Editora: Zahar
ISBN: 978-65-5979-000-5
Tradução: Plínio
Dentzien
Opinião: ★★★★★
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Páginas: 280
Sinopse: Ver Parte I
“A
capacidade auto-assertiva de homens e mulheres individualizados deixa a
desejar, como regra, em relação ao que a genuína autoconstituição requereria.
Como observou Leo Strauss, o outro lado da liberdade ilimitada é a
insignificância da escolha, cada lado condicionando o outro: por que cuidar de
proibir o que será, de qualquer modo, de pouca consequência? Um observador cínico
diria que a liberdade chega quando não faz mais diferença. Há um desagradável
ar de impotência no temperado caldo da liberdade preparado no caldeirão da
individualização; essa impotência é sentida como ainda mais odiosa, frustrante
e perturbadora em vista do aumento de poder que se esperava que a liberdade
trouxesse.
Quem
sabe não seria um remédio manter-se, como no passado, ombro a ombro e marchar
unidos? Quem sabe se, caso os poderes individuais, tão frágeis e impotentes
isoladamente, fossem condensados em posições e ações coletivas, poderíamos
realizar em conjunto o que ninguém poderia realizar sozinho? Quem sabe… O
problema é, porém, que essa convergência e condensação das queixas individuais
em interesses compartilhados, e depois em ação conjunta, é uma tarefa
assustadora, dado que as aflições mais comuns dos “indivíduos por fatalidade”
nos dias de hoje são não-aditivas, não podem ser “somadas” numa “causa
comum”. Podem ser postas lado a lado, mas não se fundirão. Pode-se dizer que
desde o começo são moldadas de tal maneira que lhes faltam interfaces para
combinar-se com os problemas das demais pessoas.
Os
problemas podem ser semelhantes (e os cada vez mais populares programas
de entrevistas insistem em demonstrar sua semelhança, enquanto martelam a mensagem
de que sua semelhança mais importante consiste em que são enfrentados por conta
própria pelos que os sofrem), mas não formam uma “totalidade que é maior que a
soma de suas partes” não adquirem qualquer qualidade nova, nem se tornam mais
fáceis de manejar por serem enfrentados, confrontados e trabalhados em
conjunto. A única vantagem que a companhia de outros sofredores pode trazer é
garantir a cada um deles que enfrentar os problemas solitariamente é o que
todos fazem diariamente — e portanto renovar e encorajar a fatigada decisão de
continuar a fazer o mesmo. Talvez possa-se também aprender da experiência de
outras pessoas a como sobreviver à nova rodada de “redução de tamanho” (downsizing);
como lidar com crianças que pensam que são adolescentes e adolescentes que se
recusam a se tornar adultos; como pôr a gordura e outros “corpos estranhos”
indesejáveis “para fora do sistema” como livrar-se de um vício que não dá mais
prazer ou de parceiros que não são mais satisfatórios. Mas o que aprendemos
antes de mais nada da companhia de outros é que o único auxílio que ela pode
prestar é como sobreviver em nossa solidão irremível, e que a vida de todo
mundo é cheia de riscos que devem ser enfrentados solitariamente.
E
assim há também outro obstáculo: como de Tocqueville há muito suspeitava,
libertar as pessoas pode torná-las indiferentes. O indivíduo é o pior
inimigo do cidadão, sugeriu ele. O “cidadão” é uma pessoa que tende a buscar
seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade — enquanto o indivíduo tende
a ser morno, cético ou prudente em relação à “causa comum”, ao “bem comum”, à
“boa sociedade” ou à “sociedade justa”. Qual é o sentido de “interesses comuns”
senão permitir que cada indivíduo satisfaça seus próprios interesses? O que
quer que os indivíduos façam quando se unem, e por mais benefícios que seu
trabalho conjunto possa trazer, eles o perceberão como limitação à sua
liberdade de buscar o que quer que lhes pareça adequado separadamente, e não
ajudarão. As únicas duas coisas úteis que se espera e se deseja do “poder
público” são que ele observe os “direitos humanos”, isto é, que permita que
cada um siga seu próprio caminho, e que permita que todos o façam “em paz” —
protegendo a segurança de seus corpos e posses, trancando criminosos reais ou potenciais
nas prisões e mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e
todo tipo de estranhos constrangedores e maus. (...)
Em
suma: o outro lado da individualização parece ser a corrosão e a lenta
desintegração da cidadania. Joël Roman, co-editor de Ésprit, assinala em
seu livro recente (La démocratie des individus, 1998) que “a vigilância
é degradada à guarda dos bens, enquanto o interesse geral não é mais que um
sindicato de egoísmos, que envolve emoções coletivas e o medo do vizinho”. Roman
concita os leitores a buscarem uma “renovada capacidade de decidir em conjunto”
— hoje notável por sua inexistência.
Se
o indivíduo é o pior inimigo do cidadão, e se a individualização anuncia
problemas para a cidadania e para a política fundada na cidadania, é porque os
cuidados e preocupações dos indivíduos enquanto indivíduos enchem o espaço
público até o topo, afirmando-se como seus únicos ocupantes legítimos e
expulsando tudo mais do discurso público. O “público” é colonizado pelo
“privado” o “interesse público” é reduzido à curiosidade sobre as vidas
privadas de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição
pública das questões privadas e a confissões de sentimentos privados (quanto
mais íntimos, melhor). As “questões públicas” que resistem a essa redução
tornam-se quase incompreensíveis.
As
perspectivas de que os atores individualizados sejam “reacomodados” no corpo
republicano dos cidadãos são nebulosas. O que os leva a aventurar-se no palco
público não é tanto a busca de causas comuns e de meios de negociar o sentido
do bem comum e dos princípios da vida em comum quanto a necessidade desesperada
de “fazer parte da rede”. Compartilhar intimidades, como Richard Sennett
insiste, tende a ser o método preferido, e talvez o único que resta, de
“construção da comunidade”. Essa técnica de construção só pode criar
“comunidades” tão frágeis e transitórias como emoções esparsas e fugidias,
saltando erraticamente de um objetivo a outro na busca sempre inconclusiva de
um porto seguro: comunidades de temores, ansiedades e ódios compartilhados —
mas em cada caso comunidades “cabide”, reuniões momentâneas em que muitos
indivíduos solitários penduram seus solitários medos individuais. Como diz
Ulrich Beck (no ensaio “Sobre a mortalidade da sociedade industrial”),
O que emerge no lugar das normas sociais
evanescentes é o ego nu, atemorizado e agressivo à procura de amor e de ajuda.
Na procura de si mesmo e de uma sociabilidade afetuosa, ele facilmente se perde
na selva do eu … Alguém que tateia na bruma de seu próprio eu não é mais capaz
de perceber que esse isolamento, esse “confinamento solitário do ego”, é uma
sentença de massa.11”
11. In Ulrich Beck, Ecological Enlightenment: Essays on the Politics
of the Risk Society, Nova Jersey: Humanity Press, 1995, p.40.
“O compromisso da teoria crítica
na sociedade dos indivíduos
O
impulso modernizante, em qualquer de suas formas, significa a crítica
compulsiva da realidade. A privatização do impulso significa a compulsiva auto-crítica
nascida da desafeição perpétua: ser um indivíduo de jure significa não
ter ninguém a quem culpar pela própria miséria, significa não procurar as
causas das próprias derrotas senão na própria indolência e preguiça, e não
procurar outro remédio senão tentar com mais e mais determinação.
Viver
diariamente com o risco da auto-reprovação e do autodesprezo não é fácil. Com
os olhos postos em seu próprio desempenho — e portanto desviados do espaço
social onde as contradições da existência individual são coletivamente
produzidas —, os homens e mulheres são naturalmente tentados a reduzir a
complexidade de sua situação a fim de tornarem as causas do sofrimento
inteligíveis e, assim, tratáveis. Não que considerem as “soluções biográficas”
onerosas e embaraçosas; simplesmente não há “soluções biográficas para
contradições sistêmicas” eficazes, e assim a escassez de soluções possíveis à
disposição precisa ser compensada por soluções imaginárias. No entanto —
imaginárias ou genuínas —, todas as “soluções”, para parecerem razoáveis e
viáveis, devem ser acompanhadas pela “individualização” das tarefas e
responsabilidades. Há, então, demanda por cabides individuais onde os
indivíduos atemorizados possam pendurar coletiva, ainda que brevemente, seus
temores individuais. Nosso tempo é propício aos bodes expiatórios — sejam eles
políticos que fazem de suas vidas privadas uma confusão, criminosos que se
esgueiram nas ruas e nos bairros perigosos ou “estrangeiros entre nós”. O nosso
é um tempo de cadeados, cercas de arame farpado, ronda dos bairros e
vigilantes; e também de jornalistas de tabloides “investigativos” que pescam
conspirações para povoar de fantasmas o espaço público funestamente vazio de
atores, conspirações suficientemente ferozes para liberar boa parte dos medos e
ódios reprimidos em nome de novas causas plausíveis para o “pânico moral”.
Repito:
há um grande e crescente abismo entre a condição de indivíduos de jure e
suas chances de se tornar indivíduos de facto — isto é, de ganhar
controle sobre seus destinos e tomar as decisões que em verdade desejam. É
desse abismo que emanam os eflúvios mais venenosos que contaminam as vidas dos
indivíduos contemporâneos. Esse abismo não pode ser transposto apenas por
esforços individuais: não pelos meios e recursos disponíveis dentro da
política-vida autoadministrada. Transpor o abismo é a tarefa da Política com P
maiúsculo. Pode-se supor que o abismo em questão emergiu e cresceu precisamente
por causa do esvaziamento do espaço público, e particularmente da ágora, aquele
lugar intermediário, público/privado, onde a política-vida encontra a Política
com P maiúsculo, onde os problemas privados são traduzidos para a linguagem das
questões públicas e soluções públicas para os problemas privados são buscadas,
negociadas e acordadas.
A mesa
foi virada, por assim dizer: a tarefa da teoria crítica foi invertida. Essa
tarefa costumava ser a defesa da autonomia privada contra as tropas avançadas
da “esfera pública”, soçobrando sob o domínio opressivo do Estado onipotente e
impessoal e de seus muitos tentáculos burocráticos ou réplicas em escala menor.
Hoje a tarefa é defender o evanescente domínio público, ou, antes, reequipar e
repovoar o espaço público que se esvazia rapidamente devido à deserção de ambos
os lados: a retirada do “cidadão interessado” e a fuga do poder real para um
território que, por tudo que as instituições democráticas existentes são
capazes de realizar, só pode ser descrito como um “espaço cósmico”.
Não
é mais verdade que o “público” tente colonizar o “privado”. O que se dá é o
contrário: é o privado que coloniza o espaço público, espremendo e expulsando o
que quer que não possa ser expresso inteiramente, sem deixar resíduos, no
vernáculo dos cuidados, angústias e iniciativas privadas. Repetidamente
informado de que é o senhor de seu próprio destino, o indivíduo não tem razão
de atribuir “relevância tópica” (o termo é de Alfred Schütz) ao que quer que
resista a ser engolfado no eu e trabalhado com os recursos do eu; mas ter essa
razão e agir sobre ela é precisamente a marca registrada do cidadão.
Para
o indivíduo, o espaço público não é muito mais que uma tela gigante em que as
aflições privadas são projetadas sem cessar, sem deixarem de ser privadas ou
adquirirem novas qualidades coletivas no processo da ampliação: o espaço público
é onde se faz a confissão dos segredos e intimidades privadas. Os indivíduos
retornam de suas excursões diárias ao espaço “público” reforçados em sua
individualidade de jure e tranquilizados de que o modo solitário como
levam sua vida é o mesmo de todos os outros “indivíduos como eles”, enquanto —
também como eles — dão seus próprios tropeços e sofrem suas (talvez
transitórias) derrotas no processo.
Quanto
ao poder, ele navega para longe da rua e do mercado, das assembleias e dos
parlamentos, dos governos locais e nacionais, para além do alcance do controle
dos cidadãos, para a extraterritorialidade das redes eletrônicas. Os princípios
estratégicos favoritos dos poderes existentes hoje em dia são fuga, evitação e descompromisso,
e sua condição ideal é a invisibilidade. Tentativas de prever seus movimentos e
as consequências não-previstas de seus movimentos (sem falar dos esforços para
deter ou impedir os mais indesejáveis entre eles) têm uma eficácia prática
semelhante à da “Liga para Impedir Mudanças Meteorológicas”.
E
assim o espaço público está cada vez mais vazio de questões públicas. Ele deixa
de desempenhar sua antiga função de lugar de encontro e diálogo sobre problemas
privados e questões públicas. Na ponta da corda que sofre as pressões
individualizantes, os indivíduos estão sendo, gradual mas consistentemente,
despidos da armadura protetora da cidadania e expropriados de suas capacidades
e interesses de cidadãos. Nessas circunstâncias, a perspectiva de que o
indivíduo de jure venha a se tornar algum dia indivíduo de facto
(aquele que controla os recursos indispensáveis à genuína autodeterminação)
parece cada vez mais remota.
O
indivíduo de jure não pode se tornar indivíduo de facto sem antes
tornar-se cidadão. Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade
autônoma, e a autonomia da sociedade requer uma autoconstituição deliberada e
perpétua, algo que só pode ser uma realização compartilhada de seus membros.
“Sociedade”
sempre manteve uma relação ambígua com a autonomia individual: era
simultaneamente sua inimiga e condição sine qua non. Mas as proporções
de ameaças e oportunidades no que forçosamente continuará sendo uma relação
ambivalente mudaram radicalmente no curso da história moderna. Embora as razões
para examiná-la de perto possam não ter desaparecido, a sociedade é hoje antes
de tudo a condição de que os indivíduos precisam muito, e que lhes faz falta —
em sua luta vã e frustrante para transformar seu status de jure em
genuína autonomia e capacidade de auto-afirmação.
Esta
é, nos termos mais amplos, a situação que hoje se coloca para a teoria crítica
— e, em termos mais gerais, para a crítica social. Ela se reduz a unir
novamente o que a combinação da individualização formal e o divórcio entre o
poder e a política partiram em pedaços. Em outras palavras, redesenhar e
repovoar a hoje quase vazia ágora — o lugar de encontro, debate e negociação
entre o indivíduo e o bem comum, privado e público. Se o velho objetivo da
teoria crítica — a emancipação humana — tem qualquer significado hoje, ele é o
de reconectar as duas faces do abismo que se abriu entre a realidade do
indivíduo de jure e as perspectivas do indivíduo de facto. E
indivíduos que reaprenderam capacidades esquecidas e reapropriaram ferramentas
perdidas da cidadania são os únicos construtores à altura da tarefa de erigir
essa ponte em particular.”
“A união entre conhecimento e poder, mera fantasia nos tempos de Platão, tornou-se um
postulado rotineiro e quase axiomático da filosofia e uma afirmação comum e
diariamente repetida da política. De algo pelo quê se poderia morrer, a verdade
tornou-se algo que oferecia boas razões pelas quais se poderia matar. (Foi um
pouco das duas coisas todo o tempo, mas as proporções na mistura mudaram
drasticamente). Era portanto natural e razoável esperar, nos tempos de Adorno, que os rejeitados
apóstolos das boas notícias recorressem à força sempre que pudessem; e
buscassem a dominação para quebrar a resistência e compelir, impelir ou
subornar seus opositores a seguir a rota que relutavam a encetar. Ao velho
dilema — como encontrar as palavras adequadas aos ouvidos não-iniciados sem
comprometer a essência da mensagem; como expressar a verdade numa forma fácil
de compreender e suficientemente atraente para que sua compreensão pudesse ser
desejada sem deturpar ou diluir seu conteúdo —, a esse dilema veio somar-se uma
nova dificuldade, particularmente dura e angustiante no caso de uma mensagem
com ambições emancipadoras e libertadoras: como evitar, ou ao menos limitar, o
impacto corruptor do poder e da dominação, vistos agora como principal veículo
portador da mensagem aos recalcitrantes e indiferentes?”
“Havia
um traço anarquista em toda a teorização crítica: todo poder era suspeito,
via-se o inimigo apenas no lado do poder, e o mesmo inimigo era acusado de
todos os retrocessos e frustrações sofridas pela liberdade (inclusive pela
falta de valor das tropas que deveriam enfrentar valentemente suas guerras de
libertação, como no caso do debate da “cultura de massas”). Esperava-se que o
perigo viesse e os golpes fossem desferidos do lado “público”, sempre pronto a
invadir e colonizar o “privado”, o “subjetivo”, o “individual”. Muito menos
atenção — quase nenhuma — foi dada aos perigos que se ocultavam no
estreitamento e esvaziamento do espaço público e à possibilidade da invasão
inversa: a colonização da esfera pública pela privada. E no entanto essa
eventualidade subestimada e subdiscutida se tornou hoje o principal obstáculo à
emancipação, que em seu estágio presente só pode ser descrita como a tarefa de
transformar a autonomia individual de jure numa autonomia de facto.
O
poder político implica uma liberdade individual incompleta, mas sua
retirada ou desaparecimento prenuncia a impotência prática da liberdade
legalmente vitoriosa. A história da emancipação moderna desloca-se de um confronto
com o primeiro perigo para um confronto com o segundo. Para utilizar os termos
de Isaiah Berlin, pode-se dizer que, depois da luta vitoriosa pela “liberdade
negativa”, as alavancas necessárias para transformá-la numa “liberdade
positiva” — isto é, a liberdade para estabelecer a gama de opções e a agenda
para a escolha entre elas — quebraram. O poder político perdeu muito de sua
terrível e ameaçadora potência opressiva — mas também perdeu boa parte de sua
potência capacitadora. A guerra pela emancipação não acabou. Mas, para
progredir, deve agora ressuscitar o que na maior parte de sua história lutou
por destruir e afastar do caminho. A verdadeira libertação requer hoje mais,
e não menos, da “esfera pública” e do “poder público”. Agora é a esfera
pública que precisa desesperadamente de defesa contra o invasor privado — ainda
que, paradoxalmente, não para reduzir, mas para viabilizar a liberdade
individual.
Como
sempre, o trabalho do pensamento crítico é trazer à luz os muitos obstáculos
que se amontoam no caminho da emancipação. Dada a natureza das tarefas de hoje,
os principais obstáculos que devem ser examinados urgentemente estão ligados às
crescentes dificuldades de traduzir os problemas privados em questões públicas,
de condensar problemas intrinsecamente privados em interesses públicos que são
maiores que a soma de seus ingredientes individuais, de recoletivizar as
utopias privatizadas da “política-vida” de tal modo que possam assumir
novamente a forma das visões da sociedade “boa” e “justa”. Quando a política
pública abandona suas funções e a “política-vida” assume, os problemas
enfrentados pelos indivíduos de jure em seus esforços para se tornarem
indivíduos de facto passam a ser não-aditivos e não-cumulativos,
destituindo assim a esfera pública de toda substância que não seja a do lugar
em que as aflições individuais são confessadas e expostas publicamente. Do
mesmo modo, a individualização parece ser uma via de mão única, e também parece
destruir, ao avançar, todas as ferramentas que poderiam ser usadas para
implementar seus objetivos de outrora.”
“O
mundo é uma comédia para os que pensam, e uma tragédia para os que sentem.” (Horace
Walpole)
“Viver
num mundo cheio de oportunidades — cada uma mais apetitosa e atraente que a
anterior, cada uma “compensando a anterior, e preparando o terreno para a
mudança para a seguinte”8 — é uma experiência
divertida. Nesse mundo, poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda
irrevogáveis. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos contratempos,
irreversíveis; mas nenhuma vitória é tampouco final. Para que as possibilidades
continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-se em realidade para
sempre. Melhor que permaneçam líquidas e fluidas e tenham “data de validade”,
caso contrário poderiam excluir as oportunidades remanescentes e abortar o
embrião da próxima aventura. Como dizem Zbyszko Melosik e Tomasz Szkudlarek em
seu interessante estudo de problemas da identidade,9 viver em meio a chances aparentemente infinitas (ou
pelo menos em meio a maior número de chances do que seria razoável
experimentar) tem o gosto doce da “liberdade de tornar-se qualquer um”. Porém
essa doçura tem uma cica amarga porque, enquanto o “tornar-se” sugere que nada
está acabado e temos tudo pela frente, a condição de “ser alguém”, que o
tornar-se deve assegurar, anuncia o apito final do árbitro, indicando o fim do
jogo: “Você não está mais livre quando chega o final; você não é você, mesmo
que tenha se tornado alguém.” Estar inacabado, incompleto e subdeterminado é um
estado cheio de riscos e ansiedade, mas seu contrário também não traz um prazer
pleno, pois fecha antecipadamente o que a liberdade precisa manter aberto.
A
consciência de que o jogo continua, de que muito vai ainda acontecer, e o
inventário das maravilhas que a vida pode oferecer são muito agradáveis e
satisfatórios. A suspeita de que nada do que já foi testado e apropriado é
duradouro e garantido contra a decadência é, porém, a proverbial mosca na sopa.
As perdas equivalem aos ganhos. A vida está fadada a navegar entre os dois, e
nenhum marinheiro pode alardear ter encontrado um itinerário seguro e sem
riscos.
O
mundo cheio de possibilidades é como uma mesa de bufê com tantos pratos
deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia esperar provar de todos. Os
comensais são consumidores, e a mais custosa e irritante das tarefas que
se pode pôr diante de um consumidor é a necessidade de estabelecer prioridades:
a necessidade de dispensar algumas opções inexploradas e abandoná-las. A
infelicidade dos consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha.
“Será que utilizei os meios à minha disposição da melhor maneira possível?” é a
pergunta que mais assombra e causa insônia ao consumidor. Como disse Marina
Bianchi num trabalho coletivo de economistas que tinham em mente os vendedores
de bens de consumo,
no caso do consumidor, a função objetiva … está
vazia …
Os fins coerentemente se equivalem aos meios,
mas os próprios fins não são escolhidos racionalmente …
Hipoteticamente, os consumidores, mas não as
firmas, não podem nunca errar, ou ser pegos errando.10
Mas
se não se pode errar, também não se pode saber se se está certo. Se não há
movimentos errados, não há nada que permita distinguir um movimento como melhor,
e assim nada que permita reconhecer o movimento certo entre as várias
alternativas — nem antes nem depois de fazer o movimento. É uma bênção mista
que o perigo do erro não esteja nas cartas — uma alegria duvidosa, certamente,
dado que seu preço é a incerteza perpétua e um desejo que provavelmente nunca
será saciado. É uma boa notícia, uma promessa de permanecer no ramo, para os
vendedores, mas para os compradores é a certeza de que continuarão aflitos.”
8. David Miller, A Theory of Shopping, Cambridge: Polity Press,
1998, p.141.
9. Zbyzko Melosik e Tomasz Szkudlarek, Kultura, Tozsamosc i
Demokracja: Migotanie Znaczen, Cracóvia: Impuls, 1998, p.89.
10. Marina Bianchi, The Active Consumer: Novelty and Surprise in
Consumer Choice, Londres: Routledge, 1998, p.6.
“Como
observou Daniel J. Boorstin — com graça, mas não de brincadeira (em The
Image, 1961) —, uma celebridade é uma pessoa conhecida por ser muito
conhecida, e um best-seller é um livro que vende bem porque está
vendendo bem. A autoridade amplia o número de seguidores, mas, no mundo de fins
incertos e cronicamente subdeterminados, é o número de seguidores que faz — que
é — a autoridade.”
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