Editora: Expressão Popular
Tradução: Carlos
Eduardo Martins, Eduardo Carcanholo e Roberta Traspadini
Organização: João
Pedro Stedile e Roberta Traspadini
ISBN:
978-65-589-1059-6
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 360
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Sinopse: Ver Parte I
“Na economia capitalista clássica, a formação
do mercado interno representa a contrapartida da acumulação de capital: ao
separar o produtor dos meios de produção, o capital não só criou o assalariado,
isto é, o trabalhador que só dispõe de sua força de trabalho, como também criou
o consumidor. De fato, os meios de subsistência do operário, antes produzidos
diretamente por ele, são incorporados ao capital, como elemento material do
capital variável, e só são restituídos ao trabalhador quando este compra seu
valor baixo a forma de salário.27 Existe, pois, uma estreita
correspondência entre o ritmo da acumulação e o da expansão do mercado. A
possibilidade que tem o capitalista industrial de obter no exterior, a preço
baixo, os alimentos necessários ao trabalhador, leva a estreitar o nexo entre a
acumulação e o mercado, uma vez que aumenta a parte do consumo individual do
operário dedicada à absorção de produtos manufaturados. É por isso que a
produção industrial, nesse tipo de economia, concentra-se basicamente nos bens
de consumo popular e procura barateá-los, uma vez que incidem diretamente no
valor da força de trabalho e portanto — à medida que as condições em que se dá
a luta entre os operários e os patrões tende a aproximar os salários desse
valor na taxa de mais-valia. Vimos que essa é a razão fundamental pela qual a
economia capitalista clássica deve se orientar para o aumento da produtividade
do trabalho.
O desenvolvimento da acumulação baseada na
produtividade do trabalho tem como resultado o aumento da mais-valia e, em
consequência, da demanda criada pela parte desta que não é acumulada. Em outras
palavras, cresce o consumo individual das classes não produtoras, com o que se
amplia a esfera da circulação que lhes corresponde. Isso não só impulsiona o
crescimento da produção de bens de consumo manufaturados, em geral, como também
o da produção de artigos supérfluos.28 A circulação tende portanto a
se dividir em duas esferas, de maneira similar ao que constatamos na economia
latino-americana de exportação, mas com uma diferença substancial: a expansão
da esfera superior é uma consequência da transformação das condições de
produção e se torna possível à medida que, aumentando a produtividade do
trabalho, a parte do consumo individual total que corresponde ao operário
diminui em termos reais. A ligação existente entre as duas esferas de consumo é
distendida, mas não se rompe.
Outro fator contribui para impedir que a
ruptura se realize: é a forma como se amplia o mercado mundial. A demanda
adicional de produtos supérfluos que cria o mercado exterior é necessariamente
limitada, primeiro porque, quando o comércio se efetua entre nações que
produzem esses bens, o avanço de uma nação implica no retrocesso de outra, o
que suscita, por parte da última, mecanismos de defesa; e depois porque, no
caso da troca com os países dependentes, essa demanda se restringe às classes
altas, e se vê assim constrangida pela forte concentração de renda que implica
a superexploração do trabalho. Portanto, para que a produção de bens de luxo
possa se expandir, esses bens têm de mudar o seu caráter, ou seja, converter-se
em produtos de consumo popular no interior mesmo da economia industrial. As
circunstâncias que permitem elevar ali os salários reais, a partir da segunda
metade do século XIX, às quais não é estranha a desvalorização dos alimentos e
a possibilidade de redistribuir internamente parte do excedente subtraído das
nações dependentes, ajudam, na medida em que ampliam o consumo individual dos
trabalhadores, a se contrapor às tendências desarticuladoras que atuam no nível
da circulação.
A industrialização latino-americana se dá
sobre bases distintas. A compressão permanente que exercia a economia
exportadora sobre o consumo individual do trabalhador não permitiu mais do que
a criação de uma indústria débil, que só se ampliava quando fatores externos
(como as crises comerciais, conjunturalmente, e a limitação dos excedentes da
balança comercial, pelas razões já assinaladas) fechavam parcialmente o acesso
da esfera alta de consumo para o comércio de importação.29 É a maior
incidência desses fatores, como vimos, o que acelera o crescimento industrial,
a partir de certo momento, e provoca a mudança qualitativa do capitalismo
dependente. A industrialização latino-americana não cria, portanto, como nas
economias clássicas, sua própria demanda, mas nasce para atender a uma demanda
pré-existente, e se estruturará em função das exigências de mercado procedentes
dos países avançados.”
27 A reprodução ampliada desta relação
constitui a essência mesma da reprodução capitalista; cf. particularmente O Capital, I, XXIV.
28 Empregamos o termo “industrialização” para
salientar o processo pelo qual a indústria, empreendendo a mudança qualitativa
global da velha sociedade, caminha no sentido de se converter em eixo da
acumulação de capital. É por isso que consideramos que não se dá um processo de
industrialização no seio da economia exportadora, em que pese o fato de que se
observa nessa economia atividades industriais.
29 Um historiador brasileiro, referindo-se à
campanha pelo aumento de tarifas alfandegárias desencadeada pelos industriais
brasileiros em 1928, destaca com clareza o mecanismo de expansão do setor
industrial na economia exportadora: “Sob a pressão de uma recessão da demanda
de tecidos de má qualidade nas áreas rurais, como consequência da queda de
preços do café — o preço médio da saca de 60 quilos caiu de 215$ 109 para 170$
719 entre 1925 e 1926 — vários industriais se especializaram na produção de
tecidos médios e finos, a partir de meados da década de 1920. Ao penetrar nesta
faixa do mercado, passaram a sofrer o impacto da concorrência inglesa, que foi
acusada de realizar um ‘dumping’ para
liquidar a produção nacional. Os Centros Industriais se articularam em uma
campanha visando o aumento das tarifas de tecidos de algodão e a restrição das
importações de maquinado, alegando que o mercado não comportava a ampliação da
capacidade produtiva existente”. (Boris Fausto. A revolução de 1930. Ed. Brasiliense, São Paulo, 1970, pp. 33-34).
O episódio é exemplar: a queda dos preços do café restringe o poder de compra
dos trabalhadores, mas também a capacidade de importação para atender a esfera
alta da circulação, provocando um movimento da indústria no sentido de se
deslocar para esta última e se beneficiar dos melhores preços que ali se pode
obter. Como veremos, esse tropismo da indústria latino-americana não é
privilégio da velha economia exportadora.
“Dedicada à produção de bens que não entram,
ou entram muito escassamente, na composição do consumo popular, a produção
industrial latino-americana é independente das condições de salário próprias
dos trabalhadores; isso em dois sentidos. Em primeiro lugar, porque, ao não ser
um elemento essencial do consumo individual do operário, o valor das
manufaturas não determina o valor da força de trabalho; não será, portanto, a
desvalorização das manufaturas o que influirá na taxa de mais-valia. Isso
dispensa o industrial de se preocupar em aumentar a produtividade do trabalho
para, fazendo baixar o valor da unidade de produto, depreciar a força de
trabalho, e o leva, inversamente, a buscar o aumento da mais-valia por meio da
maior exploração — intensiva e extensiva — do trabalhador, assim como a redução
de salários mais além de seu limite normal. Em segundo lugar, porque a relação
inversa que daí se deriva para a evolução da oferta de mercadorias e do poder
de compra dos operários, isto é, o fato de que a primeira cresça à custa da
redução do segundo, não cria problemas para o capitalista na esfera da
circulação, uma vez que, como deixamos claro, as manufaturas não são elementos
essenciais no consumo individual do operário.”
“É assim como, incidindo sobre uma estrutura
produtiva baseada na maior exploração dos trabalhadores, o progresso técnico
possibilitou ao capitalista intensificar o ritmo de trabalho do operário,
elevar sua produtividade e, simultaneamente, sustentar a tendência para
remunerá-lo em proporção inferior a seu valor real. Para isso contribuiu
decisivamente a vinculação das novas técnicas de produção com setores
industriais orientados para tipos de consumo que, se tendem a convertê-los em
consumo popular nos países avançados, não podem fazê-lo sob nenhuma hipótese
nas sociedades dependentes. O abismo existente entre o nível de vida dos
trabalhadores e o dos setores que alimentam a esfera alta da circulação torna
inevitável que produtos como automóveis, aparelhos eletrodomésticos etc. sejam
destinados necessariamente para esta última. Nessa medida, e toda vez que não
representam bens que intervenham no consumo dos trabalhadores, o aumento de
produtividade induzido pela técnica nesses setores de produção não poderia se
traduzir em maiores lucros por meio da elevação da taxa de mais-valia, mas
apenas mediante o aumento da massa de valor realizado. A difusão do progresso
técnico na economia dependente seguirá, portanto, junto a uma maior exploração
do trabalhador, precisamente porque a acumulação continua dependendo
fundamentalmente mais do aumento da massa de valor — e portanto de mais-valia —
que da taxa de mais-valia.
Pois bem, ao se concentrar de maneira
significativa nos setores produtores de bens supérfluos, o desenvolvimento
tecnológico acabaria por colocar graves problemas de realização. O recurso
utilizado para solucioná-los tem sido o de fazer a intervenção do Estado (por
meio da ampliação do aparato burocrático, das subvenções aos produtores e do
financiamento ao consumo supérfluo), assim como fazer intervir na inflação, com
o propósito de transferir poder de compra da esfera baixa para a esfera alta da
circulação; isso implicou em rebaixar ainda mais os salários reais, com o
objetivo de contar com excedentes suficientes para efetuar a transferência de
renda. Mas, na medida em que se comprime dessa forma a capacidade de consumo
dos trabalhadores, é fechada qualquer possibilidade de estímulo ao investimento
tecnológico no setor de produção destinado a atender o consumo popular. Não
pode ser, portanto, motivo de surpresa que, enquanto as indústrias de bens
supérfluo crescem a taxas elevadas, as indústrias orientadas para o consumo de
massas (as chamadas “indústrias tradicionais”) tendem à estagnação e inclusive
à regressão.”
“Por conseguinte, o que se pretende
demonstrar em meu ensaio é, primeiro, que a produção capitalista, ao
desenvolver a força produtiva do trabalho, não suprime, e sim acentua, a maior
exploração do trabalhador; e, segundo, que as combinações das formas de
exploração capitalista se levam a cabo de maneira desigual no conjunto do
sistema, engendrando formações sociais distintas segundo o predomínio de uma
forma determinada.”
“A superexploração não corresponde a uma
sobrevivência de modos primitivos de acumulação de capital, mas que é inerente
a esta e cresce correlativamente ao desenvolvimento da força produtiva do
trabalho. Supor o contrário equivale a admitir que o capitalismo, à medida que
se aproxima de seu modelo puro, converte-se em um sistema cada vez menos
explorador e logra reunir as condições para solucionar indefinidamente suas
contradições internas. Em segundo lugar, de acordo com o grau de
desenvolvimento das economias nacionais que integram o sistema, e do que se
verifica nos setores que compõem cada uma delas, a maior ou menor incidência
das formas de exploração e a configuração específica que elas assumem modificam
qualitativamente a maneira como ali incidem as leis de movimento do sistema e,
em particular, a lei geral da acumulação do capital. É por essa razão que a chamada
marginalidade social não pode ser tratada independentemente do modo como se
entrelaçam nas economias dependentes o aumento da produtividade do trabalho,
que deriva da importação de tecnologia, com a maior exploração do trabalhador,
que esse aumento da produtividade torna possível. (...)
Como quer que seja, a exigência de
especificar as leis gerais de desenvolvimento capitalista não permite, desde um
ponto de vista rigorosamente científico, recorrer a generalidades como a de que
a nova forma da dependência repousa na mais-valia relativa e no aumento da
produtividade. E não permite porque esta é a característica geral de todo o
desenvolvimento capitalista, como vimos. O problema está, portanto, em
determinar o caráter que assume na economia dependente a produção de mais-valia
relativa e o aumento da produtividade do trabalho.”
“A procedência social, os mecanismos de
mobilidade a que estão sujeitos, a educação, o ambiente familiar e de trabalho
dos indivíduos modificam seu comportamento e, mais que isso, moldam sua visão
do mundo e a percepção que eles têm de si mesmos. Para definir uma classe
social em um momento histórico dado não basta, portanto, considerar a posição
que objetivamente ocupam os homens na reprodução material da sociedade. É
necessário, além disso, considerar os fatores sociais e ideológicos que
determinam sua consciência em relação ao papel que nela acreditam desempenhar.
Apesar das críticas que essa assertiva tem sofrido, somente em última instância
a base econômica determina a consciência. E o faz mediante a dinâmica social
concreta, ou seja, através da luta de classes. E a tal ponto que, em
circunstâncias dadas, mesmo trabalhadores que, por sua posição na reprodução
econômica, não estão incluídos diretamente na classe operária ou que se
consideram alheios a ela podem coincidir com suas aspirações e se assimilar ao
movimento operário.8
Isso se deve a que, além da consciência que
possam ter de seu pertencimento de classe, os operários produtivos ou
improdutivos, qualquer que seja a modalidade sob a qual realizam seu trabalho e
o âmbito onde o fazem, do mesmo modo que outras classes ou frações de classe
submetidas ao capital, têm interesses comuns, cuja percepção estabelece a base
possível de um projeto de vida solidário. Essa é a razão pela qual todas as
instituições e mecanismos do jogo político que caracterizam a sociedade
burguesa, assim como suas variadas expressões ideológicas, visam bloquear essa
percepção, dissolver a unidade latente entre os trabalhadores antes que esta
tome forma, vedar-lhes a passagem para a compreensão dos fatos reais que
constituem a essência da ordem capitalista e de seu desenvolvimento.”
8 A adesão dos trabalhadores intelectuais –
professores, estudantes, profissionais, funcionários públicos – a valores de
inspiração operária, que foi uma marca distintiva dos movimentos de 1968,
resultou da prática desses setores que, em sua mobilização por melhores
condições de vida e de trabalho, começaram a adotar formas de organização e
luta como o sindicato e a greve. Isso pôde ser observado claramente na América
Latina desde os princípios daquela década e não somente aqui. Os anos 1970
assistiram ao auge dessa tendência, que hoje se encontra em declínio.
“A democracia plena não somente tem o
socialismo como premissa, mas conduz a ele. Isso só não ocorreria se fosse
possível conceber uma maioria governando para o benefício da minoria, ou seja,
contra si mesma.”
“As alianças de classes
Este é, sem dúvida, um elemento central do
conceito de democracia e que lhe confere sua especificidade, independente do
sistema econômico com o qual convive: o reconhecimento de divergências e
choques de interesses entre os atores políticos (a democracia socialista não
faz mais do que converter em sujeitos políticos reais as grandes massas do povo,
o que a democracia burguesa coíbe e reprime) e a possibilidade efetiva de que
eles sejam solucionados pacificamente, por meio de negociação e do consenso. No
momento em que um sujeito impõe a outro uma solução de força, está abandonando
o terreno da democracia, por mais que, aos olhos dos contemporâneos em
perspectiva histórica se procure justificar esta imposição como destinada a
garantir, a longo prazo, a própria democracia. Pode-se discutir se, caso não
houvesse ocorrido a coletivização, a União Soviética teria sido capaz de levar
adiante sua edificação socialista; mas não há dúvida de que a coletivização
constituiu um modo não-democrático de solucionar a crise a que havia chegado a
aliança operário/camponesa.
Nesta perspectiva, a democracia, mais além
das instituições jurídico políticas em que se expressa, configura um modo, um
método para solucionar as divergências entre os sujeitos políticos, isto é, de
modo geral, entre as classes sociais. Entre todas? A visão leninista, inscrita
em um contexto de guerra civil e de agressão internacional, responde a esta
pergunta restringindo a democracia ao campo da revolução, à aliança
operário/camponesa, e a torna gêmea da ditadura a ser exercida sobre a
burguesia, que promove esta guerra e esta agressão. Deixemos de lado, por
enquanto, a questão de saber se essa dualidade é consubstancial ao conceito de
democracia socialista e nos ocupemos, inicialmente, de como Lenin concebe o seu
exercício.
Na Revolução Russa, a aliança
operário-camponesa não é uma aliança entre iguais. Isto fica claramente
estabelecido na Constituição de 1921, que superdimensiona a representação
política do proletariado em detrimento dos camponeses. Considera-se esta aliança
como a que realiza a classe revolucionária — o proletariado — com a imensa
massa oprimida e explorada da Rússia, a qual se compõe essencialmente de
camponeses, e que ela se baseia na insubmissão destes a esta opressão e
exploração, o que também os converte em revolucionários. Porém, enquanto os
camponeses podem se contentar com o acesso ao direito de propriedade,
mantendo-se, por ele, nos marcos da revolução burguesa, o proletariado quer ir
além e suprimir a propriedade privada dos meios de produção, como modo de
garantir a igualdade política e, enfim, a liberdade. A questão consiste, para o
proletariado, em convencer o campesinato a lutar contra seu interesse imediato,
a propriedade privada, em troca da satisfação de seu interesse geral, ou seja,
o término de qualquer forma de opressão e exploração.
Convencer significa persuadir. Existe, para
isto, uma razão prática: por sua situação minoritária na sociedade, o
proletariado não tem condições de submeter o campesinato pela força, mesmo que
alegasse que o faz em benefício deste, sem colocar em cheque a aliança de
classes. Mas também existe uma questão de princípio: submetê-lo pela força
contraria a vocação democrática do proletariado.
Portanto, é preciso recorrer mais à persuasão
do que à coerção: isto é o que faz do Estado operário-camponês um Estado
democrático, ou seja, um Estado cuja característica central é a solução das
divergências entre as classes mediante a discussão e o consenso. A forma e a
duração da transição socialista estarão determinados, antes de tudo, pelo modo
como se enfrentam as divergências e tempo que sua resolução exija. Até então,
as duas classes têm de conviver pacificamente, fazendo concessões mútuas, nos
marcos das instituições estatais que assegurem esta convivência.
A convivência democrática não impede, mas, ao
contrário, exige iniciativas tendentes a modificá-la. Do contrário, resultaria
em estagnação, o pior inimigo dos grandes projetos históricos. Enquanto essas
iniciativas se mantém no plano da persuasão, elas não afetam em nada o caráter
democrático do Estado. Bastaria, porém, que assumissem um caráter coercitivo
para que a democracia fosse posta em xeque.
Isto nos leva a perguntar o que é a lei em um
Estado democrático. Instrumento mediante o qual este fixa objetivos e estabelece
procedimentos sob pena de sanção, o que a converte em medida coercitiva, a lei
não poderia existir em um regime no qual todos fossem iguais e ninguém tivesse
o direito de impor qualquer coisa ao outro. Para que ela exista, é necessário
que a tomada de decisões em uma sociedade não se reparta equitativamente entre
os indivíduos e as classes que a compõem — o que não tem nada a ver com a
igualdade de todos perante a lei, noção que a revolução proletária herda da
revolução burguesa.
Democracia e igualdade política não são,
pois, idênticas. A democracia implica desigualdade no plano da tomada de
decisões e implica necessariamente um modo de dominação. A especificidade da
democracia socialista reside em que a dominação tende a se exercer
predominantemente por meio da persuasão e não pela coerção.
Eis porque, para Lenin, a lei não é um mero
imperativo que implica uma sanção (como ocorre na democracia burguesa), mas
também — e sobretudo — enquanto meio de ação da democracia socialista, um
elemento educativo, que coloca objetivos e que os explica, cabendo ao Estado (e
ao partido) aplicá-los por meio da persuasão. A lei ideal na democracia
socialista, é aquela que contém mais preâmbulo do que artigos e que serve de
ferramenta aos agitadores e propagandistas para induzir comportamentos
revolucionários6. No limite, a lei é apenas uma forma mais
desenvolvida de educação política7. A este respeito, Lenin afirmou
que, “se esperássemos que a redação de uma centena de decretos fosse mudar toda
a vida do campo, seríamos uns rematados idiotas. Mas se renunciássemos a
indicar nos decretos o caminho a seguir, seríamos traidores ao socialismo.
Estes decretos, que na prática não puderam ser aplicados imediata e
integralmente desempenharam um grande papel para a propaganda (...) O nosso
decreto é um apelo, mas não no espírito anterior: ‘Operários, erguei-vos,
derrubai a burguesia!’ Não, é um apelo às massas, um apelo à ação prática. Os
decretos são instruções que chamam à ação prática de massas.” (s/d b, III,
122).8”*
6. Isto foi o que vislumbrou Rousseau, ao se ocupar do tema da desigualdade, e que quase o levou ao ponto de
ruptura com a ideologia burguesa. Sua fidelidade ao pequeno produtor e, por
fim, à pequena propriedade individual o impediu de fazê-lo. Disto se aproveitou
a burguesia para, mesmo a contragosto, empreender a recuperação de sua
doutrina.
7. É mais desenvolvida porque a classe que a
utiliza conta com o Estado para apoiá-la, mesmo que não tanto pelo uso da
força, mas antes pela pressão econômica; v.g., a prioridade concedida às
cooperativas agrícolas para a obtenção de recursos do Estado.
8. Mais adiante, ele acrescenta: “Os nossos
decretos em relação às explorações camponesas são basicamente justos. Não temos
motivos para renunciar a nenhum deles nem para lamentar um único. Mas se os decretos
são justos, é injusto impô-los pela força ao camponês” (s/d, b:125).
*: A tradução deste trecho e dos outros três
subsequentes não é a mesma do livro.
“Arma privilegiada que representa para a
conquista do poder político, a ideologia constitui também, para a burguesia,
instrumento fundamental para exercê-lo. Nenhuma classe na história, antes dela,
concedeu à ideologia papel tão decisivo em seu modo de dominação. Valendo-se da
ideologia, a burguesia realizou um esforço gigantesco, com o objetivo de converter
à igualdade e subordinação de todos perante a lei; à liberdade na livre
disposição da própria força de trabalho; e ao progresso, em perspectiva
individual de ascensão social.
A pedra angular desta construção ideológica
foi o conceito de cidadania ou, o que é o mesmo, a titularidade individual dos
direitos civis e políticos, mediante o qual burguesia escamoteou às classes
sociais e destinou a cada qual o papel de participante isolado na vida do
Estado. Desta maneira, o indivíduo se confrontou inteiramente desarmado com o
Estado, fonte e guardião da ordem estabelecida e que baseia sua existência no
monopólio da força. O papel destacado que assumiu a ideologia na implementação
da ordem burguesa não deixa margem ao uso da força, cabendo também à burguesia
a invenção do monopólio estatal da mesma. Este inexiste em regimes anteriores,
sendo que o maior grau de dispersão da força que observamos em instituições
estatais é o que ocorre no Estado escravista, em que cada proprietário de
escravos é livre para empregá-las contra seus trabalhadores.9
A democracia socialista, que rompe com o
individualismo burguês e se assume como expressão da luta de classes, renuncia
também à mistificação ideológica como instrumento de dominação. Já vimos a rude
franqueza que reina no interior da aliança operário-campesina, baseada no
interesse comum de pôr fim à opressão e à exploração, ainda que nela subsistam
divergências em relação aos interesses de classe imediatos. Em relação à
burguesia, com a qual não compartilha nenhum objetivo histórico e da qual lhe
separa seu interesse de classe geral, o proletariado não pode praticar uma
política de aliança: ao contrário, está obrigado a submetê-la à força, pela
coerção, a seu projeto de sociedade.”*
9. A burguesia, em sua luta contra a ordem
feudal, postula o monopólio da força e, transformada em classe dominante, o
emprega conta as demais classes, chegando, inclusive, a suprimir suas próprias
organizações aramadas, constituídas, na Idade Média, em defesa da autonomia dos
burgos. Sob o regime jurídico burguês, o direito de portar armas só é concedido
a cidadãos qualificados e em função exclusiva de sua defesa individual.
“O controle operário, a cogestão e a
autogestão das empresas; a luta eleitoral e a participação no parlamento e nos
governos locais; a participação e o controle popular sobre as políticas
orçamentária, educacional, de saúde, de transporte público, junto à
reivindicação de uma maior autonomia regional e local; a democratização dos
meios de comunicação e o rechaço da censura; a crítica às desigualdades de base
econômica, étnica ou sexual: estes são alguns dos instrumentos de que as massas
estão lançando mão, aqui e ali, para defender seus interesses, elevar sua
cultura política e amadurecer seu espírito revolucionário. É por este caminho
que elas estão se capacitando para — diferentemente do ocorreu até agora nas
revoluções socialistas — assumirem, elas mesmas, a direção do processo de
transição socialista. O que, ao fim e ao cabo, é a única garantia segura de seu
êxito.”
“A ciência não é um conjunto de procedimentos
destinados a embelezar ou escamotear a realidade. A ela cabe lidar com os
fatos, ainda que isto implique perder a elegância e sujar as mãos. A forma pela
qual se estão desenvolvendo a democracia, a reconversão econômica e a
integração na América Latina, e seus reflexos ao nível da ordem política, está
longe de corresponder a nossos desejos. Isso exige que assumamos nossas
responsabilidades para com os povos da região e nos esforcemos por indicar-lhes
um caminho melhor.” *
“Nenhuma classe amadurece fora da luta.”
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