quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Modernidade Líquida (Parte IV), de Zygmunt Bauman

Editora: Zahar

ISBN: 978-65-5979-000-5

Tradução: Plínio Dentzien

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 280

Sinopse: Ver Parte I



“Pode-se sempre responder que não há nada particularmente novo nessa situação: a vida de trabalho sempre foi cheia de incertezas, desde tempos imemoriais. A incerteza de hoje, porém, é de um tipo inteiramente novo. Os temíveis desastres que podem devastar nossa sobrevivência e suas perspectivas não são do tipo que possa ser repelido ou contra que se possa lutar unindo forças, permanecendo unidos e com medidas debatidas, acordadas e postas em prática em conjunto. Os desastres mais terríveis acontecem hoje aleatoriamente, escolhendo suas vítimas com a lógica mais bizarra ou sem qualquer lógica, distribuindo seus golpes caprichosamente, de tal forma que não há como prever quem será condenado e quem será salvo. A incerteza do presente é uma poderosa força individualizadora. Ela divide em vez de unir, e como não há maneira de dizer quem acordará no próximo dia em qual divisão, a ideia de “interesse comum” fica cada vez mais nebulosa e perde todo valor prático.

Os medos, ansiedades e angústias contemporâneos são feitos para serem sofridos em solidão. Não se somam, não se acumulam numa “causa comum”, não têm endereço específico, e muito menos óbvio. Isso priva as posições de solidariedade de seu status antigo de táticas racionais e sugere uma estratégia de vida muito diferente da que levou ao estabelecimento das organizações militantes em defesa da classe trabalhadora. Ao falar com pessoas já atingidas ou que temiam vir a ser atingidas pelas mudanças correntes nas condições de emprego, Pierre Bourdieu ouviu vezes sem conta que “em face das novas formas de exploração, notavelmente favorecidas pela desregulação do trabalho e pelo desenvolvimento do emprego temporário, as formas tradicionais de ação sindical são consideradas inadequadas”. Bourdieu conclui que fatos recentes “quebraram os fundamentos das solidariedades passadas” e que o resultante “desencantamento vai de mãos dadas com o desaparecimento do espírito de militância e participação política”.15

Quando a utilização do trabalho se torna de curto prazo e precária, tendo sido ele despido de perspectivas firmes (e muito menos garantidas) e portanto tornado episódico, quando virtualmente todas as regras relativas ao jogo das promoções e demissões foram esgotadas ou tendem a ser alteradas antes que o jogo termine, há pouca chance de que a lealdade e o compromisso mútuos brotem e se enraízem. Ao contrário dos tempos de dependência mútua de longo prazo, não há quase estímulo para um interesse agudo, sério e crítico por conhecer os empreendimentos comuns e os arranjos a eles relacionados, que de qualquer forma seriam transitórios. O emprego parece um acampamento que se visita por alguns dias e que se pode abandonar a qualquer momento se as vantagens oferecidas não se verificarem ou se forem consideradas insatisfatórias — e não com um domicílio compartilhado onde nos inclinamos a ter trabalho e construir pacientemente regras aceitáveis de convivência. Mark Granovetter sugeriu que o nosso é um tempo de “laços fracos”, enquanto Sennett propõe que “formas fugazes de associação são mais úteis para as pessoas que conexões de longo prazo”.16

A presente versão “liquefeita”, “fluida”, dispersa, espalhada e desregulada da modernidade pode não implicar o divórcio e ruptura final da comunicação, mas anuncia o advento do capitalismo leve e flutuante, marcado pelo desengajamento e enfraquecimento dos laços que prendem o capital ao trabalho. Pode-se dizer que esse movimento ecoa a passagem do casamento para o “viver junto”, com todas as atitudes disso decorrentes e consequências estratégicas, incluindo a suposição da transitoriedade da coabitação e da possibilidade de que a associação seja rompida a qualquer momento e por qualquer razão, uma vez desaparecida a necessidade ou o desejo. Se manter-se juntos era uma questão de acordo recíproco e de mútua dependência, o desengajamento é unilateral: um dos lados da configuração adquiriu uma autonomia que talvez sempre tenha desejado secretamente mas que nunca havia manifestado seriamente antes. Numa medida nunca alcançada na realidade pelos “senhores ausentes” de outrora, o capital rompeu sua dependência em relação ao trabalho com uma nova liberdade de movimentos, impensável no passado. A reprodução e o crescimento do capital, dos lucros e dos dividendos e a satisfação dos acionistas se tornaram independentes da duração de qualquer comprometimento local com o trabalho.

É claro que a independência não é completa, e o capital não é ainda tão volátil como gostaria de e tenta ser. Fatores territoriais — locais — ainda devem ser considerados na maioria dos cálculos, e o “poder de confusão” dos governos locais ainda pode colocar limites constrangedores à sua liberdade de movimento. Mas o capital se tornou exterritorial, leve, desembaraçado e solto numa medida sem precedentes, e seu nível de mobilidade espacial é na maioria dos casos suficiente para chantagear as agências políticas dependentes de território e fazê-las se submeterem a suas demandas.”

15. Pierre Bourdieu (org.), La misère du monde, Paris: Seuil, 1993, p.631, 628.

16. Sennett, The Corrosion of Character, p.24.

 

 

“Na falta de segurança de longo prazo, a “satisfação instantânea” parece uma estratégia razoável. O que quer que a vida ofereça, que o faça hic et nunc — no ato. Quem sabe o que o amanhã vai trazer? O adiamento da satisfação perdeu seu fascínio. É, afinal, altamente incerto que o trabalho e o esforço investidos hoje venham a contar como recursos quando chegar a hora da recompensa. Está longe de ser certo, além disso, que os prêmios que hoje parecem atraentes serão tão desejáveis quando finalmente forem conquistados. Todos aprendemos com amargas experiências que os prêmios podem se tornar riscos de uma hora para outra e prêmios resplandecentes podem se tornar marcas de vergonha. As modas vêm e vão com velocidade estonteante, todos os objetos de desejo se tornam obsoletos, repugnantes e de mau-gosto antes que tenhamos tempo de aproveitá-los. Estilos de vida que são “chiques” hoje serão amanhã alvos do ridículo. Citando Bourdieu uma vez mais: “Os que deploram o cinismo que marca os homens e mulheres de nosso tempo não deveriam deixar de relacioná-lo às condições sociais e econômicas que o favorecem…” Quando Roma pega fogo e há muito pouco ou nada que se possa fazer para controlar o incêndio, tocar violino não parece mais bobo nem menos adequado do que fazer qualquer outra coisa.

Condições econômicas e sociais precárias treinam homens e mulheres (ou os fazem aprender pelo caminho mais difícil) a perceber o mundo como um contêiner cheio de objetos descartáveis, objetos para uma só utilização; o mundo inteiro — inclusive outros seres humanos. Além disso, o mundo parece ser constituído de “caixas pretas”, hermeticamente fechadas, e que jamais deverão ser abertas pelos usuários, nem consertadas quando quebram. Os mecânicos de automóveis de hoje não são treinados para consertar motores quebrados ou danificados, mas apenas para retirar e jogar fora as peças usadas ou defeituosas e substituí-las por outras novas e seladas, diretamente da prateleira. Eles não têm a menor ideia da estrutura interna das “peças sobressalentes” (uma expressão que diz tudo), do modo misterioso como funcionam; não consideram esse entendimento e a habilidade que o acompanha como sua responsabilidade ou como parte de seu campo de competência. Como na oficina mecânica, assim também na vida em geral: cada “peça” é “sobressalente” e substituível, e assim deve ser. Por que gastar tempo com consertos que consomem trabalho, se não é preciso mais que alguns momentos para jogar fora a peça danificada e colocar outra em seu lugar?

Num mundo em que o futuro é, na melhor das hipóteses, sombrio e nebuloso, porém mais provavelmente cheio de riscos e perigos, colocar-se objetivos distantes, abandonar o interesse privado para aumentar o poder do grupo e sacrificar o presente em nome de uma felicidade futura não parecem uma proposição atraente, ou mesmo razoável. Qualquer oportunidade que não for aproveitada aqui e agora é uma oportunidade perdida; não a aproveitar é assim imperdoável e não há desculpa fácil para isso, e nem justificativa. Como os compromissos de hoje são obstáculos para as oportunidades de amanhã, quanto mais forem leves e superficiais, menor o risco de prejuízos. “Agora” é a palavra-chave da estratégia de vida, ao que quer que essa estratégia se aplique e independente do que mais possa sugerir. Num mundo inseguro e imprevisível, o viajante esperto fará o possível para imitar os felizes globais que viajam leves; e não derramarão muitas lágrimas ao se livrar de qualquer coisa que atrapalhe os movimentos. Raramente param por tempo suficiente para imaginar que os laços humanos não são como peças de automóvel — que raramente vêm prontos, que tendem a se deteriorar e desintegrar facilmente se ficarem hermeticamente fechados e que não são fáceis de substituir quando perdem a utilidade.

E assim a política de “precarização” conduzida pelos operadores dos mercados de trabalho acaba sendo apoiada e reforçada pelas políticas de vida, sejam elas adotadas deliberadamente ou apenas por falta de alternativas. Ambas convergem para o mesmo resultado: o enfraquecimento e decomposição dos laços humanos, das comunidades e das parcerias. Compromissos do tipo “até que a morte nos separe” se transformam em contratos do tipo “enquanto durar a satisfação”, temporais e transitórios por definição, por projeto e por impacto pragmático — e assim passíveis de ruptura unilateral, sempre que um dos parceiros perceba melhores oportunidades e maior valor fora da parceria do que em tentar salvá-la a qualquer — incalculável — custo.

Em outras palavras, laços e parcerias tendem a ser vistos e tratados como coisas destinadas a serem consumidas, e não produzidas; estão sujeitas aos mesmos critérios de avaliação de todos os outros objetos de consumo. No mercado de consumo, os produtos duráveis são em geral oferecidos por um “período de teste” a devolução do dinheiro é prometida se o comprador estiver menos que totalmente satisfeito. Se o participante numa parceria é “concebido” em tais termos, então não é mais tarefa para ambos os parceiros “fazer com que a relação funcione”, “na riqueza e na pobreza”, na saúde e na doença, trabalhar a favor nos bons e maus momentos, repensar, se necessário, as próprias preferências, conceder e fazer sacrifícios em favor da uma união duradoura. É, em vez disso, uma questão de obter satisfação de um produto pronto para o consumo; se o prazer obtido não corresponder ao padrão prometido e esperado, ou se a novidade se acabar junto com o gozo, pode-se entrar com a ação de divórcio, com base nos direitos do consumidor. Não há qualquer razão para ficar com um produto inferior ou envelhecido em vez de procurar outro “novo e aperfeiçoado” nas lojas.

O que se segue é que a suposta transitoriedade das parcerias tende a se tornar uma profecia autocumprida. Se o laço humano, como todos os outros objetos de consumo, não é alguma coisa a ser trabalhada com grande esforço e sacrifício ocasional, mas algo de que se espera satisfação imediata, instantânea, no momento da compra — e algo que se rejeita se não satisfizer, a ser usada apenas enquanto continuar a satisfazer (e nem um minuto além disso) —, então não faz sentido “jogar dinheiro bom em cima de dinheiro ruim”, tentar cada vez mais, e menos ainda sofrer com o desconforto e o embaraço para salvar a parceria. Mesmo um pequeno problema pode causar a ruptura da parceria; desacordos triviais se tornam conflitos amargos, pequenos atritos são tomados como sinais de incompatibilidade essencial e irreparável. Como o sociólogo norte-americano W.I. Thomas teria dito, se tivesse testemunhado essa situação: se as pessoas supõem que seus compromissos são temporários e até segunda ordem, esses compromissos tendem a se tornar temporários em consequência das próprias ações dessas pessoas.

A precariedade da existência social inspira uma percepção do mundo em volta como um agregado de produtos para consumo imediato. Mas a percepção do mundo, com seus habitantes, como um conjunto de itens de consumo, faz da negociação de laços humanos duradouros algo excessivamente difícil. Pessoas inseguras tendem a ser irritáveis; são também intolerantes com qualquer coisa que funcione como obstáculo a seus desejos; e como muitos desses desejos serão de qualquer forma frustrados, não há escassez de coisas e pessoas que sirvam de objeto a essa intolerância. Se a satisfação instantânea é a única maneira de sufocar o sentimento de insegurança (sem jamais saciar a sede de segurança e certeza), não há razão evidente para ser tolerante em relação a alguma coisa ou pessoa que não tenha óbvia relevância para a busca da satisfação, e menos ainda em relação a alguma coisa ou pessoa complicada ou relutante em trazer a satisfação que se busca.

Há ainda outra ligação entre a “consumização” de um mundo precário e a desintegração dos laços humanos. Ao contrário da produção, o consumo é uma atividade solitária, irremediavelmente solitária, mesmo nos momentos em que se realiza na companhia de outros. Esforços produtivos (em geral de longo prazo) requerem cooperação mesmo quando apenas demandam a adição de força muscular bruta: se carregar um pesado tronco de um lugar para outro requer uma hora a oito homens, não se segue que um homem o possa fazer em oito (ou qualquer número de) horas. No caso de tarefas mais complexas que envolvem a divisão do trabalho e demandam diversas habilidades especializadas que não se encontram em uma só pessoa, a necessidade de cooperação é ainda mais óbvia; sem ela, o produto não teria chance de surgir. É a cooperação que transforma os esforços diversos e dispersos em esforços produtivos. No caso do consumo, porém, a cooperação não só é desnecessária como é inteiramente supérflua. O que é consumido o é individualmente, mesmo que num saguão repleto.”

 

 

“A passagem do capitalismo pesado ao leve e da modernidade sólida à fluida ou liquefeita é o quadro em que a história do movimento dos trabalhadores foi inscrita. Ela também vai longe para dar sentido às notórias reviravoltas dessa história. Não seria nem razoável nem particularmente esclarecedor dar conta dos lúgubres dilemas em que o movimento dos trabalhadores caiu na parte “avançada” (no sentido “modernizante”) do mundo, em relação à mudança na disposição do público — tenha sido ela produzida pelo impacto debilitante dos meios de comunicação de massa, por uma conspiração dos anunciantes, pela sedutora atração da sociedade do consumo ou pelos efeitos soporíferos da sociedade do espetáculo e do entretenimento. Culpar os atabalhoados ou ambíguos “políticos trabalhistas” também não ajuda. Os fenômenos invocados nessas explicações não são imaginários, mas não funcionariam como explicações se não fosse pelo fato de que o contexto da vida, o ambiente social em que as pessoas (raramente por sua própria escolha) conduzem os afazeres da vida, mudou radicalmente desde o tempo em que os trabalhadores que se amontoavam nas fábricas de produção em larga escala se uniam para lutar por termos mais humanos e compensadores de venda de seu trabalho, e os teóricos e práticos do movimento dos trabalhadores sentiam na solidariedade destes o desejo, informe e ainda não articulado (mas inato e a longo prazo avassalador), de uma “boa sociedade” que efetivaria os princípios universais da justiça.”

 

 

Parece haver pouca esperança de resgatar os serviços de certeza, segurança e garantias do Estado. A liberdade da política do Estado é incansavelmente erodida pelos novos poderes globais providos das terríveis armas da extraterritorialidade, velocidade de movimento e capacidade de evasão e fuga; a retribuição pela violação do novo estatuto global é rápida e impiedosa. De fato, a recusa a participar do jogo nas novas regras globais é o crime a ser mais impiedosamente punido, crime que o poder do Estado, preso ao solo por sua própria soberania territorialmente definida, deve impedir-se de cometer e evitar a qualquer custo.

Muitas vezes a punição é econômica. Governos insubordinados, culpados de políticas protecionistas ou provisões públicas generosas para os setores “economicamente dispensáveis” de suas populações e de não deixar o país à mercê dos “mercados financeiros globais” e do “livre comércio global”, têm seus empréstimos recusados e negada a redução de suas dívidas; as moedas locais são transformadas em leprosas globais, pressionadas à desvalorização e sofrem ataques especulativos; as ações locais caem nas bolsas globais; o país é isolado por sanções econômicas e passa a ser tratado por parceiros comerciais passados e futuros como um pária global; os investidores globais cortam suas perdas antecipadas, embalam seus pertences e retiram seus ativos, deixando que as autoridades locais limpem os resíduos e resgatem as vítimas.

Ocasionalmente, no entanto, a punição não se confina a “medidas econômicas”. Governos particularmente obstinados (mas não fortes o bastante para resistir por muito tempo) recebem uma lição exemplar que tem por objetivo advertir e atemorizar seus imitadores potenciais. Se a demonstração diária e rotineira da superioridade das forças globais não for suficiente para forçar o Estado a ver a razão e cooperar com a nova “ordem mundial”, a força militar é exercida: a superioridade da velocidade sobre a lentidão, da capacidade de escapar sobre a necessidade de engajar-se no combate, da extraterritorialidade sobre a localidade, tudo isso se manifesta espetacularmente com a ajuda, desta vez, de forças armadas especializadas em táticas de atacar e correr e a estrita separação entre “vidas a serem salvas” e vidas que não merecem socorro.”

 

 

Citando a opinião do poeta tcheco Jan Skácel sobre a condição do poeta (que, nas palavras de Skácel, apenas descobre os versos que “estiveram sempre, profundamente, lá”), Milan Kundera comenta (em L’Art du roman, 1986): “Escrever significa para o poeta romper a muralha atrás da qual se esconde alguma coisa que ‘sempre esteve lá’.” Sob esse aspecto, a tarefa do poeta não é diferente da obra da história, que também descobre, e não inventa: a história, como os poetas, descobre, em sempre novas situações, possibilidades humanas antes ocultas.

O que a história faz corriqueiramente é um desafio, uma tarefa e uma missão para o poeta. Para elevar-se a essa missão, o poeta deve recusar servir verdades conhecidas de antemão e bem usadas, verdades já “óbvias” porque trazidas à superfície e aí deixadas a flutuar. Não importa que essas verdades “supostas de antemão” sejam classificadas como revolucionárias ou dissidentes, cristãs ou ateias — ou quão corretas e apropriadas, nobres e justas sejam ou tenham sido proclamadas. Qualquer que seja sua denominação, essas “verdades” não são as “coisas ocultas” que o poeta é chamado a desvelar; são antes partes da muralha que é missão do poeta destruir. Os porta-vozes do óbvio, do auto-evidente e “daquilo em que todos acreditamos” são falsos poetas, diz Kundera.

Mas o que tem que ver a vocação do poeta com a do sociólogo? Nós sociólogos raramente escrevemos poemas. (Alguns de nós que o fazemos tomamos uma licença, para a atividade de escrever, de nossos afazeres profissionais.) E no entanto, se não quisermos partilhar do destino dos “falsos poetas” e não quisermos ser “falsos sociólogos”, devemos nos aproximar tanto quanto os verdadeiros poetas das possibilidades humanas ainda ocultas; e por essa razão devemos perfurar as muralhas do óbvio e do evidente, da moda ideológica do dia cuja trivialidade é tomada como prova de seu sentido. Demolir tais muralhas é vocação tanto do sociólogo quanto do poeta, e pela mesma razão: o emparedamento das possibilidades desvirtua o potencial humano ao mesmo tempo em que obstrui a revelação de seu blefe.

Talvez o verso que o poeta procura tenha Estado “sempre lá”. Não se pode estar tão certo, porém, sobre o potencial humano descoberto pela história. Será que os humanos — os que fazem e os que foram feitos, os heróis e as vítimas da história — sempre carregarão consigo o mesmo volume de possibilidades à espera do momento certo para serem reveladas? Ou a oposição entre descoberta e criação é nula e vazia e não faz sentido? Como a história é o processo infindável da criação humana, não seria ela pela mesma razão o processo infindável do autodescobrimento humano? A propensão para revelar/criar sempre novas possibilidades, para expandir o inventário das possibilidades já descobertas e tornadas reais, não é o único potencial humano que sempre “esteve lá”, e sempre estará? Saber se a nova possibilidade foi criada ou “meramente” revelada pela história é sem dúvida um estímulo bem-vindo para mentes escolásticas; quanto à própria história, ela não espera pela resposta e pode seguir sem ela.”

 

 

“Indivíduos frágeis”, destinados a conduzir suas vidas numa “realidade porosa”, sentem-se como que patinando sobre gelo fino; e “ao patinar sobre gelo fino”, observou Ralph Waldo Emerson em seu ensaio “Prudence”, “nossa segurança está em nossa velocidade”. Indivíduos, frágeis ou não, precisam de segurança, anseiam por segurança, buscam a segurança e assim tentam, ao máximo, fazer o que fazem com a máxima velocidade. Estando entre corredores rápidos, diminuir a velocidade significa ser deixado para trás; ao patinar em gelo fino, diminuir a velocidade também significa a ameaça real de afogar-se. Portanto, a velocidade sobe para o topo da lista dos valores de sobrevivência.

A velocidade, no entanto, não é propícia ao pensamento, pelo menos ao pensamento de longo prazo. O pensamento demanda pausa e descanso, “tomar seu tempo”, recapitular os passos já dados, examinar de perto o ponto alcançado e a sabedoria (ou imprudência, se for o caso) de o ter alcançado. Pensar tira nossa mente da tarefa em curso, que requer sempre a corrida e a manutenção da velocidade. E na falta do pensamento, o patinar sobre o gelo fino que é uma fatalidade para todos os indivíduos frágeis na realidade porosa pode ser equivocadamente tomado como seu destino.

Tomar a fatalidade por destino, como insistia Max Scheler em sua Ordo amoris, é um erro grave: “O destino do homem não é uma fatalidade … A suposição de que fatalidade e destino são a mesma coisa merece ser chamada de fatalismo.” O fatalismo é um erro do juízo, pois de fato a fatalidade “tem uma origem natural e basicamente compreensível”. Além disso, embora não seja uma questão de livre escolha, e particularmente de livre escolha individual, a fatalidade “tem origem na vida de um homem ou de um povo”. Para ver tudo isso, para notar a diferença e a distância entre fatalidade e destino, e escapar à armadilha do fatalismo, são necessários recursos difíceis de obter quando se patina sobre gelo fino: tempo para pensar, e distanciamento para uma visão de conjunto. “A imagem de nosso destino”, adverte Scheler, “só nos abandona quando lhe damos as costas”. Mas o fatalismo é uma atitude que se auto-referenda: faz com que o “voltar as costas”, essa conditio sine qua non do pensamento, pareça inútil e indigno de ser tentado.

Tomar distância, tomar tempo — a fim de separar destino e fatalidade, de emancipar o destino da fatalidade, de torná-lo livre para confrontar a fatalidade e desafiá-la: essa é a vocação da sociologia. E é o que os sociólogos podem fazer caso se esforcem consciente, deliberada e honestamente para refundir a vocação a que atendem — sua fatalidade — em seu destino. (...)

Todos os especialistas lidam com problemas práticos e todo conhecimento especializado se dedica à sua solução, e a sociologia é um ramo do conhecimento especializado cujo problema prático a resolver é o esclarecimento que tem por objetivo a compreensão humana. (...)

Compreender aquilo a que estamos fadados significa estarmos conscientes de que isso é diferente de nosso destino. E compreender aquilo a que estamos fadados é conhecer a rede complexa de causas que provocaram essa fatalidade e sua diferença daquele destino. Para operar no mundo (por contraste a ser “operado” por ele) é preciso entender como o mundo opera.

O tipo de esclarecimento que a sociologia é capaz de dar se endereça a indivíduos que escolhem livremente e têm por objetivo aperfeiçoar e reforçar sua liberdade de escolha. (...)

Citando de Le délabrement de l’Occident, de Cornelius Castoriadis,

uma sociedade autônoma, uma sociedade verdadeiramente democrática, é uma sociedade que questiona tudo o que é pré-determinado e assim libera a criação de novos significados. Em tal sociedade, todos os indivíduos são livres para escolher criar para suas vidas os significados que quiserem (e puderem).

A sociedade é verdadeiramente autônoma quando “sabe, tem que saber, que não há significados ‘assegurados’, que vive na superfície do caos, que ela própria é um caos em busca de forma, mas uma forma que nunca é fixada de uma vez por todas”. A falta de significados garantidos — de verdades absolutas, de normas de conduta pré-ordenadas, de fronteiras pré-traçadas entre o certo e o errado, de regras de ação garantidas — é a conditio sine qua non de, ao mesmo tempo, uma sociedade verdadeiramente autônoma e indivíduos verdadeiramente livres; a sociedade autônoma e a liberdade de seus membros se condicionam mutuamente. A segurança que a democracia e a individualidade podem alcançar depende não de lutar contra a contingência e a incerteza da condição humana, mas de reconhecer e encarar de frente suas consequências.”

Modernidade Líquida (Parte III), de Zygmunt Bauman

Editora: Zahar

ISBN: 978-65-5979-000-5

Tradução: Plínio Dentzien

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 280

Sinopse: Ver Parte I



“Qualquer que seja o caso, no par exemplo-autoridade a parte do exemplo é a mais importante e mais solicitada. As celebridades com autoridade suficiente para fazer com que o que dizem seja digno de atenção mesmo antes que o digam são muito poucas para estrelar os inumeráveis programas de entrevistas da TV (e raramente aparecem nos mais populares deles, como o de Oprah e o de Trisha), mas isso não impede que esses programas sejam uma compulsão diária para milhões de homens e mulheres ávidos por aconselhamento. A autoridade da pessoa que compartilha sua história de vida pode fazer com que os espectadores observem o exemplo com atenção e aumenta os índices de audiência. Mas a falta de autoridade de quem conta sua vida, o fato de ela não ser uma celebridade, sua anonimidade, pode fazer com que o exemplo seja mais fácil de seguir e assim ter um potencial adicional próprio. As não-celebridades, os homens e mulheres “comuns”, “como você e eu”, que aparecem na telinha apenas por um momento passageiro (não mais do que o necessário para contar a história e receber o aplauso merecido, assim como alguma crítica por esconder partes picantes ou gastar tempo demais com as partes desinteressantes) são tão desvalidas e infelizes quanto os espectadores, sofrendo o mesmo tipo de golpes e buscando desesperadamente uma saída honrosa e um caminho promissor para uma vida mais feliz. E assim, o que elas fizeram eu também posso fazer; talvez até melhor. Posso aprender alguma coisa útil tanto com suas vitórias quanto com suas derrotas.

Seria arrogante, além de equivocado, condenar ou ridicularizar o vício dos programas de entrevistas como efeito da eterna avidez humana pela fofoca e da “curiosidade barata”. Num mundo repleto de meios, mas notoriamente pouco claro sobre os fins, as lições retiradas dos programas de entrevistas respondem a uma demanda genuína e têm valor pragmático inegável, pois já sabemos que depende de nós mesmos fazer (e continuar a fazer) o melhor possível de nossas vidas; e como também sabemos que quaisquer recursos requeridos por tal empreendimento só podem ser procurados e encontrados entre nossas próprias habilidades, coragem e determinação, é vital saber como agem outras pessoas diante de desafios semelhantes. Podem ter descoberto estratagemas admiráveis que não percebemos; podem ter explorado partes da questão a que não demos atenção ou em que não nos aprofundamos o suficiente.

Essa não é, porém, a única vantagem. Como dito acima, nomear o problema é em si uma tarefa assustadora, e sem esse nome para o sentimento de inquietação ou infelicidade não há esperança de cura. No entanto, embora o sofrimento seja pessoal e privado, uma “linguagem privada” é uma incongruência. O que quer que seja nomeado, inclusive os sentimentos mais secretos, pessoais e íntimos, só o é propriamente se os nomes escolhidos forem de domínio público, se pertencerem a uma linguagem compartilhada e pública e forem compreendidos pelas pessoas que se comunicam nessa linguagem. Os programas de entrevistas são lições públicas de uma linguagem ainda-não-nascida-mas-prestes-a-nascer. Fornecem as palavras que poderão ser utilizadas para “nomear o problema” — para expressar, em modos publicamente legíveis, o que até agora era inefável e assim permaneceria sem tais palavras.

 Esse é, em si, um ganho da maior importância — mas há ainda outros. Nos programas de entrevistas, palavras e frases que se referem a experiências consideradas íntimas e, portanto, inadequadas como tema de conversa são pronunciadas em público — para aprovação, divertimento e aplauso universais. Pela mesma razão, os programas de entrevistas legitimam o discurso público sobre questões privadas. Tornam o indizível dizível, o vergonhoso, decente, e transformam o feio segredo em questão de orgulho. Até certo ponto são rituais de exorcismo — e muito eficazes. Graças aos programas de entrevistas, posso falar de agora em diante abertamente sobre coisas que eu pensava (equivocadamente, agora vejo) infames e infamantes e, portanto, destinadas a permanecer secretas e a serem sofridas em silêncio. Como minha confissão não é mais secreta, ganho mais que o conforto da absolvição: não preciso mais me sentir envergonhado ou temeroso de ser desprezado, condenado por impudência ou relegado ao ostracismo. Essas são, afinal, as coisas de que as pessoas falam compungidas na presença de milhões de espectadores. Seus problemas privados, e assim também meus próprios problemas, tão parecidos aos deles, são adequados para discussão pública. Não que se tornem questões públicas; entram na discussão precisamente em sua condição de questões privadas e, por mais que sejam discutidas, como os leopardos, também não mudam suas pintas. Ao contrário, são reafirmadas como privadas e emergirão da exposição pública reforçadas em seu caráter privado. Afinal, todos os que falaram concordaram que, na medida em que foram experimentadas e vividas privadamente, é assim que essas coisas devem ser confrontadas e resolvidas.

Muitos pensadores influentes (sendo Jürgen Habermas o mais importante deles) advertem sobre a possibilidade de que a “esfera privada” seja invadida, conquistada e colonizada pela “pública”. Voltando à memória recente da era que inspirou as distopias como as de Huxley ou de Orwell, pode-se compreender tal temor. As premonições parecem, no entanto, surgir da leitura do que acontece diante de nossos olhos com as lentes erradas. De fato, a tendência oposta à advertência é a que parece estar se operando — a colonização da esfera pública por questões anteriormente classificadas como privadas e inadequadas à exposição pública.

O que está ocorrendo não é simplesmente outra renegociação da fronteira notoriamente móvel entre o privado e o público. O que parece estar em jogo é uma redefinição da esfera pública como um palco em que dramas privados são encenados, publicamente expostos e publicamente assistidos. A definição corrente de “interesse público”, promovida pela mídia e amplamente aceita por quase todos os setores da sociedade, é o dever de encenar tais dramas em público e o direito do público de assistir à encenação. As condições sociais que fazem com que tal desenvolvimento não seja surpreendente e pareça mesmo “natural” devem ficar evidentes à luz do argumento precedente; mas as consequências desse desenvolvimento ainda não foram inteiramente exploradas. Podem ter maior alcance do que em geral se aceita.

A consequência que pode ser considerada mais interessante é o desaparecimento da “política como a conhecemos” — da Política com P maiúsculo, a atividade encarregada de traduzir problemas privados em questões públicas (e vice-versa). É o esforço dessa tradução que hoje está se detendo. Os problemas privados não se tornam questões públicas pelo fato de serem ventilados em público; mesmo sob o olhar público não deixam de ser privados, e o que parece resultar de sua transferência para a cena pública é a expulsão de todos os outros problemas “não-privados” da agenda pública. O que cada vez mais é percebido como “questões públicas” são os problemas privados de figuras públicas. A tradicional questão da política democrática — quão útil ou prejudicial para o bem-estar de seus súditos/eleitores é o modo como as figuras públicas exercitam seus deveres públicos — foi pelo ralo, sinalizando para que o interesse público na boa sociedade, na justiça pública ou na responsabilidade coletiva pelo bem-estar individual a siga no caminho do esquecimento.

Atingido por uma série de “escândalos” (isto é, exposição pública de frouxidão moral nas vidas privadas de figuras públicas), Tony Blair (no Guardian de 11.1.1999) se queixava de que “a política se reduziu a uma coluna de mexericos” e conclamava a audiência a enfrentar a alternativa: “Ou teremos a pauta de notícias dominada pelo escândalo, pelo mexerico e pela trivialidade, ou pelas coisas que realmente importam.”12 Tais palavras não podem senão surpreender, vindo, como vêm, de um político que consulta diariamente “grupos focais” na esperança de ser regularmente informado sobre os sentimentos da base e “as coisas que realmente importam” na opinião de seus eleitores, e cujo modo de manejar as coisas que realmente importam para as condições em que seus eleitores vivem é ela mesma um fator importante no tipo de vida responsável pela “redução da política a uma coluna de mexericos” que ele lamenta.

As condições de vida em questão levam os homens e mulheres a buscar exemplos, e não líderes. Levam-nos a esperar que as pessoas sob os refletores — todas e qualquer uma delas — mostrem como “as coisas que importam” (agora confinadas a suas próprias quatro paredes e aí trancadas) são feitas. Afinal, eles ouvem diariamente que o que está errado em suas vidas provêm de seus próprios erros, foi sua própria culpa e deve ser consertado com suas próprias ferramentas e por seus próprios esforços. Não é, portanto, por acaso que supõem que a maior utilidade (talvez a única) das pessoas que alegam “estar por dentro” é mostrar-lhes como manejar as ferramentas e fazer o esforço. Ouviram repetidamente dessas “pessoas por dentro” que ninguém mais faria o que eles mesmos deveriam fazer, cada um por si. Por que, então, alguém ficaria intrigado se o que atrai a atenção e provoca o interesse de tantos homens e mulheres é o que os políticos (e outras celebridades) fazem em privado? Ninguém entre os “grandes e poderosos”, nem mesmo a “opinião pública” ofendida, propôs o impeachment de Bill Clinton por ter abolido a previdência enquanto “questão federal” — e, portanto, em termos práticos, anulado a promessa coletiva e o dever de proteger os indivíduos contra os movimentos do destino, notórios por seu hábito desagradável de administrar individualmente seus golpes.

No espetáculo colorido das celebridades da telinha e das manchetes, os homens e mulheres de Estado não ocupam uma posição privilegiada. Não importa muito qual a razão da “notoriedade” que, segundo Boorstin, faz com que uma celebridade seja uma celebridade. Um lugar sob os refletores é um modo de ser por si mesmo, que estrelas do cinema, jogadores de futebol e ministros de governo compartilham em igual medida. Um dos requisitos que se aplica a todos é que se espera — “eles têm o dever público” — que confessem “para consumo público” e ponham suas vidas privadas à disposição, e que não reclamem se outros o fizerem por eles. Uma vez expostas, essas vidas privadas podem se mostrar pouco esclarecedoras ou decididamente pouco atraentes: nem todos os segredos privados contêm lições que outras pessoas poderiam considerar úteis. Os desapontamentos, por mais numerosos que sejam, dificilmente mudarão os hábitos confessionais ou dissiparão o apetite pelas confissões; afinal — repito — o modo como as pessoas individuais definem individualmente seus problemas individuais e os enfrentam com habilidades e recursos individuais é a única “questão pública” remanescente e o único objeto de “interesse público”. E enquanto isso for assim, espectadores e ouvintes treinados para confiar em seu próprio julgamento e esforço na busca de esclarecimento e orientação continuarão a olhar para as vidas privadas de outros “como eles” com o mesmo zelo e esperança com que poderiam ter olhado para as lições, homilias e sermões de visionários e pregadores quando acreditavam que as misérias privadas só poderiam ser aliviadas ou curadas “reunindo as cabeças”, “cerrando fileiras” e “em ordem unida”.”

12. Um corolário apropriado e perspicaz do espanto de Tony Blair aparece na carta de Dr. Spencer Fitz-Gibbon ao Guardian: “É interessante que Robin Cook seja um homem mau agora que sua promiscuidade extramatrimonial foi revelada. No entanto, não faz muito tempo ele esteve envolvido na venda de equipamento à ditadura na Indonésia, um regime que massacrou 200 mil pessoas no Timor Leste ocupado. Se os meios de comunicação e o público britânicos se sentissem tão ultrajados em relação ao genocídio quanto ao sexo, o mundo seria um lugar muito mais seguro.”

 

 

“Exemplos e receitas são atraentes enquanto não-testados. Mas dificilmente algum deles cumpre o que promete — virtualmente, cada um fica aquém da realização que dizia trazer. Mesmo que algum deles mostrasse funcionar do modo esperado, a satisfação não duraria muito, pois no mundo dos consumidores as possibilidades são infinitas, e o volume de objetivos sedutores à disposição nunca poderá ser exaurido. As receitas para a boa vida e os utensílios que a elas servem têm “data de validade”, mas muitos cairão em desuso bem antes dessa data, apequenados, desvalorizados e destituídos de fascínio pela competição de ofertas “novas e aperfeiçoadas”. Na corrida dos consumidores, a linha de chegada sempre se move mais veloz que o mais veloz dos corredores; mas a maioria dos corredores na pista tem músculos muito flácidos e pulmões muito pequenos para correr velozmente. E assim, como na Maratona de Londres, pode-se admirar e elogiar os vencedores, mas o que verdadeiramente conta é permanecer na corrida até o fim. Pelo menos a Maratona de Londres tem um fim, mas a outra corrida — para alcançar a promessa fugidia e sempre distante de uma vida sem problemas —, uma vez iniciada, nunca termina: comecei, mas posso não terminar.

Então é a continuação da corrida, a satisfatória consciência de permanecer na corrida, que se torna o verdadeiro vício — e não algum prêmio à espera dos poucos que cruzam a linha de chegada. Nenhum dos prêmios é suficientemente satisfatório para destituir os outros prêmios de seu poder de atração, e há tantos outros prêmios que acenam e fascinam porque (por enquanto, sempre por enquanto, desesperadamente por enquanto) ainda não foram tentados. O desejo se torna seu próprio propósito, e o único propósito não-contestado e inquestionável. O papel de todos os outros propósitos, seguidos apenas para serem abandonados na próxima rodada e esquecidos na seguinte, é o de manter os corredores correndo — como “marcadores de passo”, corredores contratados pelos empresários das corridas para correr poucas rodadas apenas, mas na máxima velocidade que puderem, e então retirar-se tendo puxado os outros corredores para o nível de quebra de recordes, ou como os foguetes auxiliares que, tendo levado a espaçonave à velocidade necessária, são ejetados para o espaço e se desintegram. Num mundo em que a gama de fins é ampla demais para o conforto e sempre mais ampla que a dos meios disponíveis é ao volume e eficácia dos meios que se deve atender com mais cuidado. Permanecer na corrida é o mais importante dos meios, de fato o meta-meio: o meio de manter viva a confiança em outros meios e a demanda por outros meios.

 O arquétipo dessa corrida particular em que cada membro de uma sociedade de consumo está correndo (tudo numa sociedade de consumo é uma questão de escolha, exceto a compulsão da escolha — a compulsão que evolui até se tornar um vício e assim não é mais percebida como compulsão) é a atividade de comprar. Estamos na corrida enquanto andamos pelas lojas, e não são só as lojas ou supermercados ou lojas de departamentos ou aos “templos do consumo” de George Ritzer que visitamos. Se “comprar” significa esquadrinhar as possibilidades, examinar, tocar, sentir, manusear os bens à mostra, comparando seus custos com o conteúdo da carteira ou com o crédito restante nos cartões de crédito, pondo alguns itens no carrinho e outros de volta às prateleiras — então vamos às compras tanto nas lojas quanto fora delas; vamos às compras na rua e em casa, no trabalho e no lazer, acordados e em sonhos. O que quer que façamos e qualquer que seja o nome que atribuamos à nossa atividade, é como ir às compras, uma atividade feita nos padrões de ir às compras. O código em que nossa “política de vida” está escrito deriva da pragmática do comprar.

Não se compra apenas comida, sapatos, automóveis ou itens de mobiliário. A busca ávida e sem fim por novos exemplos aperfeiçoados e por receitas de vida é também uma variedade do comprar, e uma variedade da máxima importância, seguramente, à luz das lições gêmeas de que nossa felicidade depende apenas de nossa competência pessoal mas que somos (como diz Michael Parenti13) pessoalmente incompetentes, ou não tão competentes como deveríamos, e poderíamos, ser se nos esforçássemos mais. Há muitas áreas em que precisamos ser mais competentes, e cada uma delas requer uma “compra”. “Vamos às compras” pelas habilidades necessárias a nosso sustento e pelos meios de convencer nossos possíveis empregadores de que as temos; pelo tipo de imagem que gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem que somos o que vestimos; por maneiras de fazer novos amigos que queremos e de nos desfazer dos que não mais queremos; pelos modos de atrair atenção e de nos escondermos do escrutínio; pelos meios de extrair mais satisfação do amor e pelos meios de evitar nossa “dependência” do parceiro amado ou amante; pelos modos de obter o amor do amado e o modo menos custoso de acabar com uma união quando o amor desapareceu e a relação deixou de agradar; pelo melhor meio de poupar dinheiro para um futuro incerto e o modo mais conveniente de gastar dinheiro antes de ganhá-lo; pelos recursos para fazer mais rápido o que temos que fazer e por coisas para fazer a fim de encher o tempo então disponível; pelas comidas mais deliciosas e pela dieta mais eficaz para eliminar as consequências de comê-las; pelos mais poderosos sistemas de som e as melhores pílulas contra a dor de cabeça. A lista de compras não tem fim. Porém por mais longa que seja a lista, a opção de não ir às compras não figura nela. E a competência mais necessária em nosso mundo de fins ostensivamente infinitos é a de quem vai às compras hábil e infatigavelmente.

O consumismo de hoje, porém, não diz mais respeito à satisfação das necessidades — nem mesmo as mais sublimes, distantes (alguns diriam, não muito corretamente, “artificiais”, “inventadas”, “derivativas”) necessidades de identificação ou a auto-segurança quanto à “adequação”. Já foi dito que o spiritus movens da atividade consumista não é mais o conjunto mensurável de necessidades articuladas, mas o desejo — entidade muito mais volátil e efêmera, evasiva e caprichosa, e essencialmente não-referencial que as “necessidades”, um motivo autogerado e autopropelido que não precisa de outra justificação ou “causa”. A despeito de suas sucessivas e sempre pouco duráveis reificações, o desejo tem a si mesmo como objeto constante, e por essa razão está fadado a permanecer insaciável qualquer que seja a altura atingida pela pilha dos outros objetos (físicos ou psíquicos) que marcam seu passado.”

13. Ver Michael Parenti, Inventing Reality: The Politics of the Mass Media, Nova York: St. Martin’s Press, 1986, p.65. Nas palavras de Parenti, a mensagem subjacente aos massivos e ubíquos comerciais, o que quer que tentem vender, é que “a fim de viver bem e de maneira apropriada, os consumidores precisam que os produtores corporativos os guiem”. De fato, os produtores corporativos podem contar com um exército de conselheiros, assessores pessoais e escritores de livros de auto-ajuda para martelar a mesma mensagem de incompetência pessoal.

 

 

“A escolha do consumidor é hoje um valor em si mesma; a ação de escolher é mais importante que a coisa escolhida, e as situações são elogiadas ou censuradas, aproveitadas ou ressentidas, dependendo da gama de escolhas que exibem.

A vida de quem escolhe será sempre uma bênção mista, porém, mesmo se (ou talvez porque) a gama de escolhas for ampla e o volume das experiências possíveis parecer infinito. Essa vida está assolada pelos riscos: a incerteza está destinada a ser para sempre a desagradável mosca na sopa da livre escolha. Além disso (e a adição é importante) o equilíbrio entre a alegria e a tristeza do viciado depende de fatores outros que a mera gama de escolhas à disposição. Nem todas elas são realistas; e a proporção de escolhas realistas não é função do número de itens à disposição, mas do volume de recursos à disposição de quem escolhe.

Quando os recursos são abundantes pode-se sempre esperar, certo ou errado, estar “por cima” ou “à frente” das coisas, ser capaz de alcançar os alvos que se movem com rapidez; pode-se mesmo estar inclinado a subestimar os riscos e a insegurança e supor que a profusão de escolhas compensa de sobra o desconforto de viver no escuro, de nunca estar seguro sobre quando e onde termina a luta, se é que termina. É a própria corrida que entusiasma, e, por mais cansativa que seja, a pista é um lugar mais agradável que a linha de chegada. É a essa situação que se aplica o velho provérbio segundo o qual “viajar com esperança é melhor do que chegar”. A chegada, o fim definitivo de toda escolha, parece muito mais tediosa e consideravelmente mais assustadora do que a perspectiva de que as escolhas de amanhã anulem as de hoje. Só o desejar é desejável — quase nunca sua satisfação.

Esperar-se-ia que o entusiasmo pela corrida diminuísse com a força dos músculos — que o amor pelo risco e a aventura se apagaria com a diminuição dos recursos e com a chance de escolher uma opção verdadeiramente desejável cada vez mais nebulosa. Essa expectativa está fadada a ser refutada, porém, porque os corredores são muitos e diferentes, mas a pista é a mesma para todos. Como diz Jeremy Seabrook,

os pobres não vivem numa cultura separada da dos ricos. Eles devem viver no mesmo mundo que foi planejado em proveito daqueles que têm dinheiro. E sua pobreza é agravada pelo crescimento econômico, da mesma forma que é intensificada pela recessão e pelo não-crescimento.27

Numa sociedade sinóptica de viciados em comprar/assistir, os pobres não podem desviar os olhos; não há mais para onde olhar. Quanto maior a liberdade na tela e quanto mais sedutoras as tentações que emanam das vitrines, e mais profundo o sentido da realidade empobrecida, tanto mais irresistível se torna o desejo de experimentar, ainda que por um momento fugaz, o êxtase da escolha. Quanto mais escolha parecem ter os ricos, tanto mais a vida sem escolha parece insuportável para todos.”

27. Jeremy Seabrook, The Race for Riches: The Human Costs of Wealth, Basingstoke: Marshall Pikering, 1988, p.168-9.

 

 

Paradoxalmente, ainda que nada inesperadamente, o tipo de liberdade que a sociedade dos viciados em compras elevou ao posto máximo de valor — valor traduzido acima de tudo como a plenitude da escolha do consumidor e como a capacidade de tratar qualquer decisão na vida como uma escolha de consumidor — tem um efeito muito mais devastador nos espectadores relutantes do que naqueles a que ostensivamente se destina. O estilo de vida da elite com recursos, dos senhores da arte de escolher, sofre uma mudança fatal no curso de seu processamento eletrônico. Ela escorre pela hierarquia social, filtrada pelos canais do sinóptico eletrônico e por reduzidos volumes de recursos, como a caricatura de um mutante monstruoso. O produto final desse “escorrimento” está despido da maioria dos prazeres que o original prometia — em vez disso expondo seu potencial destrutivo.

A liberdade de tratar o conjunto da vida como uma festa de compras adiadas significa conceber o mundo como um depósito abarrotado de mercadorias. Dada a profusão de ofertas tentadoras, o potencial gerador de prazeres de qualquer mercadoria tende a se exaurir rapidamente. Felizmente para os consumidores com recursos, estes os garantem contra consequências desagradáveis como a mercantilização. Podem descartar as posses que não mais querem com a mesma facilidade com que podem adquirir as que desejam. Estão protegidos contra o rápido envelhecimento e contra a obsolescência planejada dos desejos e sua satisfação transitória.”

 

 

“A capacidade de conviver com a diferença, sem falar na capacidade de gostar dessa vida e beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz sozinha. Essa capacidade é uma arte que, como toda arte, requer estudo e exercício. A incapacidade de enfrentar a pluralidade de seres humanos e a ambivalência de todas as decisões classificatórias, ao contrário, se autoperpetuam e reforçam: quanto mais eficazes a tendência à homogeneidade e o esforço para eliminar a diferença, tanto mais difícil sentir-se à vontade em presença de estranhos, tanto mais ameaçadora a diferença e tanto mais intensa a ansiedade que ela gera. O projeto de esconder-se do impacto enervante da multivocalidade urbana nos abrigos da conformidade, monotonia e repetitividade comunitárias é um projeto que se auto-alimenta, mas que está fadado à derrota. Essa poderia ser uma verdade trivial, não fosse o fato de que o ressentimento em relação à diferença também se autocorrobora: à medida que o impulso à uniformidade se intensifica, o mesmo acontece com o horror ao perigo representado pelos “estranhos no portão”. O perigo representado pela companhia de estranhos é uma clássica profecia autocumprida. Torna-se cada vez mais fácil misturar a visão dos estranhos com os medos difusos da insegurança; o que no começo era uma mera suposição torna-se uma verdade comprovada, para acabar como algo evidente.

A perplexidade se torna um círculo vicioso. Como a arte de negociar interesses comuns e um destino compartilhado vem caindo em desuso, raramente é praticada, está meio esquecida ou nunca foi propriamente aprendida; como a ideia do “bem comum” é vista com suspeição, como ameaçadora, nebulosa ou confusa — a busca da segurança numa identidade comum e não em função de interesses compartilhados emerge como o modo mais sensato, eficaz e lucrativo de proceder; e as preocupações com a identidade e a defesa contra manchas nela tornam a ideia de interesses comuns, e mais ainda interesses comuns negociados, tanto mais incrível e fantasiosa, tornando ao mesmo tempo improvável o surgimento da capacidade e da vontade de sair em busca desses interesses comuns. Como resume Sharon Zukin: “Ninguém mais sabe falar com ninguém”.”

 

 

“(...) Pode ser patologia, mas não uma patologia da mente que tenta em vão forçar um sentido para um mundo destituído de significado estável e confiável; é uma patologia do espaço público que resulta numa patologia da política: o esvaziamento e a decadência da arte do diálogo e da negociação, e a substituição do engajamento e mútuo comprometimento pelas técnicas do desvio e da evasão.

“Não fale com estranhos” — outrora uma advertência de pais zelosos a seus pobres filhos — tornou-se o preceito estratégico da normalidade adulta. Esse preceito reafirma como regra de prudência a realidade de uma vida em que os estranhos são pessoas com quem nos recusamos a falar.”

Modernidade Líquida (Parte II), de Zygmunt Bauman

Editora: Zahar

ISBN: 978-65-5979-000-5

Tradução: Plínio Dentzien

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 280

Sinopse: Ver Parte I



“A capacidade auto-assertiva de homens e mulheres individualizados deixa a desejar, como regra, em relação ao que a genuína autoconstituição requereria. Como observou Leo Strauss, o outro lado da liberdade ilimitada é a insignificância da escolha, cada lado condicionando o outro: por que cuidar de proibir o que será, de qualquer modo, de pouca consequência? Um observador cínico diria que a liberdade chega quando não faz mais diferença. Há um desagradável ar de impotência no temperado caldo da liberdade preparado no caldeirão da individualização; essa impotência é sentida como ainda mais odiosa, frustrante e perturbadora em vista do aumento de poder que se esperava que a liberdade trouxesse.

Quem sabe não seria um remédio manter-se, como no passado, ombro a ombro e marchar unidos? Quem sabe se, caso os poderes individuais, tão frágeis e impotentes isoladamente, fossem condensados em posições e ações coletivas, poderíamos realizar em conjunto o que ninguém poderia realizar sozinho? Quem sabe… O problema é, porém, que essa convergência e condensação das queixas individuais em interesses compartilhados, e depois em ação conjunta, é uma tarefa assustadora, dado que as aflições mais comuns dos “indivíduos por fatalidade” nos dias de hoje são não-aditivas, não podem ser “somadas” numa “causa comum”. Podem ser postas lado a lado, mas não se fundirão. Pode-se dizer que desde o começo são moldadas de tal maneira que lhes faltam interfaces para combinar-se com os problemas das demais pessoas.

Os problemas podem ser semelhantes (e os cada vez mais populares programas de entrevistas insistem em demonstrar sua semelhança, enquanto martelam a mensagem de que sua semelhança mais importante consiste em que são enfrentados por conta própria pelos que os sofrem), mas não formam uma “totalidade que é maior que a soma de suas partes” não adquirem qualquer qualidade nova, nem se tornam mais fáceis de manejar por serem enfrentados, confrontados e trabalhados em conjunto. A única vantagem que a companhia de outros sofredores pode trazer é garantir a cada um deles que enfrentar os problemas solitariamente é o que todos fazem diariamente — e portanto renovar e encorajar a fatigada decisão de continuar a fazer o mesmo. Talvez possa-se também aprender da experiência de outras pessoas a como sobreviver à nova rodada de “redução de tamanho” (downsizing); como lidar com crianças que pensam que são adolescentes e adolescentes que se recusam a se tornar adultos; como pôr a gordura e outros “corpos estranhos” indesejáveis “para fora do sistema” como livrar-se de um vício que não dá mais prazer ou de parceiros que não são mais satisfatórios. Mas o que aprendemos antes de mais nada da companhia de outros é que o único auxílio que ela pode prestar é como sobreviver em nossa solidão irremível, e que a vida de todo mundo é cheia de riscos que devem ser enfrentados solitariamente.

E assim há também outro obstáculo: como de Tocqueville há muito suspeitava, libertar as pessoas pode torná-las indiferentes. O indivíduo é o pior inimigo do cidadão, sugeriu ele. O “cidadão” é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade — enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à “causa comum”, ao “bem comum”, à “boa sociedade” ou à “sociedade justa”. Qual é o sentido de “interesses comuns” senão permitir que cada indivíduo satisfaça seus próprios interesses? O que quer que os indivíduos façam quando se unem, e por mais benefícios que seu trabalho conjunto possa trazer, eles o perceberão como limitação à sua liberdade de buscar o que quer que lhes pareça adequado separadamente, e não ajudarão. As únicas duas coisas úteis que se espera e se deseja do “poder público” são que ele observe os “direitos humanos”, isto é, que permita que cada um siga seu próprio caminho, e que permita que todos o façam “em paz” — protegendo a segurança de seus corpos e posses, trancando criminosos reais ou potenciais nas prisões e mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de estranhos constrangedores e maus. (...)

Em suma: o outro lado da individualização parece ser a corrosão e a lenta desintegração da cidadania. Joël Roman, co-editor de Ésprit, assinala em seu livro recente (La démocratie des individus, 1998) que “a vigilância é degradada à guarda dos bens, enquanto o interesse geral não é mais que um sindicato de egoísmos, que envolve emoções coletivas e o medo do vizinho”. Roman concita os leitores a buscarem uma “renovada capacidade de decidir em conjunto” — hoje notável por sua inexistência.

Se o indivíduo é o pior inimigo do cidadão, e se a individualização anuncia problemas para a cidadania e para a política fundada na cidadania, é porque os cuidados e preocupações dos indivíduos enquanto indivíduos enchem o espaço público até o topo, afirmando-se como seus únicos ocupantes legítimos e expulsando tudo mais do discurso público. O “público” é colonizado pelo “privado” o “interesse público” é reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição pública das questões privadas e a confissões de sentimentos privados (quanto mais íntimos, melhor). As “questões públicas” que resistem a essa redução tornam-se quase incompreensíveis.

As perspectivas de que os atores individualizados sejam “reacomodados” no corpo republicano dos cidadãos são nebulosas. O que os leva a aventurar-se no palco público não é tanto a busca de causas comuns e de meios de negociar o sentido do bem comum e dos princípios da vida em comum quanto a necessidade desesperada de “fazer parte da rede”. Compartilhar intimidades, como Richard Sennett insiste, tende a ser o método preferido, e talvez o único que resta, de “construção da comunidade”. Essa técnica de construção só pode criar “comunidades” tão frágeis e transitórias como emoções esparsas e fugidias, saltando erraticamente de um objetivo a outro na busca sempre inconclusiva de um porto seguro: comunidades de temores, ansiedades e ódios compartilhados — mas em cada caso comunidades “cabide”, reuniões momentâneas em que muitos indivíduos solitários penduram seus solitários medos individuais. Como diz Ulrich Beck (no ensaio “Sobre a mortalidade da sociedade industrial”),

O que emerge no lugar das normas sociais evanescentes é o ego nu, atemorizado e agressivo à procura de amor e de ajuda. Na procura de si mesmo e de uma sociabilidade afetuosa, ele facilmente se perde na selva do eu … Alguém que tateia na bruma de seu próprio eu não é mais capaz de perceber que esse isolamento, esse “confinamento solitário do ego”, é uma sentença de massa.11

11. In Ulrich Beck, Ecological Enlightenment: Essays on the Politics of the Risk Society, Nova Jersey: Humanity Press, 1995, p.40.

 

 

O compromisso da teoria crítica

na sociedade dos indivíduos

 

O impulso modernizante, em qualquer de suas formas, significa a crítica compulsiva da realidade. A privatização do impulso significa a compulsiva auto-crítica nascida da desafeição perpétua: ser um indivíduo de jure significa não ter ninguém a quem culpar pela própria miséria, significa não procurar as causas das próprias derrotas senão na própria indolência e preguiça, e não procurar outro remédio senão tentar com mais e mais determinação.

Viver diariamente com o risco da auto-reprovação e do autodesprezo não é fácil. Com os olhos postos em seu próprio desempenho — e portanto desviados do espaço social onde as contradições da existência individual são coletivamente produzidas —, os homens e mulheres são naturalmente tentados a reduzir a complexidade de sua situação a fim de tornarem as causas do sofrimento inteligíveis e, assim, tratáveis. Não que considerem as “soluções biográficas” onerosas e embaraçosas; simplesmente não há “soluções biográficas para contradições sistêmicas” eficazes, e assim a escassez de soluções possíveis à disposição precisa ser compensada por soluções imaginárias. No entanto — imaginárias ou genuínas —, todas as “soluções”, para parecerem razoáveis e viáveis, devem ser acompanhadas pela “individualização” das tarefas e responsabilidades. Há, então, demanda por cabides individuais onde os indivíduos atemorizados possam pendurar coletiva, ainda que brevemente, seus temores individuais. Nosso tempo é propício aos bodes expiatórios — sejam eles políticos que fazem de suas vidas privadas uma confusão, criminosos que se esgueiram nas ruas e nos bairros perigosos ou “estrangeiros entre nós”. O nosso é um tempo de cadeados, cercas de arame farpado, ronda dos bairros e vigilantes; e também de jornalistas de tabloides “investigativos” que pescam conspirações para povoar de fantasmas o espaço público funestamente vazio de atores, conspirações suficientemente ferozes para liberar boa parte dos medos e ódios reprimidos em nome de novas causas plausíveis para o “pânico moral”.

Repito: há um grande e crescente abismo entre a condição de indivíduos de jure e suas chances de se tornar indivíduos de facto — isto é, de ganhar controle sobre seus destinos e tomar as decisões que em verdade desejam. É desse abismo que emanam os eflúvios mais venenosos que contaminam as vidas dos indivíduos contemporâneos. Esse abismo não pode ser transposto apenas por esforços individuais: não pelos meios e recursos disponíveis dentro da política-vida autoadministrada. Transpor o abismo é a tarefa da Política com P maiúsculo. Pode-se supor que o abismo em questão emergiu e cresceu precisamente por causa do esvaziamento do espaço público, e particularmente da ágora, aquele lugar intermediário, público/privado, onde a política-vida encontra a Política com P maiúsculo, onde os problemas privados são traduzidos para a linguagem das questões públicas e soluções públicas para os problemas privados são buscadas, negociadas e acordadas.

A mesa foi virada, por assim dizer: a tarefa da teoria crítica foi invertida. Essa tarefa costumava ser a defesa da autonomia privada contra as tropas avançadas da “esfera pública”, soçobrando sob o domínio opressivo do Estado onipotente e impessoal e de seus muitos tentáculos burocráticos ou réplicas em escala menor. Hoje a tarefa é defender o evanescente domínio público, ou, antes, reequipar e repovoar o espaço público que se esvazia rapidamente devido à deserção de ambos os lados: a retirada do “cidadão interessado” e a fuga do poder real para um território que, por tudo que as instituições democráticas existentes são capazes de realizar, só pode ser descrito como um “espaço cósmico”.

Não é mais verdade que o “público” tente colonizar o “privado”. O que se dá é o contrário: é o privado que coloniza o espaço público, espremendo e expulsando o que quer que não possa ser expresso inteiramente, sem deixar resíduos, no vernáculo dos cuidados, angústias e iniciativas privadas. Repetidamente informado de que é o senhor de seu próprio destino, o indivíduo não tem razão de atribuir “relevância tópica” (o termo é de Alfred Schütz) ao que quer que resista a ser engolfado no eu e trabalhado com os recursos do eu; mas ter essa razão e agir sobre ela é precisamente a marca registrada do cidadão.

Para o indivíduo, o espaço público não é muito mais que uma tela gigante em que as aflições privadas são projetadas sem cessar, sem deixarem de ser privadas ou adquirirem novas qualidades coletivas no processo da ampliação: o espaço público é onde se faz a confissão dos segredos e intimidades privadas. Os indivíduos retornam de suas excursões diárias ao espaço “público” reforçados em sua individualidade de jure e tranquilizados de que o modo solitário como levam sua vida é o mesmo de todos os outros “indivíduos como eles”, enquanto — também como eles — dão seus próprios tropeços e sofrem suas (talvez transitórias) derrotas no processo.

Quanto ao poder, ele navega para longe da rua e do mercado, das assembleias e dos parlamentos, dos governos locais e nacionais, para além do alcance do controle dos cidadãos, para a extraterritorialidade das redes eletrônicas. Os princípios estratégicos favoritos dos poderes existentes hoje em dia são fuga, evitação e descompromisso, e sua condição ideal é a invisibilidade. Tentativas de prever seus movimentos e as consequências não-previstas de seus movimentos (sem falar dos esforços para deter ou impedir os mais indesejáveis entre eles) têm uma eficácia prática semelhante à da “Liga para Impedir Mudanças Meteorológicas”.

E assim o espaço público está cada vez mais vazio de questões públicas. Ele deixa de desempenhar sua antiga função de lugar de encontro e diálogo sobre problemas privados e questões públicas. Na ponta da corda que sofre as pressões individualizantes, os indivíduos estão sendo, gradual mas consistentemente, despidos da armadura protetora da cidadania e expropriados de suas capacidades e interesses de cidadãos. Nessas circunstâncias, a perspectiva de que o indivíduo de jure venha a se tornar algum dia indivíduo de facto (aquele que controla os recursos indispensáveis à genuína autodeterminação) parece cada vez mais remota.

O indivíduo de jure não pode se tornar indivíduo de facto sem antes tornar-se cidadão. Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma, e a autonomia da sociedade requer uma autoconstituição deliberada e perpétua, algo que só pode ser uma realização compartilhada de seus membros.

“Sociedade” sempre manteve uma relação ambígua com a autonomia individual: era simultaneamente sua inimiga e condição sine qua non. Mas as proporções de ameaças e oportunidades no que forçosamente continuará sendo uma relação ambivalente mudaram radicalmente no curso da história moderna. Embora as razões para examiná-la de perto possam não ter desaparecido, a sociedade é hoje antes de tudo a condição de que os indivíduos precisam muito, e que lhes faz falta — em sua luta vã e frustrante para transformar seu status de jure em genuína autonomia e capacidade de auto-afirmação.

Esta é, nos termos mais amplos, a situação que hoje se coloca para a teoria crítica — e, em termos mais gerais, para a crítica social. Ela se reduz a unir novamente o que a combinação da individualização formal e o divórcio entre o poder e a política partiram em pedaços. Em outras palavras, redesenhar e repovoar a hoje quase vazia ágora — o lugar de encontro, debate e negociação entre o indivíduo e o bem comum, privado e público. Se o velho objetivo da teoria crítica — a emancipação humana — tem qualquer significado hoje, ele é o de reconectar as duas faces do abismo que se abriu entre a realidade do indivíduo de jure e as perspectivas do indivíduo de facto. E indivíduos que reaprenderam capacidades esquecidas e reapropriaram ferramentas perdidas da cidadania são os únicos construtores à altura da tarefa de erigir essa ponte em particular.”

 

 

A união entre conhecimento e poder, mera fantasia nos tempos de Platão, tornou-se um postulado rotineiro e quase axiomático da filosofia e uma afirmação comum e diariamente repetida da política. De algo pelo quê se poderia morrer, a verdade tornou-se algo que oferecia boas razões pelas quais se poderia matar. (Foi um pouco das duas coisas todo o tempo, mas as proporções na mistura mudaram drasticamente). Era portanto natural e razoável esperar, nos tempos de Adorno, que os rejeitados apóstolos das boas notícias recorressem à força sempre que pudessem; e buscassem a dominação para quebrar a resistência e compelir, impelir ou subornar seus opositores a seguir a rota que relutavam a encetar. Ao velho dilema — como encontrar as palavras adequadas aos ouvidos não-iniciados sem comprometer a essência da mensagem; como expressar a verdade numa forma fácil de compreender e suficientemente atraente para que sua compreensão pudesse ser desejada sem deturpar ou diluir seu conteúdo —, a esse dilema veio somar-se uma nova dificuldade, particularmente dura e angustiante no caso de uma mensagem com ambições emancipadoras e libertadoras: como evitar, ou ao menos limitar, o impacto corruptor do poder e da dominação, vistos agora como principal veículo portador da mensagem aos recalcitrantes e indiferentes?”

 

 

“Havia um traço anarquista em toda a teorização crítica: todo poder era suspeito, via-se o inimigo apenas no lado do poder, e o mesmo inimigo era acusado de todos os retrocessos e frustrações sofridas pela liberdade (inclusive pela falta de valor das tropas que deveriam enfrentar valentemente suas guerras de libertação, como no caso do debate da “cultura de massas”). Esperava-se que o perigo viesse e os golpes fossem desferidos do lado “público”, sempre pronto a invadir e colonizar o “privado”, o “subjetivo”, o “individual”. Muito menos atenção — quase nenhuma — foi dada aos perigos que se ocultavam no estreitamento e esvaziamento do espaço público e à possibilidade da invasão inversa: a colonização da esfera pública pela privada. E no entanto essa eventualidade subestimada e subdiscutida se tornou hoje o principal obstáculo à emancipação, que em seu estágio presente só pode ser descrita como a tarefa de transformar a autonomia individual de jure numa autonomia de facto.

O poder político implica uma liberdade individual incompleta, mas sua retirada ou desaparecimento prenuncia a impotência prática da liberdade legalmente vitoriosa. A história da emancipação moderna desloca-se de um confronto com o primeiro perigo para um confronto com o segundo. Para utilizar os termos de Isaiah Berlin, pode-se dizer que, depois da luta vitoriosa pela “liberdade negativa”, as alavancas necessárias para transformá-la numa “liberdade positiva” — isto é, a liberdade para estabelecer a gama de opções e a agenda para a escolha entre elas — quebraram. O poder político perdeu muito de sua terrível e ameaçadora potência opressiva — mas também perdeu boa parte de sua potência capacitadora. A guerra pela emancipação não acabou. Mas, para progredir, deve agora ressuscitar o que na maior parte de sua história lutou por destruir e afastar do caminho. A verdadeira libertação requer hoje mais, e não menos, da “esfera pública” e do “poder público”. Agora é a esfera pública que precisa desesperadamente de defesa contra o invasor privado — ainda que, paradoxalmente, não para reduzir, mas para viabilizar a liberdade individual.

Como sempre, o trabalho do pensamento crítico é trazer à luz os muitos obstáculos que se amontoam no caminho da emancipação. Dada a natureza das tarefas de hoje, os principais obstáculos que devem ser examinados urgentemente estão ligados às crescentes dificuldades de traduzir os problemas privados em questões públicas, de condensar problemas intrinsecamente privados em interesses públicos que são maiores que a soma de seus ingredientes individuais, de recoletivizar as utopias privatizadas da “política-vida” de tal modo que possam assumir novamente a forma das visões da sociedade “boa” e “justa”. Quando a política pública abandona suas funções e a “política-vida” assume, os problemas enfrentados pelos indivíduos de jure em seus esforços para se tornarem indivíduos de facto passam a ser não-aditivos e não-cumulativos, destituindo assim a esfera pública de toda substância que não seja a do lugar em que as aflições individuais são confessadas e expostas publicamente. Do mesmo modo, a individualização parece ser uma via de mão única, e também parece destruir, ao avançar, todas as ferramentas que poderiam ser usadas para implementar seus objetivos de outrora.”

 

 

“O mundo é uma comédia para os que pensam, e uma tragédia para os que sentem.” (Horace Walpole)

 

 

“Viver num mundo cheio de oportunidades — cada uma mais apetitosa e atraente que a anterior, cada uma “compensando a anterior, e preparando o terreno para a mudança para a seguinte”8 — é uma experiência divertida. Nesse mundo, poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda irrevogáveis. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos contratempos, irreversíveis; mas nenhuma vitória é tampouco final. Para que as possibilidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-se em realidade para sempre. Melhor que permaneçam líquidas e fluidas e tenham “data de validade”, caso contrário poderiam excluir as oportunidades remanescentes e abortar o embrião da próxima aventura. Como dizem Zbyszko Melosik e Tomasz Szkudlarek em seu interessante estudo de problemas da identidade,9 viver em meio a chances aparentemente infinitas (ou pelo menos em meio a maior número de chances do que seria razoável experimentar) tem o gosto doce da “liberdade de tornar-se qualquer um”. Porém essa doçura tem uma cica amarga porque, enquanto o “tornar-se” sugere que nada está acabado e temos tudo pela frente, a condição de “ser alguém”, que o tornar-se deve assegurar, anuncia o apito final do árbitro, indicando o fim do jogo: “Você não está mais livre quando chega o final; você não é você, mesmo que tenha se tornado alguém.” Estar inacabado, incompleto e subdeterminado é um estado cheio de riscos e ansiedade, mas seu contrário também não traz um prazer pleno, pois fecha antecipadamente o que a liberdade precisa manter aberto.

A consciência de que o jogo continua, de que muito vai ainda acontecer, e o inventário das maravilhas que a vida pode oferecer são muito agradáveis e satisfatórios. A suspeita de que nada do que já foi testado e apropriado é duradouro e garantido contra a decadência é, porém, a proverbial mosca na sopa. As perdas equivalem aos ganhos. A vida está fadada a navegar entre os dois, e nenhum marinheiro pode alardear ter encontrado um itinerário seguro e sem riscos.

O mundo cheio de possibilidades é como uma mesa de bufê com tantos pratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia esperar provar de todos. Os comensais são consumidores, e a mais custosa e irritante das tarefas que se pode pôr diante de um consumidor é a necessidade de estabelecer prioridades: a necessidade de dispensar algumas opções inexploradas e abandoná-las. A infelicidade dos consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha. “Será que utilizei os meios à minha disposição da melhor maneira possível?” é a pergunta que mais assombra e causa insônia ao consumidor. Como disse Marina Bianchi num trabalho coletivo de economistas que tinham em mente os vendedores de bens de consumo,

no caso do consumidor, a função objetiva … está vazia …

Os fins coerentemente se equivalem aos meios, mas os próprios fins não são escolhidos racionalmente …

Hipoteticamente, os consumidores, mas não as firmas, não podem nunca errar, ou ser pegos errando.10

Mas se não se pode errar, também não se pode saber se se está certo. Se não há movimentos errados, não há nada que permita distinguir um movimento como melhor, e assim nada que permita reconhecer o movimento certo entre as várias alternativas — nem antes nem depois de fazer o movimento. É uma bênção mista que o perigo do erro não esteja nas cartas — uma alegria duvidosa, certamente, dado que seu preço é a incerteza perpétua e um desejo que provavelmente nunca será saciado. É uma boa notícia, uma promessa de permanecer no ramo, para os vendedores, mas para os compradores é a certeza de que continuarão aflitos.”

8. David Miller, A Theory of Shopping, Cambridge: Polity Press, 1998, p.141.

9. Zbyzko Melosik e Tomasz Szkudlarek, Kultura, Tozsamosc i Demokracja: Migotanie Znaczen, Cracóvia: Impuls, 1998, p.89.

10. Marina Bianchi, The Active Consumer: Novelty and Surprise in Consumer Choice, Londres: Routledge, 1998, p.6.

 

 

“Como observou Daniel J. Boorstin — com graça, mas não de brincadeira (em The Image, 1961) —, uma celebridade é uma pessoa conhecida por ser muito conhecida, e um best-seller é um livro que vende bem porque está vendendo bem. A autoridade amplia o número de seguidores, mas, no mundo de fins incertos e cronicamente subdeterminados, é o número de seguidores que faz — que é — a autoridade.”