sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Os irmãos Karamázov (Volume II), de Fiódor Dostoiévski

Editora: 34

ISBN: 978-85-7326-410-4

Tradução, posfácio e notas: Paulo Bezerra

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 592

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Sinopse: Em Os irmãos Karamázov, considerado por muitos sua obra-prima, Dostoiévski conduz o leitor em uma viagem pelos recantos mais sombrios e mais luminosos da alma humana, com passagens inesquecíveis — como a parábola do Grande Inquisidor e os questionamentos radicais de Ivan Karamázov sobre a moral e o livre-arbítrio — que marcaram decisivamente não só a literatura, mas a própria história do pensamento ocidental.


 

“— É para o proveito do homem inteligente que existem os imbecis.”

 

 

Mas aos olhos dele ela não parecia mentir. Ele era justamente daquele tipo de ciumento que, quando longe da mulher amada, inventa imediatamente sabe Deus que horrores a respeito do que pode acontecer com ela, que ela o estaria “traindo” por lá, mas, ao correr de volta para ela, abalado, arrasado, já irreversivelmente certo de que, apesar de tudo, ela arranjou tempo para traí-lo, ao primeiro olhar para o rosto dela, para o rosto sorridente, alegre e carinhoso dessa mulher - imediatamente cria alma nova, imediatamente afasta toda e qualquer suspeita e, tomado de uma vergonha alegre, censura a si mesmo pelo ciúme. (...)

Ciúme! “Otelo não é ciumento, é crédulo” observou Púchkin, e só essa observação já é uma prova da profundidade incomum do nosso grande poeta. Otelo estava simplesmente com a alma em frangalhos e com toda sua visão de mundo turvada porque morrera o seu ideal. Mas Otelo não ficaria se escondendo, espionando, com olhares furtivos, ele é crédulo. Ao contrário, precisava ser açulado, incitado, atiçado com esforços extraordinários para que só assim se apercebesse da traição. Não é assim o verdadeiro ciumento. É até impossível imaginar toda a desonra e decadência moral a que um ciumento é capaz de acomodar-se sem quaisquer remorsos. E note-se que nem todos são propriamente almas torpes e sórdidas. Ao contrário, de coração elevado, de amor puro, cheios de abnegação, podem ao mesmo tempo esconder-se debaixo de mesas, subornar diaristas torpes e acomodar-se à mais indecente sordidez da espionagem e da escuta atrás das portas. Otelo não poderia se conformar com a traição por nada neste mundo - deixar de perdoar não deixaria, mas se conformar, não - embora fosse de alma pacata e pura como a alma de uma criança. Não é o mesmo que acontece com o verdadeiro ciumento: é difícil imaginar a que esse ou aquele ciumento pode acomodar-se e conformar-se e o que pode perdoar! Os ciumentos são os primeiros a perdoar, e isso todas as mulheres sabem. O ciumento pode e é capaz de perdoar depressa demais (claro, após uma terrível cena inicial), por exemplo, uma traição já quase provada, os abraços e beijos já presenciados por ele mesmo, se, por exemplo, puder ao mesmo tempo asseverar-se, de alguma maneira, de que isso aconteceu “pela última vez” e que a partir desse momento seu rival desaparecerá, irá para o fim do mundo, ou ele mesmo a levará para algum lugar em que esse terrível rival não voltará a aparecer. É claro que a conciliação acontecerá apenas por uma hora, porque, mesmo que o rival tenha realmente desaparecido, amanhã mesmo ele inventará outro, um novo, e voltará a ter ciúmes. Poder-se-ia pensar: que amor é esse que precisa ser tão vigiado, e de que vale um amor que precisa ser tão intensamente vigiado? Pois é isso que nunca irá compreender o verdadeiro ciumento; não obstante, palavra, entre eles aparecem pessoas até de coração elevado. Também é digno de nota que, estando essas mesmas pessoas de corações elevados em algum cubículo, escutando atrás da porta e espionando, ainda que, com “seus corações elevados”, compreendam claramente toda a desonra em que caíram voluntariamente, mesmo assim nunca sentem remorso, ao menos enquanto se encontram nesse cubículo. Quando Mítia via Grúchenka desaparecia-lhe o ciúme e num instante ele se tornava crédulo e nobre, chegava até a se desprezar por nutrir maus sentimentos. Isto, porém, significava apenas que em seu amor por essa mulher havia algo bem mais elevado do que ele mesmo supunha e não só paixão, não só as “curvas do corpo” de que ele falara a Fiódor Pávlovitch. Não obstante, mal Grúchenka desaparecia Mítia voltava a suspeitar que ela estivesse praticando todas as baixezas e artimanhas da traição. E aí não sentia nenhum remorso.”

 

 

— Aqueles que sofreram pessoalmente uma desgraça são os que melhor julgam os outros.”

 

 

— Deus te proteja, amável menino, de que um dia tenhas de pedir perdão à mulher amada por uma culpa tua! Particularmente à mulher amada, particularmente, por mais culpado que sejas perante ela! Porque a mulher é, meu irmão, o diabo sabe o que é, eu pelo menos entendo delas! Mas tenta te confessar culpado perante ela, “a culpa é minha, dirias, perdoa, desculpa”: aí desabará uma saraivada de censuras! Por nada nesse mundo ela te perdoará com franqueza e simplicidade, mas te humilhará até reduzir-te a um trapo, descontará até o que não houve, levará tudo em conta, não esquecerá nada, acrescentará coisas de sua parte e só então desculpará. E isso ainda sendo a melhor. a melhor entre elas! Raspará até a última mágoa e despejará tudo em tua cabeça. — Tal é, eu te digo, a ferocidade que há nelas, em todas e em cada uma, nesses anjos sem os quais nos é impossível viver! Vê só, meu caro, e eu te digo de modo franco e simples: todo homem decente deve estar sob o tacão de ao menos alguma mulher. Essa é a minha convicção; não é uma convicção, mas um sentimento. O homem deve ser magnânimo, e isso não é uma desonra para o homem. Isso não desabona nem um herói, não desabona nem a César! Mas ainda assim não peças perdão, nunca nem por nada. Lembra-te dessa regra: ela te foi ensinada por teu irmão Dmitri, que se perdeu por causa das mulheres. Não, é melhor que eu mereça alguma coisa de Grucha, mas sem perdão. Eu a venero, Alieksiêi, eu a venero! Só ela não vê isso, não, sempre acha pouco o amor. E me atormenta, me atormenta com o amor. Como era antigamente! Antigamente, só as curvas infernais de seu corpo me atormentavam, mas agora minha alma está embebida de sua alma, e através dela eu mesmo me tornei um homem!”

 

 

— Mas não estou mentindo, é tudo verdade; infelizmente, a verdade quase nunca é espirituosa. Veja que evidentemente esperas de minha parte algo grandioso, talvez até belo56. É uma grande pena, porque só dou o que posso...

— Não me venhas com filosofia, seu asno.

— Que filosofia, se estou com todo o lado direito paralisado, gemendo e mugindo? Fui a todos os médicos: fazem excelente diagnóstico, explicam toda a doença na ponta dos dedos, mas curar que é bom, ninguém sabe. Apareceu um estudante cheio de entusiasmo: se o senhor vier mesmo a morrer, diz ele, saberá perfeitamente do que morreu. E sempre essa mania de nos encaminhar a especialistas, como quem diz: nós apenas diagnosticamos, agora vá consultar o especialista fulano de tal, que ele o curará. Uma coisa eu te digo: não há nem mais sinal daquele médico de antigamente que tratava de todas as doenças, hoje só há especialistas que só fazem propaganda nos jornais. Estás com dor no nariz, te mandam a Paris: lá, dizem, um especialista europeu cura narizes. Uma vez lá, ele te examina e diz: “só posso curar a narina direita, porque não curo narinas esquerdas, não é minha especialidade57, mas vá a Viena, lá um especialista específico curará sua narina esquerda”.”

56 Em Os bandoleiros, de Schiller, Franz Moor diz ao pai a respeito de Karl: “O espírito ardente que habita o menino [...] impele-o a simpatizar com tudo o que é grande e belo!. (N. da E.).

57 Variação do motivo da novela filosófica de Voltaire, Zadig ou o destino, publicada em 1747. (N. da E.)

 

 

Por uma missão primordial, que nunca consegui entender, fui destinado a “negar”, ao passo que sou sinceramente bom e totalmente incapaz de negar. Não, sai por aí negando, sem negação não haveria crítica, e que revista poderia passar sem um “departamento de crítica”? Sem crítica, só haveria Hosana. Mas, para viver, só o Hosana não basta, é preciso que esse Hosana passe pelo crisol da dúvida, e assim sucessivamente. Aliás, não me intrometo em nada disso, não fui eu que o criei, logo, não respondo por isso. Mas ainda assim pegaram alguém para bode expiatório, obrigaram-no a escrever no departamento de crítica, e a vida começou. Nós compreendemos essa comédia: eu, por exemplo, exijo simples e francamente a minha destruição. Não, vive, dizem, porque sem ti não haverá nada. Se tudo no mundo fosse sensato, nada aconteceria. Sem ti não haveria quaisquer acontecimentos, e é preciso que haja acontecimentos. E então trabalho a contragosto para que haja acontecimentos e crio o insensato cumprindo ordens. Os homens, a despeito de toda a sua indiscutível inteligência, tomam toda essa comédia por alguma coisa séria. Nisto reside sua tragédia. E então sofrem, é claro, mas... em compensação, vivem apesar de tudo, vivem na realidade, não na fantasia; porque o sofrimento é que é vida. Sem sofrimento, que prazer poderia haver em viver? — tudo se transformaria num infinito Te Deum: é uma coisa sagrada, porém meio chata. Bem, e eu? Sofro, e no entanto não vivo. Sou o x de uma equação indefinida. Sou uma espécie de espectro da vida, que perdeu todos os fins e princípios e acabou esquecendo até como se chama. Estás rindo... não, não estás rindo, estás novamente zangado. Vives eternamente zangado, gostarias que houvesse apenas inteligência, mas torno a repetir que daria toda essa vida sob as estrelas, todos os títulos e honrarias unicamente para encarnar na alma de uma comerciante de sete arrobas e acender uma vela a Deus.”

 

 

“— A propósito, senhores, a fantasia também tem limites.”

 

 

“Um Karamázov sempre vive apenas o presente.”

 

 

— Dinheiro é necessário em qualquer situação! Com dinheiro o homem é homem em qualquer parte.”

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