quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Modernidade Líquida (Parte II), de Zygmunt Bauman

Editora: Zahar

ISBN: 978-65-5979-000-5

Tradução: Plínio Dentzien

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 280

Sinopse: Ver Parte I



“A capacidade auto-assertiva de homens e mulheres individualizados deixa a desejar, como regra, em relação ao que a genuína autoconstituição requereria. Como observou Leo Strauss, o outro lado da liberdade ilimitada é a insignificância da escolha, cada lado condicionando o outro: por que cuidar de proibir o que será, de qualquer modo, de pouca consequência? Um observador cínico diria que a liberdade chega quando não faz mais diferença. Há um desagradável ar de impotência no temperado caldo da liberdade preparado no caldeirão da individualização; essa impotência é sentida como ainda mais odiosa, frustrante e perturbadora em vista do aumento de poder que se esperava que a liberdade trouxesse.

Quem sabe não seria um remédio manter-se, como no passado, ombro a ombro e marchar unidos? Quem sabe se, caso os poderes individuais, tão frágeis e impotentes isoladamente, fossem condensados em posições e ações coletivas, poderíamos realizar em conjunto o que ninguém poderia realizar sozinho? Quem sabe… O problema é, porém, que essa convergência e condensação das queixas individuais em interesses compartilhados, e depois em ação conjunta, é uma tarefa assustadora, dado que as aflições mais comuns dos “indivíduos por fatalidade” nos dias de hoje são não-aditivas, não podem ser “somadas” numa “causa comum”. Podem ser postas lado a lado, mas não se fundirão. Pode-se dizer que desde o começo são moldadas de tal maneira que lhes faltam interfaces para combinar-se com os problemas das demais pessoas.

Os problemas podem ser semelhantes (e os cada vez mais populares programas de entrevistas insistem em demonstrar sua semelhança, enquanto martelam a mensagem de que sua semelhança mais importante consiste em que são enfrentados por conta própria pelos que os sofrem), mas não formam uma “totalidade que é maior que a soma de suas partes” não adquirem qualquer qualidade nova, nem se tornam mais fáceis de manejar por serem enfrentados, confrontados e trabalhados em conjunto. A única vantagem que a companhia de outros sofredores pode trazer é garantir a cada um deles que enfrentar os problemas solitariamente é o que todos fazem diariamente — e portanto renovar e encorajar a fatigada decisão de continuar a fazer o mesmo. Talvez possa-se também aprender da experiência de outras pessoas a como sobreviver à nova rodada de “redução de tamanho” (downsizing); como lidar com crianças que pensam que são adolescentes e adolescentes que se recusam a se tornar adultos; como pôr a gordura e outros “corpos estranhos” indesejáveis “para fora do sistema” como livrar-se de um vício que não dá mais prazer ou de parceiros que não são mais satisfatórios. Mas o que aprendemos antes de mais nada da companhia de outros é que o único auxílio que ela pode prestar é como sobreviver em nossa solidão irremível, e que a vida de todo mundo é cheia de riscos que devem ser enfrentados solitariamente.

E assim há também outro obstáculo: como de Tocqueville há muito suspeitava, libertar as pessoas pode torná-las indiferentes. O indivíduo é o pior inimigo do cidadão, sugeriu ele. O “cidadão” é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade — enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à “causa comum”, ao “bem comum”, à “boa sociedade” ou à “sociedade justa”. Qual é o sentido de “interesses comuns” senão permitir que cada indivíduo satisfaça seus próprios interesses? O que quer que os indivíduos façam quando se unem, e por mais benefícios que seu trabalho conjunto possa trazer, eles o perceberão como limitação à sua liberdade de buscar o que quer que lhes pareça adequado separadamente, e não ajudarão. As únicas duas coisas úteis que se espera e se deseja do “poder público” são que ele observe os “direitos humanos”, isto é, que permita que cada um siga seu próprio caminho, e que permita que todos o façam “em paz” — protegendo a segurança de seus corpos e posses, trancando criminosos reais ou potenciais nas prisões e mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo tipo de estranhos constrangedores e maus. (...)

Em suma: o outro lado da individualização parece ser a corrosão e a lenta desintegração da cidadania. Joël Roman, co-editor de Ésprit, assinala em seu livro recente (La démocratie des individus, 1998) que “a vigilância é degradada à guarda dos bens, enquanto o interesse geral não é mais que um sindicato de egoísmos, que envolve emoções coletivas e o medo do vizinho”. Roman concita os leitores a buscarem uma “renovada capacidade de decidir em conjunto” — hoje notável por sua inexistência.

Se o indivíduo é o pior inimigo do cidadão, e se a individualização anuncia problemas para a cidadania e para a política fundada na cidadania, é porque os cuidados e preocupações dos indivíduos enquanto indivíduos enchem o espaço público até o topo, afirmando-se como seus únicos ocupantes legítimos e expulsando tudo mais do discurso público. O “público” é colonizado pelo “privado” o “interesse público” é reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição pública das questões privadas e a confissões de sentimentos privados (quanto mais íntimos, melhor). As “questões públicas” que resistem a essa redução tornam-se quase incompreensíveis.

As perspectivas de que os atores individualizados sejam “reacomodados” no corpo republicano dos cidadãos são nebulosas. O que os leva a aventurar-se no palco público não é tanto a busca de causas comuns e de meios de negociar o sentido do bem comum e dos princípios da vida em comum quanto a necessidade desesperada de “fazer parte da rede”. Compartilhar intimidades, como Richard Sennett insiste, tende a ser o método preferido, e talvez o único que resta, de “construção da comunidade”. Essa técnica de construção só pode criar “comunidades” tão frágeis e transitórias como emoções esparsas e fugidias, saltando erraticamente de um objetivo a outro na busca sempre inconclusiva de um porto seguro: comunidades de temores, ansiedades e ódios compartilhados — mas em cada caso comunidades “cabide”, reuniões momentâneas em que muitos indivíduos solitários penduram seus solitários medos individuais. Como diz Ulrich Beck (no ensaio “Sobre a mortalidade da sociedade industrial”),

O que emerge no lugar das normas sociais evanescentes é o ego nu, atemorizado e agressivo à procura de amor e de ajuda. Na procura de si mesmo e de uma sociabilidade afetuosa, ele facilmente se perde na selva do eu … Alguém que tateia na bruma de seu próprio eu não é mais capaz de perceber que esse isolamento, esse “confinamento solitário do ego”, é uma sentença de massa.11

11. In Ulrich Beck, Ecological Enlightenment: Essays on the Politics of the Risk Society, Nova Jersey: Humanity Press, 1995, p.40.

 

 

O compromisso da teoria crítica

na sociedade dos indivíduos

 

O impulso modernizante, em qualquer de suas formas, significa a crítica compulsiva da realidade. A privatização do impulso significa a compulsiva auto-crítica nascida da desafeição perpétua: ser um indivíduo de jure significa não ter ninguém a quem culpar pela própria miséria, significa não procurar as causas das próprias derrotas senão na própria indolência e preguiça, e não procurar outro remédio senão tentar com mais e mais determinação.

Viver diariamente com o risco da auto-reprovação e do autodesprezo não é fácil. Com os olhos postos em seu próprio desempenho — e portanto desviados do espaço social onde as contradições da existência individual são coletivamente produzidas —, os homens e mulheres são naturalmente tentados a reduzir a complexidade de sua situação a fim de tornarem as causas do sofrimento inteligíveis e, assim, tratáveis. Não que considerem as “soluções biográficas” onerosas e embaraçosas; simplesmente não há “soluções biográficas para contradições sistêmicas” eficazes, e assim a escassez de soluções possíveis à disposição precisa ser compensada por soluções imaginárias. No entanto — imaginárias ou genuínas —, todas as “soluções”, para parecerem razoáveis e viáveis, devem ser acompanhadas pela “individualização” das tarefas e responsabilidades. Há, então, demanda por cabides individuais onde os indivíduos atemorizados possam pendurar coletiva, ainda que brevemente, seus temores individuais. Nosso tempo é propício aos bodes expiatórios — sejam eles políticos que fazem de suas vidas privadas uma confusão, criminosos que se esgueiram nas ruas e nos bairros perigosos ou “estrangeiros entre nós”. O nosso é um tempo de cadeados, cercas de arame farpado, ronda dos bairros e vigilantes; e também de jornalistas de tabloides “investigativos” que pescam conspirações para povoar de fantasmas o espaço público funestamente vazio de atores, conspirações suficientemente ferozes para liberar boa parte dos medos e ódios reprimidos em nome de novas causas plausíveis para o “pânico moral”.

Repito: há um grande e crescente abismo entre a condição de indivíduos de jure e suas chances de se tornar indivíduos de facto — isto é, de ganhar controle sobre seus destinos e tomar as decisões que em verdade desejam. É desse abismo que emanam os eflúvios mais venenosos que contaminam as vidas dos indivíduos contemporâneos. Esse abismo não pode ser transposto apenas por esforços individuais: não pelos meios e recursos disponíveis dentro da política-vida autoadministrada. Transpor o abismo é a tarefa da Política com P maiúsculo. Pode-se supor que o abismo em questão emergiu e cresceu precisamente por causa do esvaziamento do espaço público, e particularmente da ágora, aquele lugar intermediário, público/privado, onde a política-vida encontra a Política com P maiúsculo, onde os problemas privados são traduzidos para a linguagem das questões públicas e soluções públicas para os problemas privados são buscadas, negociadas e acordadas.

A mesa foi virada, por assim dizer: a tarefa da teoria crítica foi invertida. Essa tarefa costumava ser a defesa da autonomia privada contra as tropas avançadas da “esfera pública”, soçobrando sob o domínio opressivo do Estado onipotente e impessoal e de seus muitos tentáculos burocráticos ou réplicas em escala menor. Hoje a tarefa é defender o evanescente domínio público, ou, antes, reequipar e repovoar o espaço público que se esvazia rapidamente devido à deserção de ambos os lados: a retirada do “cidadão interessado” e a fuga do poder real para um território que, por tudo que as instituições democráticas existentes são capazes de realizar, só pode ser descrito como um “espaço cósmico”.

Não é mais verdade que o “público” tente colonizar o “privado”. O que se dá é o contrário: é o privado que coloniza o espaço público, espremendo e expulsando o que quer que não possa ser expresso inteiramente, sem deixar resíduos, no vernáculo dos cuidados, angústias e iniciativas privadas. Repetidamente informado de que é o senhor de seu próprio destino, o indivíduo não tem razão de atribuir “relevância tópica” (o termo é de Alfred Schütz) ao que quer que resista a ser engolfado no eu e trabalhado com os recursos do eu; mas ter essa razão e agir sobre ela é precisamente a marca registrada do cidadão.

Para o indivíduo, o espaço público não é muito mais que uma tela gigante em que as aflições privadas são projetadas sem cessar, sem deixarem de ser privadas ou adquirirem novas qualidades coletivas no processo da ampliação: o espaço público é onde se faz a confissão dos segredos e intimidades privadas. Os indivíduos retornam de suas excursões diárias ao espaço “público” reforçados em sua individualidade de jure e tranquilizados de que o modo solitário como levam sua vida é o mesmo de todos os outros “indivíduos como eles”, enquanto — também como eles — dão seus próprios tropeços e sofrem suas (talvez transitórias) derrotas no processo.

Quanto ao poder, ele navega para longe da rua e do mercado, das assembleias e dos parlamentos, dos governos locais e nacionais, para além do alcance do controle dos cidadãos, para a extraterritorialidade das redes eletrônicas. Os princípios estratégicos favoritos dos poderes existentes hoje em dia são fuga, evitação e descompromisso, e sua condição ideal é a invisibilidade. Tentativas de prever seus movimentos e as consequências não-previstas de seus movimentos (sem falar dos esforços para deter ou impedir os mais indesejáveis entre eles) têm uma eficácia prática semelhante à da “Liga para Impedir Mudanças Meteorológicas”.

E assim o espaço público está cada vez mais vazio de questões públicas. Ele deixa de desempenhar sua antiga função de lugar de encontro e diálogo sobre problemas privados e questões públicas. Na ponta da corda que sofre as pressões individualizantes, os indivíduos estão sendo, gradual mas consistentemente, despidos da armadura protetora da cidadania e expropriados de suas capacidades e interesses de cidadãos. Nessas circunstâncias, a perspectiva de que o indivíduo de jure venha a se tornar algum dia indivíduo de facto (aquele que controla os recursos indispensáveis à genuína autodeterminação) parece cada vez mais remota.

O indivíduo de jure não pode se tornar indivíduo de facto sem antes tornar-se cidadão. Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma, e a autonomia da sociedade requer uma autoconstituição deliberada e perpétua, algo que só pode ser uma realização compartilhada de seus membros.

“Sociedade” sempre manteve uma relação ambígua com a autonomia individual: era simultaneamente sua inimiga e condição sine qua non. Mas as proporções de ameaças e oportunidades no que forçosamente continuará sendo uma relação ambivalente mudaram radicalmente no curso da história moderna. Embora as razões para examiná-la de perto possam não ter desaparecido, a sociedade é hoje antes de tudo a condição de que os indivíduos precisam muito, e que lhes faz falta — em sua luta vã e frustrante para transformar seu status de jure em genuína autonomia e capacidade de auto-afirmação.

Esta é, nos termos mais amplos, a situação que hoje se coloca para a teoria crítica — e, em termos mais gerais, para a crítica social. Ela se reduz a unir novamente o que a combinação da individualização formal e o divórcio entre o poder e a política partiram em pedaços. Em outras palavras, redesenhar e repovoar a hoje quase vazia ágora — o lugar de encontro, debate e negociação entre o indivíduo e o bem comum, privado e público. Se o velho objetivo da teoria crítica — a emancipação humana — tem qualquer significado hoje, ele é o de reconectar as duas faces do abismo que se abriu entre a realidade do indivíduo de jure e as perspectivas do indivíduo de facto. E indivíduos que reaprenderam capacidades esquecidas e reapropriaram ferramentas perdidas da cidadania são os únicos construtores à altura da tarefa de erigir essa ponte em particular.”

 

 

A união entre conhecimento e poder, mera fantasia nos tempos de Platão, tornou-se um postulado rotineiro e quase axiomático da filosofia e uma afirmação comum e diariamente repetida da política. De algo pelo quê se poderia morrer, a verdade tornou-se algo que oferecia boas razões pelas quais se poderia matar. (Foi um pouco das duas coisas todo o tempo, mas as proporções na mistura mudaram drasticamente). Era portanto natural e razoável esperar, nos tempos de Adorno, que os rejeitados apóstolos das boas notícias recorressem à força sempre que pudessem; e buscassem a dominação para quebrar a resistência e compelir, impelir ou subornar seus opositores a seguir a rota que relutavam a encetar. Ao velho dilema — como encontrar as palavras adequadas aos ouvidos não-iniciados sem comprometer a essência da mensagem; como expressar a verdade numa forma fácil de compreender e suficientemente atraente para que sua compreensão pudesse ser desejada sem deturpar ou diluir seu conteúdo —, a esse dilema veio somar-se uma nova dificuldade, particularmente dura e angustiante no caso de uma mensagem com ambições emancipadoras e libertadoras: como evitar, ou ao menos limitar, o impacto corruptor do poder e da dominação, vistos agora como principal veículo portador da mensagem aos recalcitrantes e indiferentes?”

 

 

“Havia um traço anarquista em toda a teorização crítica: todo poder era suspeito, via-se o inimigo apenas no lado do poder, e o mesmo inimigo era acusado de todos os retrocessos e frustrações sofridas pela liberdade (inclusive pela falta de valor das tropas que deveriam enfrentar valentemente suas guerras de libertação, como no caso do debate da “cultura de massas”). Esperava-se que o perigo viesse e os golpes fossem desferidos do lado “público”, sempre pronto a invadir e colonizar o “privado”, o “subjetivo”, o “individual”. Muito menos atenção — quase nenhuma — foi dada aos perigos que se ocultavam no estreitamento e esvaziamento do espaço público e à possibilidade da invasão inversa: a colonização da esfera pública pela privada. E no entanto essa eventualidade subestimada e subdiscutida se tornou hoje o principal obstáculo à emancipação, que em seu estágio presente só pode ser descrita como a tarefa de transformar a autonomia individual de jure numa autonomia de facto.

O poder político implica uma liberdade individual incompleta, mas sua retirada ou desaparecimento prenuncia a impotência prática da liberdade legalmente vitoriosa. A história da emancipação moderna desloca-se de um confronto com o primeiro perigo para um confronto com o segundo. Para utilizar os termos de Isaiah Berlin, pode-se dizer que, depois da luta vitoriosa pela “liberdade negativa”, as alavancas necessárias para transformá-la numa “liberdade positiva” — isto é, a liberdade para estabelecer a gama de opções e a agenda para a escolha entre elas — quebraram. O poder político perdeu muito de sua terrível e ameaçadora potência opressiva — mas também perdeu boa parte de sua potência capacitadora. A guerra pela emancipação não acabou. Mas, para progredir, deve agora ressuscitar o que na maior parte de sua história lutou por destruir e afastar do caminho. A verdadeira libertação requer hoje mais, e não menos, da “esfera pública” e do “poder público”. Agora é a esfera pública que precisa desesperadamente de defesa contra o invasor privado — ainda que, paradoxalmente, não para reduzir, mas para viabilizar a liberdade individual.

Como sempre, o trabalho do pensamento crítico é trazer à luz os muitos obstáculos que se amontoam no caminho da emancipação. Dada a natureza das tarefas de hoje, os principais obstáculos que devem ser examinados urgentemente estão ligados às crescentes dificuldades de traduzir os problemas privados em questões públicas, de condensar problemas intrinsecamente privados em interesses públicos que são maiores que a soma de seus ingredientes individuais, de recoletivizar as utopias privatizadas da “política-vida” de tal modo que possam assumir novamente a forma das visões da sociedade “boa” e “justa”. Quando a política pública abandona suas funções e a “política-vida” assume, os problemas enfrentados pelos indivíduos de jure em seus esforços para se tornarem indivíduos de facto passam a ser não-aditivos e não-cumulativos, destituindo assim a esfera pública de toda substância que não seja a do lugar em que as aflições individuais são confessadas e expostas publicamente. Do mesmo modo, a individualização parece ser uma via de mão única, e também parece destruir, ao avançar, todas as ferramentas que poderiam ser usadas para implementar seus objetivos de outrora.”

 

 

“O mundo é uma comédia para os que pensam, e uma tragédia para os que sentem.” (Horace Walpole)

 

 

“Viver num mundo cheio de oportunidades — cada uma mais apetitosa e atraente que a anterior, cada uma “compensando a anterior, e preparando o terreno para a mudança para a seguinte”8 — é uma experiência divertida. Nesse mundo, poucas coisas são predeterminadas, e menos ainda irrevogáveis. Poucas derrotas são definitivas, pouquíssimos contratempos, irreversíveis; mas nenhuma vitória é tampouco final. Para que as possibilidades continuem infinitas, nenhuma deve ser capaz de petrificar-se em realidade para sempre. Melhor que permaneçam líquidas e fluidas e tenham “data de validade”, caso contrário poderiam excluir as oportunidades remanescentes e abortar o embrião da próxima aventura. Como dizem Zbyszko Melosik e Tomasz Szkudlarek em seu interessante estudo de problemas da identidade,9 viver em meio a chances aparentemente infinitas (ou pelo menos em meio a maior número de chances do que seria razoável experimentar) tem o gosto doce da “liberdade de tornar-se qualquer um”. Porém essa doçura tem uma cica amarga porque, enquanto o “tornar-se” sugere que nada está acabado e temos tudo pela frente, a condição de “ser alguém”, que o tornar-se deve assegurar, anuncia o apito final do árbitro, indicando o fim do jogo: “Você não está mais livre quando chega o final; você não é você, mesmo que tenha se tornado alguém.” Estar inacabado, incompleto e subdeterminado é um estado cheio de riscos e ansiedade, mas seu contrário também não traz um prazer pleno, pois fecha antecipadamente o que a liberdade precisa manter aberto.

A consciência de que o jogo continua, de que muito vai ainda acontecer, e o inventário das maravilhas que a vida pode oferecer são muito agradáveis e satisfatórios. A suspeita de que nada do que já foi testado e apropriado é duradouro e garantido contra a decadência é, porém, a proverbial mosca na sopa. As perdas equivalem aos ganhos. A vida está fadada a navegar entre os dois, e nenhum marinheiro pode alardear ter encontrado um itinerário seguro e sem riscos.

O mundo cheio de possibilidades é como uma mesa de bufê com tantos pratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia esperar provar de todos. Os comensais são consumidores, e a mais custosa e irritante das tarefas que se pode pôr diante de um consumidor é a necessidade de estabelecer prioridades: a necessidade de dispensar algumas opções inexploradas e abandoná-las. A infelicidade dos consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha. “Será que utilizei os meios à minha disposição da melhor maneira possível?” é a pergunta que mais assombra e causa insônia ao consumidor. Como disse Marina Bianchi num trabalho coletivo de economistas que tinham em mente os vendedores de bens de consumo,

no caso do consumidor, a função objetiva … está vazia …

Os fins coerentemente se equivalem aos meios, mas os próprios fins não são escolhidos racionalmente …

Hipoteticamente, os consumidores, mas não as firmas, não podem nunca errar, ou ser pegos errando.10

Mas se não se pode errar, também não se pode saber se se está certo. Se não há movimentos errados, não há nada que permita distinguir um movimento como melhor, e assim nada que permita reconhecer o movimento certo entre as várias alternativas — nem antes nem depois de fazer o movimento. É uma bênção mista que o perigo do erro não esteja nas cartas — uma alegria duvidosa, certamente, dado que seu preço é a incerteza perpétua e um desejo que provavelmente nunca será saciado. É uma boa notícia, uma promessa de permanecer no ramo, para os vendedores, mas para os compradores é a certeza de que continuarão aflitos.”

8. David Miller, A Theory of Shopping, Cambridge: Polity Press, 1998, p.141.

9. Zbyzko Melosik e Tomasz Szkudlarek, Kultura, Tozsamosc i Demokracja: Migotanie Znaczen, Cracóvia: Impuls, 1998, p.89.

10. Marina Bianchi, The Active Consumer: Novelty and Surprise in Consumer Choice, Londres: Routledge, 1998, p.6.

 

 

“Como observou Daniel J. Boorstin — com graça, mas não de brincadeira (em The Image, 1961) —, uma celebridade é uma pessoa conhecida por ser muito conhecida, e um best-seller é um livro que vende bem porque está vendendo bem. A autoridade amplia o número de seguidores, mas, no mundo de fins incertos e cronicamente subdeterminados, é o número de seguidores que faz — que é — a autoridade.”

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