Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-351-6
Tradução: Nair Fonse
Ilustrações: Charb
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 192
Sinopse: Ver Parte
I
“O poder do Estado é “desde já abolido”,
escreve Marx, sobre as seis semanas de liberdade da Comuna. Abolido? A palavra
é forte. Como “antítese direta do Império”, a Comuna “era formada por
conselheiros municipais, escolhidos por sufrágio universal nos diversos
distritos da cidade, responsáveis e com mandatos revogáveis a qualquer
momento”. Ela “devia ser não um corpo parlamentar, mas um órgão de trabalho,
Executivo e Legislativo ao mesmo tempo”. “Dos membros da Comuna até os postos
inferiores, o serviço público tinha de ser remunerado com salários de operários”[I] (...)
Não se trata de interpretar o enfraquecimento
do Estado como a absorção de todas as suas funções na simples “administração
das coisas” nem de decretar a abolição do Estado, mas sim de reunir as
condições que permitam suprimir seu bricabraque burocrático. A tomada do poder
é o início desse processo, não sua concretização. As primeiras medidas da
Comuna não parecem perturbar a ordem das coisas: separação entre Igreja e
Estado e envio dos padres ao calmo “retiro da vida privada”; destruição pública
de duas guilhotinas em 6 de abril de 1871; libertação dos prisioneiros
políticos; supressão do trabalho noturno dos padeiros; fechamento das casas de
penhores; demolição da coluna Vendôme, “símbolo da força bruta e da falsa
glória”, que enaltece o militarismo e o chauvinismo; direito de assento aos
estrangeiros na Comuna, cuja bandeira é a da “República Universal”; libertação
das mulheres da “escravidão degradante” da prostituição; transferência dos serviços
públicos para a Comuna; e, acima de tudo, “supressão do exército permanente e
sua substituição pelo povo armado”. Não é tudo. Mas é alguma coisa.”
Então, a Comuna revela-se “uma forma enfim
encontrada” de emancipação, ou de ditadura do proletariado, ou as duas coisas
indissociavelmente. É o que proclama Engels na conclusão de sua introdução, em
18 de março de 1891, de A guerra civil na
França: “Pois bem, senhores, quereis saber como é esta ditadura? Olhai para
a Comuna de Paris. Tal foi a ditadura do proletariado”[22].”
No século XIX, a palavra “ditadura” evoca a
instituição romana de um poder de exceção, devidamente delegado e limitado no
tempo para enfrentar uma situação de urgência. Opõe-se ao arbitrário da
“tirania”. É nesse sentido que Marx a utiliza em As lutas de classes na França. As jornadas de junho de 1848, com
efeito, repartiram ao meio o próprio sentido da palavra “revolução”. Foi
desdobrada aos olhos dos possuintes em uma “revolução bela” – a de fevereiro, a da “cordialidade geral” – e uma
“revolução feia” – a de junho,
“repugnante” aos olhos do partido da ordem nascente, “porque o fato tomou o
lugar da fraseologia”.
No entanto, não é a revolução que foi “feia”,
mas sim a reação. Diante da violência desenfreada dos possuintes, Marx adota
pela primeira vez o “corajoso lema”: “Derrubar
a burguesia! Ditadura da classe operária!”[23]. Após um século XX que
conheceu tantos despotismos militares e burocráticos, essa conotação da palavra
“ditadura” prevalece sobre o significado original. Tornou-se impronunciável. Se
a Comuna era a “ditadura do proletariado”, como proclama Engels em tom de
desafio, é importante lembrar o que ela foi na verdade. Com mandatários sob
controle popular permanente, pagos como trabalhadores qualificados, ela suprime
“toda a fraude dos mistérios e pretensões do Estado”. Sua mais formidável
medida foi “sua própria organização, improvisada no momento em que em uma porta
estava o inimigo estrangeiro e em outra o inimigo de classe”[24]. Ela “não
elimina a luta de classes”, mas representa a “liberação do ‘trabalho’” como
“condição fundamental e natural da vida individual e social”. Cria, desse modo,
o “meio racional” em que pode começar – começar apenas! – a se desenvolver a
emancipação social[25].
Ela é simplesmente “a forma sob a qual a
classe trabalhadora assume o poder político”[26]. Na Mensagem de 31 de maio de
1871 ao Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT ou
Primeira Internacional), Marx repete: “O sufrágio universal serviria ao povo,
constituído em comunas”, e “nada podia ser mais estranho ao espírito da Comuna
do que substituir o sufrágio universal por uma investidura hierárquica”. Ele
jamais considera restringir o direito de voto. Quanto à relação dos
representantes com os representados, dos mandatários com os mandantes, ele
propõe um controle permanente, concretizado pelos princípios da
responsabilidade e da revogabilidade. Essa “ditadura” não tem nada de um poder
arbitrário e despótico. Ela é apenas o exercício do poder constituinte inalienável
de um povo soberano.”
[I] Karl Marx, A guerra civil na França,
cit., p. 55-6. (N. E.)
[22] Friedrich Engels, “Prefácio”, em Karl
Marx, A guerra civil na França, cit.,
p. 197.
[23] Karl Marx, As lutas de classes na França, cit., p. 63-4.
[24] Idem, A guerra civil na França, cit., p. 130.
[25] Ibidem, p. 131.
[26] Ibidem, p. 169.
“Por mais tempo que se permaneça na
movimentada praça do mercado, onde se agitam vendedores e clientes, onde se
trocam mercadorias e dinheiro, continua intacto o mistério da acumulação da
riqueza. Se a troca fosse equitativa, o mercado seria um jogo de soma nula.
Cada um receberia a exata contrapartida do que oferecesse. Supondo-se que haja
jogadores mais hábeis do que outros, que embolsem mais do que o valor apostado,
ainda assim seria um jogo de soma nula, porque alguns perderiam exatamente o
que outros ganhariam. Porém, o gigantesco ajuntamento de mercadorias não para
de crescer. O capital acumula-se. De onde vem esse crescimento? Insondável
mistério. Pelo menos enquanto se fica aturdido pela efervescência do mercado
ou, em versão mais contemporânea, pela agitação neurótica dos corretores e
operadores da Bolsa.
O detetive Marx nos convida a olhar ao redor.
A descobrir o que se passa nos bastidores ou, melhor ainda, no subsolo, nos
porões onde o mistério se esclarece:
Deixemos, portanto, essa esfera rumorosa, onde tudo se passa à luz do
dia, ante os olhos de todos, e acompanhemos os possuidores de dinheiro e de
força de trabalho até o terreno oculto da produção, em cuja porta se lê: No
admittance except on business [Entrada permitida apenas para tratar de negócios].
[...] O segredo da criação do mais-valor tem, enfim, de ser revelado. [...] Ao
abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de
onde o livre-cambista vulgaris [vulgar] extrai noções, conceitos e
parâmetros para julgar a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já
podemos perceber uma certa transformação, ao que parece, na fisionomia de
nossas dramatis personae [personagens teatrais]. O antigo possuidor do
dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o possuidor de força de
trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante
e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua
própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da... despela.[b]”
Cena extraordinária de descida aos Infernos!
Dá para vê-los, esses dois personagens. O homem do dinheiro (hoje, dos euros),
satisfeito, arrogante, autoritário, e o trabalhador resignado, humilhado,
envergonhado de ter se vendido e do que o espera.
Atrás da agitação superficial do mercado fica
o curtume, o local do crime: a oficina ou a fábrica onde o trabalhador é
espoliado do mais-valor, onde enfim se revela o segredo da acumulação da
riqueza. Entre as mercadorias, uma é bem singular: a força de trabalho. Ela tem
a fabulosa virtude de criar valor ao ser consumida, de funcionar mais tempo do
que o necessário para sua própria reprodução. É dessa capacidade que o homem do
dinheiro se apoderou. O trabalhador, que não possui nada para vender exceto sua
força de trabalho, não tem escolha. Mas, se aceitou e consentiu em seguir seu
comprador, ele não se pertence mais. “O valor de uso da força de trabalho [sua
utilidade para o comprador], o próprio trabalho, pertence tão pouco ao seu
vendedor quanto o valor de uso do óleo pertence ao comerciante que o
vendeu”[c]. Aparentemente equitativo, dando e recebendo – de “ganha-ganha”,
como diriam nossos candidatos –, o contrato de compra e venda da força de
trabalho revela-se uma trapaça. Uma vez concluído, o trabalhador é reduzido a
“tempo de trabalho personificado”[d], uma “carcaça de tempo”, segundo Marx, que
o empregador tem legalmente o direito de utilizar quanto quiser.
A repartição entre o tempo de trabalho
necessário à reprodução da força de trabalho do trabalhador e de sua família, e
o “sobretrabalho” que lhe é gratuitamente extorquido ou imposto pelo patrão:
essa é a aposta inicial da luta de classes. A aposta de uma luta permanente, em
que o trabalhador se esforça para aumentar sua parte na divisão entre trabalho
necessário e sobretrabalho, entre salário e mais-valor, enquanto o patrão,
inversamente, ao intensificar o trabalho, prolongar sua duração e reduzir as
necessidades do trabalho, se esforça no sentido oposto.
Compreende-se agora o disparate da ideia de
“preço justo” para uma “jornada normal de trabalho”. Não existe jornada normal
nem preço justo. Porque a força de trabalho, à diferença das outras
mercadorias, contém em si um “elemento histórico e moral”[e]. Marx entende que
as necessidades sociais não são redutíveis às necessidades básicas de se
alimentar e se aquecer. Elas evoluem historicamente. Enriquecem-se,
diversificam-se, e seu reconhecimento pela sociedade é o resultado de uma
relação de forças. Com insistência, o trabalhador não cansa de lutar para que
novas necessidades (culturais, de lazer, qualidade de vida, saúde, educação) se
tornem legítimas dentro do tempo de trabalho reconhecido como “socialmente
necessário” à reprodução de sua força de trabalho. Em outras palavras, luta
para deslocar a seu favor o cursor da divisão e, portanto, reduzir o “tempo de
trabalho extra”, o mais-valor usurpado por seu empregador. Inversamente, o
empregador sempre se esforça para reduzir as necessidades socialmente
reconhecidas do trabalhador e aumentar a taxa de exploração ou de mais-valor,
fazendo pressão sobre os salários, exigindo redução de encargos, reclamando
isenções fiscais, desviando despesas de saúde e educação para a esfera privada.
Tentando prolongar o tempo de trabalho (aumento da duração semanal, adiamento
da idade de aposentadoria) ou intensificar o trabalho (aumento do ritmo,
“gestão por estresse”, gerenciamento do tempo ocioso etc.), a maior parte das
vezes investindo em ambas as frentes. Na primeira, Marx fala de aumento do
mais-valor absoluto; na segunda, de aumento do mais-valor relativo. (...)
Foi cometido um crime original. O mais-valor
foi roubado! Se a vítima, o trabalhador, não morreu (mas às vezes morre:
acidentes de trabalho, suicídio, depressão, doenças profissionais), ficou
mutilado, física e psiquicamente. Porque, na manufatura moderna:
[...] não só os trabalhos parciais específicos são distribuídos entre os
diversos indivíduos, como o próprio indivíduo é dividido e transformado no
motor automático de um trabalho parcial [...]. As potências intelectuais da
produção, ampliando sua escala por um lado, desaparecem por muitos outros
lados. O que os trabalhadores parciais perdem concentra-se defronte a eles no
capital.[f]
A consequência é o que Marx já qualifica de
“patologia industrial”. Com o aparecimento dos acionistas assalariados, essa
patologia atinge a esquizofrenia. Despedaçado, bipartido entre assalariado e
acionista, dividido contra si próprio, o trabalhador teria agora interesse,
como acionista, em explorar-se e demitir-se, a si próprio, para aumentar a
cotação de suas ações!”
[b] Karl Marx, O capital, Livro I (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo,
2013), p. 250-1. (N. T.)
[c] O
capital, Livro I (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 270.
(N. T.)
[d] Ibidem,
p. 317. (N. T.)
[e] Ibidem,
p. 246. (N. T.)
[f] Ibidem,
p. 434-5. (N. T.)
“No Livro I, o mais-valor foi roubado. No
Livro II, ele passou de mão em
mão. No Livro III, chega a hora de dividir o butim, do
“acerto”, nas palavras de Michel Audiard e Albert Simonin[j]. Livro da
“produção capitalista considerada em sua totalidade”, o Livro III de O capital desperta o entusiasmo de
Engels: “Esse livro está destinado a revolucionar definitivamente toda a
economia política e fará um alvoroço enorme”. Porque “toda a economia política
burguesa será demolida” e chega-se ao desfecho do enredo. Caminhando do
abstrato ao concreto, do ciclo único de um capital imaginário ao movimento
global de uma multiplicidade de capitais, do valor ao preço e ao lucro, do
esqueleto do capital a seu sangue e sua carne, o retrato falado desse social killer tornou-se cada vez mais
preciso. Ele aparece agora como um ser vivo, insaciável, perpetuamente sedento
por novos lucros:
No Livro I, analisamos os diversos aspectos que apresenta o processo de
produção capitalista em si, como atividade de produção imediata, e fizemos
abstração de todos os efeitos secundários. Mas a vida do capital ultrapassa
esse processo de produção imediata. No mundo real, o processo de circulação,
que é o objeto do Livro II, vem completá-lo [...]. No Livro III, trata-se de
descobrir e descrever as formas concretas que se originam do movimento do
capital como um todo. É sob essas formas concretas que os capitais enfrentam em
seu movimento real [...]. As formas do capital que vamos expor neste livro o
aproximam progressivamente da forma com que ele se manifesta na sociedade, na
superfície, pode-se dizer, na ação recíproca dos vários capitais na
concorrência e na consciência ordinária dos próprios agentes de produção.[k]
Como forma transfigurada do mais-valor, o
lucro está no âmago do processo global de produção capitalista. O mais-valor é
apenas o lucro em
potencial. Precisa realizar-se para se orientar em seguida,
seja para o consumo, seja para a acumulação (ou o investimento). Os valores,
medidos em tempo de trabalho, transformam-se em preço de produção quando as
mercadorias deixam o processo de produção. Esses preços simultaneamente são e
não são a mesma coisa que o valor, sua negação e sua plenitude. Igualmente, diz
Marx, o lucro tanto é o mais-valor sob outra forma quanto algo distinto do
mais-valor:
O lucro, tal como apresentado aqui, é a mesma coisa que mais-valor, mas
simplesmente em uma forma mistificada que nasce necessariamente do modo de
produção capitalista [...]. Como o preço da força de trabalho aparece em um dos
polos em forma modificada de salário, o mais-valor aparece no polo oposto sob a
forma modificada de lucro. [A forma em que] camuflam e apagam sua origem e o
mistério de sua existência. [...] Quanto mais seguimos o processo da
autoexpansão do capital, mais misteriosas parecem suas relações e menos se
revela o segredo de sua organização interna. [...] O mais-valor transformado em
lucro tornou-se irreconhecível.[l]
O encarregado da lavagem de dinheiro conclui
sua missão com sucesso.
É esse o jogo de trapaça que fazem os
economistas clássicos para explicar os diferentes rendimentos (renda, lucro e
salário), dissimulando a origem comum. Para eles, a cada fator de produção
corresponde um rendimento naturalmente legítimo e equitativo: ao capital, o
lucro; à terra, a renda fundiária; ao trabalho, o salário. “Eis a fórmula
trinitária que engloba todos os segredos do processo social de produção.”
Capital, terra, trabalho! Ora, o capital “são os meios de produção
monopolizados por uma parte da sociedade”, “personificados no capital”. A
terra, “massa de matéria rude e bruta”, só produz renda se fecundada por certa
quantidade de trabalho. Quanto ao terceiro termo da trindade, o “trabalho”, ele
é um “simples fantasma” se considerado abstratamente como “troca de matéria com
a natureza”, e não concretamente, historicamente, como atividade de produção em
uma relação social de (propriedade) particular.
Da mesma forma que o capital, o trabalho assalariado e a propriedade
fundiária são formas sociais historicamente determinadas, uma pelo trabalho, a
outra pelo monopólio do globo terrestre, ambas correspondentes ao capital e
pertencentes à mesma estrutura econômica da sociedade.[m]
Os agentes da produção têm uma imagem
“falseada” da repartição da riqueza.
Para eles, não são apenas as diversas formas do valor que, sob a forma
de renda, vão a diversos atores do processo social de produção; é o próprio
valor que vem dessas fontes e serve de substância para essa renda.[n]
Na fórmula trinitária, o capital, a terra e o
trabalho aparecem como “três fontes diferentes e autônomas” do interesse (em
vez de lucro), da renda fundiária e do salário, seus respectivos e legítimos
frutos. Na realidade os três provêm de uma única fonte, o trabalho, o único
capaz de produzir mais do que gasta:
Para o capitalista, o capital é uma máquina que suga perpetuamente o
sobretrabalho; para o proprietário fundiário, a terra é um imã perene que atrai
a fração do mais-valor sugada pelo capital; enfim, o trabalho é a condição e o
meio renovados em permanência, que permitem obter, sob o nome de salário, uma
fração do valor criado pelo trabalho, logo, uma parte do produto social medido
por essa fração do valor, isto é, o necessário à vida.[o]
O rateio entre lucro, renda e salário é o
resultado de uma distribuição leonina, em que o capital dita sua lei ao
trabalho. É ainda o mais-valor que se cinde entre o lucro do empresário
(capitalista industrial) e o interesse do banqueiro (capitalista financeiro). (...)
Durante o processo de circulação, o capital
muda continuamente o figurino: entra em cena como dinheiro (D), sai por um lado
e volta pelo outro em forma de máquinas e matérias-primas (P) – ou capital
constante – e salários – ou capital variável. Daí sai de novo e se reapresenta
como produto, mercadorias (M), que por sua vez se metamorfoseiam no ato de
venda, para reassumir a forma dinheiro. Com o detalhe de que, ao voltar a essa
forma (D’), o dinheiro inicial (D) terá procriado. Ao longo de suas
metamorfoses, o capital cresce. Acumula-se. (...)
A lógica do sistema e a pluralidade dos
capitais englobam a possibilidade de que a circulação possa se distanciar da
produção e de que o capital bancário possa se autonomizar em relação ao capital
industrial. Desse fato pode nascer a ilusão do dinheiro que faz dinheiro, do
dinheiro que fecunda a si próprio, sem passar pelo circuito da produção e da
circulação. Essa é a ilusão do pequeno poupador ou do acionista que se deleitam
com a ideia de um mais-valor de 15% ao ano na Bolsa (diante de um crescimento
real inferior a 3%) ou com a ideia de um interesse garantido de mais de 5%, sem
se perguntar qual prodígio fará proliferar o dinheiro adormecido. Ele não
enxerga o ciclo completo do capital (D-P-M-D’), só o circuito (D-D’).
E se o circuito financeiro se entusiasmar, se
o círculo D-D’ da circulação financeira girar mais depressa do que o círculo da
produção global (D-P-M-D’) e se, além do mais, maravilhados com esse prodígio,
acionistas e banqueiros anteciparem os ciclos futuros e acelerarem o movimento,
então o sistema se tornará hidrocéfalo, a economia especulativa ou virtual se
tornará mais importante do que a economia real. É a famosa bolha, que, como o
sapo da fábula, acabará por explodir[p].
Nessas proezas do crédito, o fetichismo do
dinheiro atinge seu cume. Surge como um “ser místico”, dotado de poder mágico e
miraculoso: “todas as forças sociais produtivas parecem vir do capital e não do
trabalho. Parecem jorrar de seu seio”[q]. Isso porque, na esfera da circulação,
“as relações em que o valor foi originalmente produzido são totalmente postas
nos bastidores”[r]. O processo real de produção, isto é, o conjunto do processo
de produção imediata e do processo de circulação, “origina novas estruturas, em
que o fio condutor das conexões e relações internas se perde cada vez mais, as
relações de produção tornam-se autônomas umas em relação às outras, os
elementos de valor ficam estagnados em formas independentes umas das
outras”[s]. Desse modo, uma parte do lucro separa-se e parece advir não mais da
exploração do trabalho assalariado, mas do trabalho do próprio capitalista. E o
interesse do capital parece independer do trabalho assalariado do trabalhador e
ter no capital sua origem autônoma.”
[j] Autores franceses de romances policiais.
(N. T.)
[k] Karl Marx, O capital, Livro III (São Paulo, Boitempo, no prelo). Aqui em
tradução livre. (N. T.)
[l] Idem. (N. T.)
[m] Idem. (N. T.)
[n] Idem. (N. T.)
[o] Idem. (N. T.)
[p] Alusão à fábula “O sapo que queria ser
boi”, de La Fontaine. (N. T.)
[q]
Karl Marx, O capital, Livro III, cit.
(N. T.)
[r] Idem. (N. T.)
[s] Idem. (N. T.)
“(...) Ricardo ainda podia acreditar sinceramente
na imparcialidade e na fiabilidade informativa do mercado, se não em tempo
real, pelo menos a longo prazo, a
posteriori. Mas e enquanto se espera? Enquanto se espera, a cisão entre
venda e compra continua, e a “disjunção do processo de produção imediato e do
processo de circulação aumenta a possibilidade da crise”. Essa possibilidade
resulta do fato de que as formas que o capital percorre no ciclo de suas
metamorfoses (de dinheiro – D – a meios de produção – P –, de meios de produção
a mercadorias – M –, de mercadorias a dinheiro – D’) “podem ser, e são,
separadas”. Elas “não coincidem no tempo e no espaço”. A fortiori, com a globalização: o capitalista individual entende o
salário como um custo de produção puro, uma vez que o consumidor compra produtos
importados e que seus próprios produtos são vendidos em um mercado longínquo. É
rompido o chamado círculo virtuoso entre produção e consumo, venda e compra.
A separação da venda e da compra diferencia a
economia capitalista de uma economia de troca, em que “ninguém pode vender sem
ser comprador” (e reciprocamente), em que a maior parte da produção é
diretamente dirigida para a satisfação de necessidades imediatas. “Na produção
mercantil”, por outro lado, “a produção imediata desaparece”. Não se produz mais
em função de necessidades, mas de lucro – que não se importa com necessidades
sociais, apenas com demanda solvente, pois, “se não existe venda, é a crise”.
Na produção mercantil, para realizar o
mais-valor que lhe é incorporado, “a mercadoria deve necessariamente ser
transformada em dinheiro, mas o dinheiro não deve ser necessária e
imediatamente transformado em mercadorias”. É por isso que venda e compra podem
se dissociar. Em sua primeira forma, “a crise é a metamorfose da própria
mercadoria, a dissociação entre compra e venda”; em sua segunda forma, é função
do dinheiro como meio de pagamento autonomizado, “onde o dinheiro atua em duas
fases distintas e separadas no tempo, em duas funções distintas”[n], de simples
equivalente geral entre mercadoria e de capital acumulado.
Essa autonomização do dinheiro prolonga-se na
separação entre lucro de empresa e juros. Ela termina por:
Dar à forma do mais-valor uma existência autônoma, causando a esclerose
dessa forma relativamente à sua substância. Uma parte do lucro, por oposição à
outra, desliga-se completamente da relação capitalista enquanto tal e parece
derivar não da exploração do trabalho assalariado, mas sim do trabalho do
próprio capitalista. Por oposição, o interesse parece então ser independente quer
do trabalho assalariado do operário, quer do trabalho do capitalista, e ter no
capital a sua fonte própria, autônoma. Se primitivamente o capital aparecia na
superfície da circulação, de fetiche capitalista, de valor criador de valor,
ele reaparece aqui sob a forma de juros, a sua forma mais alienada e a mais
característica.[o]
Esse prodígio dos juros, do dinheiro que
parece fazer dinheiro sem percorrer o ciclo das metamorfoses, sem passar pelo
processo de produção e de circulação, é o estágio supremo do fetichismo e da
mistificação alimentada pelos economistas vulgares.”
[n] Karl Marx, Teorias da mais-valia, cit., p. 509-10. (N. T.)
[o] Idem, O
capital, Livro III, cap. 48. (N. T.)
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