Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-351-6
Tradução: Nair Fonse
Ilustrações: Charb
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 192
Sinopse: Pouco
mais de vinte anos atrás podia-se ouvir praticamente em uníssono que “Marx está
morto”. Mas, diante de um cenário pautado por crises econômicas, ecológicas e
ideológicas, de um desmonte institucional num contexto de mobilizações globais,
Marx se afirma cada vez mais como o espectro incontornável de nossos tempos.
Suas análises econômicas passam a ser cada vez mais levadas em conta pelos
analistas de Wall Street e sua teoria do dinheiro discutida até pelos grandes
meios de comunicação.
Mas, afinal, o que disse Marx? Nesse pequeno livro, Marx, manual de instruções, publicado pela Boitempo, o
filósofo e ativista político francês Daniel Bensaïd (1946-2010) oferece uma
divertida introdução à vida e obra do pensador alemão. Um claro e elucidativo
panorama que combina filosofia e dezenas de quadrinhos do provocativo cartunista
francês Stéphane “Charb” Charbonnier, feitos especialmente para a obra; há
humor e espírito de síntese, carregado de insights de um dos mais importantes
teóricos anticapitalistas da contemporaneidade.
“Será sempre um erro não ler, reler e discutir
Marx. Será um erro cada vez maior, uma falta de responsabilidade teórica,
filosófica, política.” (Jacques Derrida)
“Na realidade do mundo atual, o capitalismo
se aproxima de seu conceito teórico. Faz tudo virar mercadoria: as coisas, os
serviços, o saber e a vida. Generaliza a privatização dos bens comuns da
humanidade. Desencadeia a concorrência de todos contra todos. Nos países
desenvolvidos, 90% da população ativa é agora assalariada. Tudo isso concorre
para que a crise atual apresente-se como uma crise inédita daquilo que Michel
Husson chama de “capitalismo puro”. Justifica-se assim plenamente a afirmação
de Derrida, segundo a qual “não há futuro sem Marx”, ou pelo menos sem a
memória e a herança de um certo Marx. Sua atualidade é a do próprio capital, de
sua “crítica da economia política”, e isso faz dele um grande descobridor de
outros mundos possíveis.”
“A leitura do capítulo III do Manifesto Comunista, sobre a “literatura socialista e comunista”[d], mostra a que ponto as
correntes revistas encontram sua equivalência nas utopias contemporâneas. Há em
algumas delas – como a “ecologia profunda” – os vestígios de um “socialismo
feudal”, nostálgico de uma comunidade coesa, onde se misturam “jeremiadas do
passado e bramidos surdos do futuro”. “Ao mesmo tempo reacionário e utópico”,
esse socialismo nostálgico sonha em girar ao contrário a roda da divisão social
do trabalho para retornar a um mundo artesanal de pequenos produtores
independentes e calor familiar. Algumas versões extremas da teoria do
decrescimento flertam com a nostalgia romântica de uma ordem natural harmoniosa
e de uma mãe natureza benevolente, pretendem separar autoritariamente as
necessidades verdadeiras das falsas, o indispensável do supérfluo. O sonho de
uma “relocalização geral” da produção em oposição aos “horrores da
mundialização do mercado” conduz igualmente ao mito reacionário de uma
autarquia comunitária primitiva, que Naomi Klein chama de “fetichismo da
vida-museu”.
Encontram-se no jargão contemporâneo da
autenticidade (o natural e o bruto) as formas contemporâneas desse “socialismo
verdadeiro”, que preferia “a necessidade do verdadeiro” às “verdadeiras
necessidades”. Hoje, como ontem, ele pretende dissolver os antagonismos de
classe no “interesse do homem em geral”.”
[d] Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (São Paulo, Boitempo, 2010), p. 59-68.
(N. E.)
“Encontram-se no jargão contemporâneo da
autenticidade (o natural e o bruto) as formas contemporâneas desse “socialismo
verdadeiro”, que preferia “a necessidade do verdadeiro” às “verdadeiras
necessidades”. Hoje, como ontem, ele pretende dissolver os antagonismos de
classe no “interesse do homem em geral”. Sonha com uma sociedade burguesa sem
luta de classes e, se possível, sem política. Da mesma maneira que o antigo
“socialismo verdadeiro” exprimia a visão de mundo da pequena burguesia alemã, o
novo exprime a visão amedrontada da nova classe média, arrastada no turbilhão
da mundialização do mercado. Vê-se assim reaparecerem as versões atualizadas de
um “socialismo burguês” pregado pelos “filantropos humanitários”, ocupados em
“organizar a caridade e proteger os animais”. Como os que foram outrora
ridicularizados por Marx, os filantropos de hoje desejariam a “sociedade atual
sem seus perigos, a burguesia sem o proletariado”, as proezas dos campeões da
bolsa sem o desemprego, os lucros fabulosos sobre os investimentos sem
demissões nem deslocalizações. Hoje como ontem, gostariam de convencer os
explorados de que é para o seu bem que os exploradores são como são.
Encontram-se, enfim, nas fantasmagorias
contemporâneas todas as variantes modernizadas do “socialismo crítico-utópico”
de antigamente. Na ausência de condições materiais e de forças sociais maduras
para a emancipação, o protocomunismo dos anos 1830 preconiza “um asceticismo
geral e um grosseiro igualitarismo”. Sem perceber no proletariado embrionário qualquer
criatividade histórica, substitui-o por “uma ciência e algumas leis sociais”,
preparadas em laboratório: os engenheiros do futuro “substituem a atividade
social por sua própria imaginação pessoal; as condições históricas da
emancipação por condições fantásticas; a organização gradual e espontânea do
proletariado em classe por uma organização da sociedade pré-fabricada por
eles”. “Rejeitam, portanto, toda ação política” e se empenham em propagar o
novo evangelho “pela força do exemplo, com experiências em pequena escala e que
naturalmente sempre fracassam”
[e] Ibidem,
p. 66-7. (N. T.)
“Em suma, enquanto o ateísmo é apenas a
negação abstrata de Deus, o comunismo é sua negação concreta. Ele vai à raiz
das coisas e procura acabar praticamente com um mundo de frustrações e misérias
das quais surge a necessidade de consolo divino.”
“Nos anos 1820-1840, não apenas na Alemanha,
mas também na França durante a Restauração e na Inglaterra com a famosa Lei dos
Pobres de 1834, uma série de medidas legislativas restringe os direitos
consuetudinários dos pobres (recolhimento de madeira, respiga, pasto livre),
que autorizavam o uso de bens comuns para satisfazer necessidades básicas.
Destroem-se as formas elementares de solidariedade camponesa e paroquial e
transformam-se os bens comuns tradicionais (como a madeira) em mercadorias, com
a intenção de impelir os aldeões para as cidades e obrigá-los a se vender e se
exaurir na indústria nascente. Da mesma forma, hoje a contrarreforma liberal
desmantela metodicamente o direito ao trabalho e os sistemas de proteção social
para coagir os trabalhadores a aceitar condições de salário e emprego cada vez
mais retrógradas.
Na verdade, essas medidas destinam-se a
redefinir a fronteira entre o domínio público e a propriedade privada. Ao
atacar o direito de utilização dos bens comuns, elas investem contra o que Marx
chama de “formas híbridas e incertas de propriedade”, herdadas de um passado
longínquo. É, desse modo, a partir da questão da propriedade, que o jovem Marx
aborda a luta de classes moderna.”
“Lenin deu aos aficionados por definições a
resposta menos insatisfatória, embora não a mais simples, à questão das
classes:
Chama-se classes a grandes grupos de pessoas que se diferenciam
entre si pelo seu lugar num sistema de produção social historicamente
determinado, pela sua relação (as mais das vezes fixada e formulada
nas leis) com os meios de produção, pelo seu papel na organização
social do trabalho e, consequentemente, pelo modo de obtenção e pelas
dimensões da parte da riqueza social de que dispõem.[1]
Essa definição pedagógica combina, assim, a
posição referente aos meios de produção (incluindo o estatuto jurídico da
propriedade) com o papel na divisão do trabalho e nas relações hierárquicas, a
natureza e o valor do salário. Ao contrário das sociologias classificatórias,
não pretende resolver casos individuais nem arbitrar situações limítrofes, mas
situar “grandes grupos de pessoas”.
Pergunta-se frequentemente hoje em dia se o
proletariado estaria ou não em vias de desaparecer, substituído por
“comunidades de privações”, que compartilham humilhações e sofrimentos
análogos, mas filiações, situações e associações variáveis. Porém, ninguém
pergunta se a burguesia desapareceu, porque ela mantém seus salários
mirabolantes, seus clubes (fechados) e suas ostensivas organizações de combate
(Medef, UIMM[h]). A prova da burguesia são a senhora Parisot, o senhor Gauthier
Sauvagnac, o senhor Bolloré[i]. Ela chega mesmo a tornar-se hereditária,
comportar-se em casta, parodiar a velha aristocracia, com um toque de
vulgaridade. Exibe sua riqueza em revistas de celebridades, bem distante da
austeridade protestante do suposto espírito do capitalismo das origens.
Se há
os que subjugam, deve haver subjugados; se há dominantes, dominados; burgueses
emburguesados e proletários. Estes existem no mundo, sim, mais do que nunca. O
problema reside na divisão, na individualização que não é uma aspiração a mais
liberdade e autonomia individuais, mas uma política de individualização forçada
(horários, tempo, lazer, seguros). Caminha junto com a concorrência de todos
contra todos, com o espírito de competição, com o jogo do elo mais fraco: cada
um por si, e ai dos vencidos!”
[1] Vladimir I. Lenin, Uma grande iniciativa (São Paulo, Alfa-Ômega, 1980, versão digital).
[h] Associações patronais francesas. (N. T.)
[i] Empresários franceses. (N. T.)
·
a formação de um mercado mundial também
globaliza a luta de classes;
·
a luta
de classes é o segredo desvendado do desenvolvimento histórico;
·
a questão da propriedade é a “questão
fundamental [dos movimentos]”;
·
o objetivo é, em primeiro lugar, “a conquista
do poder político”;
·
os proletários de todos os países devem se
unir além da estreiteza das nações;
·
ao mesmo tempo ato e processo, a nova
revolução é uma revolução permanente;
·
o “livre desenvolvimento de cada um é a
condição para o livre desenvolvimento de todos”.”
“Não se trata de abolir toda forma de
propriedade, mas, precisamente, a “moderna propriedade privada, [a] propriedade
burguesa”[f], e o modo de apropriação fundamentado na exploração de uns pelos
outros. Essa precisão é muito importante, pois estabelece uma distinção entre
duas compreensões de propriedade, cuja confusão é utilizada pelos detratores do
comunismo para apresentá-lo como um rateador [partageux] que deseja suprimir
todos os bens de uso pessoal (moradia, meios de locomoção etc.). O que é
necessário abolir é a propriedade que tem como contrapartida a despossessão do
outro, aquela que outorga poder sobre o trabalho e a vida dos dominados.”
[f] Ibidem, Manifesto Comunista, cit., p. 52.
“A revolução é permanente em uma tripla
acepção. Ela não reconhece divisória entre seus objetivos político-democráticos
e seus objetivos sociais e não estagna a meio caminho entre a revolução
burguesa e a proletária. Não é um milagre surgido do nada, mas amadurece nas
lutas cotidianas, na acumulação de experiências vitoriosas ou derrotas, e se
aprofunda, para além da conquista do poder político, pela transformação radical
das relações de propriedade, organização e divisão do trabalho, das condições
de vida cotidiana. Enfim, iniciada no terreno nacional, não respeita fronteiras
e só se completa verdadeiramente ao se ampliar ao espaço dos continentes e do
mundo. Ela é, ao mesmo tempo, ato e processo, ruptura e continuidade.”
“7. Inversamente à lenda reacionária que apresenta
o comunismo como o sacrifício do indivíduo em prol da coletividade anônima, o Manifesto o define como “uma associação
na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre
desenvolvimento de todos”[o]. Assim entendido, parece o auge da livre
realização pessoal. Não conviria confundi-lo nem com as miragens do
individualismo impessoal, nem com o igualitarismo vulgar de um socialismo de
caserna. A espécie humana retira do desenvolvimento das necessidades e
capacidades ímpares de cada indivíduo os recursos para seu próprio
desenvolvimento universal. Reciprocamente, não se concebe o livre
desenvolvimento de cada um independentemente do livre desenvolvimento de todos.
Isso porque a emancipação não é um prazer solitário.
Como fazer, ao certo, para que o apelo à
iniciativa e à responsabilidade individuais não se reduza a uma submissão à
lógica da dominação, se não pela adoção de uma redistribuição radical de
riqueza, poder e saber? Como democratizar as possibilidades de realização de
todos e todas sem associar essa redistribuição a medidas específicas de
discriminação positiva contra as desigualdades naturais ou sociais? Para se
desenvolver, o indivíduo moderno precisou de solidariedades sociais (legislação
do trabalho, previdência social, aposentadoria, regulamentação salarial,
serviços públicos) que a contrarreforma liberal visa precisamente a destruir,
para reconduzir a sociedade a uma selva concorrencial impiedosa.
Embora o liberalismo pretenda desenvolver o
indivíduo, na realidade só desenvolve o egoísmo na concorrência de todos contra
todos, em que o desenvolvimento de cada um tem por condição a aniquilação ou
eliminação dos outros. A liberdade oferecida a cada um não é a do cidadão, é a
do consumidor livre para escolher entre produtos padronizados. As ideologias
liberais fazem do risco o “princípio de reconhecimento do valor individual”.
Essa cultura do risco e do mérito praticamente serve de álibi às políticas de
demolição de solidariedades, mediante a individualização dos salários, do tempo
de trabalho, dos riscos (diante da saúde, da velhice ou do desemprego); da
individualização das relações contratuais contra as convenções coletivas e a
lei comum; do desmantelamento das regulamentações sob pretexto de melhor
reconhecimento das trajetórias individuais (...): propriedade individual,
sucesso individual, segurança individual etc. Essa exploração ideológica desvia
as aspirações legítimas em nossa sociedade. O desenvolvimento das capacidades e
possibilidades de cada um(a) é um critério de progresso bem mais claro do que
desempenhos industriais ecocidas. Dar importância decisiva à oposição entre
capital e trabalho não significa estar surdo às necessidades pessoais de
crescimento, reconhecimento e criatividade. O capitalismo que pretende satisfazê-las,
na realidade, aprisiona-as nos limites do conformismo mercantil e do
condicionamento dos desejos, acumulando frustrações e decepções.”
[o] Idem, Manifesto Comunista, cit., p. 59. (N. T.).
“A história a contratempo
Mais explícito, Engels confidencia a um
correspondente:
Tenho certo pressentimento de que nosso partido, em razão da morosidade
e indecisão dos outros partidos, um belo dia será catapultado ao governo para
implantar medidas que não serão exatamente de nosso interesse, mas que
corresponderão aos interesses gerais da revolução, especificamente aos da
pequena-burguesia. Nessas circunstâncias, impelidos pelo povo proletário,
seremos coagidos a fazer experiências comunistas e dar saltos adiante, que
sabemos melhor do que ninguém o quanto seriam inoportunos. Nesses casos,
perde-se a cabeça – esperemos que só no sentido figurado – e ocorre uma reação,
e, até que o mundo seja capaz de ter um julgamento histórico sobre
acontecimentos desse tipo, passaremos não apenas por bestas ferozes, mas por
bestas, o que é bem pior. Não consigo imaginar que isso transcorra de outro
modo... Como precaução a essa eventualidade, é melhor que a literatura de nosso
partido forneça por antecipação os fundamentos de sua reabilitação histórica.
(Carta de 12 de abril de 1853.)
Muitos, com efeito, forçados pelas
circunstâncias a adotar medidas que não tinham nem previsto nem desejado,
perderam a cabeça no sentido literal. Outros também a perderam no sentido
figurado.”
““Não há nenhum documento de cultura que não
seja também um documento de barbárie”, escreve Walter Benjamin. Assim, enquanto
perdurar um sistema de exploração e opressão, progresso e catástrofe
permanecerão mortalmente entrelaçados para Marx. Por isso, a história deve ser
pensada politicamente, e a política, historicamente.
Não é do passado, mas unicamente do futuro, que a revolução social do
século XIX pode colher a sua poesia. Ela não pode começar a dedicar-se a si
mesma antes de ter despido toda a superstição que a prende ao passado. As
revoluções anteriores tiveram de recorrer a memórias históricas para se
insensibilizar em relação ao seu próprio conteúdo. A revolução do século XIX
precisa deixar que os mortos enterrem os seus mortos para chegar ao seu próprio
conteúdo. Naquelas, a fraseologia superou o conteúdo, nesta, o conteúdo supera
a fraseologia.[d]
Em O 18 de brumário de Luís Bonaparte, Marx, narrador profano, exorta a que se crie politicamente a história,
em vez de se suportá-la religiosamente.
Sua trilogia sobre a luta de classes na
França propõe uma escritura crítica da história, em que o fato, os indivíduos,
a mentalidade tenham o lugar que lhes cabe. Em que o possível não importe menos
do que o real. Concretiza-se assim a ruptura com as filosofias especulativas da
história, prenunciada em A
sagrada família
e A
ideologia alemã. Em A
sagrada família, Marx e
Engels refutam a visão apologética de que tudo o que aconteceu deveria
necessariamente acontecer para que o mundo fosse o que é e nós fôssemos o que
somos. “Por um lado, [continua-se] a atividade anterior sob condições
totalmente alteradas e, por outro, [modifica-se] com uma atividade
completamente diferente as antigas condições, o que então pode ser
especulativamente distorcido, ao converter-se a história posterior na
finalidade da anterior.”
Uma fórmula lapidar de Engels em A
sagrada família resume
muito bem a mudança radical de perspectiva, a História não é este
personagem todo-poderoso, a História universal, da qual seríamos marionetes: “A
história não faz nada” ele escreve sobriamente. “Não luta nenhum tipo de
luta!” Não é um novo deus que manipula a comédia humana. “Quem faz tudo [...],
quem possui e luta é, muito antes, o homem, o homem real, que vive; não
é, por certo, a ‘História’, que utiliza o homem como meio para alcançar seus
fins – como se se tratasse de uma pessoa à parte –, pois a História não é
senão a atividade do homem que persegue seus objetivos.”[f]. Essa história
profana, que se decide na luta e pela luta, justifica plenamente o título de um
belo livro de Michel Vadée: Marx, penseur du possible [Marx, pensador do
possível] [4].”
A história presente e aquela por vir não são
a meta da história passada. “Traçar planos para a eternidade não é problema
nosso”, escreve Marx já em 1843. A esse fetichismo de uma História maiúscula,
reduzida a uma forma secularizada do antigo Destino ou Providência, eles opõem,
em A ideologia alemã, uma concepção definitivamente desencantada:
“A história nada mais é do que o suceder-se de gerações distintas [...]
o que então pode ser especulativamente distorcido, ao converter-se a história
posterior na finalidade da anterior [...]. Com esse procedimento, é
infinitamente fácil dar à história orientações únicas, bastando apenas
descrever o seu último resultado como “a tarefa” que “ela, na verdade, desde
sempre se propôs”[r]
À diferença da história religiosa, a história
profana não conhece predestinação nem julgamento final. É uma história aberta,
que faz no presente a “crítica radical de toda a ordem existente”, uma luta
entre classes, com desfecho incerto.”
[d] Karl Marx e Friedrich Engels, O
18 de brumário de Luís Bonaparte (trad. Nélio Schneider, São Paulo, Boitempo, 2011), p. 28-9. (N. T.)
[f] Idem, A
sagrada família (São Paulo, Boitempo, 2003), p. 107. (N. E.)
[4] Michel Vadée, Marx, penseur du
possible (Paris, Klincksieck, 1992).
[q] Friedrich Engels, “Segunda campanha da
crítica absoluta”, em Karl Marx e Friedrich Engels, A
sagrada família, cit., p. 111. (N. T.)
[r] Karl Marx e Friedrich Engels, A
ideologia alemã (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 40, 149. (N. T.)
“Essas anotações fornecem indicações
preciosas sobre o que poderia ser “uma nova escrita da história”, em ruptura
com as grandes narrativas teológicas ou teleológicas, que Marx chama de votos
solenes. Uma célebre carta de 1877 contribui para o esclarecimento. Em resposta
a leitores russos que teriam encontrado em O
capital uma teoria geral do desenvolvimento histórico, Marx recusa a
“chave-mestra de uma teoria histórico-filosófica geral, cuja virtude suprema
seria a de ser supra-histórica”. Tal chave-mestra de uma história de mão única,
uma narrativa edificante pairando sobre a história incerta dos interesses e
lutas, estaria na continuidade das grandes filosofias especulativas da história
universal, com as quais a ruptura foi consumada há muito tempo. Em uma história
aberta, a política arbitra entre vários possíveis. Não há mais desenvolvimento
“normal” oposto a anomalias, desvios ou malformações históricas. (...)”
“Tal como da Guerra Franco-Alemã surgiu a
Comuna, da Primeira Guerra Mundial surgirá a Revolução de Outubro, da Segunda
Guerra, as revoluções chinesa, grega, vietnamita, iugoslava... Mas a que preço!
Sobre pilhas terrificantes de ruínas e cadáveres, que pesarão cada vez mais
sobre a vida e a cabeça dos (sobre)viventes, a ponto de transformar em pesadelo
os sonhos de emancipação.”
“O espírito corporativo do Antigo Regime
sobrevive na burocracia, escreve o jovem Marx, como produto da separação entre
Estado e sociedade civil: “o mesmo espírito que cria, na sociedade, a
corporação, cria, no Estado, a burocracia”, que é o “‘formalismo de Estado’
da sociedade civil”, “‘a consciência do Estado’, a ‘vontade do Estado’, a
‘potência do Estado’, como uma corporação”, “uma sociedade particular,
fechada, no Estado”, uma “rede de ilusões práticas”, a “ilusão do
Estado”[12].(...) “Quanto ao burocrata tomado individualmente, o fim do Estado
se torna seu fim privado, uma corrida por postos mais altos, um carreirismo.”[d]
A supressão da burocracia só pode se dar “contanto que o interesse universal se
torne realmente – e não [...] apenas no pensamento, na abstração
– interesse particular, o que é possível apenas contanto que o interesse particular se torne realmente universal”[e].
[12] Idem, Crítica da filosofia do direito de Hegel
(São Paulo, Boitempo, 2005), p.
65.
[d] Ibidem, p. 66. (N. E.)
[e] Ibidem, p. 67. (N. E.)
“Mais que uma imitação grotesca do 18 de
brumário do tio, o bonapartismo do sobrinho mostra-se não como ressurreição do
antigo cesarismo, nem como resquício burocrático do feudalismo do Antigo
Regime, mas como a forma adequada, “a única forma de governo possível em um
momento em que a burguesia já havia perdido e a classe operária ainda não havia
adquirido a capacidade de governar a nação”. A burguesia deve delegar seu poder
a um sistema que represente um simulacro do interesse geral. Essa “usurpadora
ditadura do corpo governamental sobre a própria sociedade, que à primeira vista
dá a impressão de elevar-se por sobre todas as classes e humilhá-las”, na
verdade, tornou-se “a única forma possível de Estado em que a classe
apropriadora pode continuar a dominar a classe produtora”[14].
Marx percebe bem que a eleição do presidente
pelo sufrágio universal é uma unção republicana, que investe o eleito de uma
“espécie de direito divino”: “ele é pela graça do povo” e mantém um “poder
pessoal” sobre a nação. Por trás dessa figura, alçada acima do antagonismo de
classes pela magia dos votos, há um aparelho à sua imagem, um “regime de
pretorianos”. Longe de ser uma peripécia ou um avatar da dominação de classe, o
bonapartismo ocorre, diz Engels, como “a forma necessária do Estado em um país
cuja classe operária foi vencida”. Sua versão alemã, o bismarckismo, espera
“impedir” os capitalistas e trabalhadores de “lutar entre si”[15]. É a
“verdadeira religião da burguesia moderna”, que “não é feita para reinar diretamente”.
Tem mais a fazer – o lucro! – e pode delegar esse encargo aos zelosos
funcionários, unidos a ela por milhares de vínculos, mas que podem transmitir a
ilusão vantajosa de arbitrar lealmente os litígios privados em benefício do bem
público.”
[14] A
guerra civil na França, cit., p. 56 e 169.
[15] Friedrich Engels, Die
preussische Militärfrage und die deutsche Arbeiterpartei (Hamburgo, 1865).
[16] Karl Marx, A guerra civil na França, cit., p. 56.
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