Editora: 34
ISBN: 978-85-7326-410-4
Tradução, posfácio e notas: Paulo Bezerra
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 448
Sinopse: Último
romance de Dostoiévski, Os irmãos Karamázov representa uma síntese de
toda sua produção e é tido por muitos como sua obra-prima. Um marco da
literatura universal, influenciou pensadores como Nietzsche e Freud, que o
considerava “o maior romance já escrito” – e sucessivas gerações de escritores
em todo o mundo.
Um livro ao mesmo tempo filosófico e policial, que trata
da conturbada relação entre o devasso Fiódor Karamázov e seus três filhos:
Aliócha, “puro” e místico; Ivan, intelectual e atormentado; e Dmitri, orgulhoso
e apaixonado.
Com mão de mestre, Dostoiévski conduz o leitor numa
viagem única pelos recantos mais sombrios e luminosos da alma humana e, com uma
trama hipnotizante, consegue prender nossa atenção ao longo das centenas de
páginas do volume – agora traduzido diretamente do russo por Paulo Bezerra.
“Pensando bem, seria estranho exigir clareza
das pessoas numa época como a nossa.”
“Na
maioria dos casos, as pessoas, inclusive os facínoras, são muito mais ingênuas
e simples do que costumamos achar. Aliás, nós também.”
“Oh, é claro, no mosteiro ele acreditava piamente em milagres, mas a meu
ver os milagres nunca desconcertam o realista. Não são os milagres que inclinam
o realista para a fé. O verdadeiro realista, caso não creia, sempre encontrará
em si força e capacidade para não acreditar no milagre, e se o milagre se
apresenta diante dele como um fato irrefutável, é mais fácil ele descrer de
seus sentidos que admitir o fato. E se o admite, admite-o como fato natural,
que apenas lhe fora até então desconhecido. No realista a fé não nasce do
milagre, mas é o milagre que nasce da fé. Se o realista acredita uma vez, é
justamente por seu realismo que ele deve forçosamente admitir o milagre. O
apóstolo Tomé declarou que não acreditaria sem antes ver, e quando viu disse:
“Senhor meu e Deus meu!”. Terá sido o milagre que o fez acreditar? É mais
provável que não, mas ele acreditou unicamente porque desejou acreditar, e
talvez já acreditasse plenamente, lá no mais recôndito de seu ser, mesmo quando
disse: “Se não o vir... de modo algum acreditarei”.19”
“— O principal é não mentir para si mesmo.
Quem mente para si mesmo e dá ouvidos à própria mentira chega a um ponto em que
não distingue nenhuma verdade nem em si, nem nos outros e, portanto, passa a desrespeitar
a si mesmo e aos demais.”
“— Não tenhas medo de nada, e nunca
tenhas medo, nem caias em melancolia. Desde que o arrependimento não míngue em
tua alma, Deus perdoará tudo. E ademais não há nem pode haver em toda a Terra
tamanho pecado que o Senhor não perdoe àquele que em verdade se arrepende. Além
disso, um homem não pode, absolutamente, cometer um pecado tão grande que
esgote o infinito amor de Deus. Ou será que pode haver um pecado capaz de
superar o amor divino? Preocupa-te apenas com o arrependimento, sempre, e
quanto ao medo, afugenta-o de todo. Crê que Deus te ama de uma forma que nem
imaginas, e te ama mesmo com teu pecado e em teu pecado. Há maior júbilo no céu
por um pecador que se arrepende, do que por dez justos53 — isto foi dito há
muito tempo. Vai, e não tenhas medo. Não fiques amargurada com as pessoas, nem
te zangues com as ofensas. Perdoa tudo do falecido em teu coração, suas
ofensas, reconcilia-te de fato com ele. Se te arrependes, é porque também amas.
E se amas, então já és de Deus... Com amor tudo se resgata, tudo se salva. Se
até eu, um pecador como tu, fiquei comovido e tive piedade de ti, que dirá
Deus! O amor é um tesouro tão precioso que com ele podes comprar o mundo
inteiro, e ainda redimes não só teus pecados, mas também os dos outros. Vai, e
não tenhas medo.”
53
“Digo-vos que assim haverá mais júbilo no céu por um pecador que se arrepende,
do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento”. Lucas,
15, 7. (N. da E.)
“— Se hoje não existisse a Igreja de Cristo,
para o criminoso não haveria nenhum impedimento para o crime e nem mesmo
castigo posterior, isto é, o castigo verdadeiro, e não o mecânico que acabou de
ser mencionado aqui — que não faz senão exasperar o coração na maioria dos
casos —, o castigo verdadeiro, o único real, o único que atemoriza e apazigua,
que consiste em se ter consciência da própria consciência.”
“— (...) Mas basta de poesia! Derramei lágrimas, mas tu
também me deixa chorar. Oxalá isso seja uma bobagem da qual todos hão de rir,
mas não tu. Eis que teus olhinhos também estão ardendo. Basta de poesia. Agora
quero te falar dos “insetos”, daqueles mesmos a quem Deus deu a lascívia.
Aos
insetos, a lascívia!
Meu
irmão, eu sou esse mesmo inseto, isso foi dito especialmente a meu respeito. E
todos nós, Karamázov, somos assim; até em ti, anjo, esse inseto vive e em teu
sangue gera tempestades. São tempestades, porque a lascívia é uma tempestade, é
mais que uma tempestade! A beleza é uma coisa terrível e horrível! Terrível
porque indefinível, e impossível de definir porque Deus só nos propôs enigmas.
Aí os extremos se tocam, aí todas as contradições convivem. Eu, meu irmão, sou
muito ignorante, mas tenho pensado muito nisso. Existe um número formidável de
mistérios! Um número excessivo de enigmas oprime o homem na Terra. Decifra-os
como és capaz e sai enxuto da chuva. A beleza! Não posso, ademais, suportar que
algum homem, até de coração superior e de inteligência elevada, comece pelo
ideal de Madona mas termine no ideal de Sodoma. Ainda mais terrível é aquele
que, já tendo o ideal de Sodoma na alma, não nega o ideal de Madona, e seu
coração arde de fato por ele, arde de fato como nos seus puros anos juvenis.
Não, o homem é vasto, vasto até demais; eu o faria mais estreito. Até o diabo
sabe o que é isso, veja só! O que à mente parece desonra é tudo beleza para o
coração. A beleza estará em Sodoma? Podes crer que é em Sodoma que ela está
para a imensa maioria dos homens — conhecias ou não esse segredo? É
horrível que a beleza seja uma coisa não só terrível, mas também misteriosa. Aí
lutam o diabo e Deus, e o campo de batalha é o coração dos homens. Aliás, é a
dor que ensina a gemer.”
“— Embora seja baixo em meus desejos e goste
da baixeza, todavia não sou desonesto.”
“— Eu, meu querido Alieksiêi Fiódorovitch,
tenho a intenção de viver o máximo que puder no mundo, saibam vocês disto, e
por isso preciso de cada copeque, e quanto mais eu viver tanto mais esse
copeque me será necessário. (...) Por enquanto ainda sou um homem, apesar de
tudo, tenho apenas cinquenta e cinco anos, mas ainda quero permanecer uns vinte
no rol dos homens, porque vou envelhecer, ficar um trapo e elas não vão querer
vir à minha casa de boa vontade, e é por isso que vou precisar de um
dinheirinho. É por isso que venho juntando cada vez mais e mais só para mim,
meu amável filho Alieksiêi Fiódorovitch, que fiquem vocês sabendo, porque quero
viver até o fim em minha sujeira, fiquem vocês sabendo. Na imundice é que é
mais doce: todos falam mal dela, mas nela todos vivem, só que às escondidas,
enquanto que eu sou transparente. Pois foi por essa minha simplicidade que
todos os sujos investiram contra mim. Já para o teu paraíso, Alieksiêi
Fiódorovitch, não quero ir, fica tu sabendo, e para um homem direito é até
indecente ir para o teu paraíso, se é que ele existe mesmo. A meu ver, a pessoa
dorme e não acorda mais, descobre que não existe nada; lembrem-se de mim se
quiserem, e se não quiserem o diabo que os carregue. Eis minha filosofia.”
“— Na companhia dos patifes eu também sou um
patife.”
“— É duro demais para um homem ofendido quando todos
passam a olhar para ele como seus benfeitores...”
“— Eu estava aqui sentado, e vê o que dizia para mim
mesmo: se eu não acreditasse na vida, se perdesse a confiança na mulher
querida, se perdesse a confiança na ordem das coisas, se me convencesse até de
que tudo, ao contrário, é uma desordem, um caos maldito e talvez até demoníaco,
mesmo que todos os horrores da frustração humana me atingissem, ainda assim eu
teria vontade de viver, e já que trouxe esse cálice aos lábios não o afastaria
de mim enquanto não o esvaziasse! Pensando bem, aí por volta dos trinta anos
certamente largarei o cálice mesmo sem esvaziá-lo e me afastarei... não sei
para onde. Mas até os trinta anos, disso estou firmemente certo, minha mocidade
vencerá tudo — qualquer frustração, qualquer aversão à vida. Muitas vezes fiz a mim
mesmo esta pergunta: se existirá no mundo um desespero que vença em mim essa
sede frenética e talvez indecente de viver, e decidi que tal coisa parece não
existir, ou, reiterando, não existe antes dos trinta anos, porque depois eu
mesmo já não vou querer, assim me parece. Frequentemente uns moralistas tísicos
e ranhosos, principalmente os poetas, chamam de torpe essa sede de viver. Em
parte, essa vontade de viver a despeito de qualquer coisa é um traço dos
Karamázov, é verdade, e ela também existe infalivelmente em ti, mas por que é
torpe? Ainda existe um volume colossal de força centrípeta em nosso planeta,
Aliócha. Tenho vontade de viver e vivo, ainda que contrariando a lógica. Vá que
eu não acredite na ordem das coisas, mas a mim me são caras as folhinhas
pegajosas que desabrocham na primavera, me é caro o céu azul, é caro esse ou
aquele homem de quem, não sei se acreditas, às vezes a gente não sabe por que
gosta, me é caro um ou outro feito humano no qual a gente talvez tenha até
deixado de acreditar há muito tempo e mesmo assim, movido pela lembrança
antiga, o respeita de coração.”
“— Ora, como é que os meninos russos agem até hoje? Quer
dizer, os outros? Vê, por exemplo, esta taverna fedorenta, vê aqueles ali, eles
se juntaram, sentaram-se no canto. Antes nunca se haviam conhecido, vão sair da
taverna e passar mais quarenta e cinco anos sem saber nada uns dos outros; pois
bem, o que vão discutir agora nesta taverna? Questões universais, não outra
coisa: Deus existe, existe imortalidade? E os que não acreditam em Deus vão
falar de socialismo e de anarquismo, da reconstrução de toda a sociedade humana
segundo um novo princípio, e então só o diabo sabe o que sairá daí, sempre as
mesmas questões, só que vistas de um outro ângulo. E hoje uma infinidade, uma
infinidade dos mais originais rapazinhos russos não fazem outra coisa a não ser
falar de questões eternas. Por acaso não é assim?
—
Sim, a verdadeira questão russa: Deus existe ou não, existe imortalidade ou
não, ou, como tu dizes, são questões colocadas de outro ângulo, é claro, as
questões primordiais e prioritárias, e é assim que deve ser — pronunciou
Aliócha, olhando para o irmão com o mesmo sorriso sereno e escrutador.
—
Vê, Aliócha, ser um russo às vezes não é nada inteligente, mas ainda assim não
se pode imaginar nada mais tolo que aquilo de que os rapazolas russos se ocupam
atualmente. Mas eu gosto muitíssimo de um rapazinho russo — Alióchka.
—
Como tu resumiste magnificamente tudo isso — sorriu de repente Aliócha.
—
Bem, diz então por onde começar, ordena tu mesmo: por Deus? Se Deus existe ou
não, é isso?
—
Começa por onde quiseres, mesmo que seja por “outro ângulo”. Porque ontem tu
proclamaste em casa de nosso pai que Deus não existe — Aliócha lançou ao irmão
um olhar escrutador.
—
Ontem, à mesa do almoço com o velho, eu te provoquei de propósito com essa
afirmação, e notei como teus olhos chamejaram. Mas agora não tenho nada contra
falar de tudo contigo, e digo isso com muita seriedade. Quero fazer amizade
contigo, Aliócha, porque não tenho amigos e quero experimentar. Bem, imagina
que eu talvez até aceite Deus — Ivan sorriu —, isso é uma surpresa para ti,
hein?
—
Sim, é claro, contanto que não estejas brincando também agora.
—
“Brincando”. Ontem disseram na cela do stárietz que eu estava brincando.
Vê, meu caro, no século XVIII houve um velho pecador que declarou que se Deus
não existisse seria preciso inventá-lo: s’il n’existait pas Dieu il faudrait
l’inventer34. E o homem realmente inventou Deus. E o estranho, o
surpreendente não seria o fato de Deus realmente existir; o que, porém,
surpreende é que essa ideia — a ideia da necessidade de Deus — possa ter subido
à cabeça de um animal tão selvagem e perverso como o homem, por ser ela tão
santa, tão comovente, tão sábia e tão honrosa ao homem. Quanto a mim, há tempos
que decidi não pensar na questão: foi o homem que criou Deus ou Deus que criou
o homem? É claro que não vou ficar examinando todos os axiomas que os rapazinhos
russos de hoje formulam a esse respeito, todos derivados de hipóteses
europeias; pois o que lá é hipótese no rapazinho russo se transforma
imediatamente em axioma, e não só nos rapazinhos, mas talvez até em seus
professores, porque até hoje os professores russos são, muito amiúde, esses
mesmos rapazinhos russos. É por isso que eu omito todas as hipóteses. Qual é o
nosso objetivo neste momento? O objetivo é que eu possa te explicar o mais
depressa a minha essência, ou seja, que pessoa sou eu, em que acredito e em que
alimento esperança, não é? Por isso eu te declaro que aceito Deus com franqueza
e simplicidade. Mas eis, entretanto, o que preciso ressaltar: se Deus existe e
ele realmente criou a Terra, então, como é de nosso conhecimento absoluto, ele
a criou com base na geometria euclidiana, e criou a inteligência humana apenas
com o conceito das três dimensões do espaço. Por outro lado, houve e há até
hoje geômetras e filósofos, e inclusive dos mais notáveis, que duvidam de que
todo o universo ou, em termos mais amplos, todo o ser tenha sido criado
unicamente com base na geometria euclidiana; eles se permitem inclusive a
fantasia de que duas paralelas, que, segundo Euclides, jamais poderão
encontrar-se na terra, talvez venham a encontrar-se em algum lugar do infinito.
Eu, meu caro, resolvi que se nem isso consigo compreender, então quem sou eu
para entender o que toca a Deus? Reconheço humildemente que não tenho nenhuma
capacidade de resolver tais problemas, minha inteligência é euclidiana,
terrena, portanto, como iríamos resolver aquilo que não é deste mundo? Aliás,
eu também te aconselho a nunca pensar nisso, amigo Aliócha, e menos ainda a
respeito de Deus: Ele existe ou não? Todas essas questões são absolutamente
impróprias para uma inteligência criada apenas com a noção das três dimensões.
Portanto, aceito Deus, e não só de bom grado como, além disso, aceito também
sua sabedoria e seus fins, que nos são totalmente desconhecidos, acredito na
ordem, no sentido da vida, acredito na harmonia eterna na qual nós todos nos
fundiríamos, creio no Verbo ao qual aspira o universo, que também “está em
Deus” e é o próprio Deus, etc., etc. e assim sucessivamente no sentido do
infinito. A esse respeito muito já se escreveu. Parece que estou no bom
caminho, não? Pois bem, imagina que o resultado definitivo disso é que eu não
aceito esse mundo de Deus e, mesmo sabendo que ele existe, não o admito
absolutamente. Não é Deus que não aceito, entende isso, é o mundo criado por
ele, o mundo de Deus que não aceito e não posso concordar em aceitar. Faço uma
ressalva; estou convencido, como uma criança, de que os sofrimentos hão de
cicatrizar e desaparecer, de que toda a injuriosa comédia das contradições
humanas desaparecerá como uma miragem deplorável, como uma invencionice torpe
de uma inteligência humana euclidiana fraca e pequena como o átomo, de que,
enfim, na consumação do mundo, no momento da eterna harmonia, acontecerá e
aparecerá algo tão precioso que bastará a todos os corações, para suavizar
todas as indignações, para redimir todas as perversidades dos homens, todo o
sangue por eles derramado, chegará para que seja possível não só perdoar como
também compensará tudo o que aconteceu com os homens — oxalá, oxalá tudo isso
aconteça e se revele, mas eu não o aceito nem quero aceitar! Oxalá até as
paralelas se encontrem e eu mesmo o veja: verei e direi que se encontraram, mas
ainda assim não aceitarei. Eis a minha essência, Aliócha, eis a minha tese.
Isto eu já te expus com seriedade. Comecei de propósito esta nossa conversa de
um modo que não pode haver mais tolo, mas a conduzi até chegar à minha
confissão, porque é disso que precisas. Não era de Deus que tu precisavas;
precisavas apenas saber como vive este irmão que amas. E eu o declarei.
Ivan
concluiu sua longa tirada com um sentimento particular e inesperado.
— E
por que principiaste dizendo que “não se pode começar nada de modo mais tolo”? —
perguntou Aliócha, fitando-o com ar pensativo.
—
Bem, em primeiro lugar, ao menos por uma questão de russismo: a condução de
todas as conversas russas sobre esses temas não poderia ser mais tola. Em
segundo, mais uma vez, quanto mais tola mais direta. Quanto mais tola, mais
clara. A tolice é curta e ingênua, já a inteligência tergiversa e se esconde. A
inteligência é canalha, mas a tolice é franca e honesta. Levei a questão até a
beira do meu desespero, e quanto mais tola tenha sido sua condução mais
proveitoso terá sido para mim.”
34 Referência à famosa frase de Voltaire: “Se Deus não
existisse, seria preciso inventá-lo”. (N. do T.)
“— Para amar uma pessoa é preciso que esta esteja
escondida, porque mal ela mostra o rosto o amor acaba.”
“— A propósito, um
búlgaro me contou recentemente em Moscou — continuou Ivan Fiodórovitch como se
não tivesse ouvido o irmão — como os turcos e tcherquesses cometem atrocidades
em todas as partes da Bulgária, por temerem uma rebelião geral dos eslavos37
— ou seja, queimam, degolam, violentam mulheres e crianças, pregam as orelhas
dos prisioneiros a uma cerca com pregos, os deixam assim até o dia amanhecer e
de manhã os enforcam —, etc., é até impossível imaginar tudo. De fato, às vezes
se fala da crueldade “bestial” do homem, mas isso é terrivelmente injusto e
ofensivo para com os animais: a fera nunca pode ser tão cruel como o homem,38
tão artisticamente, tão esteticamente cruel. O tigre simplesmente trinca,
dilacera, e é só o que sabe fazer. Não lhe passaria pela cabeça pregar as
orelhas das pessoas com pregos por uma noite, mesmo que pudesse fazê-lo. Esses
turcos, a propósito, supliciam com lascívia até as crianças, começando por
arrancá-las a punhal do ventre da mãe e terminando por lançar crianças de colo
e apará-las na ponta da baioneta à vista das mães. O prazer principal é fazer
isso à vista das mães. Mas vê, entretanto, um quadro que me interessou
intensamente. Imagina: um bebê nos braços da mãe trêmula, rodeada de turcos que
acabam de chegar. Eles tramam uma coisinha divertida: acariciam o bebê, riem
para fazê-lo rir, e conseguem, o bebê desata a rir. Nesse instante o turco
aponta a pistola para o rosto dele a uns vinte centímetros de distância. O
menino dá risadinhas de alegria, estira as mãozinhas para agarrar a pistola e,
de repente, o artista aperta o gatilho diretamente contra o rosto e lhe
esmigalha a cabecinha... É arte, não é verdade? A propósito, dizem que os
turcos gostam muito de doce.
— Irmão, onde estás
querendo chegar? perguntou Aliócha.
— Acho que se o diabo
não existe e, portanto, o homem o criou, então o criou à sua imagem e
semelhança.
— Neste caso,
exatamente como Deus.”
37
Entre 1875 e 1876, o movimento de libertação nacional da Bulgária ganhou
enormes proporções e suscitou uma repressão sem precedentes dos turcos contra a
população local. Dostoiévski escreveu reiteradamente sobre o tema em seu Diário
de um escritor. (N. da E.)
38
Veja-se o que Herzen escreve na revista Kólokol, nº 68-69, de 1860, a
respeito das atrocidades cometidas pelos latifundiários russos: “Que animais,
que feras são essas que vivem por esses fins de mundo... Aliás, por que ofender
as feras? Feras assim não existem, só encontramos esse tipo de feras nos
latifundiários russos”. (N. da E.)
“Quando nos formamos
oficiais, estávamos prontos a derramar nosso sangue por uma ofensa à honra de
nosso regimento, mas entre nós quase ninguém conhecia a verdadeira honra,
sequer sabia que ela existia e, se o soubesse, imediatamente seria o primeiro a
rir dela.”
“— Lembra-te particularmente de que não podes ser
juiz de ninguém.100 Porque na Terra não pode haver juiz de um
criminoso sem que antes esse mesmo juiz saiba que também é tão criminoso como
aquele que está à sua frente e, mais do que ninguém, talvez seja o culpado pelo
crime que tem diante de si. Quando compreender isto poderá ser juiz. Isso é
verdade, por mais insensato que pareça. Pois se eu mesmo fosse um justo, talvez
nem houvesse um criminoso diante de mim.101 Se puderes assumir o
delito do criminoso que tens à frente e julgas com teu coração, assume-o
imediatamente e sofre tu mesmo por ele, liberando-o sem reprimenda. E mesmo que
a própria lei tenha te constituído seu juiz, ainda assim procura criar dentro
do espírito da lei até onde te for possível, pois ele será liberado e se
condenará ainda mais amargamente do que o faria teu julgamento. Se, apesar de
teu afago, ele sair insensível e zombando de ti, não te sintas tentado:
significará isto que a hora dele ainda não chegou, mas chegará oportunamente;
se não chegar, não faz mal: se não for ele, outro o experimentará por ele, e
sofrerá, e condenará, e acusará a si próprio, e a verdade será cumprida. Crê
nisso, crê sem duvidar, porque é aí mesmo que está toda a esperança e toda a fé
dos santos.”
100 “Não julgueis, para que não sejais julgados. Pois
com o critério com que julgardes, sereis julgados [...]”. Mateus, 7, 1-2. (N.
da E.)
101 Dostoiévski desenvolve essa mesma ideia no artigo “O meio”, publicado em seu Diário de um escritor de 1873, onde trata da figura do criminoso: “Se ele infringiu a lei que a Terra lhe prescreveu, nós mesmos somos os culpados por tê-lo agora à nossa frente. Porque se todos fôssemos melhores, ele também seria melhor e não estaria agora diante de nós”. (N. da E.).
“— Padres e mestres, tenho pensado: “O que é o inferno?”.
E julgo assim: “É o sofrimento de não mais se poder amar”.”
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