Editora: Expressão Popular
Tradução: Carlos
Eduardo Martins, Eduardo Carcanholo e Roberta Traspadini
Organização: João
Pedro Stedile e Roberta Traspadini
ISBN: 978-65-589-1059-6
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 360
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Sinopse: Esta coletânea, publicada originalmente em 2005
sob o título Ruy Mauro Marini: vida e obra, ganha agora nova edição em homenagem
aos 90 anos de Marini (1932-1997), um dos maiores pensadores contemporâneos
brasileiros. Esta segunda edição, revista e ampliada, conta com a apresentação
do professor e pesquisador Mathias Luce, que destaca o pioneirismo da primeira
edição organizada por Roberta Traspadini e João Pedro Stedile, há dezessete anos,
contra o bloqueio acadêmico de Marini, e comemora a publicação desta obra no avanço
das pesquisas da Teoria Marxista da Dependência em centenas de estudos brasileiros.
Os
textos de Ruy Mauro Marini compilados nesta obra refletem o contexto dos anos de
1960, em que quatro correntes ideológicas confrontavam-se na América Latina: os
partidos comunistas vinculados à Terceira Internacional; o foquismo, com uma leitura
equivocada da Revolução Cubana; a teoria do subdesenvolvimento da Cepal; e a Escola
da Dependência, que procurou aplicar as categorias do materialismo histórico dialético,
da economia política, para explicar a essência do que está encoberto pela aparência
das relações sociais e materiais de produção em nossas sociedades, sustentando o
argumento em método, conteúdo e proposição a partir do ideário socialista de Marx,
Engels, Lenin e Rosa Luxemburgo. Andre Gunder Frank, Theotonio dos Santos, Vânia
Bambirra, Augustin Cueva e Ruy Mauro Marini deixaram como legado à militância social
a Teoria da Dependência – dependência, superexploração e subimperialismo
– uma explicação das particularidades históricas da dependência e a necessidade
da revolução como elemento central de atuação da classe oprimida.
Uma
obra voltada para a formação crítica de pesquisadores, estudantes e professores
de ciências sociais, economia política, ciência política, teoria marxista, além
de militantes sociais. Uma obra didática, dividida em biografia, textos selecionados
e depoimentos de amigos, para conhecer Ruy Mauro Marini como teórico revolucionário
que se destacou pela formulação da Teoria Marxista da Dependência, pela disciplina
de estudo e participação incansável em debates, pelo rigor metodológico, pela preocupação
em entender os mecanismos internos e externos próprios de uma relação de dependência,
e pela concepção prática de suas ideias, resultando em uma práxis comprometida como
militante social. Sua contribuição se insere na tradição latino-americana iniciada
por Martí, resgatada por Mariátegui, seguida por Miguel Astúrias, Fidel, Che, Aníbal
Quijano, entre outros.
“O
conceito de dependência, superexploração e subimperialismo
A dependência, no enfoque marxista de Ruy
Mauro Marini, é entendida como uma relação de subordinação própria da forma
como o capital e os interesses de seus donos se internacionalizam de maneira
cada vez mais integrada e intensificada. A dependência é, assim, o mecanismo
central de subordinação do território, do espaço, dos sujeitos, dos países
subdesenvolvidos, como forma de perpetuação do poder de reprodução do
capitalismo na esfera internacional. O subdesenvolvimento e o desenvolvimento
são entendidos como processos indissociáveis e necessários para a evolução internacional
do modo de produção capitalista. Uma dependência que evidencia a integração de
um processo que não está posto para ser resolvido em termos de igualdade,
exatamente porque se nutre das relações desiguais. O desenvolvimento desigual,
assim considerado, é o resultado de uma relação também desigual entre os
apropriadores privados mundiais do capital, que atuam de maneira combinada para
garantir a permanência do seu modo de acumulação, e os trabalhadores explorados
do mundo, que sustentam essa esfera de acumulação global. Por esse motivo,
resolver o problema da dependência está diretamente associado à resolução dos problemas
do capitalismo. Ou seja, a dependência somente pode ser extirpada com a
instauração de um modelo com base distinta do capitalista, um modelo crítico
aos mecanismos de expropriação, exploração e apropriação privada do capital em escala
mundial.
A superexploração é um mecanismo particular
desenvolvido pelos capitalistas da América Latina para reverter sua perda de
lucro na relação de dependência com o mundo, quando o mesmo mecanismo se
caracteriza pela centralização do poder nas mãos dos grandes mandatários do
capital, provenientes das economias tecnologicamente mais desenvolvidas. A
superexploração é a principal categoria desenvolvida por Marini para explicar a
particularidade histórica que cumpre a América Latina no âmbito geral de
reprodução do capital. Para ele, enquanto a exploração deve ser entendida como
mecanismo de criação de valor na sociedade capitalista baseada no trabalho
assalariado, apropriado pelos capitalistas privados, a superexploração deve ser
entendida como o mecanismo utilizado pelos capitalistas da periferia para
compensar suas perdas nas relações econômicas internacionais. A explicação é a
seguinte: enquanto os trabalhadores dos países mais desenvolvidos eram, ainda
em meio à exploração capitalista, tratados ao mesmo tempo como operários e
consumidores, na periferia os trabalhadores não se transformaram em sujeitos do
consumo. Assim, enquanto na América Latina se produz para satisfazer o mercado
externo e ajustar as perdas ocorridas neste, os países centrais se preocupam em
desenvolver relações comerciais desiguais que possam favorecer a ampliação tanto
de seus mercados internos quanto de sua hegemonia internacional. Essa conformação
desigual entre os que consolidam um mercado interno e uma hegemonia
internacional — os países centrais — e os países que atuam a partir de uma subordinação
e complementaridade à ótica de acumulação da produção desenvolvida pelos países
hegemônicos — países periféricos — é o que caracteriza a dependência da América
Latina frente aos ditames internacionais.
É devido exatamente à dependência vigorar como
mecanismo essencial de apropriação do capital em esfera internacional que a
exploração do trabalho na América Latina cumprirá um duplo papel: i) de
transformar as relações no interior dos países desenvolvidos, dado que os
produtos alimentícios são fornecidos pelos países subdesenvolvidos e jogam peso
fundamental na constituição dos salários dos trabalhadores desses países; ii)
de compensar as perdas dos países subdesenvolvidos, próprias dessa
transferência de valor para os países desenvolvidos, a partir de uma utilização
superexploradora da força de trabalho no interior das economias
latino-americanas, a partir do pagamento de um salário que sequer repõe as
forças gastas pelo trabalhador no ambiente de trabalho.
De maneira geral, a exploração, entendida
como a capacidade de apropriação do valor produzido pelo trabalhador por parte
do capitalista em três mecanismos-chave, como sustenta Marx (mais-valia
relativa, mais-valia absoluta e pagamento de um salário que garanta a
reprodução da vida do trabalhador e de sua família), na América Latina, se
caracterizará pela utilização excessiva desses mecanismos a partir do pagamento
de um salário que não permite a reprodução adequada da vida do trabalhador.
Assim, além da exploração pelos dois mecanismos-chave (mais-valia relativa e
mais-valia absoluta), aqui se dá a utilização direta de uma exploração sui generis: o pagamento de salários que
não permitem ao trabalhador sequer reproduzir adequadamente sua vida, muito
menos a de sua família. Essa remuneração perversa ocorre, segundo Marini,
devido a alguns mecanismos essenciais:
a) mão de obra abundante no continente, antes
a serviço do trabalho escravo, agora a serviço do trabalho assalariado mal
remunerado;
b) estruturas sindicais débeis, corroborando
o sistema de exploração em vez de lutar contra ele;
c) uma classe operária historicamente jovem,
que não tinha ainda consciência para si, nem acúmulo ideológico de um projeto
socialista;
d) poder da burguesia nacional diretamente
associado aos interesses da burguesia internacional;
e) Estado que responde aos interesses do modo
de reprodução do capital. (...)
O subimperialismo: o papel que as economias
subdesenvolvidas executam com relação às demais economias na mesma situação, a
partir da forma como se estabelece a divisão internacional do trabalho. Em
outras palavras, a forma como os principais países do continente reproduzem no
interior de suas economias, e no jogo com as demais economias subdesenvolvidas,
os mesmos mecanismos de dependência e exploração executados pelos capitalistas
dos países desenvolvidos com relação à América Latina. A superexploração do trabalho,
a integração do capital nacional ao internacional, ou seja, a integração dos
sistemas de produção, e a ampliação do capital financeiro sobre o capital
produtivo transformam-se nos instrumentos essenciais. O conceito de
subimperialismo é muito importante porque nos permite entender, ao mesmo tempo,
a forma como os capitalistas lidam com a dependência, bem como os mecanismos
que estruturam para fazer das relações internacionais o espaço de compensação
para as perdas dos lucros que poderiam ser ganhos no interior dessas economias,
mas que são transferidos para os centros tecnologicamente mais avançados.
Estas três categorias juntas — dependência,
superexploração, subimperialismo — explicam a dialética do desenvolvimento
latino-americano. E, ao mesmo tempo em que relatam a forma funcional
implementada pelo capital a partir de mecanismos desumanos de exploração, abrem
caminho para revelar as históricas lutas de resistência e revolução no interior
do nosso continente. Ante esses mecanismos avassaladores do capital, que atua
de maneira cada vez mais integrada, sempre se levantou sua força antagônica, às
vezes de maneira mais explícita, outras tantas de forma mais oculta: o
trabalhador organizado.” (Introdução
– Roberta Traspadini e João Pedro Stédile)
“A atualidade
da Teoria da Dependência
A Teoria da Dependência procurou explicar,
com maior rigor científico e à luz dos ensinamentos de Marx, qual era a lógica
de dominação do capital internacional sobre as economias periféricas, em
especial da América Latina.
Nada mais expressivo para explicar o atual
estágio de dominação e subordinação de nossas economias ao capital internacional
do que o enfoque da dependência desenvolvido por Marini e demais intelectuais
marxistas. Nisso, eles foram precursores. Passada a etapa de substituição de
importações, fracassadas as tentativas de industrialização, mesmo dependente,
de nossos países, hoje, no Brasil e em toda América Latina, vivemos uma nova
etapa da dependência: a da subordinação total de nossas economias ao capital internacional,
tanto produtivo quanto financeiro-especulativo. Mas o momento atual traz uma particularidade
importante relativa ao capital internacional, uma vez que, tanto na esfera
produtiva quanto financeiro-especulativo. Mas o momento atual traz uma particularidade
importante relativa ao capital internacional, uma vez que, tanto na esfera
produtiva quanto na financeira, utiliza mecanismos mais explícitos sobre sua forma
de dominação da América Latina, exercida por meio dos organismos
supranacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. A
dominação hegemônica das grandes corporações vinculadas aos grandes bancos
expressa como os cartéis e trustes controlam o mundo na atualidade: são 500
grandes corporações oligopólicas, que controlam 58% de toda a produção global,
apesar de empregarem apenas 3% da mão de obra disponível no mundo.
Esse grau de dependência tornou as economias
de nossos países ainda mais vulneráveis. A dominação do capital internacional
sobre a América Latina relata outro momento particular de sua apropriação
privada sobre o continente ao se consolidar a etapa neoliberal do modo de
funcionamento político do capitalismo — final do século XX e início do século
XXI. A economia latino-americana se transformou, ao longo do processo histórico
do desenvolvimento das forças capitalistas, em espaço de reprodução sem
fronteiras e/ou limites para os capitalistas dos países centrais. Nunca foi tão
clara a forma como o imperialismo utiliza o monopólio de sua moeda, o dólar
estadunidense, como mecanismo de espoliação das economias periféricas. Nossas
economias agora estão sendo exploradas não mais apenas pelos baixos salários visíveis
na década de 1960 e justificados pelo grau de subdesenvolvimento então vigente.
Agora, os países da América Latina exportam capital e são explorados em sua
relação de subordinação dependente, a partir de algumas particularidades
próprias desse novo momento histórico:
a) pelo monopólio da moeda estadunidense, o
dólar, como meio de circulação das mercadorias produzidas e/ou distribuídas ao
longo do continente;
b) pelo envio das remessas de lucros das
corporações transnacionais sem nenhum controle e sob permissivas concessões
tributárias e fiscais oferecidas pelos Estados nacionais latino-americanos.
Grupos internacionais são nacionalmente favorecidos pelo desenvolvimento das
forças produtivas no campo da informática e da informação e se transformam nos produtores
e especuladores mundiais;
c) pelo pagamento de taxas de juros variáveis
e escorchantes, aplicadas a empréstimos de duvidosa necessidade social ou
nacional, e que vão tornando as dívidas externas impagáveis, quando, na
realidade, já foram pagas múltiplas vezes. As taxas de juros pagas ao sistema
financeiro no Brasil e na maioria dos países da América Latina são as mais
altas do mundo. Enquanto nos Estados Unidos o Banco Central controla os juros ao
redor de 2% ao ano, na periferia chegam a 20%, portanto dez vezes mais, para um
mesmo capital que pode ser aplicado lá ou aqui pelo mesmo banqueiro proprietário;
d) pelo crescente controle do setor de
serviços pelas grandes corporações estrangeiras, como no caso de fretes,
seguros, assistência técnica etc., que obrigam a transferência em dólar;
e) pelo crescente pagamento das taxas de royalties, imposta pelo capital
internacional aos países periféricos, que compõem, com peso cada vez maior, o
preço dos produtos farmacêuticos e de alta tecnologia exportados para os países
periféricos;
f) a desnacionalização das empresas que atuam
nos setores estratégicos e mais dinâmicos das economias latino-americanas. Essa
nova propriedade, do capital estrangeiro, que em alguns países tem um peso significativo
no Produto Interno Bruto (PIB), leva à transferência permanente do lucro obtido
aos seus países de origem, em vez de serem reinvestidos, em âmbito nacional,
como eram antes.
O resultado disso é que, segundo
pesquisadores economistas, durante o processo de implementação dessa
subordinação neoliberal das economias latino-americanas ao capital financeiro,
a América Latina transferiu, na década de 1990, nada menos do que 1 trilhão de
dólares de sua riqueza para os centros capitalistas.
Além disso, a dependência das economias
periféricas é agravada pelo uso constante da força militar imperialista, como
forma não apenas de realizar os lucros de suas empresas do complexo
militar-industrial-financeiro, mas também de impor suas regras aos países e
governos periféricos sempre que queiram um pequeno grau de independência. Em
toda a América Latina, se multiplicaram os investimentos em bases militares
fixas dos Estados Unidos. Além disso, aumentaram suas ameaças de intervenção em
toda a América Central, Colômbia, Equador, Venezuela e Cuba.
Dessa forma, o governo e a economia dos
Estados Unidos seguem funcionando a partir do abastecimento, superexplorador,
dos territórios e recursos nacionais próprios dos países do seu continente e
que são roubados pelo colonizador dos séculos XX e XXI ao lado de seus pares
mundiais. A transferência de valor segue mantendo viva a hegemonia dos EUA a
partir da remessa direta do capital da periferia para que sustente e cubra um
déficit no orçamento público federal de quase 500 bilhões de dólares anuais e
um déficit comercial anual entre exportações estadunidenses e suas importações no
valor de outros 500 bilhões de dólares anuais. Esse um trilhão de dólares
anuais é financiado e coberto pela espoliação dos países periféricos. E isso
faz o sistema capitalista internacional funcionar, não quebrar, como nos
explicava a Escola da Dependência já na década de 1970.” (Introdução – Roberta Traspadini e João Pedro Stédile)
“As consequências sociais e ideológicas da
superexploração dos trabalhadores são as do esvaziamento dos espaços de luta do
mundo do trabalho e da transformação dos processos revolucionários da construção
do novo em meras relações de sobrevivência cotidiana. A luta pela sobrevivência
diária é tão central na vida da maioria dos trabalhadores deste início de século
que valores baseados em coletividade, solidariedade, sentido de pertencimento e
de classe parecem ter desvanecido no ar. Esse é um fenômeno que merece um
cuidado histórico na compreensão das correlações de forças de cada época. Não estamos
vivendo o fim da história, o fim do socialismo, o fim da classe trabalhadora.
Estamos vivendo o limite de um processo civilizatório baseado na apropriação
privada, sem precedentes e sem fronteiras, da riqueza e renda por uns poucos em
contraposição à miséria de muitos. Assim, o esvaziamento do mundo do trabalho
como concepção diferenciada da vida anuncia e denuncia a luta histórica e os
mecanismos utilizados materialmente para transformar os opositores do capital em
indivíduos a serem assistidos seja pelo Estado, seja pelos novos conceitos
intitulados responsabilidade social. Enquanto os pós-modernos defensores do fim
da história argumentam sobre o pensamento único e o caminho irreversível do
capitalismo, Marini, com sua categoria da superexploração, nos remete à
compreensão dos fenômenos históricos, sem perder de vista o caráter de classe,
de revolução, de construção do novo, contra toda e qualquer banalização dos
sentidos, da desapropriação dos projetos sociais como projetos de classe. O
contexto histórico que determina a atual práxis revolucionária é o de uma
verdadeira barbárie social, fruto de um avanço histórico das forças produtivas
capitalistas e das relações sociais concernentes a elas que geram, como disse Marx,
o desenvolvimento do capital sob a intensificação do desenvolvimento da miséria
humana.” (Introdução – Roberta
Traspadini e João Pedro Stédile)
“O
subimperialismo
Marini criou esse conceito para nos ajudar a
entender como as empresas, instaladas em nosso território latino-americano,
exercem um papel complementar na lógica de dominação do imperialismo sobre as
nossas economias, sobre as nossas riquezas e sobre os nossos mercados.
Muitos criticaram a teoria do subimperialismo
sem se deter na sua essência, alegando que o nível de empresas brasileiras que
se transformaram em transnacionais e foram para outros países da América Latina
explorar riquezas, trabalho e mercado, era insignificante sobre o PIB. Mas o
importante da teoria de Marini não é somente o nível de abrangência dessas
empresas, ou o fato de serem fruto de acumulação primitiva de propriedade da
burguesia brasileira. O central na tese de Marini é entender a lógica de como
empresas transnacionais aqui instaladas podem se utilizar da nossa economia e
do nosso território para ser base de expansão para outros mercados a serem
controlados. Portanto, a partir do uso do nosso território exercitavam uma
lógica de subimperialismo. Exploravam um território e, a partir dele, outros
tantos. Essa lógica evidencia o critério de controle dos mercados e de
acumulação territorial a ser repatriada aos países hegemônicos, centrais. O
subimperialismo sustenta, assim, a nova forma desenvolvida pelo capital
internacional para controlar, acumular e se reproduzir de forma ainda mais
intensiva e ampliada na América Latina, a partir da implementação das políticas
neoliberais consolidadas pelos principais Estados nacionais do continente.
A tese do subimperialismo latino-americano
tem, na atualidade, uma comprovação histórica difícil de ser negada. A América
Latina vive, em pleno século XXI, um processo de descaracterização sobre o
sentido do nacional e do estatal. As privatizações ocorridas a partir dos anos
de 1990 e a entrega da produção às principais empresas capitalistas
internacionais transformaram o continente, antes subordinado — mas com uma
relativa autonomia produtiva —, dado que parte do setor produtivo era estatal,
agora em espaço de acumulações sem uma relativa autonomia produtiva —, dado que
parte do setor produtivo era estatal, agora em espaço de acumulações sem
fronteiras para o capital internacional. Para isso, transformaram, pouco a
pouco, o Estado em um mero gerenciador dos interesses do capital hegemônico
internacional. Estado responsável, entre alguns outros mecanismos, por
estabilizar a economia, tornando-a rentável para as ações a serem desenvolvidas
por esse grupo, seja no âmbito do capital especulativo, seja no âmbito do
capital produtivo. Esse processo tem como objetivo subordinar amplamente o
continente aos ditames da hegemonia estadunidense compactuada com seus pares no
âmbito internacional. E a confirmação da economia da guerra capitalista e da
utilização política estratégica dos Estados da periferia como espaços
supranacionais a serem coordenados pelos grandes grupos operativos do capital,
sob a égide dos Estados Unidos.” (Introdução
– Roberta Traspadini e João Pedro Stédile)
“O que é em realidade a Alca? É um grande
acordo continental que pretendeu garantir e legitimar um marco jurídico que
legalizasse a superexploração e o poder subimperialista que as 500 empresas
transnacionais, a maioria dos Estados Unidos, querem impor a todo o continente.
Assim, grosso modo, a Alca é um mecanismo jurídico de acordo internacional,
para viabilizar as técnicas e a lógica do subimperialismo como método de
controle e dominação para a realização do capital no continente, a partir da
sujeição de milhões de pessoas a exclusão e miséria provocadas pelo modo de
produção capitalista.” (Introdução –
Roberta Traspadini e João Pedro Stédile)
“Com a decretação da anistia política, em
1979, pude vir, em dezembro, ao Brasil, depois de quatorze anos. Continuei,
entretanto, ligado ao México, com breves visitas ao país, em 1982 (quando fui
tomado novamente preso, por quase três dias) e, em licença sabática, a fins de
1983 e princípios de 1984. No segundo semestre desse ano, decidi voltar de vez,
embora só em dezembro renunciasse ao meu cargo, na UNAM. Chegava ao fim o meu
exílio, que durara quase vinte anos.
5. A VOLTA
E vinte anos — sobretudo se correspondem à
nossa fase de afirmação e desenvolvimento profissional — contam muito. Contam
ainda mais se o país a que regressamos, apesar de ter tido o seu movimento
geral determinado pelas mesmas tendências que regeram o da América Latina,
participando, pois, do mesmo processo de hipertrofia das desigualdades de
classe, da dependência externa e do terrorismo de Estado que a caracterizou,
nesse período, o fez acentuando seu isolamento cultural em relação a ela e
lançando-se a um consumo compulsivo das ideias em moda nos Estados Unidos e na
Europa.
Em minha segunda visita ao Brasil, a meados
de 1980, atendendo a convite da Escola Interamericana de Administração Pública,
eu tomara já consciência disso. Com efeito, ao participar de uma mesa redonda
com economistas do MDB, no Rio, havia sido, não sem surpresa, o único a
contestar a tese de que o Brasil, sob a ditadura militar, ampliara as bases de
sua autonomia no plano internacional e dispunha de condições invejáveis para
enfrentar os desafios da década de 1980. Os acontecimentos posteriores à
moratória mexicana de 1982, para não falar da trajetória seguida depois pelo
país, levariam a maioria deles a modificar esse ponto de vista. Mas a revisão
não foi suficiente para transformar qualitativamente o pathos cultural
que a ditadura impôs à elite intelectual brasileira.
Para que esta se tornasse no que hoje é
concorreu decisivamente, além do exílio sofrido pela intelectualidade rebelde
dos anos 60, uma política coerente, baseada num conjunto de instrumentos: a
censura, que erigiu uma barreira à rica produção sociológica, econômica e
política latino-americana desse período; a criação de novos meios de
comunicação, em particular a televisão, funcionais ao sistema; a intervenção
nas universidades, que expulsou professores e alunos, mutilou os planos de
estudo e, através da privatização, degradou até o limite a qualidade do ensino;
e a destinação de gordas verbas para a pesquisa e a pós-graduação, implicando
novos critérios para a seleção de temas e o direcionamento das bolsas de estudo
para os Estados Unidos e alguns centros europeus. A análise da política
cultural da ditadura, iniciada com os acordos MEC-Usaid, e de suas
consequências ainda está por ser feita, representando um ajuste de contas
indispensável para que o Brasil possa descobrir sua verdadeira identidade.
Essa política teria resultado, porém, menos
exitosa se mais e mais intelectuais não houvessem sido cooptados pelo sistema,
inclusive aqueles que se situavam em oposição ao regime. Ocorreu no país um
fenômeno curioso: intelectuais de esquerda, que chegavam a ocupar posições em
centros acadêmicos, ou que os criavam com o fim precípuo de ocupar posições,
estabeleciam à sua volta uma rede de proteção contra o assédio da ditadura e
utilizavam sua influência sobre a destinação de verbas e de bolsas para
consolidar o que haviam conquistado, atuando com base em critérios sumamente
grupais. Entretanto, o que aparecia, originalmente, como autodefesa e
solidariedade tornou-se, com o correr do tempo — principalmente ao ter início a
desagregação do regime, a fins dos anos 70 — uma vocação irresistível para o
corporativismo, a cumplicidade e o desejo de exclusão de todo aquele — qualquer
que fosse sua conotação política — que ameaçasse o poder das pessoas e grupos
beneficiários desse processo. Por outra parte, no ambiente fechado em que
sufocava o país, resultava proveitoso, para os que nele podiam entrar e sair
livremente, monopolizar e personalizar as ideias que floresciam na vida
intelectual da região, adequando-as previamente aos limites estabelecidos pela
ditadura. Neste contexto, a maioria da intelectualidade brasileira de esquerda
colaborou, de maneira mais ou menos consciente, com a política oficial,
fechando o caminho à difusão dos temas que agitaram a esquerda latino-americana
na década de 1970, marcada por processos políticos de grande transcendência e
concluída com uma revolução popular vitoriosa.
O fenômeno não era exclusivamente brasileiro
ou, com o passar do tempo, foi deixando de sê-lo. Após os movimentos de 1968, a
Europa e os Estados Unidos viram aguçar-se as lutas de classes e tiveram que
enfrentar iniciativas populares e de esquerda, que desafiavam o sistema
dominante. Mencionamos já que, a meados dos 70, o resultado dessas lutas passou
a ser favorável às forças do stablishment. Mencionamos, também, que,
desde o golpe chileno de 1974, a socialdemocracia europeia passou a atuar no cenário
intelectual latino-americano, no que fora precedida pelas fundações de pesquisa
norte-americanas e acompanhada pelas instituições culturais financiadas pelas
igrejas e pela democracia cristã. No Brasil e no resto da América Latina, a
disputa pela obtenção dos recursos daí advindos reconstituiu a elite
intelectual sobre bases totalmente novas, sem qualquer relação com as que —
fundadas na radicalização política e na ascensão dos movimentos de massas — a
haviam sustentado na década de 1960. Análise exemplar disso foi realizada por
Agustín Cueva, em ensaio incluído em seu livro América Latina en la frontera
de los años 90, assim como por James Petras, no artigo “La metamorfosis de
los intelectuales latinoamericanos” (Brecha, Montevidéu, 1988).”
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