quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Modernidade Líquida (Parte IV), de Zygmunt Bauman

Editora: Zahar

ISBN: 978-65-5979-000-5

Tradução: Plínio Dentzien

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 280

Sinopse: Ver Parte I



“Pode-se sempre responder que não há nada particularmente novo nessa situação: a vida de trabalho sempre foi cheia de incertezas, desde tempos imemoriais. A incerteza de hoje, porém, é de um tipo inteiramente novo. Os temíveis desastres que podem devastar nossa sobrevivência e suas perspectivas não são do tipo que possa ser repelido ou contra que se possa lutar unindo forças, permanecendo unidos e com medidas debatidas, acordadas e postas em prática em conjunto. Os desastres mais terríveis acontecem hoje aleatoriamente, escolhendo suas vítimas com a lógica mais bizarra ou sem qualquer lógica, distribuindo seus golpes caprichosamente, de tal forma que não há como prever quem será condenado e quem será salvo. A incerteza do presente é uma poderosa força individualizadora. Ela divide em vez de unir, e como não há maneira de dizer quem acordará no próximo dia em qual divisão, a ideia de “interesse comum” fica cada vez mais nebulosa e perde todo valor prático.

Os medos, ansiedades e angústias contemporâneos são feitos para serem sofridos em solidão. Não se somam, não se acumulam numa “causa comum”, não têm endereço específico, e muito menos óbvio. Isso priva as posições de solidariedade de seu status antigo de táticas racionais e sugere uma estratégia de vida muito diferente da que levou ao estabelecimento das organizações militantes em defesa da classe trabalhadora. Ao falar com pessoas já atingidas ou que temiam vir a ser atingidas pelas mudanças correntes nas condições de emprego, Pierre Bourdieu ouviu vezes sem conta que “em face das novas formas de exploração, notavelmente favorecidas pela desregulação do trabalho e pelo desenvolvimento do emprego temporário, as formas tradicionais de ação sindical são consideradas inadequadas”. Bourdieu conclui que fatos recentes “quebraram os fundamentos das solidariedades passadas” e que o resultante “desencantamento vai de mãos dadas com o desaparecimento do espírito de militância e participação política”.15

Quando a utilização do trabalho se torna de curto prazo e precária, tendo sido ele despido de perspectivas firmes (e muito menos garantidas) e portanto tornado episódico, quando virtualmente todas as regras relativas ao jogo das promoções e demissões foram esgotadas ou tendem a ser alteradas antes que o jogo termine, há pouca chance de que a lealdade e o compromisso mútuos brotem e se enraízem. Ao contrário dos tempos de dependência mútua de longo prazo, não há quase estímulo para um interesse agudo, sério e crítico por conhecer os empreendimentos comuns e os arranjos a eles relacionados, que de qualquer forma seriam transitórios. O emprego parece um acampamento que se visita por alguns dias e que se pode abandonar a qualquer momento se as vantagens oferecidas não se verificarem ou se forem consideradas insatisfatórias — e não com um domicílio compartilhado onde nos inclinamos a ter trabalho e construir pacientemente regras aceitáveis de convivência. Mark Granovetter sugeriu que o nosso é um tempo de “laços fracos”, enquanto Sennett propõe que “formas fugazes de associação são mais úteis para as pessoas que conexões de longo prazo”.16

A presente versão “liquefeita”, “fluida”, dispersa, espalhada e desregulada da modernidade pode não implicar o divórcio e ruptura final da comunicação, mas anuncia o advento do capitalismo leve e flutuante, marcado pelo desengajamento e enfraquecimento dos laços que prendem o capital ao trabalho. Pode-se dizer que esse movimento ecoa a passagem do casamento para o “viver junto”, com todas as atitudes disso decorrentes e consequências estratégicas, incluindo a suposição da transitoriedade da coabitação e da possibilidade de que a associação seja rompida a qualquer momento e por qualquer razão, uma vez desaparecida a necessidade ou o desejo. Se manter-se juntos era uma questão de acordo recíproco e de mútua dependência, o desengajamento é unilateral: um dos lados da configuração adquiriu uma autonomia que talvez sempre tenha desejado secretamente mas que nunca havia manifestado seriamente antes. Numa medida nunca alcançada na realidade pelos “senhores ausentes” de outrora, o capital rompeu sua dependência em relação ao trabalho com uma nova liberdade de movimentos, impensável no passado. A reprodução e o crescimento do capital, dos lucros e dos dividendos e a satisfação dos acionistas se tornaram independentes da duração de qualquer comprometimento local com o trabalho.

É claro que a independência não é completa, e o capital não é ainda tão volátil como gostaria de e tenta ser. Fatores territoriais — locais — ainda devem ser considerados na maioria dos cálculos, e o “poder de confusão” dos governos locais ainda pode colocar limites constrangedores à sua liberdade de movimento. Mas o capital se tornou exterritorial, leve, desembaraçado e solto numa medida sem precedentes, e seu nível de mobilidade espacial é na maioria dos casos suficiente para chantagear as agências políticas dependentes de território e fazê-las se submeterem a suas demandas.”

15. Pierre Bourdieu (org.), La misère du monde, Paris: Seuil, 1993, p.631, 628.

16. Sennett, The Corrosion of Character, p.24.

 

 

“Na falta de segurança de longo prazo, a “satisfação instantânea” parece uma estratégia razoável. O que quer que a vida ofereça, que o faça hic et nunc — no ato. Quem sabe o que o amanhã vai trazer? O adiamento da satisfação perdeu seu fascínio. É, afinal, altamente incerto que o trabalho e o esforço investidos hoje venham a contar como recursos quando chegar a hora da recompensa. Está longe de ser certo, além disso, que os prêmios que hoje parecem atraentes serão tão desejáveis quando finalmente forem conquistados. Todos aprendemos com amargas experiências que os prêmios podem se tornar riscos de uma hora para outra e prêmios resplandecentes podem se tornar marcas de vergonha. As modas vêm e vão com velocidade estonteante, todos os objetos de desejo se tornam obsoletos, repugnantes e de mau-gosto antes que tenhamos tempo de aproveitá-los. Estilos de vida que são “chiques” hoje serão amanhã alvos do ridículo. Citando Bourdieu uma vez mais: “Os que deploram o cinismo que marca os homens e mulheres de nosso tempo não deveriam deixar de relacioná-lo às condições sociais e econômicas que o favorecem…” Quando Roma pega fogo e há muito pouco ou nada que se possa fazer para controlar o incêndio, tocar violino não parece mais bobo nem menos adequado do que fazer qualquer outra coisa.

Condições econômicas e sociais precárias treinam homens e mulheres (ou os fazem aprender pelo caminho mais difícil) a perceber o mundo como um contêiner cheio de objetos descartáveis, objetos para uma só utilização; o mundo inteiro — inclusive outros seres humanos. Além disso, o mundo parece ser constituído de “caixas pretas”, hermeticamente fechadas, e que jamais deverão ser abertas pelos usuários, nem consertadas quando quebram. Os mecânicos de automóveis de hoje não são treinados para consertar motores quebrados ou danificados, mas apenas para retirar e jogar fora as peças usadas ou defeituosas e substituí-las por outras novas e seladas, diretamente da prateleira. Eles não têm a menor ideia da estrutura interna das “peças sobressalentes” (uma expressão que diz tudo), do modo misterioso como funcionam; não consideram esse entendimento e a habilidade que o acompanha como sua responsabilidade ou como parte de seu campo de competência. Como na oficina mecânica, assim também na vida em geral: cada “peça” é “sobressalente” e substituível, e assim deve ser. Por que gastar tempo com consertos que consomem trabalho, se não é preciso mais que alguns momentos para jogar fora a peça danificada e colocar outra em seu lugar?

Num mundo em que o futuro é, na melhor das hipóteses, sombrio e nebuloso, porém mais provavelmente cheio de riscos e perigos, colocar-se objetivos distantes, abandonar o interesse privado para aumentar o poder do grupo e sacrificar o presente em nome de uma felicidade futura não parecem uma proposição atraente, ou mesmo razoável. Qualquer oportunidade que não for aproveitada aqui e agora é uma oportunidade perdida; não a aproveitar é assim imperdoável e não há desculpa fácil para isso, e nem justificativa. Como os compromissos de hoje são obstáculos para as oportunidades de amanhã, quanto mais forem leves e superficiais, menor o risco de prejuízos. “Agora” é a palavra-chave da estratégia de vida, ao que quer que essa estratégia se aplique e independente do que mais possa sugerir. Num mundo inseguro e imprevisível, o viajante esperto fará o possível para imitar os felizes globais que viajam leves; e não derramarão muitas lágrimas ao se livrar de qualquer coisa que atrapalhe os movimentos. Raramente param por tempo suficiente para imaginar que os laços humanos não são como peças de automóvel — que raramente vêm prontos, que tendem a se deteriorar e desintegrar facilmente se ficarem hermeticamente fechados e que não são fáceis de substituir quando perdem a utilidade.

E assim a política de “precarização” conduzida pelos operadores dos mercados de trabalho acaba sendo apoiada e reforçada pelas políticas de vida, sejam elas adotadas deliberadamente ou apenas por falta de alternativas. Ambas convergem para o mesmo resultado: o enfraquecimento e decomposição dos laços humanos, das comunidades e das parcerias. Compromissos do tipo “até que a morte nos separe” se transformam em contratos do tipo “enquanto durar a satisfação”, temporais e transitórios por definição, por projeto e por impacto pragmático — e assim passíveis de ruptura unilateral, sempre que um dos parceiros perceba melhores oportunidades e maior valor fora da parceria do que em tentar salvá-la a qualquer — incalculável — custo.

Em outras palavras, laços e parcerias tendem a ser vistos e tratados como coisas destinadas a serem consumidas, e não produzidas; estão sujeitas aos mesmos critérios de avaliação de todos os outros objetos de consumo. No mercado de consumo, os produtos duráveis são em geral oferecidos por um “período de teste” a devolução do dinheiro é prometida se o comprador estiver menos que totalmente satisfeito. Se o participante numa parceria é “concebido” em tais termos, então não é mais tarefa para ambos os parceiros “fazer com que a relação funcione”, “na riqueza e na pobreza”, na saúde e na doença, trabalhar a favor nos bons e maus momentos, repensar, se necessário, as próprias preferências, conceder e fazer sacrifícios em favor da uma união duradoura. É, em vez disso, uma questão de obter satisfação de um produto pronto para o consumo; se o prazer obtido não corresponder ao padrão prometido e esperado, ou se a novidade se acabar junto com o gozo, pode-se entrar com a ação de divórcio, com base nos direitos do consumidor. Não há qualquer razão para ficar com um produto inferior ou envelhecido em vez de procurar outro “novo e aperfeiçoado” nas lojas.

O que se segue é que a suposta transitoriedade das parcerias tende a se tornar uma profecia autocumprida. Se o laço humano, como todos os outros objetos de consumo, não é alguma coisa a ser trabalhada com grande esforço e sacrifício ocasional, mas algo de que se espera satisfação imediata, instantânea, no momento da compra — e algo que se rejeita se não satisfizer, a ser usada apenas enquanto continuar a satisfazer (e nem um minuto além disso) —, então não faz sentido “jogar dinheiro bom em cima de dinheiro ruim”, tentar cada vez mais, e menos ainda sofrer com o desconforto e o embaraço para salvar a parceria. Mesmo um pequeno problema pode causar a ruptura da parceria; desacordos triviais se tornam conflitos amargos, pequenos atritos são tomados como sinais de incompatibilidade essencial e irreparável. Como o sociólogo norte-americano W.I. Thomas teria dito, se tivesse testemunhado essa situação: se as pessoas supõem que seus compromissos são temporários e até segunda ordem, esses compromissos tendem a se tornar temporários em consequência das próprias ações dessas pessoas.

A precariedade da existência social inspira uma percepção do mundo em volta como um agregado de produtos para consumo imediato. Mas a percepção do mundo, com seus habitantes, como um conjunto de itens de consumo, faz da negociação de laços humanos duradouros algo excessivamente difícil. Pessoas inseguras tendem a ser irritáveis; são também intolerantes com qualquer coisa que funcione como obstáculo a seus desejos; e como muitos desses desejos serão de qualquer forma frustrados, não há escassez de coisas e pessoas que sirvam de objeto a essa intolerância. Se a satisfação instantânea é a única maneira de sufocar o sentimento de insegurança (sem jamais saciar a sede de segurança e certeza), não há razão evidente para ser tolerante em relação a alguma coisa ou pessoa que não tenha óbvia relevância para a busca da satisfação, e menos ainda em relação a alguma coisa ou pessoa complicada ou relutante em trazer a satisfação que se busca.

Há ainda outra ligação entre a “consumização” de um mundo precário e a desintegração dos laços humanos. Ao contrário da produção, o consumo é uma atividade solitária, irremediavelmente solitária, mesmo nos momentos em que se realiza na companhia de outros. Esforços produtivos (em geral de longo prazo) requerem cooperação mesmo quando apenas demandam a adição de força muscular bruta: se carregar um pesado tronco de um lugar para outro requer uma hora a oito homens, não se segue que um homem o possa fazer em oito (ou qualquer número de) horas. No caso de tarefas mais complexas que envolvem a divisão do trabalho e demandam diversas habilidades especializadas que não se encontram em uma só pessoa, a necessidade de cooperação é ainda mais óbvia; sem ela, o produto não teria chance de surgir. É a cooperação que transforma os esforços diversos e dispersos em esforços produtivos. No caso do consumo, porém, a cooperação não só é desnecessária como é inteiramente supérflua. O que é consumido o é individualmente, mesmo que num saguão repleto.”

 

 

“A passagem do capitalismo pesado ao leve e da modernidade sólida à fluida ou liquefeita é o quadro em que a história do movimento dos trabalhadores foi inscrita. Ela também vai longe para dar sentido às notórias reviravoltas dessa história. Não seria nem razoável nem particularmente esclarecedor dar conta dos lúgubres dilemas em que o movimento dos trabalhadores caiu na parte “avançada” (no sentido “modernizante”) do mundo, em relação à mudança na disposição do público — tenha sido ela produzida pelo impacto debilitante dos meios de comunicação de massa, por uma conspiração dos anunciantes, pela sedutora atração da sociedade do consumo ou pelos efeitos soporíferos da sociedade do espetáculo e do entretenimento. Culpar os atabalhoados ou ambíguos “políticos trabalhistas” também não ajuda. Os fenômenos invocados nessas explicações não são imaginários, mas não funcionariam como explicações se não fosse pelo fato de que o contexto da vida, o ambiente social em que as pessoas (raramente por sua própria escolha) conduzem os afazeres da vida, mudou radicalmente desde o tempo em que os trabalhadores que se amontoavam nas fábricas de produção em larga escala se uniam para lutar por termos mais humanos e compensadores de venda de seu trabalho, e os teóricos e práticos do movimento dos trabalhadores sentiam na solidariedade destes o desejo, informe e ainda não articulado (mas inato e a longo prazo avassalador), de uma “boa sociedade” que efetivaria os princípios universais da justiça.”

 

 

Parece haver pouca esperança de resgatar os serviços de certeza, segurança e garantias do Estado. A liberdade da política do Estado é incansavelmente erodida pelos novos poderes globais providos das terríveis armas da extraterritorialidade, velocidade de movimento e capacidade de evasão e fuga; a retribuição pela violação do novo estatuto global é rápida e impiedosa. De fato, a recusa a participar do jogo nas novas regras globais é o crime a ser mais impiedosamente punido, crime que o poder do Estado, preso ao solo por sua própria soberania territorialmente definida, deve impedir-se de cometer e evitar a qualquer custo.

Muitas vezes a punição é econômica. Governos insubordinados, culpados de políticas protecionistas ou provisões públicas generosas para os setores “economicamente dispensáveis” de suas populações e de não deixar o país à mercê dos “mercados financeiros globais” e do “livre comércio global”, têm seus empréstimos recusados e negada a redução de suas dívidas; as moedas locais são transformadas em leprosas globais, pressionadas à desvalorização e sofrem ataques especulativos; as ações locais caem nas bolsas globais; o país é isolado por sanções econômicas e passa a ser tratado por parceiros comerciais passados e futuros como um pária global; os investidores globais cortam suas perdas antecipadas, embalam seus pertences e retiram seus ativos, deixando que as autoridades locais limpem os resíduos e resgatem as vítimas.

Ocasionalmente, no entanto, a punição não se confina a “medidas econômicas”. Governos particularmente obstinados (mas não fortes o bastante para resistir por muito tempo) recebem uma lição exemplar que tem por objetivo advertir e atemorizar seus imitadores potenciais. Se a demonstração diária e rotineira da superioridade das forças globais não for suficiente para forçar o Estado a ver a razão e cooperar com a nova “ordem mundial”, a força militar é exercida: a superioridade da velocidade sobre a lentidão, da capacidade de escapar sobre a necessidade de engajar-se no combate, da extraterritorialidade sobre a localidade, tudo isso se manifesta espetacularmente com a ajuda, desta vez, de forças armadas especializadas em táticas de atacar e correr e a estrita separação entre “vidas a serem salvas” e vidas que não merecem socorro.”

 

 

Citando a opinião do poeta tcheco Jan Skácel sobre a condição do poeta (que, nas palavras de Skácel, apenas descobre os versos que “estiveram sempre, profundamente, lá”), Milan Kundera comenta (em L’Art du roman, 1986): “Escrever significa para o poeta romper a muralha atrás da qual se esconde alguma coisa que ‘sempre esteve lá’.” Sob esse aspecto, a tarefa do poeta não é diferente da obra da história, que também descobre, e não inventa: a história, como os poetas, descobre, em sempre novas situações, possibilidades humanas antes ocultas.

O que a história faz corriqueiramente é um desafio, uma tarefa e uma missão para o poeta. Para elevar-se a essa missão, o poeta deve recusar servir verdades conhecidas de antemão e bem usadas, verdades já “óbvias” porque trazidas à superfície e aí deixadas a flutuar. Não importa que essas verdades “supostas de antemão” sejam classificadas como revolucionárias ou dissidentes, cristãs ou ateias — ou quão corretas e apropriadas, nobres e justas sejam ou tenham sido proclamadas. Qualquer que seja sua denominação, essas “verdades” não são as “coisas ocultas” que o poeta é chamado a desvelar; são antes partes da muralha que é missão do poeta destruir. Os porta-vozes do óbvio, do auto-evidente e “daquilo em que todos acreditamos” são falsos poetas, diz Kundera.

Mas o que tem que ver a vocação do poeta com a do sociólogo? Nós sociólogos raramente escrevemos poemas. (Alguns de nós que o fazemos tomamos uma licença, para a atividade de escrever, de nossos afazeres profissionais.) E no entanto, se não quisermos partilhar do destino dos “falsos poetas” e não quisermos ser “falsos sociólogos”, devemos nos aproximar tanto quanto os verdadeiros poetas das possibilidades humanas ainda ocultas; e por essa razão devemos perfurar as muralhas do óbvio e do evidente, da moda ideológica do dia cuja trivialidade é tomada como prova de seu sentido. Demolir tais muralhas é vocação tanto do sociólogo quanto do poeta, e pela mesma razão: o emparedamento das possibilidades desvirtua o potencial humano ao mesmo tempo em que obstrui a revelação de seu blefe.

Talvez o verso que o poeta procura tenha Estado “sempre lá”. Não se pode estar tão certo, porém, sobre o potencial humano descoberto pela história. Será que os humanos — os que fazem e os que foram feitos, os heróis e as vítimas da história — sempre carregarão consigo o mesmo volume de possibilidades à espera do momento certo para serem reveladas? Ou a oposição entre descoberta e criação é nula e vazia e não faz sentido? Como a história é o processo infindável da criação humana, não seria ela pela mesma razão o processo infindável do autodescobrimento humano? A propensão para revelar/criar sempre novas possibilidades, para expandir o inventário das possibilidades já descobertas e tornadas reais, não é o único potencial humano que sempre “esteve lá”, e sempre estará? Saber se a nova possibilidade foi criada ou “meramente” revelada pela história é sem dúvida um estímulo bem-vindo para mentes escolásticas; quanto à própria história, ela não espera pela resposta e pode seguir sem ela.”

 

 

“Indivíduos frágeis”, destinados a conduzir suas vidas numa “realidade porosa”, sentem-se como que patinando sobre gelo fino; e “ao patinar sobre gelo fino”, observou Ralph Waldo Emerson em seu ensaio “Prudence”, “nossa segurança está em nossa velocidade”. Indivíduos, frágeis ou não, precisam de segurança, anseiam por segurança, buscam a segurança e assim tentam, ao máximo, fazer o que fazem com a máxima velocidade. Estando entre corredores rápidos, diminuir a velocidade significa ser deixado para trás; ao patinar em gelo fino, diminuir a velocidade também significa a ameaça real de afogar-se. Portanto, a velocidade sobe para o topo da lista dos valores de sobrevivência.

A velocidade, no entanto, não é propícia ao pensamento, pelo menos ao pensamento de longo prazo. O pensamento demanda pausa e descanso, “tomar seu tempo”, recapitular os passos já dados, examinar de perto o ponto alcançado e a sabedoria (ou imprudência, se for o caso) de o ter alcançado. Pensar tira nossa mente da tarefa em curso, que requer sempre a corrida e a manutenção da velocidade. E na falta do pensamento, o patinar sobre o gelo fino que é uma fatalidade para todos os indivíduos frágeis na realidade porosa pode ser equivocadamente tomado como seu destino.

Tomar a fatalidade por destino, como insistia Max Scheler em sua Ordo amoris, é um erro grave: “O destino do homem não é uma fatalidade … A suposição de que fatalidade e destino são a mesma coisa merece ser chamada de fatalismo.” O fatalismo é um erro do juízo, pois de fato a fatalidade “tem uma origem natural e basicamente compreensível”. Além disso, embora não seja uma questão de livre escolha, e particularmente de livre escolha individual, a fatalidade “tem origem na vida de um homem ou de um povo”. Para ver tudo isso, para notar a diferença e a distância entre fatalidade e destino, e escapar à armadilha do fatalismo, são necessários recursos difíceis de obter quando se patina sobre gelo fino: tempo para pensar, e distanciamento para uma visão de conjunto. “A imagem de nosso destino”, adverte Scheler, “só nos abandona quando lhe damos as costas”. Mas o fatalismo é uma atitude que se auto-referenda: faz com que o “voltar as costas”, essa conditio sine qua non do pensamento, pareça inútil e indigno de ser tentado.

Tomar distância, tomar tempo — a fim de separar destino e fatalidade, de emancipar o destino da fatalidade, de torná-lo livre para confrontar a fatalidade e desafiá-la: essa é a vocação da sociologia. E é o que os sociólogos podem fazer caso se esforcem consciente, deliberada e honestamente para refundir a vocação a que atendem — sua fatalidade — em seu destino. (...)

Todos os especialistas lidam com problemas práticos e todo conhecimento especializado se dedica à sua solução, e a sociologia é um ramo do conhecimento especializado cujo problema prático a resolver é o esclarecimento que tem por objetivo a compreensão humana. (...)

Compreender aquilo a que estamos fadados significa estarmos conscientes de que isso é diferente de nosso destino. E compreender aquilo a que estamos fadados é conhecer a rede complexa de causas que provocaram essa fatalidade e sua diferença daquele destino. Para operar no mundo (por contraste a ser “operado” por ele) é preciso entender como o mundo opera.

O tipo de esclarecimento que a sociologia é capaz de dar se endereça a indivíduos que escolhem livremente e têm por objetivo aperfeiçoar e reforçar sua liberdade de escolha. (...)

Citando de Le délabrement de l’Occident, de Cornelius Castoriadis,

uma sociedade autônoma, uma sociedade verdadeiramente democrática, é uma sociedade que questiona tudo o que é pré-determinado e assim libera a criação de novos significados. Em tal sociedade, todos os indivíduos são livres para escolher criar para suas vidas os significados que quiserem (e puderem).

A sociedade é verdadeiramente autônoma quando “sabe, tem que saber, que não há significados ‘assegurados’, que vive na superfície do caos, que ela própria é um caos em busca de forma, mas uma forma que nunca é fixada de uma vez por todas”. A falta de significados garantidos — de verdades absolutas, de normas de conduta pré-ordenadas, de fronteiras pré-traçadas entre o certo e o errado, de regras de ação garantidas — é a conditio sine qua non de, ao mesmo tempo, uma sociedade verdadeiramente autônoma e indivíduos verdadeiramente livres; a sociedade autônoma e a liberdade de seus membros se condicionam mutuamente. A segurança que a democracia e a individualidade podem alcançar depende não de lutar contra a contingência e a incerteza da condição humana, mas de reconhecer e encarar de frente suas consequências.”

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