Editora: Zahar
ISBN: 978-65-5979-000-5
Tradução: Plínio
Dentzien
Opinião: ★★★★★
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Páginas: 280
Sinopse: Ver Parte I
“Pode-se
sempre responder que não há nada particularmente novo nessa situação: a vida de
trabalho sempre foi cheia de incertezas, desde tempos imemoriais. A incerteza
de hoje, porém, é de um tipo inteiramente novo. Os temíveis desastres que podem
devastar nossa sobrevivência e suas perspectivas não são do tipo que possa ser
repelido ou contra que se possa lutar unindo forças, permanecendo unidos e com
medidas debatidas, acordadas e postas em prática em conjunto. Os desastres mais
terríveis acontecem hoje aleatoriamente, escolhendo suas vítimas com a lógica
mais bizarra ou sem qualquer lógica, distribuindo seus golpes caprichosamente,
de tal forma que não há como prever quem será condenado e quem será salvo. A
incerteza do presente é uma poderosa força individualizadora. Ela divide
em vez de unir, e como não há maneira de dizer quem acordará no próximo dia em
qual divisão, a ideia de “interesse comum” fica cada vez mais nebulosa e perde
todo valor prático.
Os
medos, ansiedades e angústias contemporâneos são feitos para serem sofridos em
solidão. Não se somam, não se acumulam numa “causa comum”, não têm endereço
específico, e muito menos óbvio. Isso priva as posições de solidariedade de seu
status antigo de táticas racionais e sugere uma estratégia de vida muito
diferente da que levou ao estabelecimento das organizações militantes em defesa
da classe trabalhadora. Ao falar com pessoas já atingidas ou que temiam vir a
ser atingidas pelas mudanças correntes nas condições de emprego, Pierre
Bourdieu ouviu vezes sem conta que “em face das novas formas de exploração,
notavelmente favorecidas pela desregulação do trabalho e pelo desenvolvimento
do emprego temporário, as formas tradicionais de ação sindical são consideradas
inadequadas”. Bourdieu conclui que fatos recentes “quebraram os fundamentos das
solidariedades passadas” e que o resultante “desencantamento vai de mãos dadas
com o desaparecimento do espírito de militância e participação política”.15
Quando
a utilização do trabalho se torna de curto prazo e precária, tendo sido ele
despido de perspectivas firmes (e muito menos garantidas) e portanto tornado
episódico, quando virtualmente todas as regras relativas ao jogo das promoções
e demissões foram esgotadas ou tendem a ser alteradas antes que o jogo termine,
há pouca chance de que a lealdade e o compromisso mútuos brotem e se enraízem.
Ao contrário dos tempos de dependência mútua de longo prazo, não há quase
estímulo para um interesse agudo, sério e crítico por conhecer os
empreendimentos comuns e os arranjos a eles relacionados, que de qualquer forma
seriam transitórios. O emprego parece um acampamento que se visita por alguns
dias e que se pode abandonar a qualquer momento se as vantagens oferecidas não
se verificarem ou se forem consideradas insatisfatórias — e não com um
domicílio compartilhado onde nos inclinamos a ter trabalho e construir
pacientemente regras aceitáveis de convivência. Mark Granovetter sugeriu que o
nosso é um tempo de “laços fracos”, enquanto Sennett propõe que “formas fugazes
de associação são mais úteis para as pessoas que conexões de longo prazo”.16
A
presente versão “liquefeita”, “fluida”, dispersa, espalhada e desregulada da
modernidade pode não implicar o divórcio e ruptura final da comunicação, mas
anuncia o advento do capitalismo leve e flutuante, marcado pelo desengajamento
e enfraquecimento dos laços que prendem o capital ao trabalho. Pode-se dizer
que esse movimento ecoa a passagem do casamento para o “viver junto”, com todas
as atitudes disso decorrentes e consequências estratégicas, incluindo a
suposição da transitoriedade da coabitação e da possibilidade de que a
associação seja rompida a qualquer momento e por qualquer razão, uma vez
desaparecida a necessidade ou o desejo. Se manter-se juntos era uma questão de
acordo recíproco e de mútua dependência, o desengajamento é unilateral:
um dos lados da configuração adquiriu uma autonomia que talvez sempre tenha
desejado secretamente mas que nunca havia manifestado seriamente antes. Numa medida
nunca alcançada na realidade pelos “senhores ausentes” de outrora, o capital
rompeu sua dependência em relação ao trabalho com uma nova liberdade de
movimentos, impensável no passado. A reprodução e o crescimento do capital, dos
lucros e dos dividendos e a satisfação dos acionistas se tornaram independentes
da duração de qualquer comprometimento local com o trabalho.
É claro que a independência não é completa, e o
capital não é ainda tão volátil como gostaria de e tenta ser. Fatores
territoriais — locais — ainda devem ser considerados na maioria dos cálculos, e
o “poder de confusão” dos governos locais ainda pode colocar limites
constrangedores à sua liberdade de movimento. Mas o capital se tornou
exterritorial, leve, desembaraçado e solto numa medida sem precedentes, e seu
nível de mobilidade espacial é na maioria dos casos suficiente para chantagear
as agências políticas dependentes de território e fazê-las se submeterem a suas
demandas.”
15.
Pierre Bourdieu (org.), La misère du monde, Paris: Seuil, 1993, p.631,
628.
16. Sennett, The Corrosion of Character, p.24.
“Na
falta de segurança de longo prazo, a “satisfação instantânea” parece uma
estratégia razoável. O que quer que a vida ofereça, que o faça hic et nunc
— no ato. Quem sabe o que o amanhã vai trazer? O adiamento da satisfação perdeu
seu fascínio. É, afinal, altamente incerto que o trabalho e o esforço
investidos hoje venham a contar como recursos quando chegar a hora da
recompensa. Está longe de ser certo, além disso, que os prêmios que hoje
parecem atraentes serão tão desejáveis quando finalmente forem conquistados.
Todos aprendemos com amargas experiências que os prêmios podem se tornar riscos
de uma hora para outra e prêmios resplandecentes podem se tornar marcas de
vergonha. As modas vêm e vão com velocidade estonteante, todos os objetos de
desejo se tornam obsoletos, repugnantes e de mau-gosto antes que tenhamos tempo
de aproveitá-los. Estilos de vida que são “chiques” hoje serão amanhã alvos do
ridículo. Citando Bourdieu uma vez mais: “Os que deploram o cinismo que marca
os homens e mulheres de nosso tempo não deveriam deixar de relacioná-lo às
condições sociais e econômicas que o favorecem…” Quando Roma pega fogo e há
muito pouco ou nada que se possa fazer para controlar o incêndio, tocar violino
não parece mais bobo nem menos adequado do que fazer qualquer outra coisa.
Condições
econômicas e sociais precárias treinam homens e mulheres (ou os fazem aprender
pelo caminho mais difícil) a perceber o mundo como um contêiner cheio de
objetos descartáveis, objetos para uma só utilização; o mundo
inteiro — inclusive outros seres humanos. Além disso, o mundo parece ser
constituído de “caixas pretas”, hermeticamente fechadas, e que jamais deverão
ser abertas pelos usuários, nem consertadas quando quebram. Os mecânicos de
automóveis de hoje não são treinados para consertar motores quebrados ou
danificados, mas apenas para retirar e jogar fora as peças usadas ou
defeituosas e substituí-las por outras novas e seladas, diretamente da
prateleira. Eles não têm a menor ideia da estrutura interna das “peças
sobressalentes” (uma expressão que diz tudo), do modo misterioso como
funcionam; não consideram esse entendimento e a habilidade que o acompanha como
sua responsabilidade ou como parte de seu campo de competência. Como na oficina
mecânica, assim também na vida em geral: cada “peça” é “sobressalente” e
substituível, e assim deve ser. Por que gastar tempo com consertos que consomem
trabalho, se não é preciso mais que alguns momentos para jogar fora a peça
danificada e colocar outra em seu lugar?
Num
mundo em que o futuro é, na melhor das hipóteses, sombrio e nebuloso, porém
mais provavelmente cheio de riscos e perigos, colocar-se objetivos distantes,
abandonar o interesse privado para aumentar o poder do grupo e sacrificar o
presente em nome de uma felicidade futura não parecem uma proposição atraente,
ou mesmo razoável. Qualquer oportunidade que não for aproveitada aqui e agora é
uma oportunidade perdida; não a aproveitar é assim imperdoável e não há
desculpa fácil para isso, e nem justificativa. Como os compromissos de hoje são
obstáculos para as oportunidades de amanhã, quanto mais forem leves e
superficiais, menor o risco de prejuízos. “Agora” é a palavra-chave da
estratégia de vida, ao que quer que essa estratégia se aplique e independente
do que mais possa sugerir. Num mundo inseguro e imprevisível, o viajante
esperto fará o possível para imitar os felizes globais que viajam leves; e não
derramarão muitas lágrimas ao se livrar de qualquer coisa que atrapalhe os
movimentos. Raramente param por tempo suficiente para imaginar que os laços
humanos não são como peças de automóvel — que raramente vêm prontos, que tendem
a se deteriorar e desintegrar facilmente se ficarem hermeticamente fechados e
que não são fáceis de substituir quando perdem a utilidade.
E
assim a política de “precarização” conduzida pelos operadores dos mercados de
trabalho acaba sendo apoiada e reforçada pelas políticas de vida, sejam elas
adotadas deliberadamente ou apenas por falta de alternativas. Ambas convergem
para o mesmo resultado: o enfraquecimento e decomposição dos laços humanos, das
comunidades e das parcerias. Compromissos do tipo “até que a morte nos separe”
se transformam em contratos do tipo “enquanto durar a satisfação”, temporais e
transitórios por definição, por projeto e por impacto pragmático — e assim
passíveis de ruptura unilateral, sempre que um dos parceiros perceba melhores
oportunidades e maior valor fora da parceria do que em tentar salvá-la a
qualquer — incalculável — custo.
Em
outras palavras, laços e parcerias tendem a ser vistos e tratados como coisas
destinadas a serem consumidas, e não produzidas; estão sujeitas aos
mesmos critérios de avaliação de todos os outros objetos de consumo. No mercado
de consumo, os produtos duráveis são em geral oferecidos por um “período de
teste” a devolução do dinheiro é prometida se o comprador estiver menos que
totalmente satisfeito. Se o participante numa parceria é “concebido” em tais
termos, então não é mais tarefa para ambos os parceiros “fazer com que a relação
funcione”, “na riqueza e na pobreza”, na saúde e na doença, trabalhar a favor
nos bons e maus momentos, repensar, se necessário, as próprias preferências,
conceder e fazer sacrifícios em favor da uma união duradoura. É, em vez disso,
uma questão de obter satisfação de um produto pronto para o consumo; se o
prazer obtido não corresponder ao padrão prometido e esperado, ou se a novidade
se acabar junto com o gozo, pode-se entrar com a ação de divórcio, com base nos
direitos do consumidor. Não há qualquer razão para ficar com um produto
inferior ou envelhecido em vez de procurar outro “novo e aperfeiçoado” nas
lojas.
O
que se segue é que a suposta transitoriedade das parcerias tende a se tornar
uma profecia autocumprida. Se o laço humano, como todos os outros objetos de
consumo, não é alguma coisa a ser trabalhada com grande esforço e sacrifício
ocasional, mas algo de que se espera satisfação imediata, instantânea, no
momento da compra — e algo que se rejeita se não satisfizer, a ser usada apenas
enquanto continuar a satisfazer (e nem um minuto além disso) —, então não faz
sentido “jogar dinheiro bom em cima de dinheiro ruim”, tentar cada vez mais, e
menos ainda sofrer com o desconforto e o embaraço para salvar a parceria. Mesmo
um pequeno problema pode causar a ruptura da parceria; desacordos triviais se
tornam conflitos amargos, pequenos atritos são tomados como sinais de
incompatibilidade essencial e irreparável. Como o sociólogo norte-americano
W.I. Thomas teria dito, se tivesse testemunhado essa situação: se as pessoas
supõem que seus compromissos são temporários e até segunda ordem, esses
compromissos tendem a se tornar temporários em consequência das próprias ações
dessas pessoas.
A
precariedade da existência social inspira uma percepção do mundo em volta como
um agregado de produtos para consumo imediato. Mas a percepção do mundo, com
seus habitantes, como um conjunto de itens de consumo, faz da negociação de
laços humanos duradouros algo excessivamente difícil. Pessoas inseguras tendem
a ser irritáveis; são também intolerantes com qualquer coisa que funcione como
obstáculo a seus desejos; e como muitos desses desejos serão de qualquer forma
frustrados, não há escassez de coisas e pessoas que sirvam de objeto a essa
intolerância. Se a satisfação instantânea é a única maneira de sufocar o
sentimento de insegurança (sem jamais saciar a sede de segurança e certeza),
não há razão evidente para ser tolerante em relação a alguma coisa ou pessoa
que não tenha óbvia relevância para a busca da satisfação, e menos ainda em
relação a alguma coisa ou pessoa complicada ou relutante em trazer a satisfação
que se busca.
Há
ainda outra ligação entre a “consumização” de um mundo precário e a
desintegração dos laços humanos. Ao contrário da produção, o consumo é uma
atividade solitária, irremediavelmente solitária, mesmo nos momentos em que se
realiza na companhia de outros. Esforços produtivos (em geral de longo prazo)
requerem cooperação mesmo quando apenas demandam a adição de força muscular
bruta: se carregar um pesado tronco de um lugar para outro requer uma hora a
oito homens, não se segue que um homem o possa fazer em oito (ou qualquer
número de) horas. No caso de tarefas mais complexas que envolvem a divisão do
trabalho e demandam diversas habilidades especializadas que não se encontram em
uma só pessoa, a necessidade de cooperação é ainda mais óbvia; sem ela, o
produto não teria chance de surgir. É a cooperação que transforma os esforços
diversos e dispersos em esforços produtivos. No caso do consumo, porém, a
cooperação não só é desnecessária como é inteiramente supérflua. O que é
consumido o é individualmente, mesmo que num saguão repleto.”
“A
passagem do capitalismo pesado ao leve e da modernidade sólida à fluida ou
liquefeita é o quadro em que a história do movimento dos trabalhadores foi
inscrita. Ela também vai longe para dar sentido às notórias reviravoltas dessa
história. Não seria nem razoável nem particularmente esclarecedor dar conta dos
lúgubres dilemas em que o movimento dos trabalhadores caiu na parte “avançada”
(no sentido “modernizante”) do mundo, em relação à mudança na disposição do
público — tenha sido ela produzida pelo impacto debilitante dos meios de
comunicação de massa, por uma conspiração dos anunciantes, pela sedutora
atração da sociedade do consumo ou pelos efeitos soporíferos da sociedade do
espetáculo e do entretenimento. Culpar os atabalhoados ou ambíguos “políticos
trabalhistas” também não ajuda. Os fenômenos invocados nessas explicações não
são imaginários, mas não funcionariam como explicações se não fosse pelo fato
de que o contexto da vida, o ambiente social em que as pessoas (raramente por
sua própria escolha) conduzem os afazeres da vida, mudou radicalmente desde o
tempo em que os trabalhadores que se amontoavam nas fábricas de produção em
larga escala se uniam para lutar por termos mais humanos e compensadores de
venda de seu trabalho, e os teóricos e práticos do movimento dos trabalhadores
sentiam na solidariedade destes o desejo, informe e ainda não articulado (mas
inato e a longo prazo avassalador), de uma “boa sociedade” que efetivaria os
princípios universais da justiça.”
“Parece haver pouca esperança de resgatar os serviços de certeza,
segurança e garantias do Estado. A liberdade da política do Estado é
incansavelmente erodida pelos novos poderes globais providos das terríveis
armas da extraterritorialidade, velocidade de movimento e capacidade de evasão
e fuga; a retribuição pela violação do novo estatuto global é rápida e
impiedosa. De fato, a recusa a participar do jogo nas novas regras globais é o
crime a ser mais impiedosamente punido, crime que o poder do Estado, preso ao
solo por sua própria soberania territorialmente definida, deve impedir-se de
cometer e evitar a qualquer custo.
Muitas
vezes a punição é econômica. Governos insubordinados, culpados de políticas
protecionistas ou provisões públicas generosas para os setores “economicamente
dispensáveis” de suas populações e de não deixar o país à mercê dos “mercados
financeiros globais” e do “livre comércio global”, têm seus empréstimos
recusados e negada a redução de suas dívidas; as moedas locais são
transformadas em leprosas globais, pressionadas à desvalorização e sofrem
ataques especulativos; as ações locais caem nas bolsas globais; o país é
isolado por sanções econômicas e passa a ser tratado por parceiros comerciais
passados e futuros como um pária global; os investidores globais cortam suas
perdas antecipadas, embalam seus pertences e retiram seus ativos, deixando que
as autoridades locais limpem os resíduos e resgatem as vítimas.
Ocasionalmente,
no entanto, a punição não se confina a “medidas econômicas”. Governos
particularmente obstinados (mas não fortes o bastante para resistir por muito
tempo) recebem uma lição exemplar que tem por objetivo advertir e atemorizar
seus imitadores potenciais. Se a demonstração diária e rotineira da
superioridade das forças globais não for suficiente para forçar o Estado a ver
a razão e cooperar com a nova “ordem mundial”, a força militar é exercida: a
superioridade da velocidade sobre a lentidão, da capacidade de escapar sobre a
necessidade de engajar-se no combate, da extraterritorialidade sobre a
localidade, tudo isso se manifesta espetacularmente com a ajuda, desta vez, de
forças armadas especializadas em táticas de atacar e correr e a estrita
separação entre “vidas a serem salvas” e vidas que não merecem socorro.”
“Citando a opinião do poeta tcheco Jan Skácel sobre a condição do poeta
(que, nas palavras de Skácel, apenas descobre os versos que “estiveram sempre,
profundamente, lá”), Milan Kundera comenta (em L’Art du roman, 1986):
“Escrever significa para o poeta romper a muralha atrás da qual se esconde
alguma coisa que ‘sempre esteve lá’.” Sob esse aspecto, a tarefa do poeta não é
diferente da obra da história, que também descobre, e não inventa:
a história, como os poetas, descobre, em sempre novas situações, possibilidades
humanas antes ocultas.
O
que a história faz corriqueiramente é um desafio, uma tarefa e uma missão para
o poeta. Para elevar-se a essa missão, o poeta deve recusar servir verdades
conhecidas de antemão e bem usadas, verdades já “óbvias” porque trazidas à
superfície e aí deixadas a flutuar. Não importa que essas verdades “supostas de
antemão” sejam classificadas como revolucionárias ou dissidentes, cristãs ou
ateias — ou quão corretas e apropriadas, nobres e justas sejam ou tenham sido
proclamadas. Qualquer que seja sua denominação, essas “verdades” não são as
“coisas ocultas” que o poeta é chamado a desvelar; são antes partes da muralha
que é missão do poeta destruir. Os porta-vozes do óbvio, do auto-evidente e
“daquilo em que todos acreditamos” são falsos poetas, diz Kundera.
Mas
o que tem que ver a vocação do poeta com a do sociólogo? Nós sociólogos
raramente escrevemos poemas. (Alguns de nós que o fazemos tomamos uma licença,
para a atividade de escrever, de nossos afazeres profissionais.) E no entanto,
se não quisermos partilhar do destino dos “falsos poetas” e não quisermos ser
“falsos sociólogos”, devemos nos aproximar tanto quanto os verdadeiros poetas
das possibilidades humanas ainda ocultas; e por essa razão devemos perfurar as
muralhas do óbvio e do evidente, da moda ideológica do dia cuja trivialidade é
tomada como prova de seu sentido. Demolir tais muralhas é vocação tanto do
sociólogo quanto do poeta, e pela mesma razão: o emparedamento das
possibilidades desvirtua o potencial humano ao mesmo tempo em que obstrui a
revelação de seu blefe.
Talvez
o verso que o poeta procura tenha Estado “sempre lá”. Não se pode estar tão
certo, porém, sobre o potencial humano descoberto pela história. Será que os
humanos — os que fazem e os que foram feitos, os heróis e as vítimas da
história — sempre carregarão consigo o mesmo volume de possibilidades à espera
do momento certo para serem reveladas? Ou a oposição entre descoberta e criação
é nula e vazia e não faz sentido? Como a história é o processo infindável da
criação humana, não seria ela pela mesma razão o processo infindável do
autodescobrimento humano? A propensão para revelar/criar sempre novas
possibilidades, para expandir o inventário das possibilidades já descobertas e
tornadas reais, não é o único potencial humano que sempre “esteve lá”, e sempre
estará? Saber se a nova possibilidade foi criada ou “meramente” revelada pela
história é sem dúvida um estímulo bem-vindo para mentes escolásticas; quanto à
própria história, ela não espera pela resposta e pode seguir sem ela.”
““Indivíduos frágeis”, destinados a conduzir suas vidas numa “realidade porosa”,
sentem-se como que patinando sobre gelo fino; e “ao patinar sobre gelo fino”,
observou Ralph Waldo Emerson em seu ensaio “Prudence”, “nossa segurança
está em nossa velocidade”. Indivíduos, frágeis ou não, precisam de segurança,
anseiam por segurança, buscam a segurança e assim tentam, ao máximo, fazer o
que fazem com a máxima velocidade. Estando entre corredores rápidos, diminuir a
velocidade significa ser deixado para trás; ao patinar em gelo fino, diminuir a
velocidade também significa a ameaça real de afogar-se. Portanto, a velocidade
sobe para o topo da lista dos valores de sobrevivência.
A
velocidade, no entanto, não é propícia ao pensamento, pelo menos ao pensamento
de longo prazo. O pensamento demanda pausa e descanso, “tomar seu tempo”,
recapitular os passos já dados, examinar de perto o ponto alcançado e a
sabedoria (ou imprudência, se for o caso) de o ter alcançado. Pensar tira nossa
mente da tarefa em curso, que requer sempre a corrida e a manutenção da
velocidade. E na falta do pensamento, o patinar sobre o gelo fino que é uma
fatalidade para todos os indivíduos frágeis na realidade porosa pode ser
equivocadamente tomado como seu destino.
Tomar
a fatalidade por destino, como insistia Max Scheler em sua Ordo amoris,
é um erro grave: “O destino do homem não é uma fatalidade … A suposição de que
fatalidade e destino são a mesma coisa merece ser chamada de fatalismo.” O
fatalismo é um erro do juízo, pois de fato a fatalidade “tem uma origem natural
e basicamente compreensível”. Além disso, embora não seja uma questão de livre
escolha, e particularmente de livre escolha individual, a fatalidade “tem
origem na vida de um homem ou de um povo”. Para ver tudo isso, para notar a
diferença e a distância entre fatalidade e destino, e escapar à armadilha do
fatalismo, são necessários recursos difíceis de obter quando se patina sobre
gelo fino: tempo para pensar, e distanciamento para uma visão de conjunto. “A
imagem de nosso destino”, adverte Scheler, “só nos abandona quando lhe damos as
costas”. Mas o fatalismo é uma atitude que se auto-referenda: faz com que o
“voltar as costas”, essa conditio sine qua non do pensamento, pareça
inútil e indigno de ser tentado.
Tomar
distância, tomar tempo — a fim de separar destino e fatalidade, de emancipar o destino
da fatalidade, de torná-lo livre para confrontar a fatalidade e desafiá-la:
essa é a vocação da sociologia. E é o que os sociólogos podem fazer caso se
esforcem consciente, deliberada e honestamente para refundir a vocação a que
atendem — sua fatalidade — em seu destino. (...)
Todos
os especialistas lidam com problemas práticos e todo conhecimento especializado
se dedica à sua solução, e a sociologia é um ramo do conhecimento especializado
cujo problema prático a resolver é o esclarecimento que tem por objetivo a
compreensão humana. (...)
Compreender
aquilo a que estamos fadados significa estarmos conscientes de que isso é
diferente de nosso destino. E compreender aquilo a que estamos fadados é
conhecer a rede complexa de causas que provocaram essa fatalidade e sua
diferença daquele destino. Para operar no mundo (por contraste a ser “operado”
por ele) é preciso entender como o mundo opera.
O
tipo de esclarecimento que a sociologia é capaz de dar se endereça a indivíduos
que escolhem livremente e têm por objetivo aperfeiçoar e reforçar sua liberdade
de escolha. (...)
Citando
de Le délabrement de l’Occident, de Cornelius Castoriadis,
uma sociedade autônoma, uma sociedade
verdadeiramente democrática, é uma sociedade que questiona tudo o que é
pré-determinado e assim libera a criação de novos significados. Em tal
sociedade, todos os indivíduos são livres para escolher criar para suas vidas
os significados que quiserem (e puderem).
A
sociedade é verdadeiramente autônoma quando “sabe, tem que saber, que não há
significados ‘assegurados’, que vive na superfície do caos, que ela própria é
um caos em busca de forma, mas uma forma que nunca é fixada de uma vez por
todas”. A falta de significados garantidos — de verdades absolutas, de normas
de conduta pré-ordenadas, de fronteiras pré-traçadas entre o certo e o errado,
de regras de ação garantidas — é a conditio sine qua non de, ao mesmo
tempo, uma sociedade verdadeiramente autônoma e indivíduos verdadeiramente
livres; a sociedade autônoma e a liberdade de seus membros se condicionam
mutuamente. A segurança que a democracia e a individualidade podem alcançar
depende não de lutar contra a contingência e a incerteza da condição humana,
mas de reconhecer e encarar de frente suas consequências.”