sábado, 26 de novembro de 2022

USA (01): Paralelo 42, de John dos Passos

Editora: Benvirá

ISBN: 978-85-64065-41-3

Tradução: Marcos Santarrita

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 512

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Sinopse: “Paralelo 42” é uma das obras mais importantes de um dos maiores escritores da moderna literatura americana. Primeiro livro da trilogia USA, também composta por “1919” e “O Grande Capital”, alinha a vida de cinco personagens que buscam seu lugar ao sol para compor um painel social e político dos Estados Unidos no início do século XX. Usando colagem de manchetes e notícias de jornais, letras de músicas, biografias de personagens conhecidos (como o inventor Thomas Edison e o empresário Andrew Carnegie) e pura ficção, John dos Passos integra com mestria técnicas narrativas diversas para retratar o nascimento de uma potência mundial, num parto difícil, com lutas de classe e batalhas econômicas.



Mac

Morros avermelhados, trechos de bosques, fazendas, vacas, um potro vermelho escoiceando num pasto, cercas de trilhos, pedaços de pântanos.

— Bem, Tim, eu me sinto como um vira-lata surrado... Durante toda a minha vida, Tim, eu tentei fazer a coisa certa — o Pai continuava repetindo numa voz chacoalhada. — E agora, que estarão dizendo de mim?

— Deus do céu, homem, você não podia ter feito outra coisa, podia? Que diabos se pode fazer quando não se tem dinheiro nenhum, emprego nenhum, e um bando de médicos e papa-defuntos e senhorios aparece com suas contas e a gente com dois filhos pra criar?

— Mas eu tenho sido um homem quieto e respeitável, estável e desgraçado desde que me casei e assentei. E agora, que estarão pensando de mim, escapulindo como um cão surrado?

— John, acredite em mim, eu seria o último a querer levar a desonra a uma morta que era minha irmã de nascimento e sangue... Mas não é culpa sua nem minha... é culpa da pobreza, e a pobreza é culpa do sistema... Fenian, escute o Tio O’Hara por um minuto, e você também, Milly, porque uma moça tem de saber essas coisas tanto quanto um homem, e uma vez nesta vida Tim O’Hara está dizendo a verdade... É culpa do sistema, que não dá a um homem o fruto de seu trabalho... O único homem que recebe alguma coisa do capitalismo é o escroque, e este chega a milionário em pouco tempo... Mas um trabalhador honesto como John ou eu pode trabalhar cem anos que não deixa o bastante pra enterrar a gente decentemente.”

 

 

Amante da Humanidade

Debs era ferroviário, nascera num barraco de tábuas em Terre Haute.

Era um de dez filhos.

O pai viera para a América num veleiro em ’49,

Um alsaciano de Colmar; não era muito de ganhar dinheiro, gostava de música e de ler,

deu aos filhos a oportunidade de concluir a escola pública e isso foi quase tudo que pôde fazer.

Aos quinze anos, Gene Debs já trabalhava como maquinista na Estrada de ferro de Indianápolis e Terre Haute.

Trabalhou como foguista de locomotiva,

escriturário numa loja

associou-se à seção local da Irmandade de Foguistas de Locomotiva, foi eleito secretário, viajou por todo o país como organizador.

Era um homem alto de andar bamboleante, tinha uma espécie de retórica tempestuosa que punha em fogo os trabalhadores da estrada de ferro em seus salões de pinho

fazia-os querer o mundo que ele queria,

um mundo partilhado por irmãos

onde todo mundo tivesse o mesmo quinhão:

Não sou um líder trabalhista. Não quero que vocês me sigam, a mim ou a qualquer outro. Se estão em busca de um Moisés que os conduza para fora do deserto capitalista, fiquem exatamente onde estão. Eu não os conduziria a essa terra prometida mesmo que pudesse porque, se eu pudesse conduzi-los para dentro, outra pessoa os conduziria para fora. (...)

e a gente de Terre Haute e de Indiana e do Meio Oeste gostava dele e o temia e pensava nele como um velho tio bondoso que a amava, e queria estar com ele e que ele lhe desse balas,

mas tinha medo dele como se ele houvesse contraído uma doença social, sífilis ou lepra, e achava isso muito ruim,

mas pela bandeira

e pela prosperidade

e para tornar o mundo seguro para a democracia,

tinha medo de estar com ele,

ou de pensar muito sobre ele por temer vir a acreditar no que ele dizia;

porque ele dizia:

Enquanto houver uma classe baixa eu pertenço a ela, enquanto houver zona classe criminosa eu pertenço a ela, enquanto houver uma alma na prisão eu não sou livre.”

 

 

“— Já leu Marx?

— Não... puxa, mas gostaria.

— Eu também não. Mas li Um olhar para trás, de Bellamy; foi isso que me fez virar socialista.

— Me fale dele; eu tinha acabado de começar a ler ele quando saí de casa.

— É sobre um sujeito inútil que dorme e acorda no ano dois mil, quando a revolução social já aconteceu, todo mundo é socialista e não tem mais cadeia nem pobreza, ninguém trabalha para si mesmo e não tem jeito de alguém ser um rico acionista ou capitalista e a vida é uma maravilha para a classe operária.

— Isso é o que eu sempre pensei... São os operários que criam a riqueza e eles é que devem ficar com ela, e não um bando de tubarões.

— Se a gente pudesse acabar com o sistema capitalista, os grandes trustes e Wall Street, as coisas iam ser assim.

— Puxa.

— Só era preciso uma greve geral e fazer os trabalhadores se recusarem a trabalhar para um patrão... Diabos, se as pessoas ao menos compreendessem como é fácil. Os patrões têm toda a imprensa e negam o conhecimento e a educação aos operários.”

 

 

“A comida é o último prazer do velho.”

 

 

O Imperador do Caribe

Quando Minor C. Keith morreu, todos os jornais trouxeram seu retrato, um homem de olhos brilhantes, com um nariz aquilino e uma bela pança, e uma expressão nervosa sob os olhos.

Minor C. Keith era filho de um homem rico, nascido numa família que gostava do cheiro do dinheiro, podiam farejar dinheiro a uma distância de metade do globo naquela família.

O tio dele era Henry Meiggs, o Don Enrique da Costa Oeste. O pai tinha uma grande empresa madeireira e lidava com imóveis em Brooklyn;

o jovem Keith era uma lasca da velha cepa

(Nos idos de quarenta e nove, Don Enrique fora atraído a San Francisco pela corrida do ouro. Não foi garimpar nas montanhas, não morreu de sede peneirando pós de álcalis no vale da Morte. Vendia equipamentos aos outros. Ficou em San Francisco fazendo política e alta finança até que se comprometeu demais e teve de tomar um navio às pressas.

O navio levou-o ao Chile. Ele farejava dinheiro no Chile.

Era o capitalista ianque. Construiria ferrovias de Santiago a Valparaíso. Havia depósitos de guano nas ilhas Chincha. Meiggs farejava dinheiro no guano. Cavou uma fortuna do guano, tornou-se uma potência na Costa Oeste, manipulou cifras, exércitos, as políticas dos caciques e políticos locais: eram todos fichas num imenso jogo de pôquer. Por trás de uma mão boa ele amontoava os dólares.

Financiou as incríveis ferrovias dos Andes.)

Quando Tomás Guardia se tornou ditador da Costa Rica, escreveu a Don Enrique para que lhe construísse uma ferrovia;

Meiggs estava ocupado nos Andes, um contrato de 75 mil dólares dificilmente valeria a pena;

por isso enviou seu sobrinho Minor Keith.

 

As pessoas daquela família não deixavam a grama nascer debaixo de seus pés:

aos dezesseis anos, Minor Keith já vivia por conta própria, vendendo colarinhos e gravatas numa loja de roupas.

Depois disso, foi inspetor de madeira e teve uma empresa madeireira.

Quando seu pai comprou a ilha Padre, ao largo de Corpus Christi, Texas, enviou Minor para fazer dinheiro lá.

Minor Keith começou criando gado na ilha Padre e pescando com rede de arrasto,

mas o gado e o peixe não davam dinheiro bastante

por isso ele comprou porcos e matou os bois e cozinhou a carne e deu-a aos porcos para comer e matou os peixes e deu-os aos porcos para comer,

mas os porcos não davam dinheiro com rapidez suficiente,

e por isso ele se sentiu feliz por ir para Limon.

 

Limon era um dos piores e mais pestilentos buracos das Caraíbas, até os índios morriam lá de malária, febre amarela, disenteria.

Keith retornou a Nova Orleans no vapor John G. Meiggs, a fim de contratar operários para construir a ferrovia. Oferecia um dólar por dia com comida e contratou setecentos homens. Alguns deles tinham estado por lá antes nos dias de pirataria de William Walker.

Desse bando, cerca de vinte e cinco voltaram vivos.

O resto deixou as carcaças escaldadas de uísque apodrecendo nos pântanos.

Em outra carga, ele embarcou para lá mil e quinhentos; todos morreram, provando que só os negros da Jamaica podiam viver em Limon.

 

Minor Keith não morreu.

 

Em 1882, havia trinta quilômetros de ferrovia construídos e Keith estava um milhão de dólares no vermelho;

a ferrovia nada tinha para transportar.

Keith fez com que plantassem bananas, para que a ferrovia tivesse alguma coisa para transportar, e para vender as bananas teve de entrar no negócio de fretes marítimos;

esse foi o começo do negócio de frutas das Caraíbas.

Durante todo esse tempo, os trabalhadores morriam de uísque, malária, febre amarela, disenteria.

Os três irmãos de Minor Keith morreram.

 

Minor Keith não morreu.

Construiu ferrovias, abriu lojas de varejo acima e abaixo da costa, em Bluefields, Belize, Limon, comprou e vendeu borracha, baunilha, conchas de tartaruga, salsaparrilha, qualquer coisa que pudesse comprar barato comprava, qualquer coisa que pudesse vender caro vendia.

Em 1898, em cooperação com a Boston Fruit Company, formou a United Fruit Company, que desde então se tornou uma das unidades industriais mais poderosas do mundo.

Em 1912, ele incorporou a International Railroads of Central America;

tudo isso construído a partir das bananas;

na Europa e nos Estados Unidos as pessoas haviam começado a comer bananas,

de modo que derrubaram as florestas por toda a América Central para plantar bananas,

c construíram ferrovias para transportar as bananas,

e todo ano mais vapores da Grande Frota Branca

navegavam para o norte carregados de bananas,

e esta é a história do império americano nas Caraíbas,

de modo que derrubaram as florestas por toda a América Central para plantar bananas,

e construíram ferrovias para transportar as bananas,

e todo ano mais vapores da Grande Frota Branca

navegavam para o norte carregados de bananas,

e esta é a história do império americano nas Caraíbas,

e do Canal do Panamá e do futuro Canal da Nicarágua e dos fuzileiros navais e dos vasos de guerra e das baionetas.

 

Por que aquela aparência nervosa sob os olhos no retrato de Minor C. Keith, o pioneiro do comércio de frutas, o construtor de ferrovias, em todas as fotos que os jornais estamparam dele quando ele morreu?”

 

 

O Olho da Câmera (23)

a amiga de mamãe era uma mulher muito linda com lindos cabelos louros e tinha duas lindas filhas a loura casou-se com um homem do petróleo que era calvo como a palma da mão e foi morar em Sumatra          a morena casou-se com o homem de Bogotá e os nativos eram índios e dormiam em redes e tinham doenças horríveis e quando a mulher tinha filho era o marido quem ia para a cama e usavam setas envenenadas e caso se fosse ferido naquela região a ferida nunca sarava mas se alastrava branca e madura e a canoa de tronco virava tão facilmente na água quente e fumegante cheia de peixes vorazes que se a gente tivesse um arranhão ou um ferimento não curado o cheiro de sangue atraía-os às vezes faziam as pessoas em pedaços

eram oito semanas subindo o rio Magdalena em canoa e depois se chegava a Bogotá

o coitado do Jonas Fenimore voltou de Bogotá muito doente e diziam que era elefantíase          ele era um bom sujeito e contava histórias sobre a selva fumegante e as tempestades e os crocodilos e as horríveis doenças e os peixes vorazes e bebia todo o uísque na cômoda e quando ia nadar a gente via grossas manchas em suas pernas como cascas de maçã e ele gostava de tomar uísque e falava que a Colômbia ia tornar-se um dos países mais ricos do mundo em petróleo e madeiras raras para vernizes e borboletas tropicais

mas a viagem rio Magdalena acima era longa demais e quente demais e perigosa demais e ele morreu

disseram ter sido o uísque e a elefantíase

e o rio Magdalena”

 

 

“— Evidentemente, não podemos ter certeza, mas todas as minhas melhores decisões são tomadas de estalo.”

 

 

“— Todo o meu futuro eu já deixei para trás.”

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