sábado, 3 de julho de 2021

O Capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista (Parte IV), de Karl Marx

Editora: Boitempo

Edição: Friedrich Engels

ISBN: 978-85-7559-390-5

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 984

Sinopse: Ver Parte I




“Não se pode esquecer que a taxa geral de lucro não está uniformemente determinada pelo mais-valor em todas as esferas da produção. Não é o lucro agrícola que determina o lucro industrial, mas o inverso.”

 

 

“Tudo é efêmero.” (Friedrich Engels)

 

 

“(...) Portanto, para o comprador, o direito sobre a renda não aparece como algo obtido gratuitamente, sem o trabalho, que constitui o risco e o espírito empreendedor do capital, mas como algo pago em troca de seu equivalente. Como já observamos, a renda só lhe aparece como juros do capital com o qual ele comprou as terras e, com elas, o direito a receber a renda. Da mesma forma, a um senhor de escravos que tenha comprado um negro, sua propriedade sobre este último não lhe aparece como tendo sido adquirida em virtude da instituição da escravidão como tal, mas sim pela compra e pela venda de mercadoria. Mas a venda não cria o título, ela apenas o transfere. O título precisa existir antes de se poder aliená-lo, mas assim como uma venda não pode criar tal título, tampouco o pode uma série inteira dessas mesmas vendas. O que efetivamente o criou foram as relações de produção. Assim que estas cheguem a um ponto em que precisem metamorfosear-se, desaparece a fonte material do título, econômica e historicamente justificada, emanada do processo de geração social da vida e de todas as transações nele fundadas. Do ponto de vista de uma formação econômica superior da sociedade, a propriedade privada do globo terrestre nas mãos de indivíduos isolados parecerá tão absurda quanto a propriedade privada de um ser humano sobre outro ser humano. Mesmo uma sociedade inteira, uma nação, ou, mais ainda, todas as sociedades contemporâneas reunidas não são proprietárias da Terra. São apenas possuidoras, usufrutuárias dela, e, como boni patres familias [bons pais de famílias], devem legá-la melhorada às gerações seguintes.”

 

 

“As mediações das formas irracionais em que se apresentam e se resumem determinadas condições econômicas não importam nada aos agentes práticos dessas condições econômicas em sua atividade cotidiana, e estes, por estarem acostumados a se mover no interior delas, não ficam nem um pouco escandalizados com isso. Uma absoluta contradição não tem nada de misterioso para eles. Dentro das formas de manifestação que, abstraídas de seu contexto e tomadas isoladamente, são absurdas, eles se sentem tão à vontade quanto um peixe na água. Aqui é válido o que diz Hegel com referência a certas fórmulas matemáticas, a saber, que aquilo que o senso comum considera irracional é racional, e o que ele considera racional é a própria irracionalidade*.”

*: [Georg Wilhelm Friedrich] Hegel, Encyclopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, 1. Th. Die Logik. [Hrsg. von Leopold von Hennig], em Werke, v. 6 (Berlim, 1840), p. 404 [Ed. bras.: Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, v. 1: A ciência da lógica, trad. Paulo Meneses, São Paulo, Loyola, 1995]. (N. E. A.)

 

 

Já observamos que o sistema monetário proclama corretamente a produção para o mercado mundial e a transformação do produto em mercadoria – portanto, em dinheiro – como pressuposto e condição da produção capitalista. No sistema mercantilista, que é a continuação do sistema monetário, o decisivo já não é a transformação do valor-mercadoria em dinheiro, mas a produção de mais-valor, porém, a partir do ponto de vista não conceitual da esfera da circulação e de tal modo que esse mais-valor é representado em mais-dinheiro, em excedente da balança comercial. Ao mesmo tempo, o que constitui propriamente os interesses de comerciantes e fabricantes daquela época, bem como a fase do desenvolvimento capitalista por eles representada, é que, na transformação das sociedades agrícolas feudais em industriais e na correspondente competição industrial entre as nações no mercado mundial, o que verdadeiramente importa é um rápido desenvolvimento do capital, que não se pode obter pelas chamadas vias naturais, mas apenas por meios coercitivos. Há uma enorme diferença se o capital nacional se transforma gradual e lentamente em capital industrial ou se essa transformação se acelera devido a impostos que, por meio de tarifas protecionistas, recaem principalmente sobre proprietários de terras, pequenos e médios camponeses e artesãos; por meio da rápida expropriação dos produtores independentes, da acumulação e concentração fortemente aceleradas dos capitais, numa palavra, por meio da criação das condições do modo de produção capitalista. Ao mesmo tempo, isso faz uma enorme diferença na exploração capitalista e industrial da força produtiva natural da nação. O caráter nacional do sistema mercantilista não é, assim, uma mera fraseologia na boca de seus porta-vozes. Sob o pretexto de ocupar-se apenas com a riqueza da nação e as fontes de recursos do Estado, eles na verdade declaram os interesses da classe capitalista e o enriquecimento em geral como fim último do Estado e proclamam a sociedade burguesa contra o antigo Estado de direito divino. Ao mesmo tempo, porém, está presente a consciência de que o desenvolvimento do interesse do capital e da classe capitalista, da produção capitalista, tornou-se a base do poder nacional e da supremacia nacional na sociedade moderna.

Além disso, os fisiocratas têm razão ao dizer que, de fato, toda produção de mais-valor, e portanto também todo desenvolvimento do capital, de acordo com sua base natural, repousa sobre a produtividade do trabalho agrícola. Se os homens não fossem capazes de produzir numa jornada de trabalho mais meios de subsistência, ou seja, em sentido estrito, mais produtos agrícolas, do que cada trabalhador necessita para sua própria reprodução, se o dispêndio diário de sua força inteira de trabalho só bastasse para produzir seus meios individuais de subsistência mais indispensáveis, então não se poderia absolutamente falar de mais-produto, nem de mais-valor. Uma produtividade do trabalho agrícola que supere a necessidade individual do trabalhador é a base de toda sociedade e sobretudo a base da produção capitalista, que libera uma parcela cada vez maior da sociedade da produção de meios de subsistência imediatos e, como diz Steuart, a transforma em free hands [mãos livres], tornando-a disponível para a exploração em outras esferas.”

 

 

A economia vulgar se caracteriza precisamente por repetir aquilo que, num certo estágio já superado do desenvolvimento, era novo, original e justificado, numa época em que isso se tornou raso, maçante e falso.”

 

 

“A forma econômica específica em que o mais-trabalho não pago é extraído dos produtores diretos determina a relação de dominação e servidão, tal como esta advém diretamente da própria produção e, por sua vez, retroage sobre ela de modo determinante. Nisso se funda, porém, toda a estrutura da entidade comunitária econômica, nascida das próprias relações de produção; simultaneamente com isso, sua estrutura política peculiar. Em todos os casos, é na relação direta entre os proprietários das condições de produção e os produtores diretos – relação cuja forma eventual sempre corresponde naturalmente a determinada fase do desenvolvimento dos métodos de trabalho e, assim, a sua força produtiva social – que encontramos o segredo mais profundo, a base oculta de todo o arcabouço social e, consequentemente, também da forma política das relações de soberania e de dependência, isto é, da forma específica do Estado existente em cada caso. Isso não impossibilita que a mesma base econômica – a mesma no que diz respeito às condições principais –, graças a inúmeras circunstâncias empíricas de diversos tipos, condições naturais, raciais, influências históricas externas etc., manifeste-se em infinitas variações e matizes, que só se podem compreender por meio de uma análise dessas circunstâncias empíricas.”

 

 

A economia vulgar, com efeito, não faz mais que interpretar, sistematizar e louvar doutrinariamente as concepções dos agentes presos dentro das relações burguesas de produção. Não nos deve surpreender, portanto, que ela, precisamente na forma de manifestação alienada das relações econômicas, nas quais essas aparecem, prima facie [à primeira vista], como contradições totais e absurdas – e toda a ciência seria supérflua se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente –, se sinta aqui perfeitamente à vontade e que essas relações lhe apareçam tanto mais naturais quanto mais escondida se encontrar nela a correlação interna, ao mesmo tempo em que são correntes para a concepção comum.”

 

 

“O processo de produção capitalista é uma forma historicamente determinada do processo social de produção em geral. Este último é tanto um processo de produção das condições materiais de existência da vida humana como um processo que, operando-se em condições histórico-econômicas de produção específicas, produz e reproduz essas mesmas relações de produção e, com elas, os portadores desse processo, suas condições materiais de existência e suas relações mútuas, isto é, sua determinada formação socioeconômica. A totalidade dessas relações que os portadores dessa produção estabelecem com a natureza e entre si, relações na quais ele produzem, é justamente a sociedade, considerada em sua estrutura econômica. Como todos os processos de produção antecedentes, a produção capitalista está submetida a determinadas condições materiais que, no entanto, contêm em si relações sociais determinadas que os indivíduos estabelecem no processo de reprodução da vida. Aquelas condições, assim como essas relações, são, por um lado, pressupostos e, por outro, resultados e criações do processo de produção capitalista, que os produz e reproduz. Vimos, além disso, que o capital – e o capitalista não é mais do que o capital personificado, que funciona no processo de produção apenas como portador do capital –, logo, o capital durante o processo social de produção que lhe corresponde, extrai determinada quantidade de mais-trabalho dos produtores diretos ou dos trabalhadores, mais-trabalho que o capitalista recebe sem equivalente e que, conforme sua essência, continua sempre a ser trabalho forçado, por mais que possa aparecer como resultado de um contrato livremente consentido. Esse mais-trabalho se representa num mais-valor, e esse mais-valor existe num mais-produto. Mais-trabalho em geral, como trabalho que vai além das necessidades dadas, tem de continuar a existir sempre. No sistema capitalista, porém, assim como no sistema escravista etc., ele assume uma forma antagônica e recebe um complemento no puro ócio de uma parte da sociedade. A necessidade de assegurar-se contra fatos acidentais e a indispensável e progressiva expansão do processo de reprodução – expansão que corresponde ao desenvolvimento das necessidades e ao progresso da população, o que, do ponto de vista capitalista, se chama acumulação – exigem determinada quantidade de mais-trabalho. O capital tem como um de seus aspectos civilizadores o fato de extrair esse mais-trabalho de maneira e sob condições mais favoráveis ao desenvolvimento das forças produtivas, das relações sociais e à criação dos elementos para uma nova formação, superior às formas anteriores da escravidão, da servidão etc. Isso conduz, por um lado, a uma fase em que desaparecem a coerção e a monopolização do desenvolvimento social (inclusive de suas vantagens materiais e intelectuais) por uma parte da sociedade à custa da outra; por outro lado, cria os meios materiais e o germe de relações que, numa forma superior da sociedade, permitirão unir esse mais-trabalho a uma redução maior do tempo dedicado ao trabalho material em geral, pois, na medida do desenvolvimento da força produtiva do trabalho, o mais-trabalho pode ser grande com uma breve jornada total de trabalho e relativamente pequeno com uma grande jornada total de trabalho. Digamos que o tempo de trabalho necessário seja = 3 e o mais-trabalho = 3; a jornada total de trabalho será, então, = 6 e a taxa do mais-trabalho = 100%. Se o trabalho necessário for = 9 e o mais-trabalho for = 3, então a jornada total de trabalho será = 12 e a taxa de mais-trabalho será apenas = 33%. Assim, da produtividade do trabalho depende quanto valor de uso se produz em determinado tempo e, portanto, também em certo tempo de mais-trabalho. A riqueza efetiva da sociedade e a possibilidade de ampliar constantemente seu processo de produção não dependem, desse modo, da duração do mais-trabalho, mas de sua produtividade e das condições mais ou menos abundantes de produção em que ela tem lugar. Com efeito, o reino da liberdade só começa onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação a finalidades externas; pela própria natureza das coisas, portanto, é algo que transcende a esfera da produção material propriamente dita. Do mesmo modo como o selvagem precisa lutar com a natureza para satisfazer suas necessidades, para conservar e reproduzir sua vida, também tem de fazê-lo o civilizado – e tem de fazê-lo em todas as formas da sociedade e sob todos os modos possíveis de produção. À medida de seu desenvolvimento, amplia-se esse reino da necessidade natural, porquanto se multiplicam as necessidades; ao mesmo tempo, aumentam as forças produtivas que as satisfazem. Aqui, a liberdade não pode ser mais do que o fato de que o homem socializado, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a natureza, submetendo-o a seu controle coletivo, em vez de serem dominados por ele como por um poder cego; que o façam com o mínimo emprego de forças possível e sob as condições mais dignas e em conformidade com sua natureza humana. Mas este continua a ser sempre um reino da necessidade. Além dele é que tem início o desenvolvimento das forças humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que, no entanto, só pode florescer tendo como base aquele reino da necessidade. A redução da jornada de trabalho é a condição básica.”

 

 

“Em nosso exame das categorias mais simples do modo de produção capitalista, e mesmo da produção de mercadorias, ao investigarmos a mercadoria e o dinheiro, já destacamos o caráter mistificador que faz com que as relações sociais, às quais os elementos materiais da riqueza servem como portadores na produção, sejam transformadas em atributos dessas próprias coisas (mercadorias) e, ainda mais explicitamente, a própria relação de produção em uma coisa (dinheiro). Todas as formas sociais, na medida em que conduzem à produção de mercadorias e à circulação de dinheiro, tomam parte nessa distorção. Mas no modo de produção capitalista e no caso do capital, que é sua categoria dominante, sua relação de produção determinante, esse mundo encantado e distorcido se desenvolve com força ainda maior. Considerando primeiro o capital no processo imediato de produção, como extrator de mais-trabalho, essa relação é ainda muito simples, e a conexão real interna se impõe aos portadores desse processo, aos próprios capitalistas, permanece em sua consciência. A intensa luta em torno dos limites da jornada de trabalho é uma prova decisiva disso. Mesmo no interior dessa esfera não mediada, na esfera do processo direto entre trabalho e capital, as coisas não são tão simples. Ao desenvolver-se o mais-valor relativo no próprio modo de produção especificamente capitalista, com o qual se desenvolvem as forças produtivas sociais do trabalho, essas forças produtivas e as conexões sociais do trabalho aparecem no processo imediato de trabalho como tendo sido deslocadas do trabalho para o capital. Desse modo, o capital já se transforma num ente altamente místico, na medida em que todas as forças produtivas sociais do trabalho aparecem como forças pertencentes ao capital, e não ao trabalho como tal, como forças que têm origem no seu próprio seio. Logo entra em cena o processo de circulação, em cujo metabolismo e em cuja metamorfose recaem todas as partes do capital, inclusive do capital agrícola, no mesmo grau em que se desenvolve o modo de produção especificamente capitalista. Trata-se, aqui, de uma esfera em que as relações da produção originária de valor caem para um segundo plano. Já no processo direto de produção, o capitalista desempenha simultaneamente as funções de produtor de mercadorias e de diretor da produção. Tal processo de produção, por isso, não se lhe apresenta de maneira nenhuma como mero processo de produção de mais-valor. Porém, qualquer que seja o mais-valor que o capital tenha extraído no processo imediato de produção e tenha representado em mercadorias, o valor e o mais-valor incorporados nas mercadorias hão de realizar-se apenas no processo de circulação. E tanto a restituição dos valores adiantados na produção como, sobretudo, o mais-valor incorporado nas mercadorias parecem não só se realizar na circulação, mas surgir dela, aparência que se reforça especialmente por duas circunstâncias: primeiro, o lucro na venda, que depende de fraude, astúcia, experiência, destreza e de mil contingências de mercado; acrescente-se, ainda, a circunstância de que aqui, ao lado do tempo de trabalho, entra um segundo elemento determinante, o tempo de circulação. Este, é verdade, só funciona como obstáculo negativo à formação de valor e de mais-valor, mas aparenta ser uma causa tão positiva quanto o próprio trabalho e prover uma determinação derivada da natureza do capital e independente do trabalho. É evidente que, no Livro II, só tivemos de apresentar essa esfera da circulação em relação às determinações formais que ela gera e remeter ao desenvolvimento ulterior da figura do capital que nela se verifica. Mas essa esfera é, na verdade, a esfera da concorrência que, considerada em cada caso particular, é dominada pelo acaso; portanto, a lei interna que se impõe nesses acasos e os regula só se torna visível assim que esses acasos se agrupam em grandes massas, nos casos em que, portanto, ela mesma fica invisível e se torna incompreensível para os agentes individuais da produção. Além disso, o processo real de produção, no qual se conjugam o processo imediato de produção e o processo de circulação, engendra novas configurações, nas quais se torna cada vez mais difícil identificar a conexão interna; as relações de produção tornam-se independentes umas das outras e os componentes de valor se ossificam em formas autônomas.

Como vimos, a transformação do mais-valor em lucro é determinada tanto pelo processo de circulação quanto pelo processo de produção. O mais-valor, na forma de lucro, já não se refere à parte do capital desembolsada em trabalho, do qual ele deriva, mas ao capital total. A taxa de lucro é agora regulada por leis próprias, que possibilitam e até condicionam uma alteração dela mesma, com uma taxa constante de mais-valor. Tudo isso contribui para esconder cada vez mais a verdadeira natureza do mais-valor e, por conseguinte, o verdadeiro mecanismo que move o capital. Isso ocorre ainda mais por obra da transformação do lucro em lucro médio e dos valores em preços de produção, nas médias reguladoras dos preços de mercado. Aqui intervém um processo social bastante complexo, o nivelamento dos capitais, que, por meio de capitais específicos, estabelece uma separação entre, por um lado, o preço médio relativo das mercadorias e seu valor e, por outro, entre os lucros médios nas diferentes esferas da produção e a exploração real do trabalho (prescindindo completamente da análise dos investimentos individuais de capital em cada esfera particular da produção). Não só parece ser esse o caso, mas aqui, de fato, o preço médio das mercadorias não coincide com seu valor, isto é, com o trabalho nelas realizado, e o lucro médio de um capital específico é distinto do mais-valor que esse capital extraiu dos trabalhadores por ele empregados. O valor das mercadorias só aparece diretamente na influência da força produtiva flutuante do trabalho sobre a alta e a baixa dos preços de produção, sobre seu movimento, e não sobre seus limites últimos. O lucro aparece determinado pela exploração imediata do trabalho apenas de maneira secundária, na medida em que esta possibilita ao capitalista, com os preços reguladores do mercado que aparentemente independem dessa exploração, realizar um lucro distinto do lucro médio. Os próprios lucros médios normais aparentam ser intrínsecos ao capital, independentes da exploração; a exploração anormal, ou mesmo a exploração média sob condições excepcionalmente favoráveis, parecem condicionar tão somente a variação quanto ao lucro médio, e não este último. A autonomização da forma do mais-valor, sua ossificação em relação a sua substância, a sua essência, completa-se com a divisão do lucro em lucro empresarial e juros (para não falar da atuação do lucro comercial e do lucro no comércio de dinheiro, que se fundam na circulação e parecem derivar inteiramente dela, e não do processo de produção). Uma parte do lucro separa-se inteiramente da relação de capital propriamente dita e, em oposição à outra parte, apresenta-se como derivada não da função de exploração do trabalho assalariado, mas do trabalho assalariado do próprio capitalista. Em contrapartida, os juros aparecem, então, como independentes, seja do trabalho assalariado do trabalhador, seja do próprio trabalho do capitalista, e como tendo origem no capital como sua fonte própria e independente. Se o capital apareceu originalmente, na superfície da circulação, como fetiche de capital, como valor que cria valor, agora ele se apresenta outra vez na forma do capital que rende juros, que é sua forma mais estranhada e peculiar. Por isso, também a fórmula “capital-juros”, como terceiro termo para “terra-renda” e “trabalho-salário”, é muito mais razoável do que “capital-lucro”, uma vez que no lucro persiste sempre uma lembrança de sua origem, ao passo que, nos juros, ela não só é apagada, mas condensada numa forma firmemente contraposta essa origem.

Por último, ao lado do capital como fonte autônoma de mais-valor, surge a propriedade fundiária como algo que limita o lucro médio e transfere uma parte do mais-valor para uma classe que propriamente não trabalha nem explora trabalhadores de maneira direta; tal como o capital que rende juros, não lhe é possível recorrer a lenitivos moralmente edificantes, como, por exemplo, o risco e o sacrifício intrínsecos ao empréstimo de capital. Como aqui uma parte do mais-valor não parece diretamente vinculada a relações sociais, mas a um elemento natural, a terra, então se completa a forma na qual as diferentes partes do mais-valor se estranham e ossificam reciprocamente, a conexão interna é definitivamente rompida e a fonte do mais-valor fica completamente soterrada, precisamente devido à autonomização mútua das relações de produção, vinculadas aos diversos elementos materiais do processo de produção.

Em capital-lucro, ou, melhor ainda, capital-juros, terra-renda fundiária, trabalho-salário – essa trindade econômica que conecta os componentes do valor e da riqueza em geral com suas fontes –, está consumada a mistificação do modo de produção capitalista, a reificação das relações sociais, o amálgama imediato das relações materiais de produção com sua determinação histórico-social: o mundo encantado, distorcido e de ponta-cabeça, em que monsieur Le Capital e madame La Terre vagueiam suas fantasmagorias como caracteres sociais e, ao mesmo tempo, como meras coisas. O principal mérito da economia clássica é o de ter dissolvido essa falsa aparência, essa empulhação, essa autonomização e ossificação recíprocas dos diferentes elementos sociais da riqueza, essa personificação das coisas e essa reificação das relações de produção, essa religião da vida cotidiana, ao reduzir os juros a uma parte do lucro e a renda ao excedente sobre o lucro médio, de maneira que ambos passam a coincidir no mais-valor; com isso, ela representa o processo de circulação como mera metamorfose das formas e, por último, no processo direto de produção, reduz o valor e o mais-valor das mercadorias ao trabalho. Ainda assim, mesmo seus mais destacados representantes, como não poderia deixar de ser do ponto de vista burguês, continuam mais ou menos prisioneiros do mundo da aparência que sua crítica extinguiu e, por isso, recaem todos eles, em maior ou menor grau, em inconsequências, semiverdades e contradições irresolvidas. Em contrapartida, é natural que os agentes reais da produção se sintam plenamente à vontade nessas formas estranhadas e irracionais de capital-juros, terra-renda, trabalho-salário, pois elas constituem precisamente as configurações da aparência em que tais agentes se movem e com as quais lidam todos os dias. Por isso, é também natural que a economia vulgar, que não é nada além de uma tradução didática, doutrinária em maior ou menor grau, das concepções correntes dos agentes reais da produção, nas quais ela introduz certa ordem inteligível, encontre precisamente nessa trindade, na qual está extinto todo nexo interno, a base natural e indubitável de sua altivez trivial. Ao mesmo tempo, ao proclamar e elevar à qualidade de dogma a necessidade natural e a legitimação eterna de suas fontes de rendimentos, essa fórmula corresponde ao interesse das classes dominantes.

Ao expor a reificação das relações de produção e sua autonomização frente aos agentes da produção, não analisamos de que maneira as conexões que permeiam o mercado mundial, suas circunstâncias, o movimento dos preços de mercado, os períodos do crédito, os ciclos da indústria e do comércio, a alternância de prosperidade e crise se lhes apresentam como leis naturais todo-poderosas, que os dominam contra a sua vontade e se impõem a eles como uma necessidade natural, cega. E não o fizemos porque o movimento real da concorrência encontra-se fora de nosso escopo e pretendemos expor apenas a organização interna do modo de produção capitalista, por assim dizer, em sua média ideal.

Em formas anteriores de sociedade, essa mistificação econômica só ocorre com relação ao dinheiro e ao capital que rende juros. Pela natureza das coisas, ela se encontra excluída, primeiro, de onde predomina a produção para o valor de uso, com o fim de satisfazer diretamente as próprias necessidades imediatas; segundo, de onde a escravidão ou a servidão formam a ampla base da produção social, como era o caso na Antiguidade e Idade Média – aqui, o domínio das condições de produção sobre os produtores se esconde por trás das relações de dominação e servidão, que aparecem e são visíveis como os motores diretos do processo de produção. Nas comunidades primitivas, nas quais impera o comunismo natural-espontâneo, e mesmo nas antigas comunidades urbanas, a base da produção são essas mesmas comunidades, com suas condições, e seu fim último não é mais que sua própria reprodução. Mesmo no sistema corporativo medieval, nem o capital nem o trabalho aparecem desvinculados, mas suas relações aparecem determinadas pelo sistema de corporações e pelas circunstâncias ligadas a ele, assim como pelas correspondentes ideias de dever profissional, maestria etc. Apenas no modo de produção capitalista*...”

* Aqui o manuscrito se interrompe. (N. E. A.)

 

 

“A indulgente boa vontade em descobrir no mundo burguês o melhor dos mundos possíveis substitui, na economia vulgar, todas as exigências do amor à verdade e do impulso à pesquisa científica.”

 

 

O novo valor agregado pelo novo trabalho anualmente incorporado ao produto – por conseguinte, também a parte do produto anual em que esse valor se representa e que pode ser extraída, separada do produto total – se decompõe, pois, em três partes, que assumem três diferentes formas de rendimento. Dessas formas, a primeira expressa uma parte desse valor como pertencente ao possuidor da força de trabalho, a segunda, outra parte como pertencente ao possuidor do capital, e a última, uma terceira parte como pertencente ao possuidor da propriedade fundiária; ou cada parte, portanto, recaindo em cada um deles. Essas são, pois, relações ou formas da distribuição, pois exprimem as relações em que o novo valor total gerado se distribui entre os possuidores das diferentes forças atuantes na produção.

Segundo a concepção habitual, essas relações de distribuição aparecem como relações naturais, como relações derivadas pura e simplesmente da natureza de toda produção social, das leis da produção humana. Não se pode negar, é claro, que as sociedades pré-capitalistas mostram outros modos de distribuição, mas estes são interpretados como não desenvolvidos, imperfeitos e disfarçados, como diferentemente matizados daquelas relações naturais de distribuição; como modos que não estão reduzidos a sua expressão mais pura nem a sua configuração mais alta.

A única coisa correta nessa concepção é a seguinte: uma vez suposta uma produção social de qualquer tipo (por exemplo, a das comunidades primitivas hindus, naturais-espontâneas, ou a do comunismo dos peruanos, desenvolvido mais artificialmente), é sempre possível distinguir entre a parte do trabalho cujo produto é consumido direta e individualmente pelos produtores e seus familiares e – abstraindo da parte que recai no consumo produtivo – outra parte, que sempre é mais-trabalho, cujo produto serve sempre para satisfazer necessidades sociais gerais, independentemente de como esse mais-produto seja distribuído e de quem atue como representante dessas necessidades sociais. A identidade dos diferentes modos de distribuição faz, portanto, com que eles resultem idênticos, uma vez que tenhamos abstraído de suas diferenciações e suas formas específicas e só retenhamos a unidade que há neles, por oposição a suas diferenças.

No entanto, uma consciência mais evoluída, mais crítica, é capaz de reconhecer o caráter historicamente desenvolvido das relações de distribuição[56a], mas, em contrapartida, aferra-se com mais firmeza ao caráter constante das próprias relações de produção, que seriam assim originárias da natureza humana e, por conseguinte, independentes de todo o desenvolvimento histórico.

Pelo contrário, a análise científica do modo de produção capitalista demonstra ser ele um modo de produção peculiar, com uma determinação histórica específica; que, como qualquer outro modo de produção determinado, ele pressupõe, como sua condição histórica, um certo nível das forças sociais produtivas e de suas formas de desenvolvimento, uma condição que, por sua vez, é ela mesma resultado e produto histórico de um processo anterior e do qual o novo modo de produção parte como de sua base dada; que as relações de produção que correspondem a esse modo de produção específico e historicamente determinado – relações que os homens contraem no processo de sua vida social e na criação desta última – possuem um caráter específico, histórico e transitório; e que, por fim, as relações de distribuição são essencialmente idênticas a essas relações de produção, expressando-as de modo reverso, de tal forma que ambas compartilham do mesmo caráter historicamente transitório.

Ao examinarmos as relações de distribuição, tomamos como ponto de partida, antes de mais nada, o fato presumido de que o produto anual se divide em salário, lucro e renda fundiária. Assim enunciado, o fato é falso. Por um lado, o produto se divide em capital e, por outro, em rendimentos. Um desses rendimentos, o salário, assume sempre, por sua vez, uma única forma de rendimento, o rendimento do trabalhador, mas só depois de ter se defrontado previamente com esse mesmo trabalhador na forma de capital. Para que os produtores imediatos possam se defrontar com as condições de trabalho produzidas e os produtos do trabalho em geral na forma de capital é necessário que, desde um primeiro momento, as condições materiais de trabalho tenham assumido um caráter social determinado frente aos trabalhadores e, com isso, que estes também tenham estabelecido, na própria produção, uma relação determinada com os possuidores das condições de trabalho e entre si. Por sua vez, a transformação dessas condições de trabalho em capital implica igualmente a expropriação dos produtores diretos e, desse modo, uma determinada forma de propriedade fundiária.

Se uma parte do produto não se transformasse em capital, a outra não assumiria as formas de salário, lucro e renda.

Por outro lado, se o modo de produção capitalista pressupõe essa configuração social determinada das condições de produção, ele a reproduz constantemente. Não só produz os produtos materiais, mas reproduz constantemente as relações de produção em que aqueles são produzidos e, com isso, também as relações de distribuição correspondentes.

Pode-se afirmar, no entanto, que o próprio capital (e a propriedade da terra, que ele inclui como sua antítese) já pressupõe uma distribuição: a expropriação dos trabalhadores em relação a suas condições de trabalho, a concentração dessas condições nas mãos de uma minoria de indivíduos, a propriedade exclusiva da terra por outros indivíduos e, em suma, todas as relações que foram expostas na seção sobre a acumulação primitiva (Livro I, capítulo 24). Essa distribuição, porém, é completamente diferente daquilo que se entende por relações de distribuição, na medida em que se reivindica para estas, em oposição às relações de produção, um caráter histórico. Com isso, referimo-nos aos diferentes títulos na parte do produto que recai no consumo individual. Em contrapartida, essas relações de distribuição formam os fundamentos de funções sociais específicas que, no interior da própria relação de produção, competem a determinados agentes desta última, em oposição aos produtores imediatos. Elas conferem, assim, uma qualidade social específica às próprias condições de produção e a seus representantes, determinando completamente o caráter e o movimento da produção.

Há dois traços característicos que distinguem de antemão o modo de produção capitalista.

Primeiro, ele produz seus produtos como mercadorias. Produzir mercadorias não o distingue de outros modos de produção, mas sim o fato de que ser mercadoria constitui o caráter dominante e determinante de seu produto. Isso implica, desde já, que o próprio trabalhador só aparece como vendedor de mercadoria e, por isso, como assalariado livre, ou seja, que o trabalho aparece em geral como trabalho assalariado. Depois do que desenvolvemos até aqui, é supérfluo demonstrar novamente de que modo a relação entre capital e trabalho assalariado determina todo o caráter do modo de produção. Os principais agentes desse modo de produção, o capitalista e o trabalhador assalariado, são apenas, como tais, encarnações, personificações do capital e do trabalho assalariado, caracteres sociais determinados que o processo de produção social estampa nos indivíduos; são produtos dessas relações sociais de produção determinadas.

O caráter 1) do produto como mercadoria e 2) da mercadoria como produto do capital já implica o conjunto das relações de circulação, isto é, um processo social determinado que os produtos precisam percorrer e no qual adquirem certos caracteres sociais; implica também determinadas relações entre os agentes da produção, as quais determinam a valorização de seu produto e sua reconversão, seja em meios de subsistência, seja em meios de produção. Mesmo abstraindo disso, toda a determinação do valor e a regulação da produção total pelo valor derivam dos dois caracteres acima mencionados: do produto como mercadoria ou da mercadoria como mercadoria produzida de maneira capitalista. Nessa forma bem específica do valor, o trabalho só conta, por um lado, como trabalho social; por outro lado, a distribuição desse trabalho social e a complementação mútua, o metabolismo de seus produtos, a subordinação à engrenagem social e a inclusão nesta última dependem de ações fortuitas, que se anulam reciprocamente, dos produtores capitalistas individuais. Como estes só se defrontam como possuidores de mercadorias e cada um tenta vender sua mercadoria o mais caro possível (e mesmo, ao que parece, guiando-se apenas por seu arbítrio na regulação da própria produção), a lei interna só se faz valer pela mediação de sua concorrência, da pressão recíproca de uns sobre os outros, em virtude da qual as divergências se anulam mutuamente. A lei do valor só opera aqui, diante de agentes individuais, como lei intrínseca, como lei natural cega, e impõe o equilíbrio social da produção em meio a suas flutuações ocasionais.

Além disso, na mercadoria, e mais ainda na mercadoria como produto do capital, já está incluído aquilo que caracteriza todo o modo de produção capitalista: a reificação das determinações sociais da produção e a subjetivação das bases materiais da produção.

O segundo traço que caracteriza especialmente o modo de produção capitalista é a produção do mais-valor como finalidade direta e motivo determinante da produção. O capital produz essencialmente capital, e só o faz na medida em que produz mais-valor. Ao examinar o mais-valor relativo e, além disso, ao considerar a transformação do mais-valor em lucro, vimos como nisso se encontram as bases de um modo de produção peculiar ao período capitalista: uma forma especial do desenvolvimento das forças sociais produtivas do trabalho, mas como forças do capital autonomizadas diante do trabalhador e, por conseguinte, em antítese direta com seu próprio desenvolvimento, com o desenvolvimento do trabalhador. Como mostramos ao longo do desenvolvimento da análise, a produção para o valor e para o mais-valor implica a tendência sempre presente de reduzir o tempo de trabalho necessário para a produção de uma mercadoria, isto é, seu valor, abaixo da média social que vigora na realidade. A avidez por reduzir o preço de custo a seu mínimo se converte na mais forte alavanca para o aumento da força produtiva social do trabalho, que aqui, porém, aparece apenas como aumento constante da força produtiva do capital.

A autoridade que o capitalista assume no processo direto de produção como personificação do capital, a função social que ele exerce como condutor e dominador da produção, é fundamentalmente distinta da autoridade baseada na produção com escravos, servos etc.

Enquanto na base da produção capitalista a massa dos produtores diretos se confronta com o caráter social de sua produção na forma de uma autoridade rigorosamente reguladora e de um mecanismo social do processo de trabalho articulado de modo inteiramente hierárquico – autoridade que, no entanto, só se investe em seus portadores como personificação das condições de trabalho diante do trabalho, e não, como em formas anteriores de produção, como dominadores políticos ou teocráticos –, entre os portadores dessa autoridade, os próprios capitalistas, que só se defrontam uns com os outros como possuidores de mercadorias, reina a mais completa anarquia, no seio da qual a conexão social da produção só se impõe à arbitrariedade individual na forma de uma lei natural inexorável.

É somente porque o trabalho está pressuposto na forma de trabalho assalariado, e os meios de produção, na forma de capital – ou seja, apenas devido à configuração social específica desses dois agentes essenciais da produção –, que uma parte do valor (produto) se apresenta como mais-valor, e esse mais-valor, como lucro (renda), como ganho do capitalista, riqueza adicional disponível, que lhe pertence. Mas é apenas porque esta se apresenta, desse modo, como seu lucro que aqueles meios adicionais de produção destinados à ampliação da reprodução e que formam uma parte do lucro apresentam-se como novo capital adicional, e a ampliação do processo de reprodução capitalista em geral, como processo de acumulação capitalista.

Apesar de a forma do trabalho como trabalho assalariado ser decisiva para a configuração de todo o processo e para o modo específico da própria produção, o trabalho assalariado não é determinante de valor. Na determinação do valor, trata-se do tempo social de trabalho em geral, da quantidade de trabalho de que a sociedade costuma dispor e cuja absorção relativa pelos diferentes produtos determina, em certa medida, o respectivo peso social destes últimos. A forma específica em que o tempo social de trabalho se impõe como determinante no valor das mercadorias está, porém, vinculada à forma do trabalho como trabalho assalariado e à forma correspondente dos meios de produção como capital, na medida em que apenas sobre essa base a produção de mercadorias se converte na forma geral da produção.

Examinemos, além disso, as assim chamadas relações de distribuição. O salário pressupõe o trabalho assalariado; o lucro, o capital. Essas formas determinadas de distribuição pressupõem, portanto, certos caracteres sociais das condições de produção e relações sociais específicas entre os agentes da produção. Ou seja, que a relação determinada de distribuição não é outra coisa senão a expressão da relação de produção historicamente dada.

Consideremos, agora, o lucro. Essa forma do mais-valor é a condição prévia para que a nova formação dos meios de produção transcorra como produção capitalista; portanto, uma relação que domina a reprodução, ainda que ao capitalista individual pareça que, na realidade, ele poderia devorar o lucro inteiro como rendimento. Se tentasse fazê-lo, ele encontraria obstáculos que já se contrapõem a ele na forma de fundos de emergência e de reserva, lei da concorrência etc., e que lhe demonstram na prática que o lucro não é em absoluto uma mera categoria de distribuição do produto individualmente consumível. O processo inteiro de produção capitalista é, além disso, regulado pelo preço dos produtos. Mas os preços reguladores de produção são, por sua vez, regulados pela equalização da taxa de lucro e a correspondente distribuição do capital nas diferentes esferas da produção social. O lucro aparece aqui, portanto, como fator principal não da distribuição dos produtos, mas de sua própria produção, como fator de distribuição dos capitais e do próprio trabalho entre as diversas esferas da produção. A divisão do lucro em ganho empresarial e juros aparece como distribuição do mesmo rendimento. Mas esse desdobramento tem origem no desenvolvimento do capital como valor que se autovaloriza e gera mais-valor, ou seja, origina-se dessa configuração social determinada do processo dominante de produção. Partindo de si mesma, ela desenvolve o crédito e as instituições de crédito e, com isso, a configuração da produção. Nos juros etc., as formas presumidas de distribuição entram no preço como momentos determinantes da produção. (...)

As chamadas relações de distribuição correspondem a – e derivam de – formas especificamente sociais e historicamente determinadas do processo de produção e das relações que os homens estabelecem entre si no processo de reprodução de sua vida. O caráter histórico dessas relações de distribuição é o caráter histórico das relações de produção, das quais aquelas só expressam um aspecto. A distribuição capitalista é distinta das formas de distribuição que têm origem em outros modos de produção, e cada forma de distribuição desaparece juntamente com a forma determinada de produção da qual ela provém e à qual corresponde.”

[56a] J.[ohn] Stuart Mill, [Essay on] Some Unsettled Questions of Pol.[itical] Econ.[omy] (Londres, [Harrison,] 1844).

 

 

“Tivesse chegado a rever o Livro III, Marx teria certamente desenvolvido de maneira considerável essa passagem. Tal como se apresenta, ela dá apenas um esboço do que se deve dizer sobre o problema. Vejamos essa questão, portanto, em maiores detalhes. É sabido que, nos primórdios da sociedade, os produtos eram consumidos pelos próprios produtores e que estes se organizavam espontaneamente em comunidades geridas de maneira mais ou menos comunista; é sabido também que a troca do excedente desses produtos com estrangeiros, a qual leva à transformação dos produtos em mercadorias, é um fenômeno posterior, que de início ocorre apenas entre comunidades individuais de diferentes tribos, porém mais tarde tem lugar também dentro da comunidade e contribui essencialmente para a dissolução desta última em grupos familiares maiores ou menores. No entanto, mesmo após essa dissolução, os chefes de família, que realizam as trocas, continuam a ser camponeses que trabalham e, com a ajuda de sua família, produzem em suas próprias terras quase tudo de que têm necessidade, obtendo de fora apenas uma pequena parte dos objetos de que precisam em troca de seus próprios produtos excedentes. A família não se ocupa apenas da agricultura e da pecuária, mas também transforma os produtos dessas atividades em artigos prontos para o consumo, às vezes moendo ela mesma o trigo em moinho manual, assando o pão, fiando, tingindo, tecendo o linho e a lã, curtindo o couro, erigindo e consertando construções de madeira, fabricando ferramentas e utensílios e, não raro, fazendo trabalhos de marcenaria e forja; desse modo, a família ou o grupo familiar é, no essencial, autossuficiente.

Ora, mesmo até o início do século XIX na Alemanha, o pouco que tal família precisava obter de terceiros por meio da troca ou da compra resumia-se principalmente a objetos de produção artesanal, ou seja, a coisas cuja fabricação não era de modo nenhum estranha ao camponês e que ele mesmo só não produzia porque ou não dispunha da matéria-prima ou o artigo comprado era de melhor qualidade ou muito mais barato. O camponês da Idade Média tinha plena ciência, portanto, do tempo de trabalho requerido para produzir os objetos que recebia na troca. O ferreiro e o segeiro da aldeia trabalhavam diante de seus olhos; do mesmo modo, o alfaiate e o sapateiro, que em minha juventude circulavam entre nossos camponeses renanos, indo de casa em casa, e dos materiais produzidos por estes confeccionava roupas e calçados. Tanto o camponês como as pessoas de quem ele comprava eram trabalhadores, e os artigos que trocavam entre si eram os produtos do trabalho de cada um. Que despenderam eles na produção desses produtos? Trabalho, apenas trabalho: para repor as ferramentas, produzir a matéria-prima e elaborá-la, não despenderam mais que sua própria força de trabalho; como lhes seria possível, então, trocar seus produtos pelos de outros produtores diretos, a não ser na proporção do trabalho neles empregado? O tempo de trabalho despendido nesses produtos não era apenas o único padrão de medida adequado para determinar quantitativamente as grandezas a serem trocadas; mais que isso, não havia outro além dele. Ou quem acreditaria que o camponês e o artesão fossem estúpidos ao ponto de trocar o produto de dez horas de trabalho de um deles pelo produto de uma única hora de trabalho do outro? Durante todo o período da economia natural camponesa, a única troca possível era aquela em que as quantidades trocadas de mercadorias tendiam a medir-se cada vez mais conforme as quantidades de trabalho nelas incorporadas. A partir do momento em que o dinheiro penetra nesse sistema econômico, torna-se, por um lado, ainda mais explícita a tendência para a adequação à lei do valor (de acordo com a formulação de Marx, nota bene!), mas, por outro, tal tendência já se vê perturbada pela intervenção do capital usurário e da espoliação fiscal, alongando assim os períodos em que a média dos preços se aproxima dos valores, até que a diferença entre eles se torna desprezível.

O mesmo vale para a troca entre os produtos dos camponeses e os dos artesãos citadinos. Inicialmente, tal troca era direta, sem mediação do comerciante, em dias de feira nas cidades, quando o camponês vendia seus produtos e realizava suas compras. Também nesse caso, não só as condições de trabalho do artesão eram conhecidas pelo camponês, como também as deste último pelo artesão. Pois ele mesmo era ainda um pouco camponês; possuía não apenas horta e pomar, mas também, com muita frequência, uma pequena porção de terra, uma ou duas vacas, porcos, aves etc. Desse modo, as pessoas da Idade Média eram capazes de calcular, umas em relação às outras, com bastante exatidão, os custos de produção em matérias-primas, materiais auxiliares e tempo de trabalho, pelo menos no que diz respeito aos artigos de uso cotidiano e geral.

Mas como nessa troca medida pela quantidade de trabalho se conseguia calcular esses custos, ainda que apenas de modo indireto e relativo, para produtos que exigiam um período de trabalho mais longo, interrompido por intervalos irregulares e incerto quanto ao rendimento, como, por exemplo, o cereal ou o gado? Ainda mais em se tratando de pessoas que não sabiam calcular? É evidente que isso só era possível através de um demorado processo de aproximação em zigue-zague, frequentemente tateando aqui e ali na escuridão, processo no qual, como de costume, só se aprende errando. Mas a necessidade que cada um sentia de recuperar seus gastos sempre o ajudava a reencontrar a direção correta, e a variedade exígua de objetos que entrava em circulação, assim como o método de produzi-los, que muitas vezes se mantinha invariável por séculos, facilitavam a realização do objetivo. E que não tenha tardado até que se estabelecesse com muita aproximação a grandeza de valor relativa desses produtos fica demonstrado pelo fato de o gado, a mercadoria em que isso parecia mais difícil devido ao longo tempo de produção de cada cabeça, ter sido a primeira mercadoria-dinheiro reconhecida de forma bastante generalizada. Para que isso se consumasse, o valor do gado, sua relação de troca para com toda uma série de outras mercadorias, teve de alcançar uma fixidez relativamente incomum, reconhecida sem contestação no território de diversas tribos. E as pessoas da época eram decerto suficientemente espertas – tanto os criadores de gado como seus fregueses – para não dar em troca, sem equivalente, o tempo de trabalho que haviam despendido. Pelo contrário: quanto mais próximas as pessoas se encontram do estágio primitivo da produção de mercadorias – russos e orientais, por exemplo –, tanto mais tempo elas desperdiçam, ainda em nossos dias, para obter mediante um regateio longo e obstinado a plena recompensa do tempo de trabalho empregado num produto.

Foi a partir dessa determinação do valor pelo tempo de trabalho que se desenvolveu toda a produção de mercadorias e, com ela, as múltiplas relações em que se afirmam os diferentes aspectos da lei do valor, tal como expostos na seção I do Livro I d’O capital; ou seja, as condições sob as quais apenas o trabalho é criador de valor. E tais condições, que se impõem sem que os participantes tomem consciência delas e só podem ser abstraídas da prática cotidiana por meio de uma longa investigação teórica, atuam como se fossem leis naturais, o que, como Marx também demonstrou, é algo que decorre necessariamente da natureza da produção de mercadorias. O progresso mais significativo e mais decisivo foi a transição para o dinheiro metálico, a qual, porém, teve por consequência o fato de que, a partir de então, a determinação do valor pelo tempo de trabalho deixava de aparecer de forma visível na superfície da troca de mercadorias. O dinheiro converteu-se, do ponto de vista prático, na medida fundamental do valor (...).

Em resumo: a lei marxiana do valor tem validade geral, desde que as leis econômicas valham para todo o período da produção simples de mercadorias, portanto, até o tempo em que esta experimenta uma modificação por meio da introdução da forma de produção capitalista. Até então, os preços variavam na direção dos valores determinados pela lei marxiana e gravitam em torno desses valores, de modo que, quanto mais desenvolvida a produção simples de mercadorias, tanto mais os preços médios de períodos mais longos, não interrompidos por crises violentas e de origem externa coincidem com os valores, podendo-se desprezar os pequenos desvios. Portanto, a lei marxiana do valor tem validade econômica geral para um período que se estende desde os primórdios da troca que transforma os produtos em mercadorias até o século XV de nossa era. Mas a troca de mercadorias tem origem numa época anterior a toda a história escrita; numa época que, no Egito, remonta a pelo menos 3.500, talvez 5.000, e na Babilônia, a 4.000, talvez 6.000 anos antes de nossa era; a lei do valor vigorou, pois, por um período de cinco a sete milênios.” (Friedrich Engels)

O Capital: crítica da economia política. Livro III: o processo global da produção capitalista (Parte III), de Karl Marx

Editora: Boitempo

Edição: Friedrich Engels

ISBN: 978-85-7559-390-5

Tradução: Rubens Enderle

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 984

Sinopse: Ver Parte I




“Com base na produção capitalista, o dinheiro – aqui considerado expressão autônoma de uma soma de valor, sendo indiferente se esta existe, de fato, em dinheiro ou em mercadorias – pode ser convertido em capital e, mediante essa conversão, deixar de ser um valor dado para se transformar num valor que valoriza a si mesmo, incrementa a si mesmo. Ele produz lucro, isto é, permite ao capitalista extrair dos trabalhadores determinada quantidade de trabalho não pago, de mais-produto e mais-valor, e de apropriar-se desse trabalho. Com isso, ele obtém, além do valor de uso que já possui como dinheiro, um valor de uso adicional, a saber, aquele de funcionar como capital. Seu valor de uso consiste aqui precisamente no lucro que ele produz ao se converter em capital. Nessa qualidade de capital possível, de meio para a produção do lucro, ele se torna mercadoria, mas uma mercadoria sui generis. Em outras palavras, o capital como tal torna-se mercadoria. (...)

A justiça das transações que se realizam entre os agentes da produção repousam no fato de que essas transações derivam das relações de produção como uma consequência natural. As formas jurídicas, nas quais essas transações econômicas aparecem como atos de vontade dos envolvidos, como exteriorizações de sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta às partes contratantes pelo Estado, não podem determinar, como meras formas que são, esse conteúdo. Elas podem apenas expressá-lo. Quando corresponde ao modo de produção, quando lhe é adequado, esse conteúdo é justo; quando o contradiz, é injusto. A escravidão, sobre a base do modo de produção capitalista, é injusta, assim como a fraude em relação à qualidade da mercadoria. (...)

A forma de empréstimo que, em vez da forma da venda, é característica dessa mercadoria – do capital como mercadoria – e que, além disso, ocorre também em outras transações resulta já da determinação de que o capital aparece aqui como mercadoria, de que o dinheiro, como capital, converte-se em mercadoria.”

 

 

Ora, é muito simples descobrir as razões pelas quais, tão logo essa divisão do lucro bruto em juros e ganho empresarial se converte numa divisão qualitativa, ela assume esse caráter para o capital total e para a classe capitalista em seu conjunto.

Em primeiro lugar, isso já deriva da circunstância meramente empírica de que a maioria dos capitalistas industriais, ainda que em proporções numéricas distintas, trabalha com capital próprio e emprestado e de que as proporções entre um e outro variam segundo os diferentes períodos.

Em segundo lugar, a conversão de uma parte do lucro bruto na forma dos juros converte sua outra parte em ganho empresarial. Este último é, na verdade, apenas a forma antitética que assume o excedente do lucro bruto sobre os juros, tão logo estes existem como categoria própria. Toda a investigação de como o lucro bruto se desdobra em juros e ganho empresarial reduz-se pura e simplesmente à investigação de como uma parte do lucro bruto se ossifica e se autonomiza como juros. Mas o capital portador de juros existe historicamente como uma forma pronta, dada de antemão, e os juros, portanto, como subforma pronta do mais-valor produzido pelo capital, muito antes de existirem o modo de produção capitalista e as ideias de capital e lucro que lhe correspondem. Isso explica por que, na concepção popular, considera-se o capital monetário, o capital portador de juros, o capital como tal, o capital par excellence. Também explica, por outro lado, a ideia dominante até a época de Massie, de que o que se paga nos juros é o dinheiro. O fato de que o capital emprestado produz juros, seja ele realmente empregado como capital ou não – e mesmo que só seja emprestado para fins de consumo –, reforça a ideia da autonomia dessa forma do capital. A melhor prova da autonomia que, nos primeiros períodos do modo de produção capitalista, os juros apresentam em relação ao lucro, e o capital portador de juros em relação ao capital industrial, é que só a partir de meados do século XVIII descobriu-se (por Massie e, depois dele, por Hume) o fato de que os juros são simplesmente uma parte do lucro bruto e de que tal descoberta se fazia necessária.

Em terceiro lugar, se o capitalista industrial trabalha com capital próprio ou com capital emprestado não altera em nada a circunstância de que ele tem de enfrentar a classe dos capitalistas monetários como uma categoria particular de capitalistas, o capital monetário como uma categoria independente de capital e os juros como a forma autônoma do mais-valor correspondente a esse capital específico.

Considerados qualitativamente, os juros são o mais-valor gerado pela mera propriedade do capital; o mais-valor lançado pelo capital em si mesmo – ainda que seu proprietário se mantenha à margem do processo de reprodução –, ou seja, o mais-valor lançado pelo capital independentemente de seu processo.

Considerada quantitativamente, a parte do lucro que forma os juros não aparece em referência ao capital industrial e comercial como tal, mas ao capital monetário, e a taxa dessa parte do mais-valor, o nível ou a taxa de juros, reafirma essa relação. Pois, em primeiro lugar, a taxa de juros – apesar de sua dependência em relação à taxa geral de lucro – é determinada de maneira independente e, em segundo lugar, porque, tal como o preço de mercado das mercadorias, ela aparece frente à inapreensível taxa de lucro como uma proporção que, apesar de todas as variações, permanece fixa, uniforme, tangível e sempre dada. Se todo o capital se encontrasse nas mãos dos capitalistas industriais, não existiriam juros nem taxa de juros. A forma autônoma que assume a distribuição quantitativa do lucro bruto engendra a distribuição qualitativa. Se compararmos o capitalista industrial com o capitalista monetário, veremos que ele se distingue deste último apenas por seu ganho empresarial, pelo excedente de seu lucro bruto sobre os juros médios, que, em virtude da taxa de juros, aparecem como grandeza empiricamente dada. Se, por outro lado, o compararmos com o capitalista industrial que trabalha com capital próprio, e não com capital emprestado, veremos que ele se diferencia deste último apenas como um capitalista monetário, que embolsa os juros, em vez de pagá-los a outrem. Em ambos os casos, a parte do lucro bruto que se distingue dos juros aparece para ele como ganho empresarial, e os próprios juros aparecem como um mais-valor que o capital gera por si só e que, por conseguinte, ele geraria ainda que não fosse investido produtivamente.

Isso está correto, do ponto de vista prático, para o capitalista individual. Ele pode optar por usar seu capital – não importando se este existe desde o início como capital monetário ou se ainda deve ser convertido em capital monetário – emprestando-o como capital portador de juros ou valorizando-o diretamente como capital produtivo. Mas generalizar esse aspecto, referindo-o a todo o capital da sociedade, como o fazem alguns economistas vulgares, e inclusive defini-lo como fundamento do lucro, é naturalmente um disparate. A ideia de converter o capital total da sociedade em capital monetário, sem que existam pessoas que comprem e valorizem os meios de produção – sob cuja forma se encontra a totalidade do capital, com exceção de uma porção relativamente pequena existente em dinheiro –, é evidentemente absurda. E nela vai implícita uma ideia ainda mais absurda, a de que, com base no modo de produção capitalista, o capital poderia gerar juros sem funcionar como capital produtivo, isto é, sem criar mais-valor, do qual os juros não são mais que uma parte; a ideia de que o modo de produção capitalista poderia mover-se sem a produção capitalista. Se um número desproporcionalmente grande de capitalistas resolvesse converter seu capital em capital monetário, a consequência disso seria uma enorme desvalorização do capital monetário e uma enorme queda da taxa de juros; muitos se veriam imediatamente na impossibilidade de viver de seus juros e, portanto, forçados a reconverter-se em capitalistas industriais. Mas, como já foi dito, isso é, em relação ao capitalista individual, um fato. Por isso, mesmo quando opera com seu capital próprio, a parte de seu lucro médio que equivale aos juros médios é por ele considerada necessariamente fruto de seu capital como tal, separado do processo de produção; e, em oposição a essa parte autonomizada nos juros, ele considera o restante de seu lucro bruto simples ganho empresarial. (...)

Ora, os juros, como os define Ramsay, são o lucro líquido que a propriedade do capital como tal gera, seja para o simples prestamista que permanece à margem do processo de reprodução, seja para o proprietário que investe produtivamente seu próprio capital. Também neste último caso o lucro líquido é gerado para o proprietário não como capitalista ativo, mas como capitalista monetário, como prestamista de seu próprio capital, como capital portador de juros, a si mesmo como capitalista ativo. Assim como a conversão do dinheiro – e do valor em geral – em capital é o resultado constante do processo de produção capitalista, também sua existência como capital é a condição permanente desse processo. Por meio de sua capacidade de converter-se em meios de produção, ele dispõe constantemente de trabalho não pago e, por isso, converte o processo de produção e circulação das mercadorias em produção de mais-valor para seu possuidor. Os juros são, pois, a expressão do fato de que o valor – o trabalho objetivado em sua forma social geral –, isto é, o valor que no processo efetivo de produção assume a forma de meios de produção, confronta-se como uma potência autônoma com a força viva de trabalho e constitui o meio para se apropriar de trabalho não pago; e de que ele é esse poder na medida em que se confronta com o trabalhador como propriedade alheia. Por outro lado, na forma dos juros apaga-se essa antítese em relação ao trabalho assalariado, pois o capital portador de juros não tem como termo antagônico o trabalho assalariado, mas o capital ativo; o capitalista prestamista confronta-se como tal diretamente com o capitalista que atua de fato no processo de reprodução, mas não com o trabalhador assalariado, que se encontra expropriado dos meios de produção justamente com base na produção capitalista. O capital portador de juros é o capital como propriedade diante do capital como função. Enquanto o capital não funciona, ele não explora os trabalhadores nem assume uma posição antitética em relação ao trabalho.

Por outro lado, o ganho empresarial não se encontra em oposição ao trabalho assalariado, somente aos juros.

Em primeiro lugar, pressupondo o lucro médio como dado, a taxa do ganho empresarial não é determinada pelo salário, mas pela taxa de juros. Ela é alta ou baixa na proporção inversa desta última[72].

Em segundo lugar, o capitalista ativo não deriva seu direito ao ganho empresarial – e, portanto, o próprio ganho empresarial – de sua propriedade sobre o capital, mas da função do capital distinta de sua determinidade como mera propriedade inerte. Isso aparece como antítese diretamente existente tão logo o capitalista opera com capital emprestado, isto é, quando juros e ganho empresarial competem a duas pessoas distintas. O ganho empresarial deriva da função do capital no processo de reprodução, ou seja, das operações, da atividade por meio da qual o capitalista ativo medeia essas funções do capital industrial e do capital-mercadoria. Mas ser representante do capital em funcionamento não constitui uma sinecura, como no caso do representante do capital portador de juros. Sobre a base da produção capitalista, o capitalista dirige tanto o processo de produção como o processo de circulação. A exploração do trabalho produtivo custa um esforço, seja ela realizada pelo próprio capitalista, seja por outrem, em seu nome. Em oposição aos juros, o ganho empresarial se apresenta para o capitalista como independente da propriedade do capital e, mais ainda, como resultado de suas funções de não proprietário, como... trabalhador.

Assim se desenvolve necessariamente em seu cérebro a ideia de que seu ganho empresarial, longe de achar-se em qualquer oposição com o trabalho assalariado e de ser apenas trabalho alheio não pago, representa, antes, seu próprio salário, um salário de supervisão do trabalho, wages of superintendance of labour; um salário maior que o do assalariado comum, 1) por ser um trabalho mais complexo e 2) porque ele mesmo paga seu próprio salário. Que sua função como capitalista consiste em produzir mais-valor, isto é, trabalho não pago, e, além disso, em produzi-lo nas condições mais econômicas é algo que fica completamente esquecido diante do fato antitético de que os juros competem ao capitalista, ainda que ele não desempenhe nenhuma função como capitalista, que seja mero proprietário do capital, e de que, pelo contrário, o ganho empresarial compete ao capitalista ativo, ainda que seja não proprietário do capital com que opera. A forma antagônica das duas partes em que se decompõe o lucro e, portanto, o mais-valor faz com que esqueçamos que ambas não são mais do que partes do mais-valor e de que sua divisão não pode alterar em nada sua natureza, sua origem e suas condições de existência.

No processo de reprodução, o capitalista ativo representa o capital como propriedade alheia diante dos trabalhadores assalariados, e o capitalista monetário, representado pelo capitalista ativo, participa da exploração do trabalho. O fato de que somente como representante dos meios de produção diante dos trabalhadores é possível ao capitalista ativo fazer com que os trabalhadores trabalhem para ele, ou que os meios de produção funcionem como capital, é esquecido na antítese entre a função do capital no processo de reprodução e a mera propriedade do capital fora do processo de reprodução.

Com efeito, nas formas que as duas partes do lucro – i.e., do mais-valor – assumem, as formas dos juros e do ganho empresarial, não está expressa nenhuma relação com o trabalho, uma vez que essa relação só existe entre ele e o lucro ou, antes, entre ele e o mais-valor, como a soma, o todo, a unidade dessas duas partes. A proporção em que o lucro é repartido e os diferentes títulos jurídicos que servem de base a essa repartição pressupõem o lucro como algo dado, pressupõem sua existência. Se, portanto, o capitalista é proprietário do capital com que opera, ele embolsa o lucro ou o mais-valor integral; para o trabalhador, é absolutamente indiferente se o capitalista procede desse modo ou se é obrigado a ceder uma parte a um terceiro como proprietário legal do capital. Os fundamentos que regem a divisão do lucro entre duas classes de capitalistas transformam-se, assim, nos fundamentos da existência do lucro – ou do mais-valor – que tem de ser dividido e que o capital como tal extrai do processo de reprodução, independentemente de toda divisão ulterior. Do fato de que os juros se contrapõem ao ganho empresarial, e este, por sua vez, contrapõe-se aos primeiros, e do fato de que eles se contrapõem apenas um ao outro, mas não ao trabalho, segue-se que o ganho empresarial mais os juros, isto é, o lucro e, mais amplamente, o mais-valor, baseia-se em quê? Nessa forma antitética de suas duas partes! Mas o lucro é produzido antes que nele se opere essa divisão e antes que se possa falar dela.

O capital portador de juros só se conserva pelo tempo em que o capital emprestado se transforma realmente em capital e produz um excedente, do qual os juros são uma parte. Isso não anula o fato de que a capacidade de produzir juros, independentemente do processo de produção, é algo inerente a esse capital. A força de trabalho só conserva sua qualidade criadora de valor quando atua e se realiza no processo de trabalho; e isso não exclui o fato de que uma tal força, em si mesma, é potencialmente uma atividade criadora de valor e de que, como tal, ela não deriva do processo de produção, mas o antecede. Ela é comprada como capacidade de criar valor. Também pode ocorrer que alguém a compre e não a coloque para trabalhar produtivamente; por exemplo, empregando-a para fins puramente pessoais, para o serviço doméstico etc. O mesmo ocorre com o capital. Compete ao prestamista decidir se ele o empregará ou não como capital, ou seja, se colocará ou não efetivamente em ação sua qualidade inerente de produzir mais-valor. O que ele paga é, em ambos os casos, o mais-valor potencial contido no capital-mercadoria.”

[72]The profits of enterprise depend upon the net profits of capital, not the latter upon the former” [“O ganho empresarial depende do lucro líquido do capital, e não o inverso”] ([George] Ramsay, [An Essay on the Distribution of Wealth, Edimburgo, Adam and Charles Black, 1836,] p. 214. Para ele, net profits são sempre = juros).

 

 

É no capital portador de juros que a relação capitalista assume sua forma mais exterior e mais fetichista. Aqui deparamos com D-D’, dinheiro que engendra mais dinheiro, valor que valoriza a si mesmo, sem o processo mediador entre os dois extremos. No capital comercial, D-M-D’, encontra-se pelo menos a forma geral do movimento capitalista, embora ela só se mantenha na esfera da circulação, razão pela qual o lucro aparece aqui como simples lucro de alienação; ele se apresenta, no entanto, como produto de uma relação social, e não como produto simples de uma mera coisa. A forma do capital comercial continua a representar um processo, a unidade de fases contrapostas, um movimento que se desdobra em dois procedimentos antagônicos, na compra e na venda de mercadorias. Esse processo se apaga em D-D’, ou seja, na forma do capital portador de juros. (...)

D-D’: temos aqui o ponto de partida do capital, o dinheiro na fórmula D-M-D’, reduzida aos dois extremos D-D’, em que D’ = D + ΔD, ou seja, dinheiro que gera mais dinheiro. É a fórmula geral e originária do capital, condensada de modo absurdo. É o capital consumado, a unidade do processo de produção e do processo de circulação, que, por conseguinte, gera mais-valor ao final de determinado período. Sob a forma do capital portador de juros, isso aparece de maneira direta, sem a mediação do processo de produção e de circulação. O capital aparece como fonte misteriosa e autocriadora de juros, de seu próprio incremento. A coisa (dinheiro, mercadoria, valor) é, por si só, capital, e o capital aparece como simples coisa; o resultado do processo inteiro de reprodução aparece como uma qualidade inerente a uma coisa material; depende da vontade do possuidor do dinheiro, isto é, da mercadoria em sua forma constantemente mutável, se ele irá desembolsá-lo como dinheiro ou alugá-lo como capital. No capital portador de juros, portanto, produz-se em toda sua pureza esse fetiche automático do valor que se valoriza a si mesmo, do dinheiro que gera dinheiro, mas que, ao assumir essa forma, não traz mais nenhuma cicatriz de seu nascimento. A relação social é consumada como relação de uma coisa, o dinheiro, consigo mesma. Em vez da transformação real do dinheiro em capital, aqui se mostra apenas sua forma vazia de conteúdo. Assim como na força de trabalho, o valor de uso do dinheiro transforma-se em fonte de criação de valor, de um valor maior que o que está contido nele mesmo. Como tal, o dinheiro é potencialmente um valor que se valoriza a si mesmo e que é emprestado, o que constitui a forma da venda para essa mercadoria peculiar. Assim, criar valor torna-se uma qualidade do dinheiro tanto quanto dar peras é uma qualidade da pereira. E é como uma coisa que dá juros que o prestamista vende seu dinheiro. Mas isso não é tudo. Como vimos, o capital realmente ativo se apresenta de tal modo que rende juros não como capital ativo, mas como capital em si mesmo, como capital monetário.

Também isso aparece invertido aqui: enquanto os juros são somente uma parte do lucro, isto é, do mais-valor que o capitalista ativo arranca do trabalhador, agora os juros aparecem, ao contrário, como o verdadeiro fruto do capital, como o originário, ao passo que o lucro, transfigurado em ganho empresarial, aparece como simples acessório e ingrediente adicionado no processo de reprodução. Aqui se completam a forma fetichista do capital e a ideia do fetichismo do capital. Em D-D’, temos a forma mais sem conceito [begriffslose] do capital, a inversão e a coisificação das relações de produção elevadas à máxima potência: a forma simples do capital, como capital portador de juros, na qual ele é pressuposto a seu próprio processo de reprodução; a capacidade do dinheiro ou, conforme o caso, da mercadoria, de valorizar seu próprio valor, independentemente da reprodução – eis a mistificação capitalista em sua forma mais descarada.

Para a economia vulgar, que pretende apresentar o capital como fonte independente de valor, de criação de valor, essa forma é naturalmente um achado magnífico, uma forma em que a fonte do lucro não pode mais ser identificada e em que o resultado do processo de produção capitalista – apartado do processo mesmo – assume uma existência independente.

Apenas no capital monetário o capital se converteu em mercadoria, cuja qualidade de valorizar a si mesma tem um preço fixo, que se expressa na taxa de juros vigente em cada momento.

É como capital portador de juros, mais precisamente em sua forma direta de capital monetário portador de juros (as outras formas do capital portador de juros, que aqui não nos interessam, são, por sua vez, derivadas dessa forma e a pressupõem), que o capital reveste sua forma fetichista mais pura: D-D’ como sujeito, coisa vendável. Em primeiro lugar, por meio de sua existência constante como dinheiro, forma na qual todas as suas outras determinidades se apagam e seus elementos reais são invisíveis. O dinheiro é justamente a forma em que se apaga a diferença das mercadorias como valores de uso e, por conseguinte, também a diferença dos capitais industriais constituídos por essas mercadorias e suas condições de produção; é a forma em que o valor – e, aqui, o capital – existe como valor de troca autônomo. No processo de reprodução do capital, a forma-dinheiro é efêmera, um elemento meramente transitório. No mercado monetário, ao contrário, o capital existe sempre nessa forma. Em segundo lugar, o mais-valor que o capital produz, aqui também na forma do dinheiro, aparece para ele como algo que se lhe acrescenta. Assim como crescer é próprio das árvores, também criar dinheiro (tokoz) [juros; descendência] parece ser próprio do capital nessa forma de capital monetário. (...)

O capital é agora uma coisa, mas, como tal, é capital. O dinheiro tem agora amor no corpo[b]. Tão logo é emprestado ou investido no processo de reprodução (na medida em que rende ao capitalista ativo, como a seu proprietário, juros separados do ganho empresarial), crescem seus juros, não importando se ele dorme ou está acordado, se está em casa ou viajando, se é dia ou noite. Assim, o desejo do entesourador se realiza no capital monetário portador de juros (e todo capital é, segundo sua expressão de valor, capital monetário – ou é agora considerado a expressão do capital monetário).”

[b] Referência ao verso “als hätt’es Lieb’im Leibe” (literalmente: “como se tivesse amor no corpo”), do Fausto, de J. W. Goethe (primeira parte, quadro VI, cena I). (N. T.)

 

 

Mas é no capital portador de juros que aparece consumada a ideia do fetiche do capital, a ideia que atribui ao produto acumulado do trabalho – e, além disso, fixado como dinheiro – a capacidade de criar mais-valor em progressão geométrica por meio de uma misteriosa qualidade inata, como um puro autômato, de tal modo que esse produto acumulado do trabalho, como afirma o Economist, tenha descontado desde muito tempo toda a riqueza do mundo do presente e do futuro como algo que lhe pertence e lhe corresponde por direito. O produto do trabalho pretérito, o próprio trabalho pretérito, está aqui, em si mesmo, prenhe de um fragmento de mais-trabalho vivo, presente ou futuro. Sabe-se, em contrapartida, que na realidade a conservação e, portanto, também a reprodução do valor dos produtos do trabalho pretérito são apenas resultado de seu contato com o trabalho vivo; além disso, que o comando que os produtos do trabalho pretérito exercem sobre o mais-trabalho vivo só dura enquanto subsiste a relação do capital, quer dizer, a relação social determinada em que o trabalho pretérito se confronta de modo independente e onipotente com o trabalho vivo.”

 

 

Se o sistema de crédito se apresenta como a alavanca principal da superprodução e do excesso de especulação no comércio, é pura e simplesmente porque o processo de reprodução, que por sua própria natureza é um processo elástico, vê-se forçado aqui até o máximo, e isso porque uma grande parte do capital social é investida por aqueles que não são seus proprietários, os quais atuam, claro, de maneira bem distinta dos proprietários, que a cada passo avaliam cautelosamente os limites e as possibilidades de seu capital privado. Assim, destaca-se somente o fato de que a valorização do capital, baseada no caráter antagônico da produção capitalista, só consente até certo ponto em seu desenvolvimento real, livre, pois na realidade constitui um entrave e um limite imanentes à produção, que são constantemente rompidos pelo sistema de crédito[88]. Por conseguinte, o crédito acelera o desenvolvimento material das forças produtivas e a instauração do mercado mundial, que, por constituírem as bases da nova forma de produção, têm de ser desenvolvidos até um certo nível como tarefa histórica do modo de produção capitalista. O crédito acelera ao mesmo tempo as erupções violentas dessa contradição, as crises e, com elas, os elementos da dissolução do antigo modo de produção.

Tais são as duas características intrínsecas ao sistema de crédito: por um lado, ele desenvolve a mola propulsora da produção capitalista, o enriquecimento mediante a exploração do trabalho alheio, até convertê-los no mais puro e colossal sistema de jogo e fraude e limitar cada vez mais o número dos poucos indivíduos que exploram a riqueza social; por outro lado, estabelece a forma de transição para um novo modo de produção. É essa duplicidade que confere aos principais porta-vozes do crédito, de Law a Isaac Pereire, o agradável caráter híbrido de vigaristas e profetas.”

[88] Th. Chalmers [, On Political Economy in Connexion with the Moral State and Moral Prospects of Society, 2. ed., Glasgow, 1832. – N. T.].

 

 

Enquanto o processo de reprodução é contínuo e, com isso, assegura o refluxo do capital, esse crédito perdura e se expande, e sua expansão se baseia na expansão do próprio processo de reprodução. Quando ocorre uma paralisação em consequência de atrasos nos retornos de capital, mercados saturados ou preços em queda, tem-se um excesso de capital industrial, mas numa forma em que não pode desempenhar sua função. Há uma massa de capital-mercadoria, porém invendável. Uma massa de capital fixo, porém em grande parte ociosa, em virtude do estancamento da reprodução. O crédito contrai-se 1) porque esse capital está desocupado, isto é, paralisado numa das fases de sua reprodução, já que não pode completar sua metamorfose; 2) porque foi perdida a confiança na fluidez do processo de reprodução; 3) porque diminui a demanda desse crédito comercial. O fiandeiro que restringe sua produção e tem em seu estoque uma grande massa não vendida de fios não precisa comprar algodão a crédito; o comerciante não precisa comprar mercadorias a crédito, porque as que tem são mais que suficientes.

Por conseguinte, no caso de algum distúrbio nessa expansão, ou mesmo na atividade normal do processo de reprodução, ocorre com isso também uma escassez de crédito, isto é, a obtenção de mercadorias a crédito fica mais difícil. No entanto, a exigência de pagamento à vista e as precauções que se observam nas vendas a crédito são particularmente características daquela fase do ciclo industrial que se segue ao crash. É em plena crise, quando todos têm de vender e não conseguem fazê-lo e, ainda assim, são obrigados a vender para pagar, que a massa, não do capital inativo, à procura de investimento, mas do capital estagnado no processo de reprodução, é a maior, justamente quando a escassez de crédito também é maior que nunca (e, por isso, a taxa de desconto, no crédito bancário, encontra-se em seu nível máximo). O capital já investido está então, de fato, desocupado em grandes quantidades, pois o processo de reprodução está estagnado. As fábricas deixam de funcionar, as matérias-primas se acumulam, os produtos acabados inundam, como mercadorias, o mercado. Nada é mais errôneo, pois, do que culpar a escassez de capital produtivo por essa situação. É justamente nessas épocas que se apresenta uma superabundância de capital produtivo, em parte com relação à escala normal, porém temporariamente reduzida, da reprodução, em parte com relação ao consumo paralisado.

Imaginemos que toda a sociedade seja formada apenas por capitalistas industriais e trabalhadores assalariados. Abstraiamos, além disso, das mudanças de preços, que impedem que grandes porções do capital total da sociedade se reponham em suas proporções médias e que, devido às inter-relações das esferas do processo global de reprodução, tal como o crédito as desenvolve, têm sempre de acarretar paralisações gerais de natureza temporária. Façamos abstração também dos negócios fictícios e das operações especulativas que o sistema de crédito estimula. Nessas condições, uma crise só seria explicável por uma desproporção entre os diversos ramos da produção e por uma desproporção entre o consumo dos próprios capitalistas e sua acumulação. Porém, tal como as coisas se apresentam na realidade, a reposição dos capitais investidos na produção depende, em grande parte, da capacidade de consumo das classes não produtivas, ao passo que a capacidade de consumo dos trabalhadores está limitada, em parte, pelas leis salariais e, em parte, pela circunstância de que essas leis só se aplicam se for em benefício da classe capitalista. A razão última de todas as crises reais é sempre a pobreza e a restrição ao consumo das massas em contraste com o ímpeto da produção capitalista a desenvolver as forças produtivas como se estas tivessem seu limite apenas na capacidade absoluta de consumo da sociedade.”

 

 

Naturalmente, a acumulação de todos os capitalistas que emprestam dinheiro opera-se sempre na forma direta de dinheiro, em contraste com a verdadeira acumulação dos capitalistas industriais, que em geral se efetua, como vimos, mediante o aumento dos elementos do próprio capital reprodutivo. Por isso, o desenvolvimento do sistema de crédito e a enorme concentração do negócio de empréstimo de dinheiro nas mãos dos grandes bancos tem de acelerar por si só a acumulação do capital emprestável, como forma distinta da acumulação real. Esse rápido desenvolvimento do capital de empréstimo é, assim, um resultado da acumulação real, pois deriva do desenvolvimento do processo de reprodução, e o lucro, que forma a fonte de acumulação desses capitalistas monetários, não é senão uma dedução do mais-valor extraído pelos capitalistas reprodutivos (ao mesmo tempo que é a apropriação de uma parte dos juros obtidos sobre as poupanças de outrem). O capital de empréstimo se acumula às expensas tanto dos capitalistas industriais como dos capitalistas comerciais. Vimos como, nas fases desfavoráveis do ciclo industrial, a taxa de juros pode subir tanto que, em alguns ramos de negócio em situação especialmente desfavorável, chega a absorver temporariamente o lucro inteiro. Ao mesmo tempo, cai o preço dos títulos públicos e dos outros títulos de crédito. É o momento em que os capitalistas monetários aproveitam para comprar em massa esses títulos depreciados, que, nas fases posteriores, não tardam a subir ao nível normal e acima dele. Então são novamente lançados no mercado, e assim é apropriada uma parte do capital monetário do público. A parcela que não é vendida rende juros mais altos, porque foi adquirida abaixo do preço. Mas todo o lucro obtido pelos possuidores dos capitais monetários e que volta a converter-se em capital eles transformam, antes de mais nada, em capital monetário emprestável. A acumulação deste último, sendo distinta da verdadeira acumulação, ainda que fruto dela, segue seu curso, portanto – quando consideramos apenas os próprios capitalistas monetários, banqueiros etc. –, como acumulação dessa classe especial de capitalistas e tem necessariamente de crescer à medida que se expande o sistema de crédito, da mesma maneira que acompanha a ampliação real do processo de reprodução.

Estando baixa a taxa de juros, a desvalorização do capital monetário recai principalmente sobre os depositantes, não sobre os bancos.”

 

 

“Por um lado, o capital do capitalista industrial não é “poupado” por ele mesmo, mas ele dispõe da poupança dos outros na proporção da grandeza de seu capital; por outro lado, o capitalista monetário converte as poupanças alheias em seu próprio capital, e do crédito que os capitalistas reprodutivos se concedem mutuamente ele faz sua fonte privada de enriquecimento. Destrói-se, assim, a última ilusão do sistema capitalista: a de que o capital é fruto de trabalho próprio e poupança própria. Não só o lucro consiste na apropriação do trabalho alheio, mas também o capital com que esse trabalho alheio é mobilizado e explorado consiste em propriedade alheia, que o capitalista monetário põe à disposição do capitalista industrial e por meio do qual, por sua vez, ele explora este último.”

 

 

“O sistema de crédito, cujo núcleo são os supostos bancos nacionais e grandes prestamistas e usurários de dinheiro a seu redor, constitui uma enorme centralização e confere a essa classe parasitária um poder fabuloso – não só de dizimar periodicamente os capitalistas industriais, mas de intervir da maneira mais perigosa na produção real, da qual esse bando não sabe absolutamente nada e com a qual não tem nenhuma relação.”

 

 

“A riqueza da sociedade só existe como riqueza dos indivíduos, que são seus proprietários privados e só se afirma como riqueza social pelo fato de que esses indivíduos, para satisfazer suas necessidades, intercambiam entre si os valores de uso qualitativamente distintos. Na produção capitalista, eles só podem fazer isso por meio do dinheiro. Desse modo, é apenas por meio do dinheiro que a riqueza do indivíduo se realiza como riqueza social; é no dinheiro, nessa coisa, que se encarna a natureza social dessa riqueza.” (Friedrich Engels)

 

 

“O sistema monetário é essencialmente católico; o sistema de crédito, essencialmente protestante. (...) Como papel, a existência monetária das mercadorias é puramente social. É a que salva. A fé no valor monetário como espírito imanente das mercadorias, a fé no modo de produção e sua ordem predestinada, a fé nos agentes individuais da produção como meras personificações do capital que se valoriza a si mesmo. Porém, assim como o protestantismo não se emancipa dos fundamentos do catolicismo, tampouco o sistema de crédito se emancipa da base do sistema monetário.”

 

 

“Assim, a usura exerce, por um lado, uma influência nociva e destrutiva sobre a riqueza e a propriedade antigas e feudais. Por outro lado, solapa e arruína a produção de pequenos camponeses e pequenos burgueses – numa palavra, todas as formas em que o produtor ainda aparece como o proprietário de seus meios de produção. No modo de produção capitalista desenvolvido, o trabalhador não é proprietário das condições de produção, do campo que cultiva, das matérias-primas que processa etc. Mas essa separação do produtor com relação aos meios de produção reflete aqui um revolucionamento real do próprio modo de produção. Os trabalhadores isolados são reunidos em grandes oficinas, nas quais desenvolvem atividades separadas, porém articuladas; a ferramenta se converte em máquinas. O próprio modo de produção não permite mais a dispersão dos instrumentos de produção característica da pequena propriedade, tampouco o isolamento dos próprios trabalhadores. Na produção capitalista, a usura não pode mais implantar o divórcio entre as condições de trabalho e o produtor, pela simples razão de que esse divórcio já existe.

Onde os meios de produção estão dispersos, a usura centraliza fortunas em dinheiro. Ela não altera o modo de produção, mas suga sua substância como um parasita e o arruína. Ela o exaure, enerva-o e obriga a reprodução a desenvolver-se sob condições cada vez mais deploráveis. Isso explica o fato de o ódio popular contra a usura ter sido mais intenso no mundo antigo, quando a propriedade dos meios de produção pelo produtor era ao mesmo tempo a base das relações políticas e da autonomia do cidadão.

Na medida em que prevalece a escravidão ou em que o mais-produto é consumido pelo senhor feudal e por seu séquito, e que o dono de escravos ou o senhor feudal caem nas garras da usura, o modo de produção continua a ser o mesmo; torna-se somente mais duro para o trabalhador. O dono de escravos ou o senhor feudal endividados espoliam mais porque são mais espoliados. Ou, então, acabam cedendo lugar ao usurário, que se converte ele próprio, por sua vez, em proprietário fundiário ou dono de escravos, como os cavaleiros da Roma Antiga. O antigo explorador, cuja exploração tinha um caráter mais ou menos patriarcal, porque era, em grande parte, um meio de poder político, é substituído por um arrivista implacável, ávido de dinheiro. No entanto, o próprio modo de produção não se altera.

A usura tem um efeito revolucionário em todos os modos de produção pré-capitalistas apenas na medida em que destrói e dissolve as formas de propriedade que, reproduzindo-se constantemente na mesma forma, constituem a base firme da organização política. A usura pode perdurar por longo tempo dentro das formas asiáticas sem provocar mais que a decadência econômica e a degeneração política. É apenas onde e quando estão presentes as demais condições do modo de produção capitalista que a usura aparece como um dos meios constitutivos do novo modo de produção – por um lado, mediante a ruína dos senhores feudais e da pequena produção e, por outro, pela centralização das condições de trabalho, que são convertidas em capital. (...)

A usura, em si um processo de surgimento do capital, é historicamente importante diante da riqueza consumidora. O capital usurário e a fortuna comercial promovem a formação de uma fortuna monetária independente da propriedade fundiária. Quanto menos os produtos assumem o caráter de mercadoria, e quanto menos o valor de troca domina intensiva e extensivamente a produção, mais o dinheiro aparece como riqueza propriamente dita, como a riqueza geral diante da representação limitada da riqueza em valores de uso. Nisso repousa o entesouramento. Abstraindo de sua forma como dinheiro mundial e como Tesouro, é como meio de pagamento que o dinheiro aparece na forma absoluta da mercadoria. E é especialmente sua função como meio de pagamento que desenvolve os juros e, com isso, o capital monetário. O que a riqueza pródiga e corruptora deseja é o dinheiro como tal, o dinheiro como meio para comprar tudo (e também pagar dívidas). O pequeno produtor necessita de dinheiro, principalmente para comprar. (Aqui desempenha um grande papel a transformação dos serviços e das contribuições in natura aos proprietários fundiários e ao Estado em renda monetária e impostos monetários.) Em ambos os casos, o dinheiro se torna necessário como dinheiro. Por outro lado, é na usura que o entesouramento se torna real, realiza seu sonho. O que é exigido do proprietário de tesouro não é capital, mas dinheiro como tal; mediante os juros, no entanto, ele transforma esse tesouro monetário em capital para si mesmo – num meio pelo qual ele se apodera total ou parcialmente do mais-trabalho e, com isso, de uma parte das próprias condições de produção, ainda que elas continuem nominalmente a existir para ele como propriedade alheia. A usura vive, ao que parece, nos poros da produção, como deuses nos intermúndios de Epicuro. Quanto menos a forma mercadoria é a forma geral do produto, mais difícil se torna obter dinheiro. Daí que o usurário não conhece outra limitação além da capacidade de pagar ou de resistir dos necessitados de dinheiro. Na produção pequeno-camponesa ou pequeno-burguesa, o dinheiro é requerido fundamentalmente como meio de compra, quando o trabalhador (que, nesses tipos de produção, continua a ser predominantemente seu proprietário) se vê privado das condições de produção por motivo de contingências fortuitas ou por abalos extraordinários ou quando, pelo menos, essas condições não são repostas no curso normal da reprodução. Os meios de subsistência e as matérias-primas constituem parte essencial dessas condições de produção. Se se tornam mais caros, isso pode impossibilitar sua reposição a partir do importe obtido com a venda do produto, do mesmo modo como uma simples má colheita pode impedir o camponês de repor in natura suas sementes. As mesmas guerras por meio das quais os patrícios romanos arruinavam os plebeus, compelindo-os a prestar serviço militar, que os impediam de reproduzir suas condições de trabalho e, assim, os empobreciam (e o empobrecimento, a mutilação ou a perda dos pré-requisitos da reprodução é aqui a forma predominante), essas mesmas guerras enchiam os celeiros e os porões dos patrícios com o cobre saqueado, que era o dinheiro daquela época. Em vez de entregar diretamente aos plebeus as mercadorias de que eles necessitavam, trigo, cavalos, gado, os patrícios lhes emprestavam esse cobre, que para eles mesmos era inútil, e aproveitavam a situação para arrancar-lhes enormes juros usurários, por meio dos quais faziam deles escravos por dívidas. Sob o reinado de Carlos Magno, também os camponeses francos foram arruinados por guerras, não lhes restando alternativa senão a de converter-se de devedores em servos. Sabemos que, no Império Romano, a fome costumava obrigar os pobres livres a vender seus filhos ou a vender a si mesmos como escravos. Isso basta quanto às grandes mudanças de caráter geral. Observando o problema mais detalhadamente, a conservação ou a perda das condições de produção depende de mil contingências, e cada uma dessas contingências ou perdas representa empobrecimento e abre uma brecha para que o parasita da usura possa instalar-se. A simples morte de uma de suas vacas é suficiente para tornar o pequeno produtor incapaz de retomar sua reprodução na escala anterior. Com isso, ele cai nas garras da usura e, uma vez que ali se encontra, jamais volta a libertar-se.

No entanto, a função do dinheiro como meio de pagamento é o domínio realmente importante e característico da usura. Todo pagamento em dinheiro, toda renda fundiária, tributo, imposto etc. que vence num determinado prazo coloca a necessidade de se dispor de certa soma em dinheiro. Assim se explica que a usura em grande escala tenha se desenvolvido, desde os antigos romanos até os tempos modernos, em conexão com os coletores de impostos, fermiers généraux [coletores gerais], receveurs généraux [recebedores gerais]. Em seguida, com o comércio e a generalização da produção de mercadorias, desenvolve-se a separação temporal entre a compra e o pagamento. O dinheiro precisa ser entregue num prazo determinado. As modernas crises monetárias demonstram como isso pode conduzir a circunstâncias em que as figuras do capitalista monetário e do usurário ainda hoje se confundem. Mas a própria usura torna-se o meio principal para continuar a desenvolver a necessidade do dinheiro como meio de pagamento, na medida em que endivida cada vez mais o produtor e elimina seus meios comuns de pagamento, impondo-lhe uma carga de juros que impossibilita até mesmo sua reprodução regular. Nesse ponto, a usura brota do dinheiro como meio de pagamento e amplia essa função do dinheiro como seu domínio mais peculiar.

O sistema de crédito completa seu desenvolvimento como reação contra a usura. Mas isso não deve ser mal entendido, e de forma nenhuma interpretado ao modo dos autores antigos, dos padres da Igreja, de Lutero ou dos antigos socialistas. O sistema de crédito não significa nada além da submissão do capital portador de juros às condições e às necessidades do modo de produção capitalista.”

 

 

“Como já fora exposto em 1697, em Some Thoughts of the Interest of England, o sistema bancário, por sua organização formal e sua centralização, é o produto mais artificial e mais refinado que pode resultar do modo de produção capitalista em geral. Isso explica o enorme poder de uma instituição como o Banco da Inglaterra sobre o comércio e a indústria, embora seu movimento real permaneça totalmente de fora de seu domínio e se comporte em relação a ele de maneira passiva. Com isso, está certamente dada a forma de uma contabilidade e uma distribuição gerais dos meios de produção em escala social, mas somente a forma. O lucro médio do capitalista individual, ou de cada capital particular, é, como vimos, determinado não pelo mais-trabalho, de que esse capital se apropria em primeira mão, mas pela quantidade total de mais-trabalho de que o capital inteiro se apropria e do qual cada capital particular extrai seus dividendos como alíquota do capital total. Esse caráter social do capital só se consuma e se realiza integralmente mediante o desenvolvimento pleno dos sistemas de crédito e bancário. Por outro lado, esse sistema segue seu próprio desenvolvimento. Oferece aos capitalistas industriais e comerciais todo o capital disponível da sociedade, inclusive o capital potencial, ainda não ativamente comprometido, de modo que nem o prestamista nem quem emprega esse capital é seu proprietário ou seu produtor. Com isso, ele suprime o caráter privado do capital e, assim, contém em si, somente em si, a supressão do próprio capital. Por meio do sistema bancário, a distribuição do capital é retirada das mãos dos capitalistas particulares e dos usurários como um negócio especial, como função social. Ao mesmo tempo, porém, o banco e o crédito se convertem no meio mais poderoso de impulsionar a produção capitalista para além de seus próprios limites e um dos mais eficazes promotores das crises e da fraude.

Além disso, ao substituir o dinheiro por diversas formas de crédito circulante, o sistema bancário mostra que o dinheiro, na realidade, nada mais é que uma expressão particular do caráter social do trabalho e de seus produtos, mas que, em oposição à base da produção privada, tem sempre de aparecer, em última análise, como uma coisa, uma mercadoria especial ao lado de outras mercadorias.”

 

 

“A usura, assim como o comércio, explora um modo de produção dado; não o cria, relaciona-se com ele externamente. A usura tenta conservá-lo de maneira direta, a fim de poder explorá-lo sempre de novo; ela é conservadora e não faz mais do que tornar esse modo de produção mais miserável. Quanto menos os elementos de produção entram no processo de produção como mercadorias e dele saem como mercadorias, mais a sua origem no dinheiro aparece como um ato separado. Quanto mais insignificante é o papel desempenhado pela circulação na reprodução social, mais florescente é a usura.

Que a riqueza monetária se desenvolve como um tipo especial de riqueza significa, em relação ao capital usurário, que ele possui todos os seus títulos de crédito na forma de títulos de crédito monetários. Esse capital se desenvolve com mais força num país quanto mais a massa da produção se limita a prestações in natura, isto é, a valores de uso.

A usura é uma poderosa alavanca para a formação dos pressupostos do capital industrial, na medida em que desempenha dupla função: primeiro, de constituir em geral, ao lado da riqueza comercial, uma riqueza monetária autônoma; segundo, a de se apropriar das condições de trabalho, isto é, de arruinar os possuidores das antigas condições de trabalho.”

 

 

“Nada pode ser mais curioso que a argumentação da propriedade privada em Hegel. O ser humano, como pessoa, precisa dar realidade a sua vontade como a alma da natureza exterior e, assim, tomar posse dessa natureza como sua propriedade privada. Se essa é a determinação “da pessoa”, do homem como pessoa, é lógico que todo homem tem de ser proprietário fundiário para poder realizar-se. A livre propriedade da terra – um produto muito moderno – não é, segundo Hegel, uma relação social determinada, mas uma relação do homem como pessoa com a “natureza”, um “direito absoluto de apropriação do homem sobre todas as coisais” ([Georg Wilhelm Friedrich] Hegel, Philosophie des Rechts [Filosofia do direito], Berlim, 1840, p. 79). É evidente, em primeiro lugar, que o indivíduo não pode afirmar-se como proprietário por sua “vontade” diante da vontade de outro que queira materializar-se igualmente no mesmo pedaço do globo terrestre. Para isso, são necessárias coisas muito distintas da mera boa vontade. Além disso, é absolutamente impossível ver onde “a pessoa” traça o limite da realização de sua vontade, se a existência de sua vontade se realiza num país inteiro ou se necessita de muitos outros países para, por meio de sua apropriação, “manifestar a soberania de minha vontade sobre as coisas” [ibidem, p. 80]. Aqui, Hegel se perde por completo. “A tomada de posse é de natureza absolutamente singular: só tomo posse daquilo que toco com meu corpo; em segundo lugar, ocorre que, ao mesmo tempo, os objetos exteriores têm uma extensão maior que a que posso abarcar. Quando estou de posse de algo, há outra coisa em conexão com esse algo. Exerço a tomada de posse por meio da mão, mas o raio de ação desta última pode ser ampliado” ([ibidem,] p. 90 [91]). A essa outra coisa, por sua vez, está conectada outra coisa, e assim desaparece o limite até onde minha vontade pode derramar-se como alma sobre a terra. “Se possuo algo, a razão passa de imediato a considerar que é meu não só aquilo que é imediatamente possuído por mim, mas também o que está vinculado a isso. Aqui o direito positivo deve efetuar suas constatações, pois a partir do conceito já não se pode deduzir mais nada” ([ibidem,] p. 91). Essa é uma confissão extraordinariamente ingênua “do conceito” e prova que este último, que de antemão comete o erro de considerar absoluta uma representação jurídica da propriedade fundiária totalmente determinada e pertencente à sociedade burguesa, não compreende “nada” das configurações reais dessa propriedade fundiária. Aí está contida, ao mesmo tempo, a confissão de que, com as necessidades cambiantes do desenvolvimento social, isto é, econômico, o “direito positivo” pode e deve mudar suas definições.”