada para a
produção, deixando para o mesmo trabalhador o cuidado de responsabilizar-se
pelo tempo não produtivo, desde o ponto de vista capitalista. É esta a razão
pela qual, ao se subordinar uma economia escravista ao mercado capitalista
mundial, o aprofundamento da exploração do escravo é acentuado, já que
interessa portanto a seu proprietário reduzir os tempos mortos para a produção
e fazer coincidir o tempo produtivo com o tempo de existência do trabalhador.
Mas, como assinala Marx, “o escravista compra
operários como poderia comprar cavalos. Ao perder o escravo, perde um capital
que se vê obrigado a repor mediante um novo investimento no mercado de
escravos” (Marx, 1968a, t. I, cap. VIII,
5, p. 209). A superexploração do escravo, que prolonga sua jornada de trabalho
mais além dos limites fisiológicos admissíveis e redunda necessariamente no
esgotamento prematuro, por morte ou incapacidade, só pode acontecer, portanto,
se é possível repor com facilidade a mão de obra desgastada.
Os campos de arroz da Geórgia e os pântanos do Mississipi influem talvez
de uma forma fatalmente destruidora sobre a constituição humana; entretanto,
essa destruição de vidas humanas não é tão grande que não possa ser compensada
pelos cercados transbordantes da Virgínia e do Kentucky. Aquelas considerações
econômicas que poderiam oferecer uma espécie de salvaguarda do tratamento
humano dado aos escravos, enquanto a conservação da vida destes estava
identificada com o interesse de seus senhores, foram modificadas ao se
implantar o comércio de escravos por outros tantos motivos de espoliação
implacável de suas energias, pois tão logo a vaga produzida por um escravo pode
ser coberta pela importação de negros de outros cercados, a duração de sua vida
cede em importância, enquanto dura a sua produtividade.(Cairnes apud Marx, 1968a, t. I, cap. VIII, 5, p.
209)
A evidência contrária comprova o mesmo: no
Brasil da segunda metade do século passado [XIX], quando se iniciava o auge do café,
o fato de que o tráfico de escravos tenha sido suprimido em 1850 fez a mão de
obra escrava tão pouco atrativa para os proprietários de terras do Sul que
estes preferiram apelar para o regime assalariado, mediante a imigração
europeia, além de favorecer uma política no sentido de suprimir a escravidão.
Recordemos que uma parte importante da população escrava encontrava-se na
decadente zona açucareira do Nordeste e que o desenvolvimento do capitalismo
agrário no Sul impunha sua liberação, a fim de constituir um mercado livre de
trabalho. A criação desse mercado, com a lei da abolição da escravatura em
1888, que culminava uma série de medidas graduais nessa direção (como a
condição de homem livre assegurada aos filhos de escravos etc.), constitui um
fenômeno dos mais interessantes; por um lado, definia-se como uma medida
extremamente radical, que liquidava com as bases da sociedade imperial (a
monarquia sobreviverá pouco mais de um ano à lei de 1888) e chegava inclusive a
negar qualquer tipo de indenização aos antigos proprietários de escravos; por
outra parte, buscava compensar o impacto de seu efeito, por meio de medidas
destinadas a atar o trabalhador à terra (a inclusão de um artigo no código
civil que vinculava à pessoa as dívidas contraídas; o sistema de “barracão”,
verdadeiro monopólio do comércio de bens de consumo exercido pelo latifundiário
no interior da fazenda etc.) e da outorga de créditos generosos aos
proprietários afetados.
O sistema misto de servidão e de trabalho assalariado
que se estabelece no Brasil, ao se desenvolver a economia de exportação para o
mercado mundial, é uma das vias pelas quais a América Latina chega ao
capitalismo. Observemos que a forma que adotam as relações de produção nesse
caso não se diferencia muito do regime de trabalho que se estabelece, por
exemplo, nas minas chilenas de salitre, cujo “sistema de fichas” equivale ao
“barracão”. Em outras situações, que ocorrem sobretudo no processo de
subordinação do interior às zonas de exportação, as relações de exploração
podem se apresentar mais nitidamente como relações servis, sem que isso impeça
que, através da extorsão do mais-produto do trabalhador pela ação do capital
comercial ou usurário, o trabalhador se veja implicado em uma exploração direta
pelo capital, que tende inclusive a assumir um caráter de superexploração.20
Entretanto, a servidão apresenta, para o capitalista, o inconveniente de que
não lhe permite dirigir diretamente a produção, além de colocar sempre a
possibilidade, ainda que teórica, de que o produtor imediato se emancipe da
dependência em que o coloca o capitalista.”
20 É assim como Marx se refere a países “em
que o trabalho não tenha ainda sido absorvido formalmente pelo capital, ainda
que o operário esteja na realidade sendo explorado pelo capitalista”,
exemplificando com o caso da Índia, “onde o ryot trabalha como camponês
independente, onde sua produção não foi ainda, portanto, absorvida pelo
capital, ainda que o usurário possa ficar, sob a forma de juros, não só com seu
trabalho excedente, mas inclusive também, falando em termos capitalistas, com
uma parte de seu salário”. El Capital, III, XIII, p. 216.
“4. O
ciclo do capital na economia dependente
Desenvolvendo sua economia mercantil, em
função do mercado mundial, a América Latina é levada a reproduzir em seu seio
as relações de produção que se encontravam na origem da formação desse mercado,
e determinavam seu caráter e sua expansão.21 Mas esse processo
estava marcado por uma profunda contradição: chamada para contribuir com a
acumulação de capital com base na capacidade produtiva do trabalho, nos países
centrais, a América Latina teve de fazê-lo mediante uma acumulação baseada na
superexploração do trabalhador. E nessa contradição que se radica a essência da
dependência latino-americana.
A base real sobre a qual se desenvolve são os
laços que ligam a economia latino-americana com a economia capitalista mundial.
Nascida para atender as exigências da circulação capitalista, cujo eixo de
articulação está constituído pelos países industriais, e centrada portanto
sobre o mercado mundial, a produção latino-americana não depende da capacidade
interna de consumo para sua realização. Opera-se, assim, desde o ponto de vista
do país dependente, a separação dos dois momentos fundamentais do ciclo do
capital — a produção e a circulação de mercadorias — cujo efeito é fazer com
que apareça de maneira específica na economia latino-americana a contradição
inerente à produção capitalista em geral, ou seja, a que opõe o capital ao
trabalhador enquanto vendedor e comprador de mercadorias.22
Trata-se de um ponto-chave para entender o
caráter da economia latino-americana. Inicialmente, há de se considerar que,
nos países industriais, cuja acumulação de capital se baseia na produtividade
do trabalho, essa oposição que gera o duplo caráter do trabalho — produtor e
consumidor —, ainda que seja efetiva, se vê, em certa medida, contraposta pela
forma que assume o ciclo do capital. É assim como, em que pese o privilégio do
capital pelo consumo produtivo do trabalhador (ou seja, o consumo de meios de
produção que implica o processo de trabalho), e se inclina a desestimular seu
consumo individual (que o trabalhador emprega para repor sua força de
trabalho), o qual lhe aparece como consumo improdutivo,23 isso se dá
exclusivamente no momento da produção. Ao ser iniciada a fase de realização,
essa contradição aparente entre o consumo individual dos trabalhadores e a
reprodução do capital desaparece, uma vez que o dito consumo (somado ao dos
capitalistas e das camadas improdutivas em geral) restabelece ao capital a
forma que lhe é necessária para começar um novo ciclo, quer dizer, a forma
dinheiro. O consumo individual dos trabalhadores representa, portanto, um
elemento decisivo na criação de demanda para mercadorias produzidas, sendo uma
das condições para que o fluxo da produção se resolva adequadamente no fluxo da
circulação.24 Por meio da mediação que se estabelece pela luta entre
os operários e os patrões em torno da fixação do nível dos salários, os dois
tipos de consumo do operário tendem assim a se complementar, no curso do ciclo
do capital, superando a situação inicial de oposição em que se encontravam.
Essa é, ademais, uma das razões pelas quais a dinâmica do sistema tende a se
canalizar por meio da mais-valia relativa, que implica, em última instância, o
barateamento das mercadorias que entram na composição do consumo individual do
trabalhador.
Na economia exportadora latino-americana, as
coisas se dão de outra maneira. Como a circulação se separa da produção e se
efetua basicamente no âmbito do mercado externo, o consumo individual do
trabalhador não interfere na realização do produto, ainda que determine a taxa
de mais-valia. Em consequência, a tendência natural do sistema será a de
explorar ao máximo a força de trabalho do operário, sem se preocupar em criar
as condições para que este a reponha, sempre e quando seja possível
substituí-lo pela incorporação de novos braços ao processo produtivo. O
dramático para a população trabalhadora da América Latina é que essa hipótese
foi cumprida amplamente: a existência de reservas de mão de obra indígena (como
no México), ou os fluxos migratórios derivados do deslocamento de mão de obra
europeia, provocado pelo progresso tecnológico (como na América do Sul), permitiram
aumentar constantemente a massa trabalhadora, até o início do século XX. Seu
resultado tem sido o de abrir livre curso para a compressão do consumo
individual do operário e, portanto, para a superexploração do trabalho.
A economia exportadora é, portanto, algo mais
que o produto de uma economia internacional fundada na especialização
produtiva: é uma formação social baseada no modo capitalista de produção, que
acentua até o limite as contradições que lhe são próprias. Ao fazê-lo,
configura de maneira específica as relações de exploração em que se baseia e
cria um ciclo de capital que tende a reproduzir em escala ampliada a
dependência em que se encontra frente à economia internacional.
É assim como o sacrifício do consumo
individual dos trabalhadores em favor da exportação para o mercado mundial
deprime os níveis de demanda interna e erige o mercado mundial como única saída
para a produção. Paralelamente, o incremento dos lucros que disso se deriva
coloca o capitalista em condições de desenvolver expectativas de consumo sem
contrapartida na produção interna (orientada para o mercado mundial),
expectativas que têm de ser satisfeitas por meio de importações. A separação
entre o consumo individual fundado no salário e o consumo individual engendrado
pela mais-valia não acumulada dá origem, portanto, a uma estratificação do
mercado interno, que também é uma diferenciação de esferas de circulação:
enquanto a esfera “baixa”, onde se encontram os trabalhadores — que o sistema
se esforça por restringir —, se baseia na produção interna, a esfera “alta” de
circulação, própria dos não-trabalhadores — que é aquela que o sistema tende a
ampliar —, se relaciona com a produção externa, por meio do comércio de
importação.
A harmonia que se estabelece, no nível do
mercado mundial, entre a exportação de matérias primas e alimentos, por parte
da América Latina, e a importação de bens de consumo manufaturados europeus,
encobre a dilaceração da economia latino-americana, expressa pela cisão do
consumo individual total em duas esferas contrapostas. Quando, chegado o
sistema capitalista mundial a um certo grau de seu desenvolvimento, a América
Latina ingressar na etapa da industrialização, deverá fazê-lo a partir das
bases criadas pela economia de exportação. A profunda contradição que terá
caracterizado o ciclo do capital dessa economia e seus efeitos sobre a
exploração do trabalho incidirão de maneira decisiva no curso que tomará a
economia industrial latino-americana, explicando muitos dos problemas e das
tendências que nela se apresentam atualmente.”
21 Já assinalamos que isto se dá inicialmente
nos pontos de conexão imediata com o mercado mundial; só progressivamente, e
ainda hoje de maneira desigual, o modo de produção capitalista irá subordinando
o conjunto da economia.
22 “Contradição do regime de produção
capitalista: os operários como compradores de mercadorias são importantes para
o mercado. Mas, como vendedores de sua mercadoria — a força de trabalho — a
sociedade capitalista tende a reduzi-los ao mínimo do preço.” El Capital, II,
XVI, III, nota. Marx indica nessa nota a intenção de tratar, na seção seguinte,
a teoria do subconsumo operário, mas, como observa Maximilien Rubel (op. cit.,
t. II, p. 1.715), não chega a concretizá-la. Alguns elementos tinham sido
avançados nos Grundrisse; veja-se Príncipes...,
pp. 267-268.
23 De fato, como demonstra Marx, ambos os
tipos de consumo correspondem a um consumo produtivo, desde o ponto de vista do
capital. Ainda mais, “o consumo individual do trabalhador é improdutivo para
ele mesmo, pois não faz mais que reproduzir o indivíduo necessitado; é
produtivo para o capitalista e o Estado, pois produz a força criadora de sua
riqueza”. Tradução literal de O Capital, I, XXIII, p. 1.075,
Plêiade; cf. edição Fondo de Cultura Econômica, I, XXI, p. 482.
24 “O consumo individual do trabalhador e o
da parte não acumulada do produto excedente englobam a totalidade do consumo
individual. Este condiciona, em sua totalidade, a circulação do capital.”
Tradução literal de O Capital, II, p. 543, Plêiade; cf. Fondo de Cultura Econômica,
p. 84.
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