terça-feira, 15 de novembro de 2022

“Dialética da dependência” e outros escritos (Parte II), de Ruy Mauro Marini

Editora: Expressão Popular

Tradução: Carlos Eduardo Martins, Eduardo Carcanholo e Roberta Traspadini

Organização: João Pedro Stedile e Roberta Traspadini

ISBN: 978-65-589-1059-6

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 360

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Sinopse: Ver Parte I



“Em sua análise da dependência latino-americana, os pesquisadores marxistas incorreram, geralmente, em dois tipos de desvios: a substituição do fato concreto pelo conceito abstrato, ou a adulteração do conceito em nome de uma realidade rebelde para aceitá-lo em sua formulação pura. No primeiro caso, o resultado tem sido os estudos marxistas chamados de ortodoxos, nos quais a dinâmica dos processos estudados se volta para uma formalização que é incapaz de reconstruí-la no âmbito da exposição, e nos que a relação entre o concreto e o abstrato se rompe, para dar lugar a descrições empíricas que correm paralelamente ao discurso teórico, sem fundir-se com ele; isso tem ocorrido, sobretudo, no campo da história Econômica. O segundo tipo de desvio tem sido mais frequente no campo da sociologia, no qual, frente à dificuldade de adequar a uma realidade categorias que não foram desenhadas especificamente para ela, os estudiosos de formação marxista recorrem simultaneamente a outros enfoques metodológicos e teóricos; a consequência necessária desse procedimento é o ecletismo, a falta de rigor conceitual e metodológico e um pretenso enriquecimento do marxismo, que é na realidade sua negação.

Esses desvios nascem de uma dificuldade real: frente ao parâmetro do modo de produção capitalista puro, a economia latino-americana apresenta peculiaridades, que às vezes se apresentam como insuficiências e outras — nem sempre distinguíveis facilmente das primeiras — como deformações. Não é acidental portanto a recorrência nos estudos sobre a América Latina a noção de “pré-capitalismo”. O que deveria ser dito é que, ainda quando se trate realmente de um desenvolvimento insuficiente das relações capitalistas, essa noção se refere a aspectos de uma realidade que, por sua estrutura global e seu funcionamento, não poderá desenvolver-se jamais da mesma forma como se desenvolvem as economias capitalistas chamadas de avançadas. É por isso que, mais do que um pré-capitalismo, o que se tem é um capitalismo sui generis, que só adquire sentido se o contemplamos na perspectiva do sistema em seu conjunto, tanto em nível nacional, quanto, e principalmente, em nível internacional.

Isso é verdade, sobretudo, quando nos referimos ao moderno capitalismo industrial latino-americano, tal como se tem constituído nas duas últimas décadas. Mas, em seu aspecto mais geral, a proposição é válida também para o período imediatamente precedente e ainda para a etapa da economia exportadora. É óbvio que, no último caso, a insuficiência prevalece ainda sobre a distorção, mas se desejamos entender como uma se converteu na outra é à luz desta que devemos estudar aquela. Em outros termos, é o conhecimento da forma particular que acabou por adotar o capitalismo dependente latino-americano o que ilumina o estudo de sua gestação e permite conhecer analiticamente as tendências que desembocaram nesse resultado.

Mas aqui, como sempre, a verdade tem um duplo sentido: se é certo que o estudo das formas sociais mais desenvolvidas lança luz sobre as formas mais embrionárias (ou, para dizê-lo com Marx, “a anatomia do homem é um a chave para a anatomia do macaco”) (MARX, s/d, p. 41), também é certo que o desenvolvimento ainda insuficiente de uma sociedade, ao ressaltar um elemento simples, torna mais compreensível sua forma mais complexa, que integra e subordina esse elemento. Como assinala Marx:

[...] a categoria mais simples pode expressar as relações dominantes de um todo não desenvolvido ou as relações subordinadas de um todo mais desenvolvido, relações que já existiam historicamente antes de que o todo se desenvolvesse no sentido expressado por uma categoria mais concreta. Só então, o caminho do pensamento abstrato, que se eleva do simples ao complexo, poderia corresponder ao processo histórico real. (MARX, s/d, p. 41)

Na identificação desses elementos, as categorias marxistas devem ser aplicadas, isto é, à realidade como instrumentos de análise e antecipações de seu desenvolvimento posterior. Por outro lado, essas categorias não podem substituir ou mistificar os fenômenos a que se aplicam; é por isso que a análise tem de ponderá-las, sem que isso implique em nenhum caso romper com a linha do raciocínio marxista, enxertando-lhe corpos que lhe são estranhos e que não podem, portanto, ser assimilados por ela. O rigor conceitual e metodológico: a isso se reduz em última instância a ortodoxia marxista. Qualquer limitação para o processo de investigação que dali se derive já não tem nada relacionado com a ortodoxia, mas apenas com o dogmatismo.”

 

 

1. A integração ao mercado mundial

Forjada no calor da expansão comercial promovida no século XVI pelo capitalismo nascente, a América Latina se desenvolve em estreita consonância com a dinâmica do capitalismo internacional. Colônia produtora de metais preciosos e gêneros exóticos, a América Latina contribuiu em um primeiro momento com o aumento do fluxo de mercadorias e a expansão dos meios de pagamento que, ao mesmo tempo em que permitiam o desenvolvimento do capital comercial e bancário na Europa, sustentaram o sistema manufatureiro europeu e propiciaram o caminho para a criação da grande indústria. A revolução industrial, que dará início a ela, corresponde na América Latina à independência política que, conquistada nas primeiras décadas do século XIX, fará surgir, com base na estrutura demográfica e administrativa construída durante a Colônia, um conjunto de países que passam a girar em torno da Inglaterra. Os fluxos de mercadorias e, posteriormente, de capitais têm nesta seu ponto de entroncamento: ignorando uns aos outros, os novos países se articularão diretamente com a metrópole inglesa e, em função dos requerimentos desta, começarão a produzir e a exportar bens primários, em troca de manufaturas de consumo e — quando a exportação supera as importações — de dívidas.2

É a partir desse momento que as relações da América Latina com os centros capitalistas europeus se inserem em uma estrutura definida: a divisão internacional do trabalho, que determinará o sentido do desenvolvimento posterior da região. Em outros termos, é a partir de então que se configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. A consequência da dependência não pode ser, portanto, nada mais do que maior dependência, e sua superação supõe necessariamente a supressão das relações de produção nela envolvida. Neste sentido, a conhecida fórmula de André Gunder Frank sobre o “desenvolvimento do subdesenvolvimento” é impecável, como impecáveis são as conclusões políticas a que ela conduz3.”

2 Até a metade do século 19, as exportações latino-americanas se encontram estagnadas e a balança comercial latino-americana é deficitária; os empréstimos estrangeiros se destinam à sustentação da capacidade de importação. Ao aumentar as exportações, e, sobretudo a partir do momento em que o comércio exterior começa a gerar saldos positivos, o papel da dívida externa passa a ser o de transferir para a metrópole parte do excedente obtido na América Latina. O caso do Brasil é revelador: a partir da década de 1860, quando os saldos da balança comercial se tornam cada vez mais importantes, o serviço da dívida externa aumenta: dos 50% que representava sobre esse saldo nos anos de 1960, se eleva para 99% na década seguinte”. (Nelson Werneck Sodré, Formação Histórica do Brasil. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1964). “Entre 1902-1913, enquanto o valor das exportações aumenta em 79,6%, a dívida externa brasileira cresce em 144,6%, e representa, em 1913, 60% do gasto público total”. (J. A. Barboza-Carneiro, Situation économique et financière du Brésil: memorandum presente à la Conférence Financière Internationale. Bruxelas, setembro-outubro de 1920). (retornar ao texto)

3 Veja-se, por exemplo, seu artigo “Quién es el ejemplo inmediato” (FRANK, Pensamiento Crítico n° 13, La Habana, 1968).

 

 

“A criação da grande indústria moderna seria fortemente obstaculizada se não houvesse contado com os países dependentes, e tido que se realizar sobre uma base estritamente nacional. De fato, o desenvolvimento industrial supõe uma grande disponibilidade de produtos agrícolas, que permita a especialização de parte da sociedade na atividade especificamente industrial.7 No caso da industrialização europeia, o recurso à simples produção agrícola interna teria bloqueado a elevada especialização produtiva que a grande indústria tornava possível. O forte incremento da classe operária industrial e, em geral, da população urbana ocupada na indústria e nos serviços, que se verifica nos países industriais no século passado, não poderia ter acontecido se estes não contassem com os meios de subsistência de origem agropecuária, proporcionados de forma considerável pelos países latino-americanos. Isso foi o que permitiu aprofundar a divisão do trabalho e especializar os países industriais como produtores mundiais de manufaturas. Mas não se reduziu a isso a função cumprida pela América Latina no desenvolvimento do capitalismo: à sua capacidade para criar uma oferta mundial de alimentos, que aparece como condição necessária de sua inserção na economia internacional capitalista, prontamente será agregada a contribuição para a formação de um mercado de matérias primas industriais, cuja importância cresce em função do mesmo desenvolvimento industrial.8 O crescimento da classe trabalhadora nos países centrais e a elevação ainda mais notável de sua produtividade, que resultam do surgimento da grande indústria, levaram a que a massa de matérias primas voltada para o processo de produção aumentasse em maior proporção.9 Essa função, que chegará mais tarde a sua plenitude, é também a que se revelará como a mais duradoura para a América Latina, mantendo toda sua importância mesmo depois que a divisão internacional do trabalho tenha alcançado em novo estágio.

O que importa considerar aqui é que as funções que cumpre a América Latina na economia capitalista mundial transcendem a mera resposta aos requisitos físicos induzidos pela acumulação nos países industriais. Mais além de facilitar o crescimento quantitativo destes, a participação da América Latina no mercado mundial contribuirá para que o eixo da acumulação na economia industrial se desloque da produção de mais-valia absoluta para a de mais-valia relativa, ou seja, que a acumulação passe a depender mais do aumento da capacidade produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do trabalhador. No entanto, o desenvolvimento da produção latino-americana, que permite à região coadjuvar com essa mudança qualitativa nos países centrais, dar-se-á fundamentalmente com base em uma maior exploração do trabalhador. É esse caráter contraditório da dependência latino-americana, que determina as relações de produção no conjunto do sistema capitalista, o que deve reter nossa atenção.”

7 “Uma produtividade do trabalho agrícola que supere as necessidades individuais do operário constitui a base de toda sociedade e, sobretudo, a base da produção capitalista, que separa uma parte cada vez maior da sociedade da produção de meios diretos de subsistência e a converte, como disse Steuart, em free heads, em homens disponíveis para a exploração de outras esferas.” (Marx, 1968a, El Capital, t. III, XLVII, p. 728).

8 É interessante observar que, a partir de um certo momento, as mesmas nações industriais exportarão seus capitais para a América Latina, para aplicá-los na produção de matérias primas e alimentos para a exportação. Isso é sobretudo visível quando a presença dos Estados Unidos na América Latina se acentua e começa a deslocar a Inglaterra. Se observamos a composição funcional do capital estrangeiro existente na região, nas primeiras décadas deste século 20, veremos que a origem britânica se concentra prioritariamente nos investimentos de carteira, principalmente títulos públicos e ferroviários, os quais representavam normalmente três quartas partes do total; enquanto que os Estados Unidos destinava a esse tipo de operações a terceira parte de seu investimento, e privilegiavam a aplicação de fundos na mineração, no petróleo e na agricultura. Veja-se Paul R. Olson e C. Addison Hickman, Economia internacional latinoamericana, Ed. Fondo de Cultura Econômica, México, 1945, cap. V.

9 “[...] ao crescer o capital variável, tem de crescer também necessariamente o capital constante, e ao aumentar o volume das condições comuns de produção, os edifícios, os fornos etc., têm também de aumentar, e muito mais rapidamente que a quantidade de operários, as matérias-primas.” El Capital, I, XII, p. 293. Além disso, qualquer que seja a variação do capital variável e do elemento fixo do capital constante, o gasto de matérias-primas é sempre maior, quando aumenta o grau de exploração ou a produtividade do trabalho. Cf. O Capital (Marx, 1968a, t. I, cap. XXII, inciso 4).

 

 

“É mediante o aumento de uma massa de produtos cada vez mais baratos no mercado internacional, que a América Latina não só alimenta a expansão quantitativa da produção capitalista nos países industriais, mas também contribui para que sejam superados os obstáculos que o caráter contraditório da acumulação de capital cria para essa expansão.”

 

 

“Não é porque foram cometidos abusos contra as nações não industriais que estas se tornaram economicamente débeis, é porque eram débeis que se abusou delas. Não é tampouco porque produziram além do necessário que sua posição comercial se deteriorou, mas foi a deterioração comercial o que as forçou a produzir em maior escala. Negar-se a ver as coisas dessa forma é mistificar a economia capitalista internacional, é fazer crer que essa economia poderia ser diferente do que realmente é. Em última instância, isso leva a reivindicar relações comerciais equitativas entre as nações, quando se trata de suprimir as relações econômicas internacionais que se baseiam no valor de troca.

De fato, à medida que o mercado mundial alcança formas mais desenvolvidas, o uso da violência política e militar para explorar as nações débeis se torna supérfluo, e a exploração internacional pode descansar progressivamente na reprodução de relações econômicas que perpetuam e amplificam o atraso e a debilidade dessas nações. Verifica-se aqui o mesmo fenômeno que se observa no interior das economias industriais: o uso da força para submeter a massa trabalhadora ao império do capital diminui à medida que começam a jogar mecanismos econômicos que consagram essa subordinação.15 A expansão do mercado mundial é a base sobre a qual opera a divisão internacional do trabalho entre as nações industriais e as não industriais, mas a contrapartida dessa divisão é a ampliação do mercado mundial. O desenvolvimento das relações mercantis coloca as bases para que uma melhor aplicação da lei do valor tenha lugar, mas, simultaneamente, cria todas as condições para que operem os distintos mecanismos mediante os quais o capital trata de burlá-la.”

15 “Não basta que as condições de trabalho cristalizem em um dos polos como capital e no outro polo contrário como homens que não têm mais nada que vender a não ser sua força de trabalho. Não basta tampouco obrigar estes a se vender voluntariamente. No transcurso da produção capitalista, vai sendo formada uma classe operária que, por força de educação, de tradição, de costume, se submete às exigências deste regime de produção como às mais lógicas leis naturais. A organização do processo capitalista de produção já desenvolvido vence todas as resistências, a existência constante de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho em concordância com as necessidades de exploração do capital, e a pressão surda das condições Econômicas sela o poder de mando do capitalista sobre o operário. Ainda é empregada, de vez em quando, a violência direta, extraeconômica; mas só em casos excepcionais. Dentro do transcurso natural das coisas, já pode deixar-se o operário a mercê das ‘leis naturais da produção’, isto é, entregue ao predomínio do capital, predomínio que as próprias condições de produção engendram, garantem e perpetuam.” (Marx, 1968a, O Capital, t. I, cap. XXIV, p.627).

 

 

“As nações desfavorecidas pela troca desigual não buscam tanto corrigir o desequilíbrio entre os preços e o valor de suas mercadorias exportadas (o que implicaria um esforço redobrado para aumentar a capacidade produtiva do trabalho), mas procuram compensar a perda de renda gerada pelo comércio internacional por meio do recurso de uma maior exploração do trabalhador. Chegamos assim a um ponto em que já não nos basta continuar trabalhando simplesmente a noção de troca entre nações, mas devemos encarar o fato de que, no marco dessa troca, a apropriação de valor realizado encobre a apropriação de uma mais-valia que é gerada mediante a exploração do trabalho no interior de cada nação. Sob esse ângulo, a transferência de valor é uma transferência de mais-valia, que se apresenta, desde o ponto de vista do capitalista que opera na nação desfavorecida, como uma queda da taxa de mais-valia e por isso da taxa de lucro. Assim, a contrapartida do processo mediante o qual a América Latina contribuiu para incrementar a taxa de mais-valia e a taxa de lucro nos países industriais implicou para ela efeitos rigorosamente opostos. E o que aparecia como um mecanismo de compensação no nível de mercado é de fato um mecanismo que opera em nível da produção interna.”

 

 

“A superioridade do capitalismo sobre as demais formas de produção mercantil, e sua diferença básica em relação a elas, reside em que aquilo que se transforma em mercadoria não é o trabalhador — ou seja, o tempo total de existência do trabalhador, com todos os momentos mortos que este implica desde o ponto de vista da produção — mas sua força de trabalho, isto é, o tempo de sua existência que pode ser utilizada para a produção, deixando para o mesmo trabalhador o cuidado de responsabilizar-se pelo tempo não produtivo, desde o ponto de vista capitalista. É esta a razão pela qual, ao se subordinar uma economia escravista ao mercado capitalista mundial, o aprofundamento da exploração do escravo é acentuado, já que interessa portanto a seu proprietário reduzir os tempos mortos para a produção e fazer coincidir o tempo produtivo com o tempo de existência do trabalhador.

Mas, como assinala Marx, “o escravista compra operários como poderia comprar cavalos. Ao perder o escravo, perde um capital que se vê obrigado a repor mediante um novo investimento no mercado de escravos” (Marx, 1968a, t. I, cap. VIII, 5, p. 209). A superexploração do escravo, que prolonga sua jornada de trabalho mais além dos limites fisiológicos admissíveis e redunda necessariamente no esgotamento prematuro, por morte ou incapacidade, só pode acontecer, portanto, se é possível repor com facilidade a mão de obra desgastada.

Os campos de arroz da Geórgia e os pântanos do Mississipi influem talvez de uma forma fatalmente destruidora sobre a constituição humana; entretanto, essa destruição de vidas humanas não é tão grande que não possa ser compensada pelos cercados transbordantes da Virgínia e do Kentucky. Aquelas considerações econômicas que poderiam oferecer uma espécie de salvaguarda do tratamento humano dado aos escravos, enquanto a conservação da vida destes estava identificada com o interesse de seus senhores, foram modificadas ao se implantar o comércio de escravos por outros tantos motivos de espoliação implacável de suas energias, pois tão logo a vaga produzida por um escravo pode ser coberta pela importação de negros de outros cercados, a duração de sua vida cede em importância, enquanto dura a sua produtividade.(Cairnes apud Marx, 1968a, t. I, cap. VIII, 5, p. 209)

A evidência contrária comprova o mesmo: no Brasil da segunda metade do século passado [XIX], quando se iniciava o auge do café, o fato de que o tráfico de escravos tenha sido suprimido em 1850 fez a mão de obra escrava tão pouco atrativa para os proprietários de terras do Sul que estes preferiram apelar para o regime assalariado, mediante a imigração europeia, além de favorecer uma política no sentido de suprimir a escravidão. Recordemos que uma parte importante da população escrava encontrava-se na decadente zona açucareira do Nordeste e que o desenvolvimento do capitalismo agrário no Sul impunha sua liberação, a fim de constituir um mercado livre de trabalho. A criação desse mercado, com a lei da abolição da escravatura em 1888, que culminava uma série de medidas graduais nessa direção (como a condição de homem livre assegurada aos filhos de escravos etc.), constitui um fenômeno dos mais interessantes; por um lado, definia-se como uma medida extremamente radical, que liquidava com as bases da sociedade imperial (a monarquia sobreviverá pouco mais de um ano à lei de 1888) e chegava inclusive a negar qualquer tipo de indenização aos antigos proprietários de escravos; por outra parte, buscava compensar o impacto de seu efeito, por meio de medidas destinadas a atar o trabalhador à terra (a inclusão de um artigo no código civil que vinculava à pessoa as dívidas contraídas; o sistema de “barracão”, verdadeiro monopólio do comércio de bens de consumo exercido pelo latifundiário no interior da fazenda etc.) e da outorga de créditos generosos aos proprietários afetados.

O sistema misto de servidão e de trabalho assalariado que se estabelece no Brasil, ao se desenvolver a economia de exportação para o mercado mundial, é uma das vias pelas quais a América Latina chega ao capitalismo. Observemos que a forma que adotam as relações de produção nesse caso não se diferencia muito do regime de trabalho que se estabelece, por exemplo, nas minas chilenas de salitre, cujo “sistema de fichas” equivale ao “barracão”. Em outras situações, que ocorrem sobretudo no processo de subordinação do interior às zonas de exportação, as relações de exploração podem se apresentar mais nitidamente como relações servis, sem que isso impeça que, através da extorsão do mais-produto do trabalhador pela ação do capital comercial ou usurário, o trabalhador se veja implicado em uma exploração direta pelo capital, que tende inclusive a assumir um caráter de superexploração.20 Entretanto, a servidão apresenta, para o capitalista, o inconveniente de que não lhe permite dirigir diretamente a produção, além de colocar sempre a possibilidade, ainda que teórica, de que o produtor imediato se emancipe da dependência em que o coloca o capitalista.”

20 É assim como Marx se refere a países “em que o trabalho não tenha ainda sido absorvido formalmente pelo capital, ainda que o operário esteja na realidade sendo explorado pelo capitalista”, exemplificando com o caso da Índia, “onde o ryot trabalha como camponês independente, onde sua produção não foi ainda, portanto, absorvida pelo capital, ainda que o usurário possa ficar, sob a forma de juros, não só com seu trabalho excedente, mas inclusive também, falando em termos capitalistas, com uma parte de seu salário”. El Capital, III, XIII, p. 216. (retornar ao texto)

 

 

4. O ciclo do capital na economia dependente

Desenvolvendo sua economia mercantil, em função do mercado mundial, a América Latina é levada a reproduzir em seu seio as relações de produção que se encontravam na origem da formação desse mercado, e determinavam seu caráter e sua expansão.21 Mas esse processo estava marcado por uma profunda contradição: chamada para contribuir com a acumulação de capital com base na capacidade produtiva do trabalho, nos países centrais, a América Latina teve de fazê-lo mediante uma acumulação baseada na superexploração do trabalhador. E nessa contradição que se radica a essência da dependência latino-americana.

A base real sobre a qual se desenvolve são os laços que ligam a economia latino-americana com a economia capitalista mundial. Nascida para atender as exigências da circulação capitalista, cujo eixo de articulação está constituído pelos países industriais, e centrada portanto sobre o mercado mundial, a produção latino-americana não depende da capacidade interna de consumo para sua realização. Opera-se, assim, desde o ponto de vista do país dependente, a separação dos dois momentos fundamentais do ciclo do capital — a produção e a circulação de mercadorias — cujo efeito é fazer com que apareça de maneira específica na economia latino-americana a contradição inerente à produção capitalista em geral, ou seja, a que opõe o capital ao trabalhador enquanto vendedor e comprador de mercadorias.22

Trata-se de um ponto-chave para entender o caráter da economia latino-americana. Inicialmente, há de se considerar que, nos países industriais, cuja acumulação de capital se baseia na produtividade do trabalho, essa oposição que gera o duplo caráter do trabalho — produtor e consumidor —, ainda que seja efetiva, se vê, em certa medida, contraposta pela forma que assume o ciclo do capital. É assim como, em que pese o privilégio do capital pelo consumo produtivo do trabalhador (ou seja, o consumo de meios de produção que implica o processo de trabalho), e se inclina a desestimular seu consumo individual (que o trabalhador emprega para repor sua força de trabalho), o qual lhe aparece como consumo improdutivo,23 isso se dá exclusivamente no momento da produção. Ao ser iniciada a fase de realização, essa contradição aparente entre o consumo individual dos trabalhadores e a reprodução do capital desaparece, uma vez que o dito consumo (somado ao dos capitalistas e das camadas improdutivas em geral) restabelece ao capital a forma que lhe é necessária para começar um novo ciclo, quer dizer, a forma dinheiro. O consumo individual dos trabalhadores representa, portanto, um elemento decisivo na criação de demanda para mercadorias produzidas, sendo uma das condições para que o fluxo da produção se resolva adequadamente no fluxo da circulação.24 Por meio da mediação que se estabelece pela luta entre os operários e os patrões em torno da fixação do nível dos salários, os dois tipos de consumo do operário tendem assim a se complementar, no curso do ciclo do capital, superando a situação inicial de oposição em que se encontravam. Essa é, ademais, uma das razões pelas quais a dinâmica do sistema tende a se canalizar por meio da mais-valia relativa, que implica, em última instância, o barateamento das mercadorias que entram na composição do consumo individual do trabalhador.

Na economia exportadora latino-americana, as coisas se dão de outra maneira. Como a circulação se separa da produção e se efetua basicamente no âmbito do mercado externo, o consumo individual do trabalhador não interfere na realização do produto, ainda que determine a taxa de mais-valia. Em consequência, a tendência natural do sistema será a de explorar ao máximo a força de trabalho do operário, sem se preocupar em criar as condições para que este a reponha, sempre e quando seja possível substituí-lo pela incorporação de novos braços ao processo produtivo. O dramático para a população trabalhadora da América Latina é que essa hipótese foi cumprida amplamente: a existência de reservas de mão de obra indígena (como no México), ou os fluxos migratórios derivados do deslocamento de mão de obra europeia, provocado pelo progresso tecnológico (como na América do Sul), permitiram aumentar constantemente a massa trabalhadora, até o início do século XX. Seu resultado tem sido o de abrir livre curso para a compressão do consumo individual do operário e, portanto, para a superexploração do trabalho.

A economia exportadora é, portanto, algo mais que o produto de uma economia internacional fundada na especialização produtiva: é uma formação social baseada no modo capitalista de produção, que acentua até o limite as contradições que lhe são próprias. Ao fazê-lo, configura de maneira específica as relações de exploração em que se baseia e cria um ciclo de capital que tende a reproduzir em escala ampliada a dependência em que se encontra frente à economia internacional.

É assim como o sacrifício do consumo individual dos trabalhadores em favor da exportação para o mercado mundial deprime os níveis de demanda interna e erige o mercado mundial como única saída para a produção. Paralelamente, o incremento dos lucros que disso se deriva coloca o capitalista em condições de desenvolver expectativas de consumo sem contrapartida na produção interna (orientada para o mercado mundial), expectativas que têm de ser satisfeitas por meio de importações. A separação entre o consumo individual fundado no salário e o consumo individual engendrado pela mais-valia não acumulada dá origem, portanto, a uma estratificação do mercado interno, que também é uma diferenciação de esferas de circulação: enquanto a esfera “baixa”, onde se encontram os trabalhadores — que o sistema se esforça por restringir —, se baseia na produção interna, a esfera “alta” de circulação, própria dos não-trabalhadores — que é aquela que o sistema tende a ampliar —, se relaciona com a produção externa, por meio do comércio de importação.

A harmonia que se estabelece, no nível do mercado mundial, entre a exportação de matérias primas e alimentos, por parte da América Latina, e a importação de bens de consumo manufaturados europeus, encobre a dilaceração da economia latino-americana, expressa pela cisão do consumo individual total em duas esferas contrapostas. Quando, chegado o sistema capitalista mundial a um certo grau de seu desenvolvimento, a América Latina ingressar na etapa da industrialização, deverá fazê-lo a partir das bases criadas pela economia de exportação. A profunda contradição que terá caracterizado o ciclo do capital dessa economia e seus efeitos sobre a exploração do trabalho incidirão de maneira decisiva no curso que tomará a economia industrial latino-americana, explicando muitos dos problemas e das tendências que nela se apresentam atualmente.”

21 Já assinalamos que isto se dá inicialmente nos pontos de conexão imediata com o mercado mundial; só progressivamente, e ainda hoje de maneira desigual, o modo de produção capitalista irá subordinando o conjunto da economia.

22 “Contradição do regime de produção capitalista: os operários como compradores de mercadorias são importantes para o mercado. Mas, como vendedores de sua mercadoria — a força de trabalho — a sociedade capitalista tende a reduzi-los ao mínimo do preço.” El Capital, II, XVI, III, nota. Marx indica nessa nota a intenção de tratar, na seção seguinte, a teoria do subconsumo operário, mas, como observa Maximilien Rubel (op. cit., t. II, p. 1.715), não chega a concretizá-la. Alguns elementos tinham sido avançados nos Grundrisse; veja-se Príncipes..., pp. 267-268.

23 De fato, como demonstra Marx, ambos os tipos de consumo correspondem a um consumo produtivo, desde o ponto de vista do capital. Ainda mais, “o consumo individual do trabalhador é improdutivo para ele mesmo, pois não faz mais que reproduzir o indivíduo necessitado; é produtivo para o capitalista e o Estado, pois produz a força criadora de sua riqueza”. Tradução literal de O Capital, I, XXIII, p. 1.075, Plêiade; cf. edição Fondo de Cultura Econômica, I, XXI, p. 482.

24 “O consumo individual do trabalhador e o da parte não acumulada do produto excedente englobam a totalidade do consumo individual. Este condiciona, em sua totalidade, a circulação do capital.” Tradução literal de O Capital, II, p. 543, Plêiade; cf. Fondo de Cultura Econômica, p. 84.

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