sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Marx, manual de instruções (Parte II) – Daniel Bensaïd

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-351-6
Tradução: Nair Fonse
Ilustrações: Charb
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 192
Sinopse: Ver Parte I



“O poder do Estado é “desde já abolido”, escreve Marx, sobre as seis semanas de liberdade da Comuna. Abolido? A palavra é forte. Como “antítese direta do Império”, a Comuna “era formada por conselheiros municipais, escolhidos por sufrágio universal nos diversos distritos da cidade, responsáveis e com mandatos revogáveis a qualquer momento”. Ela “devia ser não um corpo parlamentar, mas um órgão de trabalho, Executivo e Legislativo ao mesmo tempo”. “Dos membros da Comuna até os postos inferiores, o serviço público tinha de ser remunerado com salários de operários”[I] (...)
Não se trata de interpretar o enfraquecimento do Estado como a absorção de todas as suas funções na simples “administração das coisas” nem de decretar a abolição do Estado, mas sim de reunir as condições que permitam suprimir seu bricabraque burocrático. A tomada do poder é o início desse processo, não sua concretização. As primeiras medidas da Comuna não parecem perturbar a ordem das coisas: separação entre Igreja e Estado e envio dos padres ao calmo “retiro da vida privada”; destruição pública de duas guilhotinas em 6 de abril de 1871; libertação dos prisioneiros políticos; supressão do trabalho noturno dos padeiros; fechamento das casas de penhores; demolição da coluna Vendôme, “símbolo da força bruta e da falsa glória”, que enaltece o militarismo e o chauvinismo; direito de assento aos estrangeiros na Comuna, cuja bandeira é a da “República Universal”; libertação das mulheres da “escravidão degradante” da prostituição; transferência dos serviços públicos para a Comuna; e, acima de tudo, “supressão do exército permanente e sua substituição pelo povo armado”. Não é tudo. Mas é alguma coisa.”
Então, a Comuna revela-se “uma forma enfim encontrada” de emancipação, ou de ditadura do proletariado, ou as duas coisas indissociavelmente. É o que proclama Engels na conclusão de sua introdução, em 18 de março de 1891, de A guerra civil na França: “Pois bem, senhores, quereis saber como é esta ditadura? Olhai para a Comuna de Paris. Tal foi a ditadura do proletariado”[22].”
No século XIX, a palavra “ditadura” evoca a instituição romana de um poder de exceção, devidamente delegado e limitado no tempo para enfrentar uma situação de urgência. Opõe-se ao arbitrário da “tirania”. É nesse sentido que Marx a utiliza em As lutas de classes na França. As jornadas de junho de 1848, com efeito, repartiram ao meio o próprio sentido da palavra “revolução”. Foi desdobrada aos olhos dos possuintes em uma “revolução bela” – a de fevereiro, a da “cordialidade geral” – e uma “revolução feia” – a de junho, “repugnante” aos olhos do partido da ordem nascente, “porque o fato tomou o lugar da fraseologia”.
No entanto, não é a revolução que foi “feia”, mas sim a reação. Diante da violência desenfreada dos possuintes, Marx adota pela primeira vez o “corajoso lema”: “Derrubar a burguesia! Ditadura da classe operária!”[23]. Após um século XX que conheceu tantos despotismos militares e burocráticos, essa conotação da palavra “ditadura” prevalece sobre o significado original. Tornou-se impronunciável. Se a Comuna era a “ditadura do proletariado”, como proclama Engels em tom de desafio, é importante lembrar o que ela foi na verdade. Com mandatários sob controle popular permanente, pagos como trabalhadores qualificados, ela suprime “toda a fraude dos mistérios e pretensões do Estado”. Sua mais formidável medida foi “sua própria organização, improvisada no momento em que em uma porta estava o inimigo estrangeiro e em outra o inimigo de classe”[24]. Ela “não elimina a luta de classes”, mas representa a “liberação do ‘trabalho’” como “condição fundamental e natural da vida individual e social”. Cria, desse modo, o “meio racional” em que pode começar – começar apenas! – a se desenvolver a emancipação social[25].
Ela é simplesmente “a forma sob a qual a classe trabalhadora assume o poder político”[26]. Na Mensagem de 31 de maio de 1871 ao Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT ou Primeira Internacional), Marx repete: “O sufrágio universal serviria ao povo, constituído em comunas”, e “nada podia ser mais estranho ao espírito da Comuna do que substituir o sufrágio universal por uma investidura hierárquica”. Ele jamais considera restringir o direito de voto. Quanto à relação dos representantes com os representados, dos mandatários com os mandantes, ele propõe um controle permanente, concretizado pelos princípios da responsabilidade e da revogabilidade. Essa “ditadura” não tem nada de um poder arbitrário e despótico. Ela é apenas o exercício do poder constituinte inalienável de um povo soberano.”
[I] Karl Marx, A guerra civil na França, cit., p. 55-6. (N. E.)
[22] Friedrich Engels, “Prefácio”, em Karl Marx, A guerra civil na França, cit., p. 197.
[23] Karl Marx, As lutas de classes na França, cit., p. 63-4.
[24] Idem, A guerra civil na França, cit., p. 130.
[25] Ibidem, p. 131.
[26] Ibidem, p. 169.


“Por mais tempo que se permaneça na movimentada praça do mercado, onde se agitam vendedores e clientes, onde se trocam mercadorias e dinheiro, continua intacto o mistério da acumulação da riqueza. Se a troca fosse equitativa, o mercado seria um jogo de soma nula. Cada um receberia a exata contrapartida do que oferecesse. Supondo-se que haja jogadores mais hábeis do que outros, que embolsem mais do que o valor apostado, ainda assim seria um jogo de soma nula, porque alguns perderiam exatamente o que outros ganhariam. Porém, o gigantesco ajuntamento de mercadorias não para de crescer. O capital acumula-se. De onde vem esse crescimento? Insondável mistério. Pelo menos enquanto se fica aturdido pela efervescência do mercado ou, em versão mais contemporânea, pela agitação neurótica dos corretores e operadores da Bolsa.
O detetive Marx nos convida a olhar ao redor. A descobrir o que se passa nos bastidores ou, melhor ainda, no subsolo, nos porões onde o mistério se esclarece:
Deixemos, portanto, essa esfera rumorosa, onde tudo se passa à luz do dia, ante os olhos de todos, e acompanhemos os possuidores de dinheiro e de força de trabalho até o terreno oculto da produção, em cuja porta se lê: No admittance except on business [Entrada permitida apenas para tratar de negócios]. [...] O segredo da criação do mais-valor tem, enfim, de ser revelado. [...] Ao abandonarmos essa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, de onde o livre-cambista vulgaris [vulgar] extrai noções, conceitos e parâmetros para julgar a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já podemos perceber uma certa transformação, ao que parece, na fisionomia de nossas dramatis personae [personagens teatrais]. O antigo possuidor do dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da... despela.[b]”
Cena extraordinária de descida aos Infernos! Dá para vê-los, esses dois personagens. O homem do dinheiro (hoje, dos euros), satisfeito, arrogante, autoritário, e o trabalhador resignado, humilhado, envergonhado de ter se vendido e do que o espera.
Atrás da agitação superficial do mercado fica o curtume, o local do crime: a oficina ou a fábrica onde o trabalhador é espoliado do mais-valor, onde enfim se revela o segredo da acumulação da riqueza. Entre as mercadorias, uma é bem singular: a força de trabalho. Ela tem a fabulosa virtude de criar valor ao ser consumida, de funcionar mais tempo do que o necessário para sua própria reprodução. É dessa capacidade que o homem do dinheiro se apoderou. O trabalhador, que não possui nada para vender exceto sua força de trabalho, não tem escolha. Mas, se aceitou e consentiu em seguir seu comprador, ele não se pertence mais. “O valor de uso da força de trabalho [sua utilidade para o comprador], o próprio trabalho, pertence tão pouco ao seu vendedor quanto o valor de uso do óleo pertence ao comerciante que o vendeu”[c]. Aparentemente equitativo, dando e recebendo – de “ganha-ganha”, como diriam nossos candidatos –, o contrato de compra e venda da força de trabalho revela-se uma trapaça. Uma vez concluído, o trabalhador é reduzido a “tempo de trabalho personificado”[d], uma “carcaça de tempo”, segundo Marx, que o empregador tem legalmente o direito de utilizar quanto quiser.
A repartição entre o tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho do trabalhador e de sua família, e o “sobretrabalho” que lhe é gratuitamente extorquido ou imposto pelo patrão: essa é a aposta inicial da luta de classes. A aposta de uma luta permanente, em que o trabalhador se esforça para aumentar sua parte na divisão entre trabalho necessário e sobretrabalho, entre salário e mais-valor, enquanto o patrão, inversamente, ao intensificar o trabalho, prolongar sua duração e reduzir as necessidades do trabalho, se esforça no sentido oposto.
Compreende-se agora o disparate da ideia de “preço justo” para uma “jornada normal de trabalho”. Não existe jornada normal nem preço justo. Porque a força de trabalho, à diferença das outras mercadorias, contém em si um “elemento histórico e moral”[e]. Marx entende que as necessidades sociais não são redutíveis às necessidades básicas de se alimentar e se aquecer. Elas evoluem historicamente. Enriquecem-se, diversificam-se, e seu reconhecimento pela sociedade é o resultado de uma relação de forças. Com insistência, o trabalhador não cansa de lutar para que novas necessidades (culturais, de lazer, qualidade de vida, saúde, educação) se tornem legítimas dentro do tempo de trabalho reconhecido como “socialmente necessário” à reprodução de sua força de trabalho. Em outras palavras, luta para deslocar a seu favor o cursor da divisão e, portanto, reduzir o “tempo de trabalho extra”, o mais-valor usurpado por seu empregador. Inversamente, o empregador sempre se esforça para reduzir as necessidades socialmente reconhecidas do trabalhador e aumentar a taxa de exploração ou de mais-valor, fazendo pressão sobre os salários, exigindo redução de encargos, reclamando isenções fiscais, desviando despesas de saúde e educação para a esfera privada. Tentando prolongar o tempo de trabalho (aumento da duração semanal, adiamento da idade de aposentadoria) ou intensificar o trabalho (aumento do ritmo, “gestão por estresse”, gerenciamento do tempo ocioso etc.), a maior parte das vezes investindo em ambas as frentes. Na primeira, Marx fala de aumento do mais-valor absoluto; na segunda, de aumento do mais-valor relativo. (...)
Foi cometido um crime original. O mais-valor foi roubado! Se a vítima, o trabalhador, não morreu (mas às vezes morre: acidentes de trabalho, suicídio, depressão, doenças profissionais), ficou mutilado, física e psiquicamente. Porque, na manufatura moderna:
[...] não só os trabalhos parciais específicos são distribuídos entre os diversos indivíduos, como o próprio indivíduo é dividido e transformado no motor automático de um trabalho parcial [...]. As potências intelectuais da produção, ampliando sua escala por um lado, desaparecem por muitos outros lados. O que os trabalhadores parciais perdem concentra-se defronte a eles no capital.[f]
A consequência é o que Marx já qualifica de “patologia industrial”. Com o aparecimento dos acionistas assalariados, essa patologia atinge a esquizofrenia. Despedaçado, bipartido entre assalariado e acionista, dividido contra si próprio, o trabalhador teria agora interesse, como acionista, em explorar-se e demitir-se, a si próprio, para aumentar a cotação de suas ações!”
[b] Karl Marx, O capital, Livro I (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 250-1. (N. T.)
[c] O capital, Livro I (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 270. (N. T.)
[d] Ibidem, p. 317. (N. T.)
[e] Ibidem, p. 246. (N. T.)
[f] Ibidem, p. 434-5. (N. T.)


“No Livro I, o mais-valor foi roubado. No Livro II, ele passou de mão em mão. No Livro III, chega a hora de dividir o butim, do “acerto”, nas palavras de Michel Audiard e Albert Simonin[j]. Livro da “produção capitalista considerada em sua totalidade”, o Livro III de O capital desperta o entusiasmo de Engels: “Esse livro está destinado a revolucionar definitivamente toda a economia política e fará um alvoroço enorme”. Porque “toda a economia política burguesa será demolida” e chega-se ao desfecho do enredo. Caminhando do abstrato ao concreto, do ciclo único de um capital imaginário ao movimento global de uma multiplicidade de capitais, do valor ao preço e ao lucro, do esqueleto do capital a seu sangue e sua carne, o retrato falado desse social killer tornou-se cada vez mais preciso. Ele aparece agora como um ser vivo, insaciável, perpetuamente sedento por novos lucros:
No Livro I, analisamos os diversos aspectos que apresenta o processo de produção capitalista em si, como atividade de produção imediata, e fizemos abstração de todos os efeitos secundários. Mas a vida do capital ultrapassa esse processo de produção imediata. No mundo real, o processo de circulação, que é o objeto do Livro II, vem completá-lo [...]. No Livro III, trata-se de descobrir e descrever as formas concretas que se originam do movimento do capital como um todo. É sob essas formas concretas que os capitais enfrentam em seu movimento real [...]. As formas do capital que vamos expor neste livro o aproximam progressivamente da forma com que ele se manifesta na sociedade, na superfície, pode-se dizer, na ação recíproca dos vários capitais na concorrência e na consciência ordinária dos próprios agentes de produção.[k]
Como forma transfigurada do mais-valor, o lucro está no âmago do processo global de produção capitalista. O mais-valor é apenas o lucro em potencial. Precisa realizar-se para se orientar em seguida, seja para o consumo, seja para a acumulação (ou o investimento). Os valores, medidos em tempo de trabalho, transformam-se em preço de produção quando as mercadorias deixam o processo de produção. Esses preços simultaneamente são e não são a mesma coisa que o valor, sua negação e sua plenitude. Igualmente, diz Marx, o lucro tanto é o mais-valor sob outra forma quanto algo distinto do mais-valor:
O lucro, tal como apresentado aqui, é a mesma coisa que mais-valor, mas simplesmente em uma forma mistificada que nasce necessariamente do modo de produção capitalista [...]. Como o preço da força de trabalho aparece em um dos polos em forma modificada de salário, o mais-valor aparece no polo oposto sob a forma modificada de lucro. [A forma em que] camuflam e apagam sua origem e o mistério de sua existência. [...] Quanto mais seguimos o processo da autoexpansão do capital, mais misteriosas parecem suas relações e menos se revela o segredo de sua organização interna. [...] O mais-valor transformado em lucro tornou-se irreconhecível.[l]
O encarregado da lavagem de dinheiro conclui sua missão com sucesso.
É esse o jogo de trapaça que fazem os economistas clássicos para explicar os diferentes rendimentos (renda, lucro e salário), dissimulando a origem comum. Para eles, a cada fator de produção corresponde um rendimento naturalmente legítimo e equitativo: ao capital, o lucro; à terra, a renda fundiária; ao trabalho, o salário. “Eis a fórmula trinitária que engloba todos os segredos do processo social de produção.” Capital, terra, trabalho! Ora, o capital “são os meios de produção monopolizados por uma parte da sociedade”, “personificados no capital”. A terra, “massa de matéria rude e bruta”, só produz renda se fecundada por certa quantidade de trabalho. Quanto ao terceiro termo da trindade, o “trabalho”, ele é um “simples fantasma” se considerado abstratamente como “troca de matéria com a natureza”, e não concretamente, historicamente, como atividade de produção em uma relação social de (propriedade) particular.
Da mesma forma que o capital, o trabalho assalariado e a propriedade fundiária são formas sociais historicamente determinadas, uma pelo trabalho, a outra pelo monopólio do globo terrestre, ambas correspondentes ao capital e pertencentes à mesma estrutura econômica da sociedade.[m]
Os agentes da produção têm uma imagem “falseada” da repartição da riqueza.
Para eles, não são apenas as diversas formas do valor que, sob a forma de renda, vão a diversos atores do processo social de produção; é o próprio valor que vem dessas fontes e serve de substância para essa renda.[n]
Na fórmula trinitária, o capital, a terra e o trabalho aparecem como “três fontes diferentes e autônomas” do interesse (em vez de lucro), da renda fundiária e do salário, seus respectivos e legítimos frutos. Na realidade os três provêm de uma única fonte, o trabalho, o único capaz de produzir mais do que gasta:
Para o capitalista, o capital é uma máquina que suga perpetuamente o sobretrabalho; para o proprietário fundiário, a terra é um imã perene que atrai a fração do mais-valor sugada pelo capital; enfim, o trabalho é a condição e o meio renovados em permanência, que permitem obter, sob o nome de salário, uma fração do valor criado pelo trabalho, logo, uma parte do produto social medido por essa fração do valor, isto é, o necessário à vida.[o]
O rateio entre lucro, renda e salário é o resultado de uma distribuição leonina, em que o capital dita sua lei ao trabalho. É ainda o mais-valor que se cinde entre o lucro do empresário (capitalista industrial) e o interesse do banqueiro (capitalista financeiro). (...)
Durante o processo de circulação, o capital muda continuamente o figurino: entra em cena como dinheiro (D), sai por um lado e volta pelo outro em forma de máquinas e matérias-primas (P) – ou capital constante – e salários – ou capital variável. Daí sai de novo e se reapresenta como produto, mercadorias (M), que por sua vez se metamorfoseiam no ato de venda, para reassumir a forma dinheiro. Com o detalhe de que, ao voltar a essa forma (D’), o dinheiro inicial (D) terá procriado. Ao longo de suas metamorfoses, o capital cresce. Acumula-se. (...)
A lógica do sistema e a pluralidade dos capitais englobam a possibilidade de que a circulação possa se distanciar da produção e de que o capital bancário possa se autonomizar em relação ao capital industrial. Desse fato pode nascer a ilusão do dinheiro que faz dinheiro, do dinheiro que fecunda a si próprio, sem passar pelo circuito da produção e da circulação. Essa é a ilusão do pequeno poupador ou do acionista que se deleitam com a ideia de um mais-valor de 15% ao ano na Bolsa (diante de um crescimento real inferior a 3%) ou com a ideia de um interesse garantido de mais de 5%, sem se perguntar qual prodígio fará proliferar o dinheiro adormecido. Ele não enxerga o ciclo completo do capital (D-P-M-D’), só o circuito (D-D’).


E se o circuito financeiro se entusiasmar, se o círculo D-D’ da circulação financeira girar mais depressa do que o círculo da produção global (D-P-M-D’) e se, além do mais, maravilhados com esse prodígio, acionistas e banqueiros anteciparem os ciclos futuros e acelerarem o movimento, então o sistema se tornará hidrocéfalo, a economia especulativa ou virtual se tornará mais importante do que a economia real. É a famosa bolha, que, como o sapo da fábula, acabará por explodir[p].
Nessas proezas do crédito, o fetichismo do dinheiro atinge seu cume. Surge como um “ser místico”, dotado de poder mágico e miraculoso: “todas as forças sociais produtivas parecem vir do capital e não do trabalho. Parecem jorrar de seu seio”[q]. Isso porque, na esfera da circulação, “as relações em que o valor foi originalmente produzido são totalmente postas nos bastidores”[r]. O processo real de produção, isto é, o conjunto do processo de produção imediata e do processo de circulação, “origina novas estruturas, em que o fio condutor das conexões e relações internas se perde cada vez mais, as relações de produção tornam-se autônomas umas em relação às outras, os elementos de valor ficam estagnados em formas independentes umas das outras”[s]. Desse modo, uma parte do lucro separa-se e parece advir não mais da exploração do trabalho assalariado, mas do trabalho do próprio capitalista. E o interesse do capital parece independer do trabalho assalariado do trabalhador e ter no capital sua origem autônoma.”
[j] Autores franceses de romances policiais. (N. T.)
[k] Karl Marx, O capital, Livro III (São Paulo, Boitempo, no prelo). Aqui em tradução livre. (N. T.)
[l] Idem. (N. T.)
[m] Idem. (N. T.)
[n] Idem. (N. T.)
[o] Idem. (N. T.)
[p] Alusão à fábula “O sapo que queria ser boi”, de La Fontaine. (N. T.)
 [q] Karl Marx, O capital, Livro III, cit. (N. T.)
[r] Idem. (N. T.)
[s] Idem. (N. T.)



“(...) Ricardo ainda podia acreditar sinceramente na imparcialidade e na fiabilidade informativa do mercado, se não em tempo real, pelo menos a longo prazo, a posteriori. Mas e enquanto se espera? Enquanto se espera, a cisão entre venda e compra continua, e a “disjunção do processo de produção imediato e do processo de circulação aumenta a possibilidade da crise”. Essa possibilidade resulta do fato de que as formas que o capital percorre no ciclo de suas metamorfoses (de dinheiro – D – a meios de produção – P –, de meios de produção a mercadorias – M –, de mercadorias a dinheiro – D’) “podem ser, e são, separadas”. Elas “não coincidem no tempo e no espaço”. A fortiori, com a globalização: o capitalista individual entende o salário como um custo de produção puro, uma vez que o consumidor compra produtos importados e que seus próprios produtos são vendidos em um mercado longínquo. É rompido o chamado círculo virtuoso entre produção e consumo, venda e compra.
A separação da venda e da compra diferencia a economia capitalista de uma economia de troca, em que “ninguém pode vender sem ser comprador” (e reciprocamente), em que a maior parte da produção é diretamente dirigida para a satisfação de necessidades imediatas. “Na produção mercantil”, por outro lado, “a produção imediata desaparece”. Não se produz mais em função de necessidades, mas de lucro – que não se importa com necessidades sociais, apenas com demanda solvente, pois, “se não existe venda, é a crise”.
Na produção mercantil, para realizar o mais-valor que lhe é incorporado, “a mercadoria deve necessariamente ser transformada em dinheiro, mas o dinheiro não deve ser necessária e imediatamente transformado em mercadorias”. É por isso que venda e compra podem se dissociar. Em sua primeira forma, “a crise é a metamorfose da própria mercadoria, a dissociação entre compra e venda”; em sua segunda forma, é função do dinheiro como meio de pagamento autonomizado, “onde o dinheiro atua em duas fases distintas e separadas no tempo, em duas funções distintas”[n], de simples equivalente geral entre mercadoria e de capital acumulado.
Essa autonomização do dinheiro prolonga-se na separação entre lucro de empresa e juros. Ela termina por:
Dar à forma do mais-valor uma existência autônoma, causando a esclerose dessa forma relativamente à sua substância. Uma parte do lucro, por oposição à outra, desliga-se completamente da relação capitalista enquanto tal e parece derivar não da exploração do trabalho assalariado, mas sim do trabalho do próprio capitalista. Por oposição, o interesse parece então ser independente quer do trabalho assalariado do operário, quer do trabalho do capitalista, e ter no capital a sua fonte própria, autônoma. Se primitivamente o capital aparecia na superfície da circulação, de fetiche capitalista, de valor criador de valor, ele reaparece aqui sob a forma de juros, a sua forma mais alienada e a mais característica.[o]
Esse prodígio dos juros, do dinheiro que parece fazer dinheiro sem percorrer o ciclo das metamorfoses, sem passar pelo processo de produção e de circulação, é o estágio supremo do fetichismo e da mistificação alimentada pelos economistas vulgares.”
[n] Karl Marx, Teorias da mais-valia, cit., p. 509-10. (N. T.)
[o] Idem, O capital, Livro III, cap. 48. (N. T.)

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