Editora: Zahar
ISBN: 978-65-5979-000-5
Tradução: Plínio
Dentzien
Opinião: ★★★★★
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Páginas: 280
Sinopse: Ver Parte I
“Qualquer
que seja o caso, no par exemplo-autoridade a parte do exemplo é a mais
importante e mais solicitada. As celebridades com autoridade suficiente para
fazer com que o que dizem seja digno de atenção mesmo antes que o digam são
muito poucas para estrelar os inumeráveis programas de entrevistas da TV (e
raramente aparecem nos mais populares deles, como o de Oprah e o de Trisha),
mas isso não impede que esses programas sejam uma compulsão diária para milhões
de homens e mulheres ávidos por aconselhamento. A
autoridade da pessoa que compartilha sua história de vida pode fazer com que os
espectadores observem o exemplo com atenção e aumenta os índices de audiência.
Mas a falta de autoridade de quem conta sua vida, o fato de ela não ser uma
celebridade, sua anonimidade, pode fazer com que o exemplo seja mais fácil de
seguir e assim ter um potencial adicional próprio. As não-celebridades, os
homens e mulheres “comuns”, “como você e eu”, que aparecem na telinha apenas
por um momento passageiro (não mais do que o necessário para contar a história
e receber o aplauso merecido, assim como alguma crítica por esconder partes
picantes ou gastar tempo demais com as partes desinteressantes) são tão
desvalidas e infelizes quanto os espectadores, sofrendo o mesmo tipo de golpes
e buscando desesperadamente uma saída honrosa e um caminho promissor para uma
vida mais feliz. E assim, o que elas fizeram eu também posso fazer; talvez até
melhor. Posso aprender alguma coisa útil tanto com suas vitórias quanto
com suas derrotas.
Seria
arrogante, além de equivocado, condenar ou ridicularizar o vício dos programas
de entrevistas como efeito da eterna avidez humana pela fofoca e da
“curiosidade barata”. Num mundo repleto de meios, mas notoriamente pouco claro
sobre os fins, as lições retiradas dos programas de entrevistas respondem a uma
demanda genuína e têm valor pragmático inegável, pois já sabemos que depende de
nós mesmos fazer (e continuar a fazer) o melhor possível de nossas vidas; e
como também sabemos que quaisquer recursos requeridos por tal empreendimento só
podem ser procurados e encontrados entre nossas próprias habilidades, coragem e
determinação, é vital saber como agem outras pessoas diante de desafios
semelhantes. Podem ter descoberto estratagemas admiráveis que não percebemos;
podem ter explorado partes da questão a que não demos atenção ou em que não nos
aprofundamos o suficiente.
Essa
não é, porém, a única vantagem. Como dito acima, nomear o problema é em si uma
tarefa assustadora, e sem esse nome para o sentimento de inquietação ou
infelicidade não há esperança de cura. No entanto, embora o sofrimento seja
pessoal e privado, uma “linguagem privada” é uma incongruência. O que quer que
seja nomeado, inclusive os sentimentos mais secretos, pessoais e íntimos, só o
é propriamente se os nomes escolhidos forem de domínio público, se pertencerem
a uma linguagem compartilhada e pública e forem compreendidos pelas pessoas que
se comunicam nessa linguagem. Os programas de entrevistas são lições públicas
de uma linguagem ainda-não-nascida-mas-prestes-a-nascer. Fornecem as palavras
que poderão ser utilizadas para “nomear o problema” — para expressar, em modos
publicamente legíveis, o que até agora era inefável e assim permaneceria sem
tais palavras.
Esse é,
em si, um ganho da maior importância — mas há ainda outros. Nos programas de
entrevistas, palavras e frases que se referem a experiências consideradas
íntimas e, portanto, inadequadas como tema de conversa são pronunciadas em
público — para aprovação, divertimento e aplauso universais. Pela mesma razão,
os programas de entrevistas legitimam o discurso público sobre questões
privadas. Tornam o indizível dizível, o vergonhoso, decente, e transformam o
feio segredo em questão de orgulho. Até certo ponto são rituais de exorcismo —
e muito eficazes. Graças aos programas de entrevistas, posso falar de agora em
diante abertamente sobre coisas que eu pensava (equivocadamente, agora vejo)
infames e infamantes e, portanto, destinadas a permanecer secretas e a serem
sofridas em silêncio. Como minha confissão não é mais secreta, ganho mais que o
conforto da absolvição: não preciso mais me sentir envergonhado ou temeroso de
ser desprezado, condenado por impudência ou relegado ao ostracismo. Essas são,
afinal, as coisas de que as pessoas falam compungidas na presença de milhões de
espectadores. Seus problemas privados, e assim também meus próprios problemas,
tão parecidos aos deles, são adequados para discussão pública. Não que
se tornem questões públicas; entram na discussão precisamente em sua condição
de questões privadas e, por mais que sejam discutidas, como os
leopardos, também não mudam suas pintas. Ao contrário, são reafirmadas como
privadas e emergirão da exposição pública reforçadas em seu caráter privado.
Afinal, todos os que falaram concordaram que, na medida em que foram
experimentadas e vividas privadamente, é assim que essas coisas devem ser
confrontadas e resolvidas.
Muitos
pensadores influentes (sendo Jürgen Habermas o mais importante deles) advertem
sobre a possibilidade de que a “esfera privada” seja invadida, conquistada e
colonizada pela “pública”. Voltando à memória recente da era que inspirou as
distopias como as de Huxley ou de Orwell, pode-se compreender
tal temor. As premonições parecem, no entanto, surgir da leitura do que
acontece diante de nossos olhos com as lentes erradas. De fato, a tendência
oposta à advertência é a que parece estar se operando — a colonização da esfera
pública por questões anteriormente classificadas como privadas e inadequadas à
exposição pública.
O
que está ocorrendo não é simplesmente outra renegociação da fronteira
notoriamente móvel entre o privado e o público. O que parece estar em jogo é
uma redefinição da esfera pública como um palco em que dramas privados são
encenados, publicamente expostos e publicamente assistidos. A definição
corrente de “interesse público”, promovida pela mídia e amplamente aceita por
quase todos os setores da sociedade, é o dever de encenar tais dramas em
público e o direito do público de assistir à encenação. As condições sociais
que fazem com que tal desenvolvimento não seja surpreendente e pareça mesmo
“natural” devem ficar evidentes à luz do argumento precedente; mas as
consequências desse desenvolvimento ainda não foram inteiramente exploradas.
Podem ter maior alcance do que em geral se aceita.
A
consequência que pode ser considerada mais interessante é o desaparecimento da
“política como a conhecemos” — da Política com P maiúsculo, a atividade
encarregada de traduzir problemas privados em questões públicas (e vice-versa).
É o esforço dessa tradução que hoje está se detendo. Os problemas privados não
se tornam questões públicas pelo fato de serem ventilados em público; mesmo sob
o olhar público não deixam de ser privados, e o que parece resultar de sua
transferência para a cena pública é a expulsão de todos os outros problemas
“não-privados” da agenda pública. O que cada vez mais é percebido como
“questões públicas” são os problemas privados de figuras públicas. A
tradicional questão da política democrática — quão útil ou prejudicial para o
bem-estar de seus súditos/eleitores é o modo como as figuras públicas exercitam
seus deveres públicos — foi pelo ralo, sinalizando para que o interesse público
na boa sociedade, na justiça pública ou na responsabilidade coletiva pelo
bem-estar individual a siga no caminho do esquecimento.
Atingido
por uma série de “escândalos” (isto é, exposição pública de frouxidão moral nas
vidas privadas de figuras públicas), Tony Blair (no Guardian de
11.1.1999) se queixava de que “a política se reduziu a uma coluna de mexericos”
e conclamava a audiência a enfrentar a alternativa: “Ou teremos a pauta de
notícias dominada pelo escândalo, pelo mexerico e pela trivialidade, ou pelas
coisas que realmente importam.”12 Tais palavras não podem senão
surpreender, vindo, como vêm, de um político que consulta diariamente “grupos
focais” na esperança de ser regularmente informado sobre os sentimentos da base
e “as coisas que realmente importam” na opinião de seus eleitores, e
cujo modo de manejar as coisas que realmente importam para as condições
em que seus eleitores vivem é ela mesma um fator importante no tipo de vida
responsável pela “redução da política a uma coluna de mexericos” que ele
lamenta.
As
condições de vida em questão levam os homens e mulheres a buscar exemplos, e
não líderes. Levam-nos a esperar que as pessoas sob os refletores — todas e
qualquer uma delas — mostrem como “as coisas que importam” (agora confinadas a
suas próprias quatro paredes e aí trancadas) são feitas. Afinal, eles ouvem
diariamente que o que está errado em suas vidas provêm de seus próprios erros,
foi sua própria culpa e deve ser consertado com suas próprias ferramentas e por
seus próprios esforços. Não é, portanto, por acaso que supõem que a maior
utilidade (talvez a única) das pessoas que alegam “estar por dentro” é
mostrar-lhes como manejar as ferramentas e fazer o esforço. Ouviram
repetidamente dessas “pessoas por dentro” que ninguém mais faria o que eles
mesmos deveriam fazer, cada um por si. Por que, então, alguém ficaria intrigado
se o que atrai a atenção e provoca o interesse de tantos homens e mulheres é o
que os políticos (e outras celebridades) fazem em privado? Ninguém entre os
“grandes e poderosos”, nem mesmo a “opinião pública” ofendida, propôs o
impeachment de Bill Clinton por ter abolido a previdência enquanto “questão
federal” — e, portanto, em termos práticos, anulado a promessa coletiva e o
dever de proteger os indivíduos contra os movimentos do destino, notórios por
seu hábito desagradável de administrar individualmente seus golpes.
No
espetáculo colorido das celebridades da telinha e das manchetes, os homens e
mulheres de Estado não ocupam uma posição privilegiada. Não importa muito qual
a razão da “notoriedade” que, segundo Boorstin, faz com que uma celebridade
seja uma celebridade. Um lugar sob os refletores é um modo de ser por si mesmo,
que estrelas do cinema, jogadores de futebol e ministros de governo
compartilham em igual medida. Um dos requisitos que se aplica a todos é que se
espera — “eles têm o dever público” — que confessem “para consumo público” e
ponham suas vidas privadas à disposição, e que não reclamem se outros o fizerem
por eles. Uma vez expostas, essas vidas privadas podem se mostrar pouco
esclarecedoras ou decididamente pouco atraentes: nem todos os segredos privados
contêm lições que outras pessoas poderiam considerar úteis. Os desapontamentos,
por mais numerosos que sejam, dificilmente mudarão os hábitos confessionais ou
dissiparão o apetite pelas confissões; afinal — repito — o modo como as pessoas
individuais definem individualmente seus problemas individuais e os enfrentam
com habilidades e recursos individuais é a única “questão pública” remanescente
e o único objeto de “interesse público”. E enquanto isso for assim,
espectadores e ouvintes treinados para confiar em seu próprio julgamento e
esforço na busca de esclarecimento e orientação continuarão a olhar para as
vidas privadas de outros “como eles” com o mesmo zelo e esperança com que
poderiam ter olhado para as lições, homilias e sermões de visionários e pregadores
quando acreditavam que as misérias privadas só poderiam ser aliviadas ou
curadas “reunindo as cabeças”, “cerrando fileiras” e “em ordem unida”.”
12.
Um corolário apropriado e perspicaz do espanto de Tony Blair aparece na carta
de Dr. Spencer Fitz-Gibbon ao Guardian: “É interessante que Robin Cook
seja um homem mau agora que sua promiscuidade extramatrimonial foi revelada. No
entanto, não faz muito tempo ele esteve envolvido na venda de equipamento à
ditadura na Indonésia, um regime que massacrou 200 mil pessoas no Timor Leste
ocupado. Se os meios de comunicação e o público britânicos se sentissem tão
ultrajados em relação ao genocídio quanto ao sexo, o mundo seria um lugar muito
mais seguro.”
“Exemplos
e receitas são atraentes enquanto não-testados. Mas dificilmente algum deles
cumpre o que promete — virtualmente, cada um fica aquém da realização que dizia
trazer. Mesmo que algum deles mostrasse funcionar do modo esperado, a
satisfação não duraria muito, pois no mundo dos consumidores as possibilidades
são infinitas, e o volume de objetivos sedutores à disposição nunca poderá ser
exaurido. As receitas para a boa vida e os utensílios que a elas servem têm
“data de validade”, mas muitos cairão em desuso bem antes dessa data,
apequenados, desvalorizados e destituídos de fascínio pela competição de
ofertas “novas e aperfeiçoadas”. Na corrida dos consumidores, a linha de
chegada sempre se move mais veloz que o mais veloz dos corredores; mas a
maioria dos corredores na pista tem músculos muito flácidos e pulmões muito
pequenos para correr velozmente. E assim, como na Maratona de Londres, pode-se
admirar e elogiar os vencedores, mas o que verdadeiramente conta é permanecer
na corrida até o fim. Pelo menos a Maratona de Londres tem um fim, mas a outra
corrida — para alcançar a promessa fugidia e sempre distante de uma vida sem
problemas —, uma vez iniciada, nunca termina: comecei, mas posso não
terminar.
Então
é a continuação da corrida, a satisfatória consciência de permanecer na
corrida, que se torna o verdadeiro vício — e não algum prêmio à espera dos
poucos que cruzam a linha de chegada. Nenhum dos prêmios é suficientemente
satisfatório para destituir os outros prêmios de seu poder de atração, e há
tantos outros prêmios que acenam e fascinam porque (por enquanto, sempre por
enquanto, desesperadamente por enquanto) ainda não foram tentados. O desejo se
torna seu próprio propósito, e o único propósito não-contestado e
inquestionável. O papel de todos os outros propósitos, seguidos apenas para
serem abandonados na próxima rodada e esquecidos na seguinte, é o de manter os
corredores correndo — como “marcadores de passo”, corredores contratados pelos
empresários das corridas para correr poucas rodadas apenas, mas na máxima
velocidade que puderem, e então retirar-se tendo puxado os outros corredores
para o nível de quebra de recordes, ou como os foguetes auxiliares que, tendo
levado a espaçonave à velocidade necessária, são ejetados para o espaço e se
desintegram. Num mundo em que a gama de fins é ampla demais para o conforto e
sempre mais ampla que a dos meios disponíveis é ao volume e eficácia dos meios
que se deve atender com mais cuidado. Permanecer na corrida é o mais importante
dos meios, de fato o meta-meio: o meio de manter viva a confiança em outros
meios e a demanda por outros meios.
O
arquétipo dessa corrida particular em que cada membro de uma sociedade de
consumo está correndo (tudo numa sociedade de consumo é uma questão de escolha,
exceto a compulsão da escolha — a compulsão que evolui até se tornar um vício e
assim não é mais percebida como compulsão) é a atividade de comprar. Estamos na
corrida enquanto andamos pelas lojas, e não são só as lojas ou supermercados ou
lojas de departamentos ou aos “templos do consumo” de George Ritzer que
visitamos. Se “comprar” significa esquadrinhar as possibilidades, examinar,
tocar, sentir, manusear os bens à mostra, comparando seus custos com o conteúdo
da carteira ou com o crédito restante nos cartões de crédito, pondo alguns
itens no carrinho e outros de volta às prateleiras — então vamos às compras
tanto nas lojas quanto fora delas; vamos às compras na rua e em casa, no
trabalho e no lazer, acordados e em sonhos. O que quer que façamos e qualquer
que seja o nome que atribuamos à nossa atividade, é como ir às compras, uma
atividade feita nos padrões de ir às compras. O código em que nossa “política
de vida” está escrito deriva da pragmática do comprar.
Não
se compra apenas comida, sapatos, automóveis ou itens de mobiliário. A busca
ávida e sem fim por novos exemplos aperfeiçoados e por receitas de vida é
também uma variedade do comprar, e uma variedade da máxima importância,
seguramente, à luz das lições gêmeas de que nossa felicidade depende apenas de
nossa competência pessoal mas que somos (como diz Michael Parenti13)
pessoalmente incompetentes, ou não tão competentes como deveríamos, e
poderíamos, ser se nos esforçássemos mais. Há muitas áreas em que precisamos
ser mais competentes, e cada uma delas requer uma “compra”. “Vamos às compras”
pelas habilidades necessárias a nosso sustento e pelos meios de convencer
nossos possíveis empregadores de que as temos; pelo tipo de imagem que
gostaríamos de vestir e por modos de fazer com que os outros acreditem que
somos o que vestimos; por maneiras de fazer novos amigos que queremos e de nos
desfazer dos que não mais queremos; pelos modos de atrair atenção e de nos
escondermos do escrutínio; pelos meios de extrair mais satisfação do amor e
pelos meios de evitar nossa “dependência” do parceiro amado ou amante; pelos
modos de obter o amor do amado e o modo menos custoso de acabar com uma união
quando o amor desapareceu e a relação deixou de agradar; pelo melhor meio de
poupar dinheiro para um futuro incerto e o modo mais conveniente de gastar
dinheiro antes de ganhá-lo; pelos recursos para fazer mais rápido o que temos
que fazer e por coisas para fazer a fim de encher o tempo então disponível;
pelas comidas mais deliciosas e pela dieta mais eficaz para eliminar as
consequências de comê-las; pelos mais poderosos sistemas de som e as melhores
pílulas contra a dor de cabeça. A lista de compras não tem fim. Porém por mais
longa que seja a lista, a opção de não ir às compras não figura nela. E a
competência mais necessária em nosso mundo de fins ostensivamente infinitos é a
de quem vai às compras hábil e infatigavelmente.
O
consumismo de hoje, porém, não diz mais respeito à satisfação das necessidades
— nem mesmo as mais sublimes, distantes (alguns diriam, não muito corretamente,
“artificiais”, “inventadas”, “derivativas”) necessidades de identificação ou a
auto-segurança quanto à “adequação”. Já foi dito que o spiritus movens
da atividade consumista não é mais o conjunto mensurável de necessidades
articuladas, mas o desejo — entidade muito mais volátil e efêmera,
evasiva e caprichosa, e essencialmente não-referencial que as “necessidades”,
um motivo autogerado e autopropelido que não precisa de outra justificação ou
“causa”. A despeito de suas sucessivas e sempre pouco duráveis reificações, o
desejo tem a si mesmo como objeto constante, e por essa razão está fadado a
permanecer insaciável qualquer que seja a altura atingida pela pilha dos outros
objetos (físicos ou psíquicos) que marcam seu passado.”
13. Ver Michael Parenti, Inventing Reality: The Politics of the Mass
Media, Nova York: St. Martin’s Press, 1986, p.65. Nas palavras de Parenti, a mensagem subjacente
aos massivos e ubíquos comerciais, o que quer que tentem vender, é que “a fim
de viver bem e de maneira apropriada, os consumidores precisam que os
produtores corporativos os guiem”. De fato, os produtores corporativos podem
contar com um exército de conselheiros, assessores pessoais e escritores de
livros de auto-ajuda para martelar a mesma mensagem de incompetência pessoal.
“A
escolha do consumidor é hoje um valor em si mesma; a ação de escolher é mais
importante que a coisa escolhida, e as situações são elogiadas ou censuradas,
aproveitadas ou ressentidas, dependendo da gama de escolhas que exibem.
A
vida de quem escolhe será sempre uma bênção mista, porém, mesmo se (ou talvez
porque) a gama de escolhas for ampla e o volume das experiências possíveis
parecer infinito. Essa vida está assolada pelos riscos: a incerteza está
destinada a ser para sempre a desagradável mosca na sopa da livre escolha. Além
disso (e a adição é importante) o equilíbrio entre a alegria e a tristeza do
viciado depende de fatores outros que a mera gama de escolhas à disposição. Nem
todas elas são realistas; e a proporção de escolhas realistas não é função do
número de itens à disposição, mas do volume de recursos à disposição de quem
escolhe.
Quando
os recursos são abundantes pode-se sempre esperar, certo ou errado, estar “por
cima” ou “à frente” das coisas, ser capaz de alcançar os alvos que se movem com
rapidez; pode-se mesmo estar inclinado a subestimar os riscos e a insegurança e
supor que a profusão de escolhas compensa de sobra o desconforto de viver no
escuro, de nunca estar seguro sobre quando e onde termina a luta, se é que
termina. É a própria corrida que entusiasma, e, por mais cansativa que seja, a
pista é um lugar mais agradável que a linha de chegada. É a essa situação que
se aplica o velho provérbio segundo o qual “viajar com esperança é melhor do
que chegar”. A chegada, o fim definitivo de toda escolha, parece muito mais
tediosa e consideravelmente mais assustadora do que a perspectiva de que as
escolhas de amanhã anulem as de hoje. Só o desejar é desejável — quase nunca
sua satisfação.
Esperar-se-ia
que o entusiasmo pela corrida diminuísse com a força dos músculos — que o amor
pelo risco e a aventura se apagaria com a diminuição dos recursos e com a
chance de escolher uma opção verdadeiramente desejável cada vez mais nebulosa.
Essa expectativa está fadada a ser refutada, porém, porque os corredores são
muitos e diferentes, mas a pista é a mesma para todos. Como diz Jeremy
Seabrook,
os pobres não vivem numa cultura separada da dos
ricos. Eles devem viver no mesmo mundo que foi planejado em proveito daqueles
que têm dinheiro. E sua pobreza é agravada pelo crescimento econômico, da mesma
forma que é intensificada pela recessão e pelo não-crescimento.27
Numa
sociedade sinóptica de viciados em comprar/assistir, os pobres não podem
desviar os olhos; não há mais para onde olhar. Quanto maior a liberdade na tela
e quanto mais sedutoras as tentações que emanam das vitrines, e mais profundo o
sentido da realidade empobrecida, tanto mais irresistível se torna o desejo de
experimentar, ainda que por um momento fugaz, o êxtase da escolha. Quanto mais
escolha parecem ter os ricos, tanto mais a vida sem escolha parece insuportável
para todos.”
27. Jeremy Seabrook, The Race for Riches: The Human Costs of Wealth,
Basingstoke: Marshall Pikering, 1988, p.168-9.
“Paradoxalmente, ainda que nada inesperadamente, o tipo de liberdade que
a sociedade dos viciados em compras elevou ao posto máximo de valor — valor
traduzido acima de tudo como a plenitude da escolha do consumidor e como a
capacidade de tratar qualquer decisão na vida como uma escolha de consumidor —
tem um efeito muito mais devastador nos espectadores relutantes do que naqueles
a que ostensivamente se destina. O estilo de vida da elite com recursos, dos
senhores da arte de escolher, sofre uma mudança fatal no curso de seu
processamento eletrônico. Ela escorre pela hierarquia social, filtrada pelos
canais do sinóptico eletrônico e por reduzidos volumes de recursos, como a
caricatura de um mutante monstruoso. O produto final desse “escorrimento” está
despido da maioria dos prazeres que o original prometia — em vez disso expondo
seu potencial destrutivo.
A
liberdade de tratar o conjunto da vida como uma festa de compras adiadas
significa conceber o mundo como um depósito abarrotado de mercadorias. Dada a
profusão de ofertas tentadoras, o potencial gerador de prazeres de qualquer
mercadoria tende a se exaurir rapidamente. Felizmente para os consumidores com
recursos, estes os garantem contra consequências desagradáveis como a
mercantilização. Podem descartar as posses que não mais querem com a mesma
facilidade com que podem adquirir as que desejam. Estão protegidos contra o
rápido envelhecimento e contra a obsolescência planejada dos desejos e sua
satisfação transitória.”
“A
capacidade de conviver com a diferença, sem falar na capacidade de gostar dessa
vida e beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz sozinha. Essa
capacidade é uma arte que, como toda arte, requer estudo e exercício. A
incapacidade de enfrentar a pluralidade de seres humanos e a ambivalência de
todas as decisões classificatórias, ao contrário, se autoperpetuam e reforçam:
quanto mais eficazes a tendência à homogeneidade e o esforço para eliminar a
diferença, tanto mais difícil sentir-se à vontade em presença de estranhos, tanto
mais ameaçadora a diferença e tanto mais intensa a ansiedade que ela gera. O
projeto de esconder-se do impacto enervante da multivocalidade urbana nos
abrigos da conformidade, monotonia e repetitividade comunitárias é um projeto
que se auto-alimenta, mas que está fadado à derrota. Essa poderia ser uma
verdade trivial, não fosse o fato de que o ressentimento em relação à diferença
também se autocorrobora: à medida que o impulso à uniformidade se intensifica,
o mesmo acontece com o horror ao perigo representado pelos “estranhos no
portão”. O perigo representado pela companhia de estranhos é uma clássica
profecia autocumprida. Torna-se cada vez mais fácil misturar a visão dos
estranhos com os medos difusos da insegurança; o que no começo era uma mera
suposição torna-se uma verdade comprovada, para acabar como algo evidente.
A
perplexidade se torna um círculo vicioso. Como a arte de negociar interesses
comuns e um destino compartilhado vem caindo em desuso, raramente é praticada,
está meio esquecida ou nunca foi propriamente aprendida; como a ideia do “bem
comum” é vista com suspeição, como ameaçadora, nebulosa ou confusa — a busca da
segurança numa identidade comum e não em função de interesses compartilhados
emerge como o modo mais sensato, eficaz e lucrativo de proceder; e as
preocupações com a identidade e a defesa contra manchas nela tornam a ideia de
interesses comuns, e mais ainda interesses comuns negociados, tanto mais
incrível e fantasiosa, tornando ao mesmo tempo improvável o surgimento da
capacidade e da vontade de sair em busca desses interesses comuns. Como resume
Sharon Zukin: “Ninguém mais sabe falar com ninguém”.”
“(...)
Pode ser patologia, mas não uma patologia da mente que tenta em vão forçar um
sentido para um mundo destituído de significado estável e confiável; é uma
patologia do espaço público que resulta numa patologia da política: o
esvaziamento e a decadência da arte do diálogo e da negociação, e a
substituição do engajamento e mútuo comprometimento pelas técnicas do desvio e da
evasão.
“Não
fale com estranhos” — outrora uma advertência de pais zelosos a seus pobres
filhos — tornou-se o preceito estratégico da normalidade adulta. Esse preceito
reafirma como regra de prudência a realidade de uma vida em que os estranhos
são pessoas com quem nos recusamos a falar.”
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