quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Modernidade Líquida (Parte III), de Zygmunt Bauman

Editora: Zahar

ISBN: 978-65-5979-000-5

Tradução: Plínio Dentzien

Opinião: ★★★★★

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Páginas: 280

Sinopse: Ver Parte I



“Qualquer que seja o caso, no par exemplo-autoridade a parte do exemplo é a mais importante e mais solicitada. As celebridades com autoridade suficiente para fazer com que o que dizem seja digno de atenção mesmo antes que o digam são muito poucas para estrelar os inumeráveis programas de entrevistas da TV (e raramente aparecem nos mais populares deles, como o de Oprah e o de Trisha), mas isso não impede que esses programas sejam uma compulsão diária para milhões de homens e mulheres ávidos por aconselhamento. A autoridade da pessoa que compartilha sua história de vida pode fazer com que os espectadores observem o exemplo com atenção e aumenta os índices de audiência. Mas a falta de autoridade de quem conta sua vida, o fato de ela não ser uma celebridade, sua anonimidade, pode fazer com que o exemplo seja mais fácil de seguir e assim ter um potencial adicional próprio. As não-celebridades, os homens e mulheres “comuns”, “como você e eu”, que aparecem na telinha apenas por um momento passageiro (não mais do que o necessário para contar a história e receber o aplauso merecido, assim como alguma crítica por esconder partes picantes ou gastar tempo demais com as partes desinteressantes) são tão desvalidas e infelizes quanto os espectadores, sofrendo o mesmo tipo de golpes e buscando desesperadamente uma saída honrosa e um caminho promissor para uma vida mais feliz. E assim, o que elas fizeram eu também posso fazer; talvez até melhor. Posso aprender alguma coisa útil tanto com suas vitórias quanto com suas derrotas.

Seria arrogante, além de equivocado, condenar ou ridicularizar o vício dos programas de entrevistas como efeito da eterna avidez humana pela fofoca e da “curiosidade barata”. Num mundo repleto de meios, mas notoriamente pouco claro sobre os fins, as lições retiradas dos programas de entrevistas respondem a uma demanda genuína e têm valor pragmático inegável, pois já sabemos que depende de nós mesmos fazer (e continuar a fazer) o melhor possível de nossas vidas; e como também sabemos que quaisquer recursos requeridos por tal empreendimento só podem ser procurados e encontrados entre nossas próprias habilidades, coragem e determinação, é vital saber como agem outras pessoas diante de desafios semelhantes. Podem ter descoberto estratagemas admiráveis que não percebemos; podem ter explorado partes da questão a que não demos atenção ou em que não nos aprofundamos o suficiente.

Essa não é, porém, a única vantagem. Como dito acima, nomear o problema é em si uma tarefa assustadora, e sem esse nome para o sentimento de inquietação ou infelicidade não há esperança de cura. No entanto, embora o sofrimento seja pessoal e privado, uma “linguagem privada” é uma incongruência. O que quer que seja nomeado, inclusive os sentimentos mais secretos, pessoais e íntimos, só o é propriamente se os nomes escolhidos forem de domínio público, se pertencerem a uma linguagem compartilhada e pública e forem compreendidos pelas pessoas que se comunicam nessa linguagem. Os programas de entrevistas são lições públicas de uma linguagem ainda-não-nascida-mas-prestes-a-nascer. Fornecem as palavras que poderão ser utilizadas para “nomear o problema” — para expressar, em modos publicamente legíveis, o que até agora era inefável e assim permaneceria sem tais palavras.

 Esse é, em si, um ganho da maior importância — mas há ainda outros. Nos programas de entrevistas, palavras e frases que se referem a experiências consideradas íntimas e, portanto, inadequadas como tema de conversa são pronunciadas em público — para aprovação, divertimento e aplauso universais. Pela mesma razão, os programas de entrevistas legitimam o discurso público sobre questões privadas. Tornam o indizível dizível, o vergonhoso, decente, e transformam o feio segredo em questão de orgulho. Até certo ponto são rituais de exorcismo — e muito eficazes. Graças aos programas de entrevistas, posso falar de agora em diante abertamente sobre coisas que eu pensava (equivocadamente, agora vejo) infames e infamantes e, portanto, destinadas a permanecer secretas e a serem sofridas em silêncio. Como minha confissão não é mais secreta, ganho mais que o conforto da absolvição: não preciso mais me sentir envergonhado ou temeroso de ser desprezado, condenado por impudência ou relegado ao ostracismo. Essas são, afinal, as coisas de que as pessoas falam compungidas na presença de milhões de espectadores. Seus problemas privados, e assim também meus próprios problemas, tão parecidos aos deles, são adequados para discussão pública. Não que se tornem questões públicas; entram na discussão precisamente em sua condição de questões privadas e, por mais que sejam discutidas, como os leopardos, também não mudam suas pintas. Ao contrário, são reafirmadas como privadas e emergirão da exposição pública reforçadas em seu caráter privado. Afinal, todos os que falaram concordaram que, na medida em que foram experimentadas e vividas privadamente, é assim que essas coisas devem ser confrontadas e resolvidas.

Muitos pensadores influentes (sendo Jürgen Habermas o mais importante deles) advertem sobre a possibilidade de que a “esfera privada” seja invadida, conquistada e colonizada pela “pública”. Voltando à memória recente da era que inspirou as distopias como as de Huxley ou de Orwell, pode-se compreender tal temor. As premonições parecem, no entanto, surgir da leitura do que acontece diante de nossos olhos com as lentes erradas. De fato, a tendência oposta à advertência é a que parece estar se operando — a colonização da esfera pública por questões anteriormente classificadas como privadas e inadequadas à exposição pública.

O que está ocorrendo não é simplesmente outra renegociação da fronteira notoriamente móvel entre o privado e o público. O que parece estar em jogo é uma redefinição da esfera pública como um palco em que dramas privados são encenados, publicamente expostos e publicamente assistidos. A definição corrente de “interesse público”, promovida pela mídia e amplamente aceita por quase todos os setores da sociedade, é o dever de encenar tais dramas em público e o direito do público de assistir à encenação. As condições sociais que fazem com que tal desenvolvimento não seja surpreendente e pareça mesmo “natural” devem ficar evidentes à luz do argumento precedente; mas as consequências desse desenvolvimento ainda não foram inteiramente exploradas. Podem ter maior alcance do que em geral se aceita.

A consequência que pode ser considerada mais interessante é o desaparecimento da “política como a conhecemos” — da Política com P maiúsculo, a atividade encarregada de traduzir problemas privados em questões públicas (e vice-versa). É o esforço dessa tradução que hoje está se detendo. Os problemas privados não se tornam questões públicas pelo fato de serem ventilados em público; mesmo sob o olhar público não deixam de ser privados, e o que parece resultar de sua transferência para a cena pública é a expulsão de todos os outros problemas “não-privados” da agenda pública. O que cada vez mais é percebido como “questões públicas” são os problemas privados de figuras públicas. A tradicional questão da política democrática — quão útil ou prejudicial para o bem-estar de seus súditos/eleitores é o modo como as figuras públicas exercitam seus deveres públicos — foi pelo ralo, sinalizando para que o interesse público na boa sociedade, na justiça pública ou na responsabilidade coletiva pelo bem-estar individual a siga no caminho do esquecimento.

Atingido por uma série de “escândalos” (isto é, exposição pública de frouxidão moral nas vidas privadas de figuras públicas), Tony Blair (no Guardian de 11.1.1999) se queixava de que “a política se reduziu a uma coluna de mexericos” e conclamava a audiência a enfrentar a alternativa: “Ou teremos a pauta de notícias dominada pelo escândalo, pelo mexerico e pela trivialidade, ou pelas coisas que realmente importam.”12 Tais palavras não podem senão surpreender, vindo, como vêm, de um político que consulta diariamente “grupos focais” na esperança de ser regularmente informado sobre os sentimentos da base e “as coisas que realmente importam” na opinião de seus eleitores, e cujo modo de manejar as coisas que realmente importam para as condições em que seus eleitores vivem é ela mesma um fator importante no tipo de vida responsável pela “redução da política a uma coluna de mexericos” que ele lamenta.

As condições de vida em questão levam os homens e mulheres a buscar exemplos, e não líderes. Levam-nos a esperar que as pessoas sob os refletores — todas e qualquer uma delas — mostrem como “as coisas que importam” (agora confinadas a suas próprias quatro paredes e aí trancadas) são feitas. Afinal, eles ouvem diariamente que o que está errado em suas vidas provêm de seus próprios erros, foi sua própria culpa e deve ser consertado com suas próprias ferramentas e por seus próprios esforços. Não é, portanto, por acaso que supõem que a maior utilidade (talvez a única) das pessoas que alegam “estar por dentro” é mostrar-lhes como manejar as ferramentas e fazer o esforço. Ouviram repetidamente dessas “pessoas por dentro” que ninguém mais faria o que eles mesmos deveriam fazer, cada um por si. Por que, então, alguém ficaria intrigado se o que atrai a atenção e provoca o interesse de tantos homens e mulheres é o que os políticos (e outras celebridades) fazem em privado? Ninguém entre os “grandes e poderosos”, nem mesmo a “opinião pública” ofendida, propôs o impeachment de Bill Clinton por ter abolido a previdência enquanto “questão federal” — e, portanto, em termos práticos, anulado a promessa coletiva e o dever de proteger os indivíduos contra os movimentos do destino, notórios por seu hábito desagradável de administrar individualmente seus golpes.

No espetáculo colorido das celebridades da telinha e das manchetes, os homens e mulheres de Estado não ocupam uma posição privilegiada. Não importa muito qual a razão da “notoriedade” que, segundo Boorstin, faz com que uma celebridade seja uma celebridade. Um lugar sob os refletores é um modo de ser por si mesmo, que estrelas do cinema, jogadores de futebol e ministros de governo compartilham em igual medida. Um dos requisitos que se aplica a todos é que se espera — “eles têm o dever público” — que confessem “para consumo público” e ponham suas vidas privadas à disposição, e que não reclamem se outros o fizerem por eles. Uma vez expostas, essas vidas privadas podem se mostrar pouco esclarecedoras ou decididamente pouco atraentes: nem todos os segredos privados contêm lições que outras pessoas poderiam considerar úteis. Os desapontamentos, por mais numerosos que sejam, dificilmente mudarão os hábitos confessionais ou dissiparão o apetite pelas confissões; afinal — repito — o modo como as pessoas individuais definem individualmente seus problemas individuais e os enfrentam com habilidades e recursos individuais é a única “questão pública” remanescente e o único objeto de “interesse público”. E enquanto isso for assim, espectadores e ouvintes treinados para confiar em seu próprio julgamento e esforço na busca de esclarecimento e orientação continuarão a olhar para as vidas privadas de outros “como eles” com o mesmo zelo e esperança com que poderiam ter olhado para as lições, homilias e sermões de visionários e pregadores quando acreditavam que as misérias privadas só poderiam ser aliviadas ou curadas “reunindo as cabeças”, “cerrando fileiras” e “em ordem unida”.”

12. Um corolário apropriado e perspicaz do espanto de Tony Blair aparece na carta de Dr. Spencer Fitz-Gibbon ao Guardian: “É interessante que Robin Cook seja um homem mau agora que sua promiscuidade extramatrimonial foi revelada. No entanto, não faz muito tempo ele esteve envolvido na venda de equipamento à ditadura na Indonésia, um regime que massacrou 200 mil pessoas no Timor Leste ocupado. Se os meios de comunicação e o público britânicos se sentissem tão ultrajados em relação ao genocídio quanto ao sexo, o mundo seria um lugar muito mais seguro.”

 

 

“Exemplos e receitas são atraentes enquanto não-testados. Mas dificilmente algum deles cumpre o que promete — virtualmente, cada um fica aquém da realização que dizia trazer. Mesmo que algum deles mostrasse funcionar do modo esperado, a satisfação não duraria muito, pois no mundo dos consumidores as possibilidades são infinitas, e o volume de objetivos sedutores à disposição nunca poderá ser exaurido. As receitas para a boa vida e os utensílios que a elas servem têm “data de validade”, mas muitos cairão em desuso bem antes dessa data, apequenados, desvalorizados e destituídos de fascínio pela competição de ofertas “novas e aperfeiçoadas”. Na corrida dos consumidores, a linha de chegada sempre se move mais veloz que o mais veloz dos corredores; mas a maioria dos corredores na pista tem músculos muito flácidos e pulmões muito pequenos para correr velozmente. E assim, como na Maratona de Londres, pode-se admirar e elogiar os vencedores, mas o que verdadeiramente conta é permanecer na corrida até o fim. Pelo menos a Maratona de Londres tem um fim, mas a outra corrida — para alcançar a promessa fugidia e sempre distante de uma vida sem problemas —, uma vez iniciada, nunca termina: comecei, mas posso não terminar.

Então é a continuação da corrida, a satisfatória consciência de permanecer na corrida, que se torna o verdadeiro vício — e não algum prêmio à espera dos poucos que cruzam a linha de chegada. Nenhum dos prêmios é suficientemente satisfatório para destituir os outros prêmios de seu poder de atração, e há tantos outros prêmios que acenam e fascinam porque (por enquanto, sempre por enquanto, desesperadamente por enquanto) ainda não foram tentados. O desejo se torna seu próprio propósito, e o único propósito não-contestado e inquestionável. O papel de todos os outros propósitos, seguidos apenas para serem abandonados na próxima rodada e esquecidos na seguinte, é o de manter os corredores correndo — como “marcadores de passo”, corredores contratados pelos empresários das corridas para correr poucas rodadas apenas, mas na máxima velocidade que puderem, e então retirar-se tendo puxado os outros corredores para o nível de quebra de recordes, ou como os foguetes auxiliares que, tendo levado a espaçonave à velocidade necessária, são ejetados para o espaço e se desintegram. Num mundo em que a gama de fins é ampla demais para o conforto e sempre mais ampla que a dos meios disponíveis é ao volume e eficácia dos meios que se deve atender com mais cuidado. Permanecer na corrida é o mais importante dos meios, de fato o meta-meio: o meio de manter viva a confiança em outros meios e a demanda por outros meios.

 O arquétipo dessa corrida particular em que cada membro de uma sociedade de consumo está correndo (tudo numa sociedade de consumo é uma questão de escolha, exceto a compulsão da escolha — a compulsão que evolui até se tornar um vício e assim não é mais percebida como compulsão) é a atividade de comprar. Estamos na corrida enquanto andamos pelas lojas, e não são só as lojas ou supermercados ou lojas de departamentos ou aos “templos do consumo” de George Ritzer que visitamos. Se “comprar” significa esquadrinhar as possibilidades, examinar, tocar, sentir, manusear os bens à mostra, comparando seus custos com o conteúdo da carteira ou com o crédito restante nos cartões de crédito, pondo alguns itens no carrinho e outros de volta às prateleiras — então vamos às compras tanto nas lojas quanto fora delas; vamos às compras na rua e em casa, no trabalho e no lazer, acordados e em sonhos. O que quer que façamos e qualquer que seja o nome que atribuamos à nossa atividade, é como ir às compras, uma atividade feita nos padrões de ir às compras. O código em que nossa “política de vida” está escrito deriva da pragmática do comprar.

Não se compra apenas comida, sapatos, automóveis ou itens de mobiliário. A busca ávida e sem fim por novos exemplos aperfeiçoados e por receitas de vida é também uma variedade do comprar, e uma variedade da máxima importância, seguramente, à luz das lições gêmeas de que nossa felicidade depende apenas de nossa competência pessoal mas que somos (como diz Michael Parenti13) pessoalmente incompetentes, ou não tão competentes como deveríamos, e poderíamos, ser se nos esforçássemos mais. Há muitas áreas em que precisamos ser mais competentes, e cada uma delas requer uma “compra”. “Vamos às compras” pelas habilidades necessárias a nosso sustento e pelos meios de convencer nossos possíveis empregadores de que as temos; pelo tipo de imagem que gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem que somos o que vestimos; por maneiras de fazer novos amigos que queremos e de nos desfazer dos que não mais queremos; pelos modos de atrair atenção e de nos escondermos do escrutínio; pelos meios de extrair mais satisfação do amor e pelos meios de evitar nossa “dependência” do parceiro amado ou amante; pelos modos de obter o amor do amado e o modo menos custoso de acabar com uma união quando o amor desapareceu e a relação deixou de agradar; pelo melhor meio de poupar dinheiro para um futuro incerto e o modo mais conveniente de gastar dinheiro antes de ganhá-lo; pelos recursos para fazer mais rápido o que temos que fazer e por coisas para fazer a fim de encher o tempo então disponível; pelas comidas mais deliciosas e pela dieta mais eficaz para eliminar as consequências de comê-las; pelos mais poderosos sistemas de som e as melhores pílulas contra a dor de cabeça. A lista de compras não tem fim. Porém por mais longa que seja a lista, a opção de não ir às compras não figura nela. E a competência mais necessária em nosso mundo de fins ostensivamente infinitos é a de quem vai às compras hábil e infatigavelmente.

O consumismo de hoje, porém, não diz mais respeito à satisfação das necessidades — nem mesmo as mais sublimes, distantes (alguns diriam, não muito corretamente, “artificiais”, “inventadas”, “derivativas”) necessidades de identificação ou a auto-segurança quanto à “adequação”. Já foi dito que o spiritus movens da atividade consumista não é mais o conjunto mensurável de necessidades articuladas, mas o desejo — entidade muito mais volátil e efêmera, evasiva e caprichosa, e essencialmente não-referencial que as “necessidades”, um motivo autogerado e autopropelido que não precisa de outra justificação ou “causa”. A despeito de suas sucessivas e sempre pouco duráveis reificações, o desejo tem a si mesmo como objeto constante, e por essa razão está fadado a permanecer insaciável qualquer que seja a altura atingida pela pilha dos outros objetos (físicos ou psíquicos) que marcam seu passado.”

13. Ver Michael Parenti, Inventing Reality: The Politics of the Mass Media, Nova York: St. Martin’s Press, 1986, p.65. Nas palavras de Parenti, a mensagem subjacente aos massivos e ubíquos comerciais, o que quer que tentem vender, é que “a fim de viver bem e de maneira apropriada, os consumidores precisam que os produtores corporativos os guiem”. De fato, os produtores corporativos podem contar com um exército de conselheiros, assessores pessoais e escritores de livros de auto-ajuda para martelar a mesma mensagem de incompetência pessoal.

 

 

“A escolha do consumidor é hoje um valor em si mesma; a ação de escolher é mais importante que a coisa escolhida, e as situações são elogiadas ou censuradas, aproveitadas ou ressentidas, dependendo da gama de escolhas que exibem.

A vida de quem escolhe será sempre uma bênção mista, porém, mesmo se (ou talvez porque) a gama de escolhas for ampla e o volume das experiências possíveis parecer infinito. Essa vida está assolada pelos riscos: a incerteza está destinada a ser para sempre a desagradável mosca na sopa da livre escolha. Além disso (e a adição é importante) o equilíbrio entre a alegria e a tristeza do viciado depende de fatores outros que a mera gama de escolhas à disposição. Nem todas elas são realistas; e a proporção de escolhas realistas não é função do número de itens à disposição, mas do volume de recursos à disposição de quem escolhe.

Quando os recursos são abundantes pode-se sempre esperar, certo ou errado, estar “por cima” ou “à frente” das coisas, ser capaz de alcançar os alvos que se movem com rapidez; pode-se mesmo estar inclinado a subestimar os riscos e a insegurança e supor que a profusão de escolhas compensa de sobra o desconforto de viver no escuro, de nunca estar seguro sobre quando e onde termina a luta, se é que termina. É a própria corrida que entusiasma, e, por mais cansativa que seja, a pista é um lugar mais agradável que a linha de chegada. É a essa situação que se aplica o velho provérbio segundo o qual “viajar com esperança é melhor do que chegar”. A chegada, o fim definitivo de toda escolha, parece muito mais tediosa e consideravelmente mais assustadora do que a perspectiva de que as escolhas de amanhã anulem as de hoje. Só o desejar é desejável — quase nunca sua satisfação.

Esperar-se-ia que o entusiasmo pela corrida diminuísse com a força dos músculos — que o amor pelo risco e a aventura se apagaria com a diminuição dos recursos e com a chance de escolher uma opção verdadeiramente desejável cada vez mais nebulosa. Essa expectativa está fadada a ser refutada, porém, porque os corredores são muitos e diferentes, mas a pista é a mesma para todos. Como diz Jeremy Seabrook,

os pobres não vivem numa cultura separada da dos ricos. Eles devem viver no mesmo mundo que foi planejado em proveito daqueles que têm dinheiro. E sua pobreza é agravada pelo crescimento econômico, da mesma forma que é intensificada pela recessão e pelo não-crescimento.27

Numa sociedade sinóptica de viciados em comprar/assistir, os pobres não podem desviar os olhos; não há mais para onde olhar. Quanto maior a liberdade na tela e quanto mais sedutoras as tentações que emanam das vitrines, e mais profundo o sentido da realidade empobrecida, tanto mais irresistível se torna o desejo de experimentar, ainda que por um momento fugaz, o êxtase da escolha. Quanto mais escolha parecem ter os ricos, tanto mais a vida sem escolha parece insuportável para todos.”

27. Jeremy Seabrook, The Race for Riches: The Human Costs of Wealth, Basingstoke: Marshall Pikering, 1988, p.168-9.

 

 

Paradoxalmente, ainda que nada inesperadamente, o tipo de liberdade que a sociedade dos viciados em compras elevou ao posto máximo de valor — valor traduzido acima de tudo como a plenitude da escolha do consumidor e como a capacidade de tratar qualquer decisão na vida como uma escolha de consumidor — tem um efeito muito mais devastador nos espectadores relutantes do que naqueles a que ostensivamente se destina. O estilo de vida da elite com recursos, dos senhores da arte de escolher, sofre uma mudança fatal no curso de seu processamento eletrônico. Ela escorre pela hierarquia social, filtrada pelos canais do sinóptico eletrônico e por reduzidos volumes de recursos, como a caricatura de um mutante monstruoso. O produto final desse “escorrimento” está despido da maioria dos prazeres que o original prometia — em vez disso expondo seu potencial destrutivo.

A liberdade de tratar o conjunto da vida como uma festa de compras adiadas significa conceber o mundo como um depósito abarrotado de mercadorias. Dada a profusão de ofertas tentadoras, o potencial gerador de prazeres de qualquer mercadoria tende a se exaurir rapidamente. Felizmente para os consumidores com recursos, estes os garantem contra consequências desagradáveis como a mercantilização. Podem descartar as posses que não mais querem com a mesma facilidade com que podem adquirir as que desejam. Estão protegidos contra o rápido envelhecimento e contra a obsolescência planejada dos desejos e sua satisfação transitória.”

 

 

“A capacidade de conviver com a diferença, sem falar na capacidade de gostar dessa vida e beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz sozinha. Essa capacidade é uma arte que, como toda arte, requer estudo e exercício. A incapacidade de enfrentar a pluralidade de seres humanos e a ambivalência de todas as decisões classificatórias, ao contrário, se autoperpetuam e reforçam: quanto mais eficazes a tendência à homogeneidade e o esforço para eliminar a diferença, tanto mais difícil sentir-se à vontade em presença de estranhos, tanto mais ameaçadora a diferença e tanto mais intensa a ansiedade que ela gera. O projeto de esconder-se do impacto enervante da multivocalidade urbana nos abrigos da conformidade, monotonia e repetitividade comunitárias é um projeto que se auto-alimenta, mas que está fadado à derrota. Essa poderia ser uma verdade trivial, não fosse o fato de que o ressentimento em relação à diferença também se autocorrobora: à medida que o impulso à uniformidade se intensifica, o mesmo acontece com o horror ao perigo representado pelos “estranhos no portão”. O perigo representado pela companhia de estranhos é uma clássica profecia autocumprida. Torna-se cada vez mais fácil misturar a visão dos estranhos com os medos difusos da insegurança; o que no começo era uma mera suposição torna-se uma verdade comprovada, para acabar como algo evidente.

A perplexidade se torna um círculo vicioso. Como a arte de negociar interesses comuns e um destino compartilhado vem caindo em desuso, raramente é praticada, está meio esquecida ou nunca foi propriamente aprendida; como a ideia do “bem comum” é vista com suspeição, como ameaçadora, nebulosa ou confusa — a busca da segurança numa identidade comum e não em função de interesses compartilhados emerge como o modo mais sensato, eficaz e lucrativo de proceder; e as preocupações com a identidade e a defesa contra manchas nela tornam a ideia de interesses comuns, e mais ainda interesses comuns negociados, tanto mais incrível e fantasiosa, tornando ao mesmo tempo improvável o surgimento da capacidade e da vontade de sair em busca desses interesses comuns. Como resume Sharon Zukin: “Ninguém mais sabe falar com ninguém”.”

 

 

“(...) Pode ser patologia, mas não uma patologia da mente que tenta em vão forçar um sentido para um mundo destituído de significado estável e confiável; é uma patologia do espaço público que resulta numa patologia da política: o esvaziamento e a decadência da arte do diálogo e da negociação, e a substituição do engajamento e mútuo comprometimento pelas técnicas do desvio e da evasão.

“Não fale com estranhos” — outrora uma advertência de pais zelosos a seus pobres filhos — tornou-se o preceito estratégico da normalidade adulta. Esse preceito reafirma como regra de prudência a realidade de uma vida em que os estranhos são pessoas com quem nos recusamos a falar.”

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